domingo, 28 de dezembro de 2008

Cientista político Giuseppe Cocco - A nova (des) ordem do trabalho


A nova (des) ordem do trabalho
Por Ana Paula Conde

Para o cientista político Giuseppe Cocco, a cultura é o novo paradigma do trabalho e as favelas são “reservatórios de mobilização produtiva”


As condições de trabalho estão mudando rapidamente. A transformação contínua exige novos paradigmas de análise. Em tempos de globalização, flexibilização, terceirização, desemprego e sociedade de rede, não é mais possível pensar as relações de trabalho sob um único ponto de vista. Afinal, como afirma o cientista político Giuseppe Cocco, 51, não é o trabalho que está desaparecendo, mas sim o seu estatuto e o seu conteúdo que estão mudando radicalmente. “O desafio daqui para frente é a discussão sobre a necessidade de se pensar novas formas de remuneração e proteção”, diz Cocco.
De acordo com o pesquisador, pensar essa nova realidade é perceber como as relações tornaram-se mais fragmentadas, apesar de mais livres, e como as condições de trabalho da área cultural passaram a marcar os mais diversos setores.
“O trabalho na área cultural, por definição, é produzido por projetos (contratos). Ele tem fases de atividades com renda e fases sem projetos e sem renda. O que antes era especifico dessa área, é hoje a condição paradigmática do trabalho em geral. Daí a crise do ‘emprego’”, afirma.
Para discutir esses e outros temas, Cocco, que é professor de sociologia do trabalho na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador geral do Laboratório Território e Comunicação (LABTeC), organizou o seminário "A constituição do comum: cultura e conflitos no capitalismo contemporâneo", que, depois de ser realizado no Rio de Janeiro, em Vitória (ES) e em Salvador (BA), será apresentado no próximo dia 19 em Belém (PA). Da organização do seminário também participa a professora e crítica Ivana Bentes, diretora da Escola de Comunicação da UFRJ.
O objetivo do evento tem sido refletir sobre trabalho, produção cultural e trabalho informal no capitalismo contemporâneo. O projeto faz parte do programa Cultura e Pensamento 2007, do Ministério da Cultura (MinC). As discussões apresentadas nas mesas serão publicadas em livro e na revista “Global/Brasil”, da qual Cocco é editor.
Francês de origem italiana, Cocco é doutorado em história social pela Universidade de Paris I (Pantheon-Sorbonne) e vive há 12 anos no Rio. “Trabalho, desde o início, com as dimensões produtivas da comunicação e do território. Creio que o Brasil, apesar de tudo (e esse tudo é muito grande), é atravessado hoje por uma das dinâmicas sociais e políticas mais interessantes”, diz.
Além de coordenar o LABTeC, ele participa da edição das revistas “Lugar Comum” e “Multitudes”, esta fundada na França por intelectuais que trabalham com as idéias de Gilles Deleuze (1925-1995), Michel Foucault (1926-1984) e Antonio Negri (1933). Ele também coordena as coleções “Espaços do Desenvolvimento” (ed. DP&A) e “A Política no Império” (Civilização Brasileira).
Em 2005, lançou com o pensador italiano Toni Negri, do qual é constante colaborador, o livro “Glob (AL) - Biopoder e Luta em uma América Latina Globalizada” (Record), um balanço crítico da teoria da dependência no continente. Entre seus projetos para 2008, estão a publicação de uma coletânea de artigos escritos com Negri para a imprensa brasileira e a finalização de um livro que aprofunda os temas de “Glob (AL)”.
Na entrevista a seguir, Cocco fala sobre os principais estudos desenvolvidos atualmente pela sociologia do trabalho, da importância das atividades imateriais (cognitivas). Ele também defende uma renda universal para as populações e diz que as periferias das metrópoles brasileiras, apesar dos problemas, são celeiros de recursos produtivos.
“Há, por um lado, a pobreza, a miséria, a informalidade, a violência e o crime do poder; mas, por outro, encontramos um gigantesco reservatório de mobilização produtiva, cujo potencial se exprime, por exemplo, na capacidade que a multidão metropolitana mostrou ao construir seus espaços habitacionais de maneira independente, apesar das péssimas condições materiais”, afirma.
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O que motivou a realização do seminário "A constituição do comum: cultura e conflitos no capitalismo contemporâneo"?
Giuseppe Cocco: O tema é uma conseqüência da seguinte realidade atual: por um lado, temos a cultura como referente de um novo paradigma social e econômico; por outro, temos um novo tipo de trabalho que, exatamente, deriva desse novo paradigma e o determina. O trabalho, hoje em dia é cada vez mais fragmentado, mas também é cada vez mais livre.
Ora, ao passo que o mercado pretende se impor (ideológica e politicamente) como a esfera de regulação de um novo tipo de trabalho composto por fragmentos que competem entre si, as atividades produtivas aparecem, por trás da fragmentação, como sendo o resultado da combinação e recombinação de singularidades livres. A clivagem entre a condição de fragmento e a de singularidade é extremamente sutil: flexível, modulável e transversal.
Quer dizer, a mesma pessoa, as mesmas atividades podem ser atravessadas continuamente por condições de extrema subordinação (fragmentação) e de absoluta liberdade (singularidade). O desafio é trabalhar no sentido da abertura dessa clivagem em direção a um novo ciclo de conciliação e constituição dos direitos. Para isso, precisamos de uma base comum, ou seja, do reconhecimento das dimensões comuns das atividades colaborativas.
É por isso que a produção da cultura aparece como paradigmática: dela depende a agregação de valor aos suportes materiais e a organização colaborativa e em rede do trabalho. Ao mesmo tempo, a cultura aparece como a fronteira de constituição do comum.

A última etapa do projeto acontecerá no dia 19 de agosto, em Belém. Você poderia fazer um balanço do evento até o momento. Quais foram os pontos principais de discussão?
Cocco: Creio que o seminário está alcançando seus objetivos. Em Vitória, a discussão foi particularmente interessante, pois ela conectou as dimensões gerais desse debate sobre a constituição do comum com os projetos municipais que visam a construção de condições de acesso universal à rede, por exemplo com a construção de um anel lógico que permitirá a conexão gratuita e wireless à internet.
No Rio de Janeiro, podemos averiguar como o momento político e teórico brasileiro -e, mais em geral, latino-americano- indica hoje um horizonte aberto e inovador inclusive para as experiências européias que estavam presentes, da França, da Espanha e da Itália.
Em linhas gerais, me parece que avançamos na direção de uma reflexão que junte essas questões -da cultura, das redes, da comunicação e, pois, da TV digital, da propriedade intelectual, dos movimentos culturais etc.- com as que dizem respeito às novas formas de trabalho que as caracterizam: em particular o que chamamos de “precariado” da cultura.

Como é o trabalho desenvolvido no LABTeC. Quais são os principais temas de discussão no campo da sociologia do trabalho hoje?
Cocco: O LABTeC nasceu há cerca de 10 anos em torno da idéia de que estávamos entrando em um novo paradigma socioeconômico. Entendíamos que o pós-fordismo era e é pós-industrial, ou seja, baseado em um trabalho difuso. Para analisar a nova realidade devíamos pensar as relações entre a nova qualidade do trabalho (a comunicação) e as redes territoriais (o território). Nessa linha, organizamos cerca de 15 seminários internacionais, a coleção “Espaços do Desenvolvimento” (DP&A editora), bem como várias cooperações internacionais e algumas coletâneas.
No que diz respeito aos temas de discussão da sociologia do trabalho, diria que os sociólogos que, ao longo da década de 1990, insistiam em acreditar que a crise era apenas do emprego, devido às fracas taxas de crescimento, estão enfim levando em conta os temas da “precariedade”.
Quer dizer, eles estão considerando que não é o trabalho que está desaparecendo, mas sim que o seu estatuto e o seu conteúdo estão mudando radicalmente. O desafio daqui para frente é a discussão sobre a necessidade de se pensar novas formas de remuneração e proteção social. Nesse sentido, a discussão sobre a renda mínima e a renda universal é fundamental.

O que seria exatamente a renda universal?
Cocco: É uma renda incondicional para todo o mundo, inicialmente para os mais pobres. Sua justificativa está na necessidade de se reconhecer a dimensão produtiva da vida. Seu nível deveria ser pensado de maneira a permitir a reprodução mínima de cada um. Digamos que no Brasil isso deveria ser no nível do salário mínimo.

Somente neste ano, sete fábricas de componentes eletrônicos fecharam as portas na Zona Franca de Manaus em razão da concorrência chinesa. Qual é o impacto da economia chinesa nas relações de trabalho no Brasil e no mundo?
Cocco: Temos aí várias questões. A primeira, mais importante e estrutural, é a da deslocalização. É uma tendência que começou na década de 1970 e que nos últimos anos foi se aprofundando em direção à China, mas não apenas em relação a esse país.
A segunda questão diz respeito ao seguinte fato: se, por um lado, essa tendência levou à explosão do crescimento chinês a patamares extremamente elevados, por outro, ela é profundamente ligada a uma profunda definição das bases de acumulação. O que o país, por exemplo, agrega à fabricação material de um sapato (um tênis Nike, por exemplo) é muito pouco (algo entre 5% a 10% do total), ao passo que entre 90% a 95% do valor é gerado pelas atividades imateriais (cognitivas) de concepção, design, marketing, logística etc.
Ora, essas atividades não se deslocam segundo a mesma lógica que as fábricas. Não são os baixos salários, as infra-estruturas sociais precárias e o controle autoritário das relações de trabalho (ou seja, tudo que a China oferece) que essas atividades procuram. Elas buscam bacias metropolitanas altamente integradas por redes de circulação que, ao mesmo tempo, são redes de produção.
A terceira questão é a que coloca em xeque o modelo da própria Zona Franca de Manaus -e que atualmente está se querendo multiplicar com as 17 ZPEs (Zonas de Processamento para Exportação) prestes a serem aprovadas pelo Congresso. Não adianta querer juntar baixos custos de mão-de-obra e subsídios fiscais.
Em primeiro lugar, as plantas industriais que assim se desenvolvem não arrastam o desenvolvimento dos territórios, onde na realidade vão funcionar como verdadeiros enclaves.
Em segundo lugar, trata-se de especializações ambíguas em função de baixos custos de mão-de-obra, que não vão na direção de um desenvolvimento endógeno capaz de agregar as atividades materiais e imateriais. Ora, sem essas últimas, não há nem valor agregado (geração de riqueza), nem criação de emprego, que não está mais nas montadoras, mas nos serviços de todos os tipos.

Alguns analistas defendem a criação de uma espécie de ISO para assegurar aos consumidores que determinado produto não utilizou mão-de-obra escrava ou infantil, por exemplo. Qual é a sua opinião sobre a adoção dessa medida?
Cocco: Isso pode ser bom e ruim ao mesmo tempo. Por um lado, é evidente que podemos e temos que ser a favor da implementação de formas de regulação que obriguem as empresas a competir por “cima” e não por “baixo”. Ou seja, competir pela inovação, e não pelo uso de formas de trabalho “indecentes”. Isso, aliás, vale também para as questões do meio ambiente.
Ao mesmo tempo, contudo, precisamos evitar que isso seja usado pelos países mais desenvolvidos como mais uma barreira protecionista de suas indústrias que, no fim das contas, acabaria tendo resultado oposto: travando a modernização da produção nos países emergentes e obrigando-os a especializar-se nas atividades mais tradicionais, nas quais encontramos as formas mais degradantes de trabalho.
Em linhas gerais, o que me parece é que esse debate deve se articular em dois momentos complementares. No nível internacional, no aprofundamento de uma diplomacia Sul-Sul, para que o liberalismo dos países do G8 e mais em geral dos vários órgãos internacionais (Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial etc.) não continue funcionando na geometria variável. E no nível nacional (e regional, da América Latina), para que se pense a erradicação das formas degradantes de trabalho de um outro ponto de vista.
Vamos ver o exemplo dos cortadores de cana. Por um lado, há um certo moralismo por parte dos que enxergam, nos objetivos de produção impostos pelos usineiros, apenas a lógica do patrão. Claro, essa lógica é neo-escravagista. Mas, na realidade, há também uma lógica desses trabalhadores sazonais, que provêm de condições de vida ainda mais duras, e, visando o maior ganho líquido possível, acabam aceitando metas de produção estafantes.
Por outro lado, escamoteia-se o fato mais relevante: que o único jeito de “cortar” essas condições de trabalho dos cortadores implica em uma mecanização do trabalho do campo, que reduziria ainda mais o emprego. Há uma contradição entre condenar essas condições de trabalho e continuar assumindo o emprego como a única maneira de se integrar socialmente.
A verdadeira alternativa está em sustentar o processo de mecanização e assumir, ao mesmo tempo, o desafio de se pensar a distribuição de renda (e o próprio sistema de proteção social) de maneira independente da relação de emprego: por exemplo, massificando ainda mais o Bolsa Família.

Estamos na era da informação e, quanto mais bem educado é um povo, maior é a possibilidade de desenvolvimento de um país. A nova realidade aumentou a distância entre países pobres e ricos?
Cocco: Podemos dizer mais uma vez que a distância aumentou e, ao mesmo tempo, diminuiu. Por um lado, na medida em que o conhecimento é um dos elementos estratégicos do novo regime de acumulação, países como o Brasil, que ainda não conseguiram democratizar seu sistema educacional, vêem aumentar as dificuldades para se posicionar no novo contexto global. É mesmo que constatamos ao falar, antes, da China. O Brasil perde as plantas de fábrica sem especializar-se na produção do intangível (conhecimento, tecnologia etc.).
Por outro lado, a “era da informação” é, na realidade, uma era das redes e, dentro da dinâmica do trabalho colaborativo em rede, é o próprio conceito de conhecimento e de educação que muda. Seja do ponto de vista de como ele se propaga, seja do ponto de vista de como ele se produz e reproduz. As redes se integram sem respeitar fronteiras, de maneira horizontal e difusa -rizomática. Elas atravessam os muros das universidades, dos bairros, das regiões e dos países. E esse movimento encolhe as distâncias.
São esses movimentos contraditórios e paradoxais que definem a globalização como um não-lugar, como um espaço policêntrico, no qual centro e periferia se misturam sistematicamente. As contradições e os conflitos estão todos dentro desse novo espaço, por mais fragmentado e desigual que seja.

De acordo com a ONU, o nível de urbanização mundial ultrapassou os 50% em 2007. Qual o impacto desse quadro para as relações trabalhistas? A tendência é o aumento da informalidade e da precariedade?
Cocco: Isso não é novidade para o Brasil. Há um discurso que apreende a dinâmica das grandes metrópoles nos mesmos termos que se discute a questão ambiental, o efeito estufa e o aquecimento global. As metrópoles seriam como que um “câncer”, algo que precisaríamos extirpar, e com elas os pobres que as habitam e as constroem.
Os conservadores não abrem mão do velho sonho de “expulsar” os pobres, colocá-los naqueles “bantustan” edificados, não por acaso, pelo regime sul-africano do apartheid. Mas as críticas de esquerda acabam, paradoxalmente, não sendo muito diferentes. Trata-se sempre de “eliminar” os “slums” (favelas), mesmo que isso passe pela erradicação da pobreza.
Ora, nesse sentido, a pobreza não deixa de ser apreendida como uma doença, cujo combate nos faz pensar na higiene, do mesmo modo que essa nos faz pensar na eugenia, a mãe de todos os racismos científicos.
Mike Davis explicita a dimensão negativa da urbanização, fazendo abertamente referência a uma degradação social e urbana que corresponderia a um tipo de “brasilianização” do mundo, no livro “Planeta Favela” (Boitempo, 2006). Nisso, o autor se associa àqueles setores da elite brasileira que não abriram mão do sonho de remover as favelas e os pobres de volta ao campo da invisibilidade.
Eu não compartilho dessas visões. Pelo contrário, pois nas metrópoles brasileiras encontramos elementos ambíguos e dramáticos de um único processo. Há, por um lado, a pobreza, a miséria, a informalidade, a violência e o crime do poder; mas, por outro, encontramos um gigantesco reservatório de mobilização produtiva, cujo potencial se exprime, por exemplo, na capacidade que a multidão metropolitana mostrou ao construir seus espaços habitacionais de maneira independente, apesar das péssimas condições materiais.
Esses dois lados estão dramaticamente ligados (uma ligação que passa pela quase guerra civil), mas é claro também que é na inflexão dessa dinâmica e dessas ambigüidades -e não contra elas- que precisamos apostar. Aliás, é exatamente nas metrópoles brasileiras e em suas periferias que se encontram os maiores recursos produtivos a serem mobilizados na economia das redes. A mobilização produtiva da metrópole indica um novo terreno constituinte de radicalização democrática, do qual os movimentos culturais das periferias são a maior expressão.

Como reverter a tendência à informalidade e à terceirização. Quais são as possíveis saídas para esse problema?
Cocco: A questão não é como “reverter” a informalidade, a terceirização e a precarização, e sim como deslocar o problema. Parte dele é o fato das novas capacidades técnicas (informacionais) que o capital tem de usar as diferentes condições sociais e níveis de desenvolvimento para incluir (colocar para trabalhar) sem por isso integrar socialmente, fragmentando a relação salarial do ponto de vista do que ela representava em termos de conflito entre capital e trabalho.
A outra parte disso é o fato de que a saída para além da sociedade salarial acontece na continuidade inercial de suas instituições. Essa continuidade das instituições oriundas da relação de emprego faz com que, por um lado, todo o sistema de proteção social continue a organizar-se em função de uma relação de emprego que não para de encolher. Por outro, isso faz também com que a multiplicidade das condições de trabalho seja reduzida, no plano da proteção e da formalidade, à grande clivagem que opõe quem está dentro a quem está fora.
Precisamos, pois, trabalhar para a constituição de um novo pacto, de um novo sistema de proteção, que ultrapasse e desloque essa clivagem. O problema não é ser flexível, mas não ter proteção.

Em "Glob (AL): Biopoder e Luta em uma América Latina Globalizada", você afirma que vivemos uma época de transformação e de possibilidade de uma nova ordem de valores e instituições, radicalmente democráticos, na qual a forma de governar está mudando, com maior participação dos movimentos populares. Mas, considerando as questões relativas ao trabalho, como se daria essa transformação? É possível resistir às pressões de instituições internacionais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), por exemplo?
Cocco: É possível resistir, sim, às instâncias oligárquicas de governo da globalização. É possível e, sobretudo, necessário, pois não há alternativa. Sem essa desconexão, haveria conseqüências sociais e econômicas ainda piores, e isso levaria a quê? A um soberanismo impotente, que só encontraria espaço nas brigas com a Bolívia ou a Venezuela.
Trata-se de governar a interdependência, e o governo Lula tem feito avanços importantes nesse sentido. Hoje em dia, os constrangimentos externos são bem menos importantes do que as questões internas da democratização, da distribuição de renda e do meio ambiente.
Trata-se de ver que distribuição de renda (políticas sociais) e mobilização política (radicalização democrática) não constituem mais elementos sucessivos às taxas de crescimento (política econômica) e à tomada de decisão (política de Estado). A qualidade da política econômica e da tomada de decisão do governo depende das políticas sociais e da radicalização democrática, pois essas são imediatamente produtivas.

O livro foi escrito em 2005, em um período de "busca de novos equilíbrios internacionais e de experimentação de transformacões político-sociais na América Latina", como você escreve. O que mudou nesses dois anos? Como você vê a proposta de mudança na CLT?
Cocco: Vejo a proposta de mudança da CLT como uma armadilha. É o velho discurso. A informalidade existe porque os custos da formalização são excessivos e acabam travando o processo de integração formal da maioria. É a velha tática de querer colocar aqueles que estão fora contra aqueles que estão dentro.
Contudo, se os sindicatos e os movimentos sociais organizados pensam que a resposta deve se resumir na mera defesa da CLT e do status quo, eles estão errados, pois vão entrar no mesmo esquema.
Do ponto de vista da transformação, mais uma vez, é preciso deslocar essa armadilha, pensar e constituir o comum. Isso passa pela discussão sobre a distribuição de renda, como já disse, em direção a uma renda universal.

Publicado em 2/8/2007
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Ana Paula Conde
É jornalista, mestre em ciência política pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutoranda em história, política e bens culturais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Revista Trópico

Filósofo Franklin Leopoldo e Silva - O bem supremo


O bem supremo
Por Humberto Pereira da Silva

“Para o brasileiro, ser feliz é uma questão de orgulho”, diz o filósofo Franklin Leopoldo e Silva, que lança o livro “Felicidade”


A palavra grega “eudaimonía” encontra tradução na nossa “felicidade”. Para Aristóteles, a vida feliz, o bem viver, o bem agir, ou seja, a felicidade, é o bem ético ao qual todo indivíduo aspira. O bem ético pertence ao gênero da vida excelente, e a felicidade é a vida plenamente realizada em sua excelência máxima.
Depois de Aristóteles, antes dele e nas mais diversas culturas e sociedades, a felicidade em suas várias traduções exprime maneiras de se postar e se sentir no mundo. Muitos são os caminhos; muitas as direções.
Parte desses caminhos são abordados no novo livro do filósofo Franklin Leopoldo e Silva (“Felicidade: Dos Filósofos Pré-socráticos aos Contemporâneos”, ed. Claridade, 96 págs.).
Professor de história da filosofia contemporânea na USP, Leopoldo e Silva dedica-se a questões que enlaçam temas como a felicidade, a liberdade, o dever, a subjetividade, a alteridade, a escolha. Recentemente, participou do ciclo de palestras “Vida Vício Virtude”, com a curadoria de Adauto Novaes. Em sua palestra, ele tratou do “vazio do pensamento”.
Na entrevista a seguir, Leopoldo e Silva fala de seu novo livro, aborda a importância da fé para o Islã e discute a maneira como os brasileiros encaram a felicidade. “Para o brasileiro, ser feliz é uma questão de orgulho, o que faz com que ele se declare feliz antes mesmo de examinar com um pouco de lucidez quais as condições reais da felicidade”, afirma.
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No livro “Felicidade: Dos Filósofos Pré-socráticos aos Contemporâneos”, o sr. fez um corte circunscrito a alguns filósofos e à filosofia ocidental. Eu pergunto: que diferenças o sr. vê entre o nosso modo ocidental de conceber a felicidade e, por exemplo, o modo oriental?
Franklin Leopoldo e Silva: A idéia ocidental da felicidade está sempre comprometida com determinados pressupostos metafísicos. Eu diria que esses pressupostos podem se resumir numa pressuposição principal que é o dualismo. Dualismo, tanto no que concerne ao ser humano, quanto à relação que ele mantém com as coisas, que é sempre dividida.
Por exemplo: a alma e o corpo, as paixões e a razão, o exterior e o interior, os objetos e o sujeito. A partir daí, a filosofia ocidental se desenvolveu na tentativa de promover ou uma hierarquia ou uma conciliação. E a felicidade vai aparecer na medida em que uma determinada teoria ou um determinado indivíduo tiver êxito em realizar essa conciliação.
Essa idéia só começa a se modificar um pouco quando aparece na filosofia contemporânea uma crítica dessa divisão. Por conta disso, você tem certa aproximação com o pensamento oriental, que em geral não é dualista e considera certa integração do homem na totalidade. Na medida em que a filosofia ocidental foi criticando esse dualismo rígido, essa separação, ela foi criando certas afinidades com o pensamento oriental, não por influência, mas por meio de uma crítica aos seus próprios pressupostos.
Hoje você tem a idéia de que a alma e o corpo, o espírito e a matéria, o indivíduo e a coletividade não são coisas que se oponham e se separem tão rigidamente como se pensava. A ciência e a reflexão filosófica vêm aos poucos percebendo que esse dualismo tradicional é insustentável. Hoje a marca do dualismo no Ocidente é bem mais fraca, e isso se reflete na ética e na noção de felicidade.

Qual a diferença mais marcante entre o que os gregos concebiam como felicidade e o que nossos dias entendem por felicidade?
Leopoldo e Silva: A principal diferença, creio, está no surgimento da noção moderna de sujeito, que se torna o centro da reflexão filosófica em vários aspectos e também no que concerne à realização do indivíduo como vida feliz.
No caso dos gregos, como não se tem essa marca de subjetividade, embora se tenha a noção de indivíduo, você tem certa integração entre o indivíduo e a comunidade, principalmente no sentido ético e político. A partir daí, tem-se uma idéia de felicidade que não é centrada na busca individual, mas centrada na cidade, na comunidade ética e política, e a busca individual ficaria em consonância com a realização dessa felicidade coletiva.
Do século XVI para cá, como se tem a ética e a política centradas no indivíduo, a idéia de felicidade está comprometida com valores individuais. O que não acontecia numa civilização mais comunitária, como a dos gregos e da Idade Média.
Na sociedade medieval também não se tem essa preponderância do indivíduo. Portanto, os valores não são construídos em torno do indivíduo, mas de alguma coisa que o transcende, no sentido religioso, metafísico, ou então de alguma coisa que o transcende na direção política: a comunidade maior da qual ele faz parte e onde ele tem de se realizar na busca de uma vida feliz.

Em seu livro o sr. entende que o epicurismo –e eu creio que também o estoicismo– tem sido vitima de uma visão distorcida: exalta-se principalmente o que nele diz respeito ao prazer físico e imediato. Essa distorção não tem a ver também com uma “adaptação” da filosofia antiga para o modo de vida contemporâneo?
Leopoldo e Silva: Acho que tem a ver com o que nós falamos antes. A noção de felicidade, que está relacionada com o prazer no epicurismo, foi apropriada por meio de uma leitura moderna em que a felicidade e o prazer são individuais. E é isso principalmente que distingue a doutrina de Epicuro daquilo que nós entendemos por prazer e felicidade.
A partir daí, você tem a noção de prazer ligada a interesse próprio, voltado para questões materiais, algo próprio da civilização capitalista, e projetamos isso em Epicuro. Quando, ao contrário, a leitura dos textos de Epicuro mostra que o indivíduo não é nada sem a comunidade.
Tanto é que no inventário que Epicuro faz dos prazeres, um dos que ocupam o topo da lista é a amizade. Porque é o convívio –constantemente estar com o outro– que é motivo de prazer e felicidade. Não tem nada a ver com a realização de interesses próprios. Hoje fala-se em indivíduo “epicurista”, mas para Epicuro o indivíduo sozinho não pode ser feliz.

Essa distorção vale também para o estoicismo?
Leopoldo e Silva: Penso que para o estoicismo vale no sentido de que eles têm ainda uma integração com o universo que ultrapassa largamente a questão do convívio humano e do social: uma integração cósmica. Para o estoicismo a vida racional jamais é o indivíduo privado fazendo uso de sua razão. Quanto mais ele se integra na razão universal, na necessidade cósmica, mais racional ele é.
Então, muitas vezes ele tem de abdicar de si, de seus interesses, para poder usufruir de uma racionalidade maior e também de uma vida moral mais efetiva. Hoje em dia, para nós, isso é secundário: primeiro vem o interesse privado e depois, eventualmente, alguma coisa a mais.

Como o aparecimento do cristianismo alterou a idéia de felicidade e que reflexos dessa alteração se fazem sentir nos dias de hoje?
Leopoldo e Silva: A diferença está na noção religiosa de transcendência. Para os gregos, a religião popular não era baseada numa transcendência, como será na religião cristã.
A transcendência no caso dos gregos estava, por exemplo, na metafísica platônica, na religião órfica, que não era uma religião popular, mas ela não é encontrada na religiosidade mais comum, que era pública. E, no caso do cristianismo, você tem a transcendência muito bem estabelecida como sendo um dos conceitos fundamentais. Se há alguma coisa de que o filósofo cristão não pode abdicar é a transcendência do divino.
Tem-se, então, um investimento muito preciso dessa transcendência, que faz com que o cristão viva uma possibilidade futura de realização da felicidade. A transcendência acaba tornando-se o lugar da vida plena, da felicidade, e nessa medida ela justifica uma vida não tão feliz e uma certa incompletude, o sofrimento na vida terrena.
É a partir da projeção da felicidade na vida futura que há a possibilidade de estabelecer uma idéia completa de felicidade, coisa que do ponto de vista da vida mundana não se poderia estabelecer, porque a experiência não permite que se goze de plena felicidade na vida terrena.
O cristianismo proporcionou a possibilidade de transformar o conceito de felicidade em realidade a ser vivida no futuro. O cristianismo dá ao mundo futuro, ao outro mundo, uma realidade mais efetiva, a partir da noção de um Deus pessoal. Por conta disso, então, se tem essa outra possibilidade como uma realidade muito forte. E quanto mais forte for essa realidade futura, mais forte também é a esperança de felicidade a ser obtida.

Mas, na vida terrena, falamos em experiência mística. Uma experiência mística pode ser acompanhada de um estado feliz.
Leopoldo e Silva: A experiência mística, do ponto de vista do pensamento ocidental, está muito ligada à religião, embora ao longo da história da cultura haja alguns episódios pontuais em que ela apareça numa forma mais ampla. E, através disso, como do ponto de vista cristão, o dualismo é muito marcante, a experiência mística se torna sempre alguma coisa intermitente, porque é algo que tem a ver com certo arrebatamento: seu caráter é incontrolável. O que é diferente dos orientais, em que se pode chegar a um estado de plenitude através de certa disciplina interna.
Acho que a experiência mística do ponto de vista ocidental está muito comprometida com essa descontinuidade, que faz com que ela seja interpretada como um sinal de outra coisa. Ela não vale por si mesma. Ela vale para assinalar aquilo que se poderia usufruir e que talvez se venha a ter numa vida futura. Isso, do ponto de vista religioso. Você tem em Bergson, por exemplo, a experiência mística como integração com a totalidade, da qual a experiência religiosa é uma marca.
Veja bem, no caso de Bergson você chamaria essa experiência mística de um certo contato com a totalidade, dotada, digamos, de um teor divino. Não porque seja transcendente, mas simplesmente porque é uma experiência completa. Mas para ter essa concepção é preciso sair da representação dualista que está muito implicada no cristianismo. Quando você fala, por exemplo, do místico como uma espécie de comunicação direta com Deus, você já está assinalando certa transcendência, certo percurso na direção de alguma coisa e não uma integração na totalidade.
Eu acho que a palavra “mística”, se for tirado o seu conteúdo religioso, se nós a concebêssemos de forma mais próxima à dos orientais, seria simplesmente uma experiência da totalidade, como no caso de Bergson. E, então, essa experiência mística deixaria de ter esse caráter de transcendência religiosa, seria simplesmente uma realização maior.
Nós não compreendemos a experiência mística, do ponto de vista cultural. O que nós tentamos compreender é a experiência mística de contato com o divino, mas naquilo que ela tem de compreensível na nossa situação presente, uma vez que ela só seria de direito compreensível quando se está numa outra situação, que é a de beatitude.

O tema da “felicidade” nos leva a considerar o “Outro”. Dos filósofos que trataram da questão da alteridade, no livro o sr. dá destaque a Levinas e Habermas. Em que o sr. acredita que eles podem nos ensinar a compreender melhor os preceitos de felicidade, como os que estão embutidos, por exemplo, no islamismo?
Leopoldo e Silva: Eu acho que, no caso do Levinas, você tem a possibilidade de compreensão do “Outro” na medida em que você se depara com o mistério do “Outro”. Há algo de místico que faz com que você tente se afastar um pouco de certas características do pensamento ocidental em que o reconhecimento do “Outro” depende da compreensão, em que você tem que projetar uma inteligibilidade para compreender o mundo e o “Outro”. E eu acho que Levinas se afasta um pouco disso, quando vê na face do “Outro” um mistério no qual você se reconhece.
Nesse sentido, é condição de um auto-reconhecimento. Quer dizer, você não reconhece o “Outro”, na verdade o “Outro” é que faz com que você se reconheça; e essa mudança de paradigma –mudar do “Eu” para o “Outro”–, no caso do Levinas, permite uma abertura maior na direção da diferença.
Isso já não acontece no caso do Habermas. Nele há uma concepção tradicional de racionalidade, onde ele introduz elementos novos, como a questão lingüística e comunicacional, mas conservando aquele estilo de razão ocidental, cartesiana e kantiana. Então é nesse universo que se dá a alteridade. A idéia reguladora da relação com o “Outro” é um pleno entendimento. Habermas não deixa de ter aquele paradigma que o faz acreditar no reconhecimento por via de uma instância transcendental que permite a comunicação. A razão comunicativa é a razão transcendental posta no discurso.
A conservação desse paradigma limita o contato com a diferença. Porque nem sempre você precisa estabelecer uma inteligibilidade com o “Outro”. Enfim, há um racionalismo em Habermas, de estilo tradicional, e isso limita a experiência, do ponto de vista ético, impedindo que ela seja um fluxo real de diferenças. Na verdade, a montagem do discurso da inteligibilidade comunicativa supõe uma tradução consensual, de maneira a fazer com que as diferenças se adaptem a um certo padrão.
No caso do Islã eu vejo certa prevalência da fé. Eles discutiram esse problema, que é um problema grave para nós, ocidentais: qual é a conciliação possível entre razão e fé? De alguma forma nós chegamos a equacionar esse problema. Eles passaram por esse problema, mas a continuidade da tradição deles resultou num privilégio da fé. De tal maneira que é por isso que persiste entre eles as sociedades teocráticas, em que a fé e os preceitos religiosos assumem um caráter que para nós até parece absurdo: o de um governo e de um Estado que se podem reger por parâmetros religiosos.
Isso se justifica por uma cultura em que, na disputa entre fé e razão –eles foram inicialmente aristotélicos–, a fé conservou aquele privilégio que ela tinha, por exemplo, num primeiro momento da Idade Média ocidental Nós herdamos esse problema deles e através de certa evolução da reflexão filosófica medieval e moderna esse problema apareceu como que se fosse resolvido em favor da razão.
No caso do Islã prevaleceu certa supremacia da fé. E isso explica muita coisa do ponto de vista dos costumes e da força da tradição e de certa maneira a submissão de uma racionalidade, que deveria atuar de direito, a parâmetros que nós não compreendemos. Então nós os chamamos de fanáticos. Nós não compreendemos os parâmetros que os governam, que para nós são irracionais. Mas aí está a diferença de uma cultura que se desenvolveu sob a égide da fé.

Uma pesquisa realizada pelo Datafolha em 2006 mostra que 76% dos brasileiros se julgam felizes. A que o sr. atribui esse resultado?
Leopoldo e Silva: Em primeiro lugar, há uma característica geral do mundo contemporâneo, que é o individualismo. Quando o indivíduo pensa a felicidade como satisfação imediata de seus interesses pessoais, ou ele já se sente feliz na medida em que os realiza, de fato ou ilusoriamente, ou ele projeta a felicidade na possibilidade de satisfazer necessidades individuais e imediatas. Isso o impede de pensar na felicidade como condição social, relacionada com a política.
Nesse contexto, quem não for feliz será o único responsável pela própria infelicidade – uma espécie de incompetência que ninguém gosta de admitir, razão pela qual todos tendem a se declarar felizes, da mesma maneira que todo mundo se declara justo ou honesto sem saber muito bem o que isso significa.
Para o brasileiro, ser feliz é uma questão de orgulho, o que faz com que ele se declare feliz antes mesmo de examinar com um pouco de lucidez quais as condições reais da felicidade. Isso se reflete no conformismo e no quietismo político, que hoje proliferam.

Há algo em nossa formação histórica que explique uma "felicidade" brasileira, diferente da de outros povos?
Leopoldo e Silva: Há uma tradição ufanista que resiste à prova da realidade e que encontra muitos pretextos para se afirmar: Carnaval, futebol, musicalidade, a proverbial cordialidade, a natureza pródiga, a beleza das mulheres etc. As elites sempre souberam manipular muito bem essa tendência e reforçá-la, até às custas de uma antropologia vulgar que encoraja a alienação e uma alegre resignação.
Isso faz com que durante toda a nossa história as pessoas se tenham contentado com simulacros e espetáculos: independência, república, democracia etc. A recusa a encarar a infelicidade é a mesma que se tem em encarar a realidade histórica. Essa situação está muito bem descrita na letra da música do Chico Buarque “Vai Passar”.

No ciclo de palestras “Vida Vício Virtude” o sr. falou sobre “O vazio do pensamento”. Poderia falar sobre o tema de sua conferência?
Leopoldo e Silva: Veja que no contexto do individualismo moderno o indivíduo põe o seu interesse próprio na exterioridade, na realização da exterioridade. E, portanto, na realização das aparências úteis, na realização do empreendimento. Eu toquei na palestra do ciclo em dois pontos: a tecnociência e o empreendedorismo moderno.
Coloquei esses dois parâmetros para mostrar uma certa realização na qual o indivíduo compõe um “Eu” externo. E esse “Eu” externo é alimentado pela produção, pelo ciclo de produção e consumo. Quis mostrar também como ele é uma produção externa de certa história social e psicológica que tende para a homogeneidade.
Acho que um tema importante na atualidade é o fato de que as pessoas confundem a independência individual com a liberdade efetiva. O indivíduo é independente porque ele é o centro do mundo, mas a questão é saber se essa independência não o coloca dentro de uma série de outros indivíduos tão independentes quanto ele, o que corresponde a certo padrão social de conduta, de pensamento, de desejos. E dessa maneira você tem o esvaziamento do exercício da subjetividade, que seria uma produção singular do indivíduo por ele mesmo.
E você tem então essa construção uniforme que é muito encorajada pela sociedade, porque com isso você tem controle. A gente nunca viveu numa sociedade tão individualista e ao mesmo tempo tão controlada. Se cada um faz o que quer, como você pode controlar?
Na verdade nós vivemos uma diferença, que é a diferença da série –Bergson fala disso, Deleuze também–, quando você tem elementos separados e nem por isso os elementos são diferentes. Você pode ter uma série de coisas bem separadas uma das outras, porém iguais. Acho que o truque da sociedade contemporânea é esse: você é completamente independente do outro indivíduo e faz o que quer, desde que faça exatamente o que o outro faz.
Há padrões de produção, padrões de consumo e um controle dessa série de indivíduos separados, mas não livres no sentido de cada um viver a sua singularidade. É evidente que assim se torna muito mais fácil o controle e a administração da sociedade. Por outro lado, essa homogeneidade é ao mesmo tempo um esvaziamento da singularidade.

A seguir o que o que o sr. falou sobre independência individual, nas discussões atuais como situar a questão do aquecimento global? Haveria uma relação inversa entre bem-estar propiciado pelas inovações tecnológicas e o uso abusivo da independência individual? Penso nas conseqüências para as sociedades futuras da prerrogativa do indivíduo.
Leopoldo e Silva: É, eu acho que isso é uma decorrência de um esvaziamento do exercício subjetivo da liberdade responsável. E, nesse sentido, quem equacionou o problema de forma mais clara foi Hans Jonas. Porque a tese dele é que você tem um exercício objetivo da liberdade quando você distingue entre o que você pode fazer e o que você deve fazer. E quando você é apenas uma força da natureza você não distingue entre poder e dever, por isso o indivíduo contemporâneo é uma força cega.
Então eu acho que o avanço tecnológico e o aparecimento da razão instrumental vão um pouco na direção da questão da hegemonia do poder. Eu posso fazer, então faço! E Hans Jonas se pergunta: eu posso fazer, mas eu devo? E nesse dever fazer entra a responsabilidade; já no poder entra a liberdade, mas naturalizada, isto é, cega.
Se não há equilíbrio entre essas duas coisas, acontece o que está acontecendo agora: o uso irresponsável do poder tecnológico, que segue o caminho da destruição E a responsabilidade, no caso, consistiria em pensar não apenas na vida imediata, mas nas gerações futuras, que vão arcar com as conseqüências. O que eu acho que é uma questão ética importante, porque, quando você coloca a coisa dessa maneira, você faz um triângulo em que se tem a liberdade, a responsabilidade e a solidariedade, pensadas numa escala maior do que o puro presente.
Quando você tem uma noção mais ampla de responsabilidade e de solidariedade, tem-se um exercício de liberdade medido por isso, o que não significa restringir a liberdade, mas justamente não separá-la da responsabilidade e da solidariedade, para que o poder não se isole de outros parâmetros. A questão ecológica deveria ser discutida nesses termos, mas é muito difícil você colocar esses parâmetros dentro de um contexto social em que se tem uma mentalidade imediatista e predatória.

O sr. falou de Levinas e Habernas, para tratar da questão da alteridade. Eu gostaria que o sr. falasse sobre o tema da felicidade para um pensador atual controverso, como Peter Singer, que defende posições polêmicas sobre temas como aborto, eutanásia e matança de animais.
Leopoldo e Silva: Creio que o viés analítico do pensamento de Peter Singer o impede de colocar as questões éticas com a profundidade e o alcance necessários. A tendência a considerar a ética como uma forma de solucionar problemas torna a reflexão um tanto curta. Opções éticas não se restringem à validade de argumentos ou à simples racionalidade formal de premissas e conseqüências. A ética é uma forma de pensar e de agir mais ampla do que a lógica e a técnica.

Publicado em 5/7/2008
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Humberto Pereira da Silva
É professor de filosofia e sociologia no ensino superior e crítico de cinema, autor de "Ir ao cinema: um olhar sobre filmes" (Musa Editora).

Revista Trópico

Michel Guibal - E a China descobriu Lacan

E a China descobriu Lacan
Por Leneide Duarte-Plon

O psicanalista francês Michel Guibal fala das dificuldades de traduzir para o chinês os textos lacanianos, cuja difusão cresce no país


A televisão francesa Arte exibiu em julho o documentário “Édipo na China”, que trata da recente implantação da psicanálise lacaniana no país. O filme é sobretudo um perfil de Huo Datong, que já foi chamado de “Freud chinês” por um jornal local. No documentário, Datong fala de seu trabalho como psicanalista formador de outros psicanalistas na universidade de Chengdu.
Huo Datong é o primeiro psicanalista lacaniano da China e fez sua análise em Paris, com Michel Guibal, que também aparece no documentário, trabalhando em Pequim e em Chengdu, onde ele vai duas vezes por ano. Em Pequim, Guibal trabalha como psicanalista com crianças autistas.
O documentário recebeu o Prêmio Minkowska 2008 no 30º Festival Internacional Video Psy, dado pela Association Françoise et Eugène Minkowski.
Em entrevista a Trópico, Guibal fala das dificuldades de traduzir Freud e Lacan para o chinês e conta como a psicanálise lacaniana vai sendo aos poucos difundida no país _até agora mais próximo da IPA (International Psychoanalytical Association) e do trabalho de psicanalistas alemães.
“A especificidade de Huo Datong é que foi o único a vir à França para fazer uma análise. Sendo assim, foi necessariamente o introdutor do pensamento de Lacan na China, o que não era evidentemente o objetivo dos membros a IPA, para quem Lacan não é uma referência”.
Apesar de não haver controle direto dos pacientes de Huodatong, a questão das liberdades individuais na China comunista ainda é um problema delicado, como Guibal conta a seguir.

O documentário "Édipo na China" mostra a implantação da psicanálise na China. Qual foi o papel de Huo Datong ?
Michel Guibal: O pensamento freudiano foi introduzido na China no início do século XX, nos anos 20, teve sua aventura, levando-se em conta todos os acontecimentos sociais e políticos da China, proibições, distorções etc.
Em 1949, houve a Revolução Comunista e todas as proibições que sufocaram a psicanálise. Mas antes disso houve traduções. Como muitas outras coisas, elas foram escondidas nas bibliotecas e proibidas, mas, como sempre, há pessoas que as descobriram. De qualquer forma, a influência que o pensamento freudiano teve no início do século desapareceu.
A especificidade de Huo Datong é que sua formação é francesa, quando o acesso a Freud na China se fazia por traduções do alemão ou do inglês. Ele havia feito psicanálise na França, foi o único chinês a ter feito isso até agora.
Ele foi introdutor do pensamento de Lacan na China, o que não era evidentemente o objetivo dos membros a IPA (International Psychoanalytical Association), para quem Lacan não é uma referência. Datong vive num mundo onde existe uma influência alemã desde os anos 20. O documentário mostra que os alemães estão lá, na China, construíram relações.

Eles também formaram psicanalistas chineses?
Guibal: Claro. Mas a questão é saber o que é formar, porque encontrei psicoterapeutas que iam a seminários feitos por um psicanalista alemão a cada seis meses e, de repente, usavam a palavra psicanalista no lugar de psicoterapeuta. Será que é isso formar? Não tenho um julgamento pejorativo com relação a isso.
Em Viena, as pessoas que vinham ver Freud não faziam uma análise e se tornavam todos psicanalistas. Aos 22 anos, Wilhelm Reich vai ao encontro de Freud, e três meses depois Freud lhe envia pacientes. Ele não fez análise, mas formou ele próprio analistas.
O filme me fez descobrir coisas. Digamos que os alemães têm uma maior integração no meio médico e psicológico chinês que Huo Datong. Eles passam pelo canal da psicoterapia e da psiquiatria e, por isso, têm relações com pessoas que detêm o poder nesses meios e acabam tendo relações com o poder chinês, necessariamente. Enquanto Huo Datong vem de outro meio, não-médico.
Essa é também a especificidade da psicanálise, que Freud quis desvincular do mundo da medicina. O que não fazem as pessoas ligadas à IPA. Mas Lacan seguiu esse fio condutor que fez com que a psicanálise saísse do mundo médico, dos psicoterapeutas ou das pessoas que querem “o bem do outro”.

Como o senhor trabalha na China e quanto tempo passa lá?
Guibal: Isso varia. Acabo de passar um mês. Vou à China duas vezes por ano, desde 2000. Agora, trabalhei em Chengdu, que é o lugar de atividade do grupo de Huo Datong. Mas trabalho também em Pequim, numa ONG para crianças autistas, como mostra o documentário. Em Chengdu, faço seminários, mas não trabalho como um psicanalista que recebe pacientes. Sendo assim, estou no discurso psicanalista, mas não na função de analista, enquanto em Pequim recebo pessoas na função de psicanalista, nessa instituição para crianças autistas.

Foi a partir da análise que Huo Datong fez em Paris com o senhor que começou seu contato com a China, ou o senhor já tinha um contato anterior com o país?
Guibal: Quando Huo Datong veio me procurar, essa busca só fez reativar coisas que já existiam desde minha adolescência e desde que conheci, mais tarde, Lucien Bodard, um jornalista que me falou muito de Chengdu, onde ele nasceu, como filho do cônsul francês.
Eu tinha esse contato e a magia do discurso de um jornalista que havia escrito vários livros sobre a China e a Ásia. Um dia, Huo Datong chegou no meu consultório e me falou de Chengdu. Quando ele terminou sua análise, recebi um convite seu para trabalhar naquela cidade. Para mim, foi como a realização de um sonho

O interesse dos chineses pela psicanálise pode ser explicado pela recente posição que o indivíduo começou a ocupar na sociedade chinesa, que antes considerava toda forma de subjetividade como uma “preocupação burguesa”?
Guibal: Evidentemente, tenho algumas idéias sobre isso, mas sou um ignorante, estou apenas descobrindo a China. Não pretendo, pois, tirar conclusões sobre os chineses e o país.
Não concordo com tudo que o filósofo François Julien diz, mas sou influenciado pela sua idéia de que o seu interesse pela China serve para trabalhar o impensado da filosofia ocidental no que concerne aos fundamentos da moral na filosofia ocidental.
Eu diria que isso me interessou muito, isso ecoou profundamente em mim e não pelo fato de minha posição de desenvolver um saber sobre os chineses ou sobre o futuro dos chineses, da China ou da psicanálise no país. Posso testemunhar como isso me permitiu trabalhar o que se chama em psicanálise “o inanalisado do psicanalista”. Pude ver grandes regiões não analisadas na minha análise.

O que é o tratamento de um autista na China?
Guibal : O que faço lá me abre horizontes para a maneira como se trata o autismo na França. É um pouco complicado, porque é um trabalho de uma ONG, o que mostra que o governo não faz grande coisa. O principal em relação aos autistas é feito por ONGs na China.
É interessante ver as diferenças. Essas ONGs têm financiamentos internacionais, de americanos, japoneses... O governo chinês não dá dinheiro. Os americanos não dão dinheiro sem ter retorno. O retorno é que eles injetam suas ideologias e seus métodos, que se chamam ABA (Applied Behaviour Analysis), análise do comportamento, que tem como um dos líderes nessa instituição um homem chamado Howard Lowas, uma espécie de ídolo do “Livro Negro da Psicanálise”.
Há um retrato dele na ONG onde trabalho. E é ele quem financia. Na França, também há grupos que trabalham segundo os métodos da ABA. A surpresa é que cheguei como psicanalista francês e pensei que eles iam me dispensar depois de alguns dias. Nada disso.
Na França, é praticamente impossível para um psicanalista trabalhar com pessoas que usam esse método, eles são totalmente contra a psicanálise. Enquanto lá, na China, exerço a psicanálise, e não trabalho com esse método ABA, evidentemente.

A psiquiatria chinesa é totalmente dominada pelo DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) e pela psiquiatria americana?
Guibal: Não falo da psiquiatria, porque essas ONG não estão na área médica.

Mas de uma maneira geral a psiquiatria chinesa é influenciada pela psiquiatria americana e pelo DSM?
Guibal: Este ano foi a primeira vez que visitei um hospital psiquiátrico, porque estamos tentando fazer com que o hospital receba estagiários que saem do grupo de Chengdu, que não são médicos. Nós os encontramos, fiz uma conferência, e eles vão aceitar estagiários que não têm formação médica num hospital psiquiátrico de Chengdu, o único que conheço.
Há quatro anos, visitei outro hospital também. Mas há internatos que não tenho o direito de visitar. Meus colegas de Chengdu me dizem que não é verdade, que não há hospitais para onde são mandados os dissidentes políticos. Me parece que li que eles existem, como na antiga União Soviética.
Na China, isso é delicado, é melhor não insistir, se a gente quer continuar a ir lá. O melhor é não perguntar muito sobre isso. Meus colegas com quem trabalho são professores universitários, e a universidade é necessariamente dirigida pelo Partido Comunista.
O fato de Huo Datong poder convidar pessoas de outros países é uma especificidade de seu trabalho. Mas não somente isso. Há lugares de liberdade, onde os dirigentes dão o direito de convidarem especialistas estrangeiros mas é uma liberdade outorgada, e ela pode ser retirada de um dia para o outro, se houver problema.

Já que o senhor fala de liberdade, pode-se fazer uma análise em total liberdade na China?
Guibal: Pelo que sei, é o que faz Huo Datong, em Chengdu. Fiz um seminário, há pessoas do grupo que fizeram uma análise com ele e não sei de nenhum tipo de inspeção. Aliás, Datong diz isso no documentário. A questão é a liberdade de expressão fora do consultório.
Até hoje, Datong não foi limitado em sua liberdade de receber as pessoas. A questão é que eu estava hospedado na universidade e fiz um grupo de trabalho com cinco ou seis estudantes sobre o ensino de Gisela Pankow, uma psicanalista da Alemanha que trabalhou sobre a psicose. Eu recebia o pequeno grupo no hotel que hospeda os estrangeiros. Os estudantes que vinham no meu apartamento para trabalhar eram obrigados a se identificarem à polícia, que controla a entrada do hotel.
Eu fiquei surpreso quando soube disso, mas finalmente aceitei. Meu primeiro reflexo foi dizer: “Não, não, nem pensar, quem vem trabalhar comigo não terá de mostrar seus documentos à polícia”. A faculdade é cercada de muros, há controles em todas as entradas. Eu estava num hotel para estudantes mas há um controle policial para que os estudantes não tragam pessoas de fora.
Tivemos autorização para que os estudantes viessem, mas o controle é para que uma chinesa não venha passar a noite comigo. Não sou paranóico, é um controle assim, porque os estudantes têm tendência a fazer esse tipo de coisas, e não somente na China. Mas para ir fazer uma análise com Datong não há policiais controlando. Que eu saiba, não há ninguém que impeça Huo Datong de receber quem ele quiser dentro da universidade. As liberdades cabem a ele conceder ou não.

Que tipo de liberdade?
Guibal: Sabe-se que há analistas que não suportam que lhes digam certas coisas. Minha analista não suportava que eu lhe dissesse que ela fumava demais. Ela não suportava, eu não podia dizer. Logo, a liberdade de falar quem dá é o analista. E então a gente se depara com o “inanalisado do analista”. Não é um controle policial. Há os que são mais ou menos inanalisados.

No estado atual da psicanálise na China, pode-se formar psicanalistas? Huo Datong forma psicanalistas?
Guibal: Ele só faz isso. Ele se vê como um formador, não como terapeuta. A maioria das pessoas que vêm vê-lo o fazem para se tornarem psicanalistas. Ele é um formador de psicanalistas. O que não deixa, evidentemente, de ser uma questão problemática quanto à finalidade da psicanálise, que não é nem curar nem formar psicanalistas. A cura vem como uma coisa a mais, mas a formação dos analistas também.
Atualmente, há cinco pessoas na França que vêm do grupo de Huo Datong e que fazem estudos universitários e eventualmente uma segunda análise em Paris. Ele promove uma formação à francesa, com a diferença de que tudo se passa na universidade, que não é nos moldes franceses.

Alguém disse, creio que o sinólogo Rainier Lanselle, que a China tem sede de novidade e que a psicanálise faz parte dessas novidades. O senhor concorda?
Guibal: Com Rainier Lanselle, concordo totalmente. Ele tem todo direito de dizer, é sinólogo, fala chinês muito bem, é muito culto, conhece a China e, além disso é psicanalista. Digo: ele é psicanalista e, além disso, é sinólogo, ponha nessa ordem.
Evidentemente eu não tenho elementos para dizer isso. Faz sete mil anos que a cultura chinesa existe. Não começou em 1949, com a Revolução Comunista. Eu dou a Lanselle o direito de dizer. A outro francês que vai à China e volta dizendo coisas sobre os chineses, eu não reconheço o menor direito de falar sobre o país. Nem mesmo eu.

Rainier Lanselle diz que as palavras chinesas do vocabulário de psicanálise fazem parte da grande família dos neologismos aparecidos na língua do país no último século. Qual é o grande desafio da tradução de Freud e de Lacan na China? A maioria dessas obras já foram traduzidas para o chinês?
Guibal: Nem a obra de Freud nem a de Lacan foram traduzidas para o chinês. Os “Escritos”, de Lacan, que já foram parcialmente traduzidos, o foram por razões estratégicas. Os seminários de Lacan não foram todos ainda transcritos em francês. Jacques-Alain Miller tenta publicá-los, mas ainda não acabou de fazê-lo. E nem mesmo Freud foi totalmente traduzido em francês.
De Freud, não posso dizer quantos livros já foram traduzidos, mas sei que a grande maioria ainda não foi. O desafio na China é o tempo.
Em 1968, o nome de Mao Tsetung foi introduzido na França. Havia idólatras de Mao na França, no momento em que ele fazia horrores na China. Agora, o nome de Lacan e sua obra começam a ser introduzidos. Mas, para algumas pessoas, isso é como o nome de Mao na França. Não é a mesma dimensão, Mao Tsetung era um líder político, e Lacan não.
Mas o que se passa por exemplo com o Tibete. Os ocidentais falam do dalai lama. Isso é um nome, o que há por trás desse nome? Oitenta por cento das pessoas que falam do dalai lama não têm idéia do que existe por trás desse nome. Trata-se da magia de um nome. Seria mais ou menos o mesmo fenômeno. Não digo que o dalai lama faz horrores no Tibete, mas poderia fazer. Introduziram esse nome e ele vende livros.
Uma maneira, pois, de introduzir a psicanálise na China é introduzir o nome de Lacan. Um outro aspecto é tentar traduzi-lo, e isso não se faz em três anos. Fizemos uma tentativa em Paris e passamos um ano numa página de Lacan, tentando traduzi-la para o chinês. Rainier Lanselle e seu grupo levaram um ano para traduzir o texto “O Estágio do Espelho”.

O senhor passou um mês na China, há pouco. O que o senhor fez lá?
Guibal: Fiz um seminário de 36 horas com gravação de áudio e vídeo sobre o seminário de Lacan que se chama “De um Discurso Que Não Seria Falso” ("D’un Discours Qui ne Serait Pas du Semblant") e que se chama também “Seminário Chinês”.

E por que ele se chama seminário chinês?
Guibal: Porque ele trabalha com a relação entre seu ensino e um clássico chinês chamado Mencius (Meng Zi, na transliteração do chinês). Lacan diz que aprendeu chinês, que escreve chinês e que lê Meng Zi em chinês. Lacan encontrou coisas em Meng Zi que são como uma antecipação de Freud e Lacan.
Ele trabalha muito a relação entre ele e Meng Zi. E como na mesma época ele trabalhava com François Cheng, este é um seminário que leva os chineses interessados pela psicanálise lacaniana a relerem Meng Zi com as questões que Lacan suscita neles ou que a análise deles suscita.
Pois Lacan coloca questões para as quais não há respostas e cabe aos chineses encontrá-las. Ele também toma frases de Meng Zi e diz o que pensa, dá suas próprias respostas. Esse seminário de Lacan é uma experiência muito rica.

link-se
Leia os trabalhos de Michel Guimal - http://www.lacanchine.com

Publicado em 11/8/2008
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Leneide Duarte-Plon
É jornalista e vive em Paris.

Revista Trópico

Matheus Nachtergaele - O evangelho segundo Matheus

O evangelho segundo Matheus
Por Fernando Masini
O ator e diretor Matheus Nachtergaele conta que quis amalgamar todas as religiões no filme "A Festa da Menina Morta"


Primeiro veio o batismo no grupo de teatro Vertigem, ao qual o ator ainda presta bênção. Depois ele encarou as provações de um cinema brasileiro capenga, embora no caminho da renovação. Conquistou em seguida uma legião nova de espectadores ao se lançar na dramaturgia mais popular das telenovelas e minisséries.
Agora, aos 39 anos, Matheus Nachtergaele experimenta a sensação de ver nas telas seu primeiro filme como diretor, “A Festa da Menina Morta”, cuja estréia mundial aconteceu no último Festival de Cannes. No Festival de Gramado, em agosto, o filme foi premiado seis vezes. Ganhou o Prêmio Especial do Júri, o prêmio da crítica, do júri popular, o de melhor ator (Daniel de Oliveira), melhor fotografia (Lula Carvalho) e de melhor música (Matheus Nachtergaele).
“Eu imaginava um nascimento mais singelo para a minha primeira experiência como diretor. Foi emocionante e apavorante ao mesmo tempo”, diz o ator em entrevista a Trópico. O roteiro, assinado em co-autoria com Hilton Lacerda, parceiro do diretor Cláudio Assis, conta a história de uma seita que celebra os trapos do vestido de uma menina que desapareceu numa pequena comunidade à beira do rio Negro.
“É como se houvesse uma necessidade terrível de se crer na eternidade de alguma coisa, uma incapacidade gigantesca do homem em lidar com a morte”, afirma Matheus.
Para rodar o filme, a equipe subiu até a cidade de Barcelos, a 400 km de Manaus, e ficou concentrada por lá ao longo de quase três meses.
O elenco conta com atores profissionais, como Daniel de Oliveira e Dira Paes, além da participação dos moradores locais. É no sincretismo religioso do país que o ator se apóia para construir e estabelecer o ambiente do filme.
“Não é um filme feito para que os espectadores se aliviem ou creiam em algo. É uma investigação sobre a crença dessas pessoas. Eu queria muito inventar uma religião que pudesse amalgamar todas as religiões brasileiras”, explica.
Na entrevista a seguir, Matheus explica por que uma novela “destrói o ator”, fala sobre a infância sem a mãe e conta como 16 anos de terapia o deixaram mais leve para enfrentar a vida.
*

Como foi viajar para Cannes com o seu primeiro filme: "A Festa da Menina Morta"?
Matheus Nachtergaele: Foi extremamente emocionante. Eu nunca imaginei que o filme estrearia em Cannes. Eu imaginava um nascimento mais singelo para a minha primeira experiência como diretor. Foi apavorante ao mesmo tempo: mostrar o filme num festival que é um dos maiores do mundo. A gente competiu na mostra “Um Certo Olhar”, o que significa que há um relevo voltado às qualidades artísticas e autorais dos filmes.

Como foi na hora da exibição?
Nachtergaele: A sala estava lotada, eu fiquei bem surpreso com isso. E no final foi aplaudido de um jeito emocionado e tenso, acho que é o que o filme provoca, além de gerar um certo silêncio. Depois da projeção, as pessoas esperaram a gente lá fora, o que foi bem bonito também.

E qual foi o teor dos comentários após a sessão?
Nachtergaele: Foi bem variado. Acho que a maioria das pessoas gostou muito. Houve comentários bem bonitos, inclusive da imprensa e junto ao pessoal que foi com a gente para o coquetel depois do filme. Ali eu pude conversar com jornalistas e cineastas do mundo todo e com os brasileiros que estavam lá. Na mídia, eu achei bem divididas as opiniões: a maioria se impressionou com o filme e houve também alguns comentários negativos que me fizeram pensar.

Foram críticas construtivas?
Nachtergaele: Crítica é construtiva quando faz sentido, independentemente se ela for positiva ou negativa. As críticas que eu considerei inteligentes me tocaram. Eu fui muito comparado a outros cineastas, meu filme foi comparado a outras obras.

Com o diretor Cláudio Assis, por exemplo?
Nachtergaele: Para os brasileiros, sim, falaram do Cláudio Assis. O que eu acho um pouco perigoso, porque apesar de eu admirar demais o Cláudio - além de grande parte da equipe com quem eu trabalhei também fazer parte da equipe dele- eu não acho que é um cinema do mesmo timbre.
Penso que se assemelha ao Cláudio numa certa coragem de exposição, mas não mais do que isso. Acho que a violência é outra, o lugar poético é outro. Agora, obviamente é um filme com coragem de se expor. Fui comparado também com o Herzog, o que me deixou muito impressionado.

Em que sentido?
Nachtergaele: No sentido de ser um cinema que gosta de investigar as entranhas das pessoas e dos lugares. Essa coisa de entrar na floresta: por exemplo, em “Aguirre, a Cólera dos Deuses”. E também num certo desejo de expor os personagens. Acho que o Herzog tem esse interesse quase científico, os personagens têm de ser estudados minuciosamente para serem entendidos.

E o Herzog é realmente uma influência sua?
Nachtergaele: É um cineasta que eu admiro, eu conheço boa parte da obra dele. Não diria que é uma influência direta, eu nunca pensei no Herzog enquanto filmava. As influências são coisas que às vezes vão se depositando em você. Elas podem vir tanto de outros cineastas, assim como de uma canção ou de uma escultura.

Vocês passaram quanto tempo em Barcelos, na Amazônia, para filmar "A Festa da Menina Morta"?
Nachtergaele: As filmagens duraram cinco semanas, mas eu e a produção chegamos bem antes. Ocupamos os dois hotéis que existem na região. Na verdade, a gente nem pode dizer que são hotéis, era algo parecido com hotel. Ocupamos tudo o que dava para ocupar na cidade, foi uma invasão mesmo.
Eu fiquei ao todo três meses. Antes, eu já tinha ido e levado uma parte das equipes de produção e arte para que as pessoas entendessem o porquê das minhas escolhas. Os atores chegaram um mês antes das filmagens.

E houve um envolvimento da equipe com os moradores de lá?
Nachtergaele: Total, o lugar é muito pequeno. Eles ficaram morando lá, passaram dois meses e pouco. É um lugar caboclo, com muitos índios e filhos de índios. E a idéia era essa, levar a equipe para um lugar que possibilitasse a concentração e a miscigenação da equipe com a população.

A idéia foi criar um ambiente quase espiritual de troca?
Nachtergaele: Desde o roteiro já existia uma tentativa de se criar uma liturgia. Penso que o próprio filme é uma liturgia que obedece a certas regras a fim de atingir um momento de catarse. Eu queria muito inventar uma religião que pudesse amalgamar todas as religiões brasileiras, e achei Barcelos o lugar ideal: um lugar distante, a 400 quilômetros de Manaus, sendo que o único acesso é pelo rio Negro.
É uma região que começa agora a se desenvolver muito lentamente e que tem a presença da Igreja Católica, das igrejas neopentecostais, dos evangélicos; há uma Igreja Batista muito grande e os pajés continuam atuando por lá. Tem inclusive um pajé no elenco principal do filme. Sem falar na existência de pais de santo, do candomblé. Quase todas as religiões que fundam nossa mística estão lá reunidas na beira do rio Negro.

Cena do filme "A Festa da Menina Morta"
Alexandre Baxter/Divulgação


A história do filme foi baseada em alguma lenda da região?
Nachtergaele: Eu criei a história a partir de uma festa que eu vi no sertão da Paraíba, onde se adoravam os trapos do vestido de uma menina. Eu fiquei muito emocionado com isso. Alguma coisa me perturbou quando eu vi essa cerimônia. Aos poucos, quando fui escrevendo, ela foi se desplugando da realidade e virando uma fábula, tornando-se uma seita com suas próprias regras.
Fala sobre o desaparecimento de uma menina, que nunca foi encontrada. Só o vestido dela foi achado, e isso foi considerado um milagre. É como se houvesse uma necessidade terrível de se crer na eternidade de alguma coisa, uma incapacidade gigantesca do homem em lidar com a morte. Por que achar que um vestido rasgado será um milagre?

O filme tem a ver com a sua história?
Nachtergaele: Muito. Não é uma descrição da minha vida, mas o universo emocional é o meu, com certeza. Depois, o Hilton Lacerda entrou para escrever comigo, e isso se ampliou um pouco.
A partir da quarta versão do roteiro, o filme deixou de girar apenas em torno do meu umbigo. O Hilton trouxe alguns personagens novos, questionou algumas coisas que eu estava fazendo.
Num filme de estréia, acho que existe a necessidade de vomitar algumas coisas, há uma quantidade de aspectos muito íntimos que devem ser mostrados. Por isso, não é incomum se cometerem excessos num primeiro filme. É tanta coisa a ser dita. A presença do Hilton me protegeu desses excessos, de ficar vomitando demais.

O filme trata a morte como algo místico, cheio de celebração. Queria saber como você enxerga a morte.
Nachtergaele: Eu não sei como eu enxergo a morte. Eu a vejo com pavor, como todos nós. Às vezes, como alívio, como término de um ciclo. Eu sou um cara materialista, não sou um cara religioso.

Você não acredita em nada?
Nachtergaele: Eu acredito no milagre da vida, só não dou nome a isso, nem vou a uma igreja específica rezar para alguém. Mas acho milagrosa a vida existir dessa forma tão múltipla. Eu não fiz esse filme buscando uma transcendência, eu fiz buscando entender por que as pessoas crêem. Ele é muito mais uma análise naturalista, íntima e promíscua dos participantes da seita.
E obviamente o filme não deixa de ser uma poesia que em algum momento tem seu êxtase. Não é uma obra feita para que os espectadores se aliviem ou creiam em algo. É uma investigação sobre a crença dessas pessoas. Eu me pergunto quais os motivos de cada um para estar ali diante daquele absurdo.
Você pode não crer, mas o maior direito que uma pessoa tem é o de poder acreditar em algo. Uma vez que, se você não der sentido nenhum à vida, fica bem difícil a travessia. A maioria das pessoas, me parece, encontra esse sentido na fé, outros encontram na poesia, outros no materialismo mais pleno, no conhecimento científico.

A missão do ator é parecida com o trabalho de diretor?
Nachtergaele: Acho que sim. Eu penso que sou um artista que se utiliza de muitos recursos para investigar a dor. Sempre tive a sensação de estar investigando a dor, mesmo nas comédias mais rasgadas. Eu nunca me esqueci, por exemplo, que o João Grilo (personagem do filme “O Auto da Compadecida”, de Guel Arraes) era engraçado porque passava fome. As pessoas sentiam-se comovidas por ele porque ele passava fome.

O Quinzinho, do filme "Tapete Vermelho", também é um cara agoniado?
Nachtergaele: É o jeca sendo currado, sendo espremido. Mas, de fato, o Quinzinho é um personagem mais doce do que o Grilo. O Grilo tem uma coisa mais agressiva. Agora, em geral, em “O Livro de Jó” (peça encenada pelo Teatro da Vertigem), “Woyzeck” (espetáculo de 2003 dirigido por Cibele Forjaz), nos filmes do Cláudio Assis (“Amarelo Manga” e “Baixio das Bestas”), eu sinto que eu tenho a tendência de investigar as dores. Penso que a nossa função é um pouco essa mesmo, mostrar as feridas para fazer pensar, mesmo que isso inclua diversão.
A “Menina Morta”, por exemplo, tem momentos engraçados, mas nunca será chamado de uma comédia. É um riso que acaba amargando. Tem um personagem, que é a Conceição, interpretada por uma atriz pernambucana, que arranca alguns sorrisos da platéia. Eu senti isso em Cannes, em certos momentos. Mas depois ela passa a ser uma figura difícil de ser suportada, e ninguém mais dá risada.

Eu sempre achei que você embarcasse em projetos menos viscerais, como "O Auto da Compadecida" ou "Tapete Vermelho", para aliviar a angústia de papéis mais fortes, como em "Baixio das Bestas". As novelas, por exemplo, serviriam para arejar a tristeza?
Nachtergaele: Não é verdade. Ao contrário até, uma novela destrói o ator. Por mais divertido que o personagem se pareça, você chega no final dela absolutamente destruído. Alguns trabalhos são realmente mais leves de serem feitos, mais lúdicos. “Tapete Vermelho”, por exemplo, foram dias gostosos.
Mas nunca existiu um pensamento meu em querer alívio. O gostoso é quando o trabalho não é muito leve, eu prefiro os mais complexos. E o grande alívio é na hora da cena, por mais penosa que ela pareça. No auge da execução do seu ofício, existe um alívio.

O teatro consome mais o ator do que o cinema e a televisão?
Nachtergaele: Não, acho que menos. Você recebe do público uma resposta tão imediata que acaba saindo alimentado do teatro. Existe, claro, um desgaste físico e emocional específico, por você estar ao vivo no meio das pessoas.
Já na televisão e no cinema, é um pouco diferente: o processo te suga mais e o retorno do público vem muito depois, quando provavelmente você já está desligado do personagem. Isso no cinema é bem forte. Não há platéia, a não ser o operador de câmera. A televisão fica quase no meio do caminho: é um quase ao vivo. Tem uma resposta mais rápida do público, embora a troca humana, viva, pungente, não exista.

A fase no Teatro da Vertigem foi uma escola para você?
Nachtergaele: O verdadeiro momento da minha formação foi lá. Foi uma grande aula e um amadurecimento de todos nós. O Teatro da Vertigem deixou de ser um grupo de teatro-dança, de jovens atores bailarinos, para nos tornarmos o grupo que fez “O Livro de Jó” e, depois, “Apocalipse 1,11” e por aí vai. Durante esse período eu comecei a fazer muito cinema. Fui levado rapidamente demais para um amadurecimento.

E sua carreira decolou num momento em que o cinema brasileiro passava por uma renovação, com uma boa geração de diretores, como Lírio Ferreira, Cláudio Assis, entre outros. Você acha que as circunstâncias te ajudaram como ator?
Nachtergaele: Acho que sim. Sempre digo que eu tive a sorte de ser ator na hora em que o cinema se refazia. Apesar de a gente sempre ter tido um cinema incrível por aqui (é só lembrar de nomes como Leon Hirszman, Arnaldo Jabor, Glauber Rocha), mas de fato passamos por um período de abismo.
É interessante o que acontece com o cinema no Brasil, é quase esquizofrênico tentar entender isso. É um país sem grana, mas que gosta de fazer cinema, e o público não gosta tanto quanto os artistas brasileiros. Na verdade, para ser bem duro com a nossa geração, a gente não tem conseguido coisas tão bacanas como em épocas passadas.
Temos feito mais, mas penso que já conseguimos coisas mais fortes. Os filmes mais bonitos brasileiros não estão na retomada. São “Tudo Bem”, do Jabor, “Os Fuzis”, do Ruy Guerra, “A Falecida”, do Hirszman... Claro que tem alguns filmes dos últimos tempos que eu amo.

Por exemplo?
Nachtergaele: Recentemente me chamou muito a atenção “Santiago” (documentário dirigido por João Moreira Salles), é um filme superior. Acho “Amarelo Manga” (de Cláudio Assis) um dos melhores filmes que já foram feitos aqui. Eu o coloco naquela lista de grandes filmes. É uma obra poderosa, aberta, barroca; não é um filme de tese.
Eu fiquei bem curioso para ver o último filme do Kiko Goiffman. Parece que é um filme em que ele coloca pessoas fóbicas diante de suas fobias.

Você tem alguma fobia?
Nachtergaele: Infelizmente, sim. Tenho uma bem boba: medo de sapo. Eu posso ficar paralisado durante horas se tiver um sapo na porta. Não consigo passar nem perto. Tenho também horror a injeção, a agulhas que injetam coisas dentro de mim. Fico em pânico, em geral eu tenho que ser amarrado. E tenho muito horror a revólver. Minha mãe morreu com um revólver e é uma coisa que eu realmente não suporto. Não gosto de ver, não gosto de tocar.

Como sua mãe morreu?
Nachtergaele: Minha mãe se matou.

A mãe de Santinho, em "A Festa da Menina Morta", também se suicida.
Nachtergaele: Não existe a cena do suicídio, mas a mãe é uma suicida. Ela é uma pessoa que não está, é uma mulher ausente, que partiu e que dizem que ela se matou. Eu quis colocar isso no filme, queria falar sobre o que é a casa sem a mãe. Na metáfora da “Menina Morta”, a seita só é possível porque a mãe está ausente. Se a mãe estivesse viva, ela certamente protegeria o menino.

A morte da sua mãe gerou muitas angústias na sua infância?
Nachtergaele: Muitas. Eu era novinho, mal a conheci. A ausência de uma mãe é uma coisa muito forte, acho que todo mundo que perdeu a mãe sabe disso. Independente da maneira como acontece, é sempre bem brutal. Por isso que, quando fico diante de um revólver, é como se um pesadelo voltasse.

Você já esteve em contato com um?
Nachtergaele: Tive. Fiz muitos filmes em que era preciso atirar ou manusear um revólver. É sempre muito ruim para mim. Em “O Primeiro Dia”, de Walter Salles, eu tive que rodar uma cena num depósito de armas apreeendidas, no Rio. Tive de atravessar corredores cheios de armas dependuradas em pregos pelo cano. Minha pressão caiu bastante, eu fiquei um tempo ali parado e pensei: caramba, quanta gente morreu, que tristeza, que invenção infeliz.

É verdade que você começou a fazer análise quase ao mesmo tempo em que iniciou a carreira de ator? São atividades comparáveis?
Nachtergaele: Não, não acho. É claro que ambas te levam ao auto-conhecimento, mas eu nunca tratei o teatro como terapia. Quando eu fui para o teatro, já fui como artista. Mas é verdade que, se eu não tivesse feito terapia, eu não teria iniciado minha carreira como ator de teatro. Eu não teria entendido que eu precisava ser ator. Eu teria ficado embotado num lugar anterior.

Você ainda faz análise?
Nachtergaele: Para dizer a verdade eu não recebi alta ainda (risos). Eu mudei para o Rio de Janeiro e meu analista ficou em São Paulo, portanto faço sessões quando vou a São Paulo.
Às vezes, eu passo dois anos sem ir. Eu fiz 16 anos de terapia sem parar, dos 16 aos 32 anos. Cheguei a procurar alguns analistas aqui no Rio, mas não me dei bem não. Então quando o cinto aperta, eu ligo para São Paulo e peço ajuda.
Eu acho bonito e importante passar por isso. O mundo no qual vivemos é muito difícil. Além de outras coisas interessantes que acontecem na análise, você deixa um certo lixo lá. Se esse lixo não ficar lá, você vai mandando para as pessoas que estão próximas, ou para você mesmo num processo de auto-agressão.
Existe esse lado bacana, você deixa uma parte ali que é preciso ser deixada. Depois de algum tempo de sofrimento, a análise te deixa realmente mais leve.

Publicado em 27/8/2008
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Fernando Masini


Revista Trópico

Christian Salmon - A política como ficção

A política como ficção
Por Leneide Duarte-Plon

Em "Storytelling", o escritor Christian Salmon demonstra como o marketing político adotou técnicas da narrativa e do cinema


As técnicas da narrativa, tal como utilizadas nos romances, nas novelas e nos filmes, invadiram o marketing político, transformando a vida pública numa extensa ficção. O Poder Executivo, os candidatos presidenciais e outras autoridades passaram a ter as suas vidas "formadas" pelos profissionais de comunicação, a fim de se obter um enredo emocionante, capaz de comover os cidadãos.
Essa é, em resumo, a tese do escritor Christian Salmon no provocativo "Storytelling", livro lançado na França pela editora La Découverte).
Um dos fundadores do Parlamento Internacional dos Escritores, Salmon examina detidamente e com muitos exemplos, como os marqueteiros produzem calculadamente verdadeiros dramas e cenas grandiloquentes para suscitar medo, produzir entusiasmo e guiar o comportamento das pessoas.
. "No comando de um tele-estado que roteiriza a vida pública 24 horas por dia, o Poder Executivo se transforma em um poder de 'execução' e de 'realização” (no sentido cinematográfico) do roteiro presidencial, considerado como um encadeamento de decisões que são objeto de uma montagem permanente", diz o escritor.
A produção de uma bem elaborada e emocionante narrativa heróica teria tido, inclusive, papel fundamental na vitória de Barack Obama nos EUA.
"A narrativa de Obama contrasta com as histórias pré-fabricadas e estereotipadas de um Bush salvo do alcoolismo pela fé. Com Obama, temos uma verdadeira lenda, a de um homem da era da globalização. É a viagem do herói que torna sua vida exemplar: Havaí, Jacarta, Los Angeles, Chicago, Washington... Mas também uma viagem no tempo pontuado por referências a Abraham Lincoln ou a Martin Luther King, que o inscrevem na história americana", afirma Salmon, na entrevista a seguir.
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Segundo seu livro, a "storytelling" passou a ser adotada do marketing de produtos à comunicação política. Por que a política hoje se volta para a emoção mais do que para o intelecto ou a razão?
Christian Salmon: Apresentados sob a forma de um enredo fácil de compreender, as implicações da política mobilizam emoções como o medo, a solidão, a necessidade de proteção. Os cidadãos são jogados num universo narrativo (a cruzada contra o eixo do Mal etc.) e convidados a escolher os “bons” contra os “maus”.
Três semanas depois do 11 de Setembro, Charlotte Beers, diretora da agência de publicidade Ogilvy, foi nomeada sub-secretária de Estado para a “diplomacia pública”. Sua tarefa era vender a imagem e os valores dos Estados Unidos ao estrangeiro, como venderia uma marca. “Nós poderíamos eleger qualquer ator de Hollywood desde que ele tenha uma história para contar”, declarou James Carville em 2004. As aparições de George W. Bush durante seus dois mandatos foram realizadas por um ex-produtor de televisão.
No comando de um tele-estado que roteiriza a vida pública 24 horas por dia, o Poder Executivo se transforma em um poder de “execução” e de “realização” (no sentido cinematográfico) do roteiro presidencial, considerado como um encadeamento de decisões que são objeto de uma montagem permanente.
Um ano depois dos atentados de 11 de Setembro, George Bush fez um discurso destinado a preparar a opinião pública americana para a guerra contra o Iraque. Seu diretor de gabinete justificou a escolha da data dizendo: “De um ponto de vista de marketing, não se lançam dois produtos novos em agosto”.

No seu livro, o senhor pergunta: “Como a idéia de Roland Barthes, segundo a qual a narrativa é uma das grandes categorias do conhecimento que utilizamos para compreender e organizar o mundo, pôde se impor dessa forma na subcultura política, nos métodos de gerenciamento ou na publicidade?" Por que isto ocorreu?
Salmon: Nos anos 60, a idéia de Roland Barthes deu origem a uma nova ciência da narrativa que Tzvetan Todorov chamou de "narratologia" e que se desenvolveu na França em torno de pesquisadores como Greimas e Genette e coincidiu com o que foi chamado nos Estados Unidos de “narrative turn”: historiadores, juristas, físicos, economistas e psicólogos redescobriram o poder que têm as histórias de reconstituir uma realidade.
A explosão da internet e os avanços das novas técnicas de informação e de comunicação trouxeram amplitude a esse movimento. Ele deu origem ao que se chama hoje de “storytelling management”, uma resposta à crise das grandes organizações burocráticas e hierarquizadas. O modelo fordista deu lugar a um novo modelo de empresa descentralizada e flexível, estruturada em redes, capazes de se adaptar a uma mudança permanente. Insuflar a ideologia da mudança a uma organização supõe agora que cada pessoa se envolva e se submeta a uma ficção comum, a da empresa, como a gente se deixa envolver por um romance.
Esses usos instrumentais da narrativa comportam riscos evidentes de manipulação transformando os assalariados em cobaias submetidas a protocolos de experimentação, o que os teóricos do geranciamento chamam de “experiências traçadas”.

Em menos de 15 anos, o marketing passou do produto ao logo, depois do logo à "story". Para as empresas, a evolução fez com que passassem a produzir marcas em vez de mercadorias. Agora, elas devem produzir histórias, em vez de marcas. O segredo do sucesso de uma marca está na história que ela comunica?
Salmon: Da imagem de marca ("brand image"), que dominou o marketing dos anos 80, passou-se à história de marca ("brand story"), que se impôs a partir de 1995. Uma mudança que implica o aparecimento de um novo léxico, no qual a “audiência” substitui os consumidores e as “seqüências narrativas”, as campanhas publicitárias.
Formas literárias, como a balada, a epopéia, as metáforas e a ironia, têm uma influência crescente no marketing. Quando se tem um produto que é idêntico a outro, há diferentes modos de fazer-lhe concorrência. Seja -esta é a solução estúpida- baixando o preço, seja mudando o valor do produto, contando a sua história.
Calcula-se hoje que os consumidores nos países industrializados estejam expostos a três mil mensagens comerciais por dia. As marcas que querem “emergir” diante desse assalto publicitário devem imperativamente se distinguir. Diante da multiplicação de signos, os consumidores estão à procura de narrativas que permitam reconstituir universos coerentes. As marcas nos contam histórias que “batem” com nossas expectativas e nossas visões do mundo. Elas nos falam e nos cativam.
Quando são utilizadas na internet, elas nos transformam em “storytellers”, transportadores de narrativa, já que a fascinação que inspira uma boa história nos leva a repeti-la. Quando as marcas falam, afirma um teórico do marketing, os consumidores escutam atentamente. Quando as marcas agem, os consumidores as seguem. Então, são não apenas construção do marketing, são personagens na vida do consumidor.

O senhor escreve: “À realidade de uma concorrência cada vez mais feroz, o neogerenciamento opõe a ficção de que no trabalho em equipe moderno os empregados não são verdadeiramente em concorrência uns com os outros. A essa ficção soma-se outra, ainda mais importante, a saber que os operários e os patrões não são antagônicos. O patrão gera apenas um processo de grupo”. Isto seria um novo modelo de capitalismo e de controle?
Salmon: O “storytelling management” é considerado hoje como uma ferramenta indispensável para os que decidem. Ele é aplicado por grandes empresas, como Apple, Starbucks, Nokia, Microsoft, Levi-Strauss, Coca-Cola, Motorola e Google. Popularizado pelo lobby muito eficaz dos gurus do gerenciamento, ele deve insuflar a ideologia da mudança às organizações em reestruturação permanente.
A partir do fim dos anos 80, os autores em gerenciamento entoam o hino à mudança e à flexibilidade, o que vai se traduzir por uma aposta cada vez maior de propostas visando à mobilização emocional. Nesse contexto, o "storytelling" vai aparecer como uma forma de comunicação própria a mobilizar emoções, guiar comportamentos, “produzir sentido”.
No livro “Vigiar e Punir”, Michel Foucault mencionava a constituição de um “poder de escrita” como uma peça essencial no encadeamento da disciplina militar, sanitária, escolar etc. Pode-se ver no triunfo do "storytelling" o nascimento de um “poder de narrativa” capaz de assegurar o controle de indivíduos, uma “máquina de contar” e formatar bem mais eficaz que todas as imagens orwelianas da sociedade totalitária.
O assunto dessa nova ordem narrativa não é nem o consumidor alienado nem o trabalhador explorado, nem mesmo o cidadão doutrinado, mas um indivíduo enfeitiçado, imerso num universo, preso a uma rede narrativa que filtra as percepções, estimula os efeitos e conduz as condutas.

No seu livro, pode-se ler: “Depois da derrota democrática de 2004, James Carville, um dos 'spin doctors' artesãos da vitória de Bill Clinton em 1992 declarou: 'Acho que poderíamos eleger qualquer ator de Hollywood desde que ele tenha uma história para contar; uma história que diga às pessoas o que é o país e como ele o vê'". O senhor acha que Barack Obama estás bem posicionado para dizer às pessoas o que é a América?
Salmon: A narrativa de Obama contrasta com as histórias pré-fabricadas e estereotipadas de um Bush salvo do alcoolismo pela fé. Ele é rico em contrastes e contradições. É a narrativa de um homem dos bairros pobres e das maiores universidades americanas.
O Quênia e o Kansas, o Senado e os bairros do sul de Chicago, o educador social e o professor universitário, o pragmático e o idealista, o homem da negociação e o guardião dos princípios (sobre o Iraque e a tortura) é um espelho com facetas no qual cada um pode se reconhecer. “Obama é permanentemente engajado numa conversa interior entre as diferentes peças do seu ego híbrido. E ele divide com os outros essa conversa”, comenta o editorialista David Brooks.
Com Obama, temos uma verdadeira lenda, a de um homem da era da globalização. É a viagem do herói que torna sua vida exemplar: Havaí, Jacarta, Los Angeles, Chicago, Washington... Mas também uma viagem no tempo pontuado por referências a Abraham Lincoln ou a Martin Luther King, que o inscrevem na história americana.
Essas referências conseguem fazer de Obama, criticado por seus rivais por sua inexperiência, um presidente “histórico”. Qualquer que seja a política que possa inspirar Obama, seja você republicano ou democrata, branco ou negro, homem ou mulher, você elegeu o primeiro presidente negro americano, você escreveu uma página nova na história dos Estados Unidos... Você se tornou o próprio narrador dessa história.

Alguém disse que os democratas perdiam as eleições porque recitavam a litania “eu defendo um salário mínimo, um bom sistema escolar”, enquanto os republicanos têm uma narrativa: “Eu era alcoólatra e fui salvo pelo poder de Jesus; eu fui salvo pelo 11 de Setembro e vou proteger vocês dos terroristas de Teerã e dos homossexuais de Hollywood”. A política é simples assim?
Salmon: Não, justamente. A "storytelling" não consiste apenas em contar uma história. É um dispositivo que integra ao menos quatro funções: 1) Contar uma história capaz de constituir a identidade narrativa do candidato ("storytelling"); 2) Inscrever a história no tempo da campanha, gerar os ritmos, a tensão narrativa ao longo de toda a campanha ("timing"); 3) Enquadrar a mensagem ideológica do candidato ("framing"), isto é, enquadrar o debate, como preconiza o linguista Georges Lakoff, impondo um “registro de linguagem coerente” e “criando metáforas”; 4) Criar a rede na internet e na vida real, isto é, um ambiente híbrido e contagiante, suscetível de captar a atenção e de estruturar a audiência do candidato ("networking").
O candidato presidencial é um homem-narrativa e um “performer”. Mas isso não é o suficiente. Veja a lenda de McCain, o herói de guerra, que se desfez nos últimos dias da campanha. O que faltava a McCain era o domínio sobre o tempo, um enquadramento coerente de sua mensagem e, sobretudo, uma rede capaz de difundir suas histórias.
Nesses três pontos a superioridade da campanha de Obama foi esmagadora. McCain multiplicou os “erros” de "timing", suspendendo por duas vezes a campanha e, depois, no dia 7 de outubro, se esforçando para desviar a atenção dos eleitores, lançando ataques difamatórios contra seu rival. Dilacerado entre a imagem do “maverick” moderado em questões de moral e a escolha da ultraconservadora Sarah Palin como vice, ele se contradisse, seu programa se esfumaçou, fazendo-o aparecer como um candidato à procura de uma definição.
A crise financeira que estourou ajudou enormemente o candidato democrata, fornecendo um horizonte de espera por um tipo de intervencionismo regulador e por uma política fiscal mais favorável às classes médias... Desde as primárias de Iowa, Obama conseguiu muito bem inscrever sua história pessoal no tempo da campanha, transformando a competição com Hillary Clinton em uma viagem do herói ao encontro da América. A convenção de Denver foi o teatro desse encontro, um teatro de terceiro tipo, que se dirigia simultaneamente a três audiências diferentes: o comício, a televisão e a internet.
Graças a um hábil cenário simulando a fachada da Casa Branca, os cenógrafos do evento conseguiram fazer uma fusão das performances de natureza diferente: o happening político e a série de TV. Woodstock e "West Wing". Barak Obama encarnava ali a função e a ficção presidencial. O blogueiro Andrew Sullivan fez um elogio de seu domínio da política na era de Facebook ("Facebook politics"). Roger Cohen comparava no “The New York Times” o fortalecimento da campanha de Obama ao sucesso clássico das “start-up" da internet.
Na internet, a campanha de Obama suscitou uma participação maciça, que se constituiu pouco a pouco em um espaço de contágio para as mensagens e as histórias do candidato. Depois da era do rádio com Roosevelt, da era da televisão com Kennedy, Obama será o primeiro presidente da era da internet.

Segundo James Carville e Paul Begala, “Ronald Reagan foi o maior narrador da história política dos últimos 50 anos, mesmo que a maioria das histórias que ele contava fossem falsas”. Pode-se dizer que as histórias de Bush eram mais verdadeiras?
Salmon: Num artigo do “New York Times” publicado alguns dias antes da eleição presidencial de 2004, Ron Suskind revelou os termos de uma conversa que ele teve, no verão de 2002, com um conselheiro de Bush: “Ele me disse que pessoas como eu faziam parte desses tipos 'que pertencem ao que chamamos de comunidade realidade': 'Vocês crêem que as soluções emergem de sua fina análise da realidade observável. Não é mais assim que o mundo caminha realmente. Nós somos o império e agora, quando agimos, criamos nossa própria realidade. E, enquanto vocês estudam essa realidade como desejam, nós agimos e criamos outras realidades novas, que vocês podem estudar igualmente -e é assim que as coisas se passam. Nós somos os atores da história. E a todos vocês só resta estudar o que fazemos”.
Mesmo um editorialista conservador como William Safire, que sempre apoiou a política de George Bush, afirmou em setembro de 2005: “Nunca o direito fundamental dos americanos de conhecer e de criticar, graças a uma imprensa livre, os trabalhos de nosso governo, tinha sido tão questionado”.
O melhor exemplo foi a encenação em 1° de maio de 2003 do discurso de Bush no porta-aviões Abraham Lincoln, diante de uma bandeira com a inscrição: “Missão cumprida”. A direção era assinada por Scott Sforza, um ex-produtor do canal ABC. O presidente desceu no porta-aviões a bordo de um avião de caça, no qual podia-se ler “George Bush, comandante-chefe”. Vestido com uniforme de aviador, ele desceu do "cockpit", com o capacete na mão, como se voltasse de uma missão de uma refilmagem do filme “Top Gun”.
“Foi fantástico como teatro”, declarou o comentarista da Fox News. David Broder, do “Washington Post”, ficou fascinado pelo que chamou a “postura física” do presidente. Sforza tinha enquadrado a cena cuidadosamente, a fim de que no horizonte não se percebesse San Diego, situada a 40 milhas apenas, enquanto o porta-aviões deveria dar a impressão de se encontrar em pleno mar, na zona de combates.

Evan Cornog, professor de jornalismo da Universidade de Columbia escreveu: “É a batalha das histórias e não o debate de idéias que determina como os americanos vão reagir a uma competição presidencial”. O senhor diz que as últimas eleições francesas introduziram o "storytelling" na França. Quais as narrativas de Nicolas Sarkozy, eleito presidente, e de Ségolène Royal, a ex-candidata socialista?
Salmon: Ségolène et Nicolas são candidatos edipianos. Eles se beneficiaram ainda jovens da proteção do pai (Mitterrand e Chirac, respectivamente), cresceram no ambiente desses pais e tiveram sua proteção e se viram em condições de reivindicar o poder. Eles o fizeram e mostraram sem complexos nem tabu essa ambição: duas figuras edipianas que romperam com o pai, mas também com a imagem do “pai da Nação”, familiar aos franceses, desde De Gaulle e mesmo Pétain.
Da mesma forma que os “spin doctors” republicanos tinham construído a campanha vitoriosa de George W. Bush em 2000 a partir de sua história pessoal e de sua luta vitoriosa contra o álcool, Nicolas Sarkozy adaptou os temas do sofrimento e da redenção para elaborar sua versão francesa do conservadorismo pleno de compaixão. Eles se dirigem aos indivíduos como a uma “audiência”. Evitando o adversário, contornando os partidos, substituíram o debate pelas emoções e pelos desejos. Inauguraram uma nova era da democracia, que se poderia qualificar de “pós-política”.
Os homens políticos e a mídia, os jornalistas e os experts mudaram bruscamente a maneira de expressar, começaram a contar histórias. A imprensa tomou de assalto a "story" dos candidatos, opondo uma mulher que havia derrotado o poder patriarcal dos “elefantes” do Partido Socialista a um Sarkozy, filho rebelde que encenava há dez anos sua ruptura com o pai-presidente. Em julho de 2007, Henri Guaino, o “ghost writer” de Sarkozy fez uma confissão perturbadora ao jornal "Le Monde": “Não se transforma um país sem ser capaz de escrever e contar uma história”.

Entre Nicolas Sarkozy e Ségolène Royal o senhor descreve uma ausência de “debate de idéias” e uma rivalidade mimética. Qual a relação com o "storytelling"?
Salmon: Uma rivalidade “mimética” (um conceito de René Girard) é um conflito de narrativas entre dois desejos, duas ambições, dois sintomas narrados pela imprensa. Durante essa eleição presidencial na França, em vez de convicções, foram “valores” que se afrontaram, em vez de competências, compaixão, empatia. O que estava em jogo se concentrou em torno das vítimas: os acidentados da vida, as mulheres que apanham, os sem-teto, os deficientes físicos, pessoas com forte ressonância emocional.
O debate do segundo turno forneceu o cenário. Programa contra programa era o que os dois lados tinham previsto. Foi compaixão contra compaixão, uma luta sem tréguas pelo monopólio do coração. A escolarização dos deficientes deu a oportunidade, não que esse grupo social seja majoritário no país ou que ele detenha a chave da eleição, mas ele possui forte valor emocional. O registro das vítimas toma o lugar dos estudos de sociologia eleitoral. Política da miséria, miséria da política.

Os franceses vêem Sarkozy como se ele estivesse em permanente campanha eleitoral. Sua onipresença faz parte de sua narrativa?
Salmon: Enquanto o campo da política encolhe e os centros de poder tradicionais se afastam para outros lugares, Bruxelas, Washington ou Wall Street, a vida pessoal do presidente aumenta de importância e a mídia trata de divulgar, comentar, criticar. Todos os editorialistas, cronistas, analistas políticos, sociólogos e pesquisadores se dedicam a essa paixão bem francesa: comentar os fatos e gestos de Nicolas Sarkozy. A tal ponto que se poderia dizer que em maio do ano passado a França não elegeu um presidente, mas um assunto para todas as conversas.

O senhor escreve que “Ronald Reagan chegou à Casa Branca com a determinação de controlar a imprensa". Sarkozy quer a mesma coisa?
Salmon: Ele aplica ao pé da letra as técnicas de controle da mídia que o birô de Informação da Casa Branca aperfeiçoou desde Nixon e o caso Watergate até Bill Clinton e Georges Bush. Dick Cheney, o atual vice-presidente, que foi um dos teóricos desse birô, diz, sem problemas: “Para ter uma presidência eficaz, a Casa Branca deve controlar a agenda. Se vocês deixam a imprensa solta, eles tomam a Presidência de assalto”.
Nesse sentido, em Washington, eles fixam o “line of the day”, que se tornará nos anos 90 a “história do dia”. Ela é divulgada junto aos diferentes ramos do Executivo e da imprensa credenciada na Casa Branca, mas também através de mensagens televisadas dirigidas diretamente ao público. “Focus group” (definir o ponto essencial) e sondagens regulares são utilizados para elaborar as mensagens presidenciais. “Pequenas frases” ("sound bites") são inseridas nos discursos. As aparições públicas são encenadas para reforçar a imagem filmada.
Seja em período eleitoral ou não, a política toma a forma de um festival de narração de histórias, o qual a imprensa representa ao mesmo tempo o ator, o coro e o público. Ela retoma e interpreta a "story" do dia, utiliza as que são interpretadas pelos outros “spin doctors” políticos (majoritários ou opositores, levados de roldão na história) e satisfaz (às vezes) o apetite do público com novas narrativas.
O candidato-herói que ganha é aquele cujas histórias entram em conexão com o maior número de eleitores. Como? Propondo não uma argumentação e programas, mas personagens e narrativas, a mise en scène da democracia, em vez de seu exercício.

Quando o senhor afirma que Sarkozy e Ségolène Royal inauguraram uma era nova na democracia, que se pode qualificar de pós-política, o que quer dizer com isso?
Salmon: O sociólogo americano Richard Sennett tinha antecipado nos anos 70 o que ele chamava de “a queda do homem público”, pressentindo a chegada de uma forma profana de carisma que se enraizaria não mais na história coletiva, mas na biografia e nas qualidades pessoais do líder político: “Ele pode ser gentil, simples, caloroso ou ainda bonachão e sofisticado. Mas ele cegará e dominará as pessoas do mesmo jeito que um indivíduo demoníaco, se conseguir convencê-las a se interessar por seus gostos pessoais, as roupas de sua esposa, o amor que ele tem pelos cães etc”.
Da mesma maneira que os “spin doctors” republicanos tinham construído a campanha vitoriosa de George W. Bush em 2000 a partir de sua história pessoal de luta vitoriosa contra o álcool, Nicolas Sarkozy adaptou os temas do sofrimento e da redenção para elaborar sua versão francesa do conservadorismo empático. Seria o aparecimento de uma “razão sentimental”, no lugar da velha “razão cínica”, como anunciou Jean Baudrillard, em 1995, num artigo intitulado “Às Lágrimas, Cidadãos!” (Aux Larmes, Citoyens)? Ou não é antes uma forma nova da “realpolitik” na era da internet e das novas mídias, uma “realpolitik das emoções”, que leva os homens políticos a fazerem um uso estratégico de suas vidas privadas, de seus corpos e de suas emoções.
A exploração da credulidade pública por Sarkozy conduz a um descrédito sem precedentes dos discursos políticos. O que explica que ele possa ao mesmo tempo captar atenção e decepcionar a expectativa criada, suscitar o interesse e um certo desânimo, aparecer não mais como o soberano mas como “o lacaio Mati” de seus desejos tirânicos.
Muito mais que “hiperpresidente”, ele é um “serial president” ocupado em sincronizar o íntimo e o horário nobre. Não aquele que conta uma história sobre a nação, como queria Henri Guaino, o conselheiro do presidente, mas o “'storyteller' de si mesmo”, que faz ao país o dom de sua pessoa. Reconheçamos que ele não é o único.

Publicado em 17/11/2008
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Leneide Duarte-Plon
É jornalista e vive em Paris.

Revista Trópico