sábado, 25 de julho de 2009

O São Francisco, a razão e a loucura - Dom Luiz Flávio Cappio

NÃO ACEITANDO ser comparado com figuras históricas dos sertões brasileiros ou com o Mahatma Gandhi, Dom Luiz Flávio Cappio, bispo da diocese de Barra, revela a tranqüilidade e a firmeza com que realizou a greve de fome que paralisou a execução do projeto de transposição de águas do Rio São Francisco, porque comoveu a opinião pública do país ante a possibilidade de aquele protesto causar a morte de um prelado dedicado à população que vive nas margens do grande rio. Informando que sua decisão não foi aprovada pela hierarquia da Igreja, Dom Cappio lançou uma frase que ficou famosa: "Quando a razão se extingue, a loucura é o caminho".

No dia 15 de janeiro de 2006, quando veio a São Paulo a fim de anualmente reencontrar aqueles que se transferiram da região do São Francisco para nossa metrópole, Dom Luiz Flávio Cappio concedeu uma entrevista à ESTUDOS AVANÇADOS. Realizada numa das salas da imponente Igreja de São Judas Tadeu, no bairro do Jabaquara, dela participaram o jornalista Marco Antônio Coelho, editor executivo da revista, e o economista Paulo Batista Nogueira Júnior.

A seguir, um resumo dessa entrevista, cujos pontos principais já foram veiculados pela internet – nos sites do Instituto de Estudos Avançados da USP e de Dom Luiz F. Cappio (www.umavidapelavida.com).

Paulo Nogueira Batista Júnior – Gostaria de começar perguntando sobre sua formação intelectual e religiosa. Quais foram suas principais influências?

Dom Cappio – Sou filho de Guaratinguetá, SP, no Vale do Paraíba. Nasci num lar bastante religioso, em que a presença de minha mãe determinou o encaminhamento de minha formação humana e, principalmente, religiosa. Meu pai trabalhava numa fábrica de tecidos. Os dois são italianos de nascimento. Estudei em Guaratinguetá, e ao término da escola secundária fiz a opção pela vida religiosa. Ingressei no noviciado franciscano em Rodeio, SC. Fiz o curso de Filosofia e Teologia em Petrópolis e Curitiba, e simultaneamente graduei-me em Ciências Econômicas, Contábeis e Administrativas na Universidade Católica de Petrópolis. Vim para São Paulo em 1973 e, durante esse ano, engajei-me na Pastoral do Mundo do Trabalho, quando Dom Paulo Evaristo [Arns] assumiu a Arquidiocese de São Paulo. Foi uma época muito difícil em virtude da repressão política. Trabalhando com o operariado na periferia paulistana, constatei que uma boa parte daquele povo provinha do Nordeste e vivia numa situação de penúria, de grande sofrimento e marginalização. Esses nordestinos me diziam que haviam se transferido para São Paulo a fim de melhorar de vida. Pensei, então: como não deveria ser terrível a situação no semi-árido? Isso fez com que me sentisse atraído pelo Nordeste e o que me levou para lá no início de 1974. Desde aquele tempo passei a atuar como missionário franciscano e, ultimamente, como bispo na diocese de Barra.

Paulo Nogueira Batista Júnior – O sr. foi aluno de Leonardo Boff, não?

Dom Cappio – Sim, ele é meu querido mestre e amigo. Tenho por ele um profundo respeito, admiração e bem-querer. Devo muito a ele, a partir de suas convicções, de seu testemunho de vida e de sua coerência intelectual e vivencial. Para um jovem exigente (que sempre fui em meu tempo dos anos rebeldes, nos anos de 1960), a presença de Leonardo Boff me indicou um norte – identifico-me como seu eterno discípulo.

Paulo Nogueira Batista Júnior – Como o sr. vê a Teologia da Libertação e o papel que ela teve?

Dom Cappio – Não diria o papel que ela teve, mas sim o papel que ainda tem. A Teologia da Libertação, como outras teologias, são avanços que a ciência teológica produz ao longo dos tempos. Uma teologia para se firmar e ter raízes profundas no pensar eclesiástico precisa de décadas e às vezes até de séculos. Mas à Teologia da Libertação não foi dado o tempo necessário para que realmente se fortalecesse como teologia. Ela foi incipientemente podada, mas seus efeitos continuam sendo ainda muito vivos. Quem sabe não com a exuberância que deveria ter hoje, mas seus efeitos continuam e estarão perenemente presentes no contexto teológico da Igreja Católica. Todavia, hoje pode não ter a exuberância que teve num momento histórico da Igreja.



A transferência para o vale do São Francisco

Marco Antônio Coelho – Que razões o levaram a se interessar e a se transferir para o vale do São Francisco? Por que se dedicou ao estudo dos problemas do Velho Chico?

Dom Cappio – Fui buscar as origens daquele povo que vivia em São Paulo e que havia chegado do Nordeste, porque neste está o ninho da miséria brasileira. Como franciscano, me sentia atraído em estar no meio daquele povo e entregar minha vida a seu serviço. Achava-me e ainda me acho muito identificado com essa realidade dura, cruel, do povo brasileiro, e me senti no dever – como cidadão e como franciscano – de somar a minha vida à vida daquele povo. Lá chegando, percebi que, embora as condições sociais e econômicas são precárias, ali está um povo de profunda riqueza humana, que cultiva suas tradições e leva a sério suas memórias, sendo também um povo de esperança e lutador. São sofridos, mas não deixam morrer no coração a esperança e os grandes ideais da vida. Isso faz com que a gente se apaixone por aquele povo e aquela região. Já dizia um antropólogo que, quando as realidades vivenciais são muito exigentes e cruéis, isso faz com que seja criado na gente um profundo amor. As carências do povo do Nordeste e sua grandeza humana me cativaram. Além disso, fiz desse povo o meu povo, efetuando uma comunhão, um profundo casamento de 32 anos. E, se depender de mim, morrerei por lá. Em relação ao Rio São Francisco, ele foi uma descoberta que aconteceu ao longo de minha vida, porque até então ele, para mim, era apenas um acidente geográfico – como o Tietê, ou o Paraíba do Sul, onde aprendi a nadar. Fui entendendo que era mais do que isso – é a condição de vida de toda uma população. Um rio que nasce no sudoeste de Minas Gerais, muito perto do Rio Grande (afluente do Paraná), mas, que, ao contrário de seus semelhantes, ao invés de seguir para o Centro-Sul, faz uma curva e se encaminha para o Nordeste. Sempre digo que ele imita o santo de seu nome – nasce rico e entrega toda sua riqueza aos pobres. No Nordeste é a mãe e o pai de todo o povo, de onde tiram o peixe para comer, a água para beber e molhar suas plantações – principalmente em suas ilhas e áreas de vazantes. Mesmo não sendo o maior rio brasileiro em volume d'água, talvez seja o mais importante do país, porque é a condição de vida da população. Sempre dizemos: "Rio São Francisco vivo, povo vivo; Rio São Francisco doente e morto, população doente e morta". Aí entra um dado ecológico que é refletido numa intenção social e antropológica: um rio com toda sua riqueza passa a ser importante na vida de um povo e na sua maneira de se organizar. Alguém me perguntou: "Você é um ecologista?". Respondi: "Não, sou um pastor de gente, alguém que tem amor ao povo daquela região". No entanto, descobri que esse amor passa pela preocupação de que eles tenham uma vida digna, cidadã, em plenitude. E isso passa pelo Rio São Francisco.

Marco Antônio Coelho – Como o sr. aceitou ser bispo de Barra?

Dom Cappio – Foi minha vocação franciscana. Depois de 23 anos que lá estava, em 1997, fui ordenado bispo. Durante esses anos eu trabalhava nas comunidades, caminhando e missionando entre os mais carentes. O episcopado é a Igreja quem nos confere, através do papa. Acredito que ele tenha visto em mim um trabalhador profícuo. Para minha surpresa como simples franciscano, recebi uma carta do santo padre me convidando para ser bispo de minha diocese. Ela compreende onze municípios: são 43 mil quilômetros quadrados, área maior do que a do Estado do Rio de Janeiro, mas com uma população tão-só de 250 mil habitantes. Recebi de bom-grado esse convite porque era a oportunidade de prestar um serviço em âmbito maior.

A caminhada que durou um ano

Marco Antônio Coelho – Um fato pouco divulgado de sua vida de pastor é a caminhada que realizou durante um ano ao longo do Rio São Francisco. Como o sr. foi recebido pela comunidade ribeirinha e pelos párocos da região?

Dom Cappio – Quando percebemos o valor do rio e como seu povo é o primeiro a cuidar dele – quase como guardiães –, identifiquei a necessidade de estabelecer um diálogo com a comunidade ribeirinha, justamente com o objetivo de mostrar que aquele rio é muito importante. Usando não a linguagem técnica do ecologista e do geógrafo, mas uma linguagem religiosa, que é a do povo simples do sertão. Falamos a eles que o rio é um presente de Deus para vida de todos. E que, antes de colocar o povo nessa região, Deus colocou o rio. Essa linguagem mística o povo entende. Outro objetivo da caminhada era fazer um grande diagnóstico, era identificar as grandes causas da morte do rio, porque observamos como o rio está morrendo. Nosso objetivo último era dizermos para os ribeirinhos que eles são os zeladores do rio e que tinham de assumir essa missão, já que nenhum estranho cuidaria disso. Dávamos exemplos concretos e simples de cuidados com as árvores – plantamos mais de um milhão de mudas – e de como não poluir o rio. Essa viagem virou uma página na história do rio e de seu povo. Porque, a partir de então, constatamos as inúmeras iniciativas que o povo começou a ter em relação a seu rio. Hoje podemos observar, da nascente à foz, um povo sensibilizado pela vida do rio – adultos, adolescentes, crianças, prefeituras, escolas, zona rural, meios de comunicação etc. Percorremos todas as comunidades ribeirinhas, pois, se na viagem gastamos um ano, a preparamos durante dois anos. Antes de começar a peregrinação estivemos em todas as dioceses à beira do rio (são dezesseis); conversamos com o bispo de cada uma e pedimos seu apoio; através deles contatamos todas as paróquias na beira do rio (quase 100). Começamos no dia 4 de outubro de 1992 e, pontualmente, celebramos o encerramento na foz em 4 de outubro de 1993. O cronograma foi disciplinadamente observado, embora, como possam imaginar, foi difícil percorrer em um ano uma diversidade incrível de realidades. Visitamos todas as comunidades, realizamos palestras nas escolas – desde o pré-primário até as universidades. Debatemos os objetivos da caminhada com os meios de comunicação, com os grupos organizados e associações de bairro; o mesmo sucedeu com as entidades, câmaras de vereadores e prefeituras etc.





Gandhi e as grandes figuras do sertão

Paulo Nogueira Batista Júnior – Depois da greve de fome, o sr. tem sido comparado a algumas figuras importantes no Nordeste; por exemplo, o padre Cícero e Antônio Conselheiro. Como o sr. vê essas comparações e qual sua avaliação sobre essas figuras históricas?

Dom Cappio – Tenho uma profunda veneração por essas figuras, como o padre Ibiapina, que foi um grande educador do sertão, pois aplicou uma pedagogia incrivelmente avançada para o seu tempo. O mesmo posso dizer do padre Cícero Romão Batista, de Juazeiro, que foi um homem profundamente comprometido com o seu povo, mas muito mal compreendido pela própria Igreja, embora hoje reabilitado. Antônio Conselheiro também é uma pessoa a ser mais bem estudada, porque possuía um carisma incrível, um poder de arrebanhar o povo e de mostrar um norte. Enfim, são personalidades a quem respeito. Quando me comparam a essas figuras – digo com toda sinceridade –, sinto-me muito aquém. Quem sou eu, meu Deus, para ser comparado ao padre Ibiapina ou ao padre Cícero? Quem sou eu para ser comparado a Antônio Conselheiro? Não sou ninguém. Sou um simples e pequeno franciscano que procura levar a sério e coerentemente sua vocação. Estou muito longe de ser até a sombra dessas figuras históricas. O povo na sua generosidade e na sua grandeza de alma tem uma sede, uma fome de atualizar seus grandes heróis. É um processo de substituição, um desejo muito grande. Se fizermos uma análise mais aprofundada desse fenômeno de psicologia social, concluiremos que estamos vivendo uma época de carência de líderes populares. Então, o povo almeja, sonha, em vislumbrar no mundo de hoje alguém que tenha a grandeza de um Ibiapina, a liderança de um Conselheiro, o comprometimento de um padre Cícero.


Paulo Nogueira Batista Júnior – Também no exterior sua luta teve enorme repercussão. Por exemplo, The Economist chegou a dizer, em relação à sua greve de fome, que o Rio São Francisco havia encontrado o seu Gandhi. Então, queria lhe perguntar: o sr. estudou a experiência de Gandhi, da resistência não-violenta? E a experiência dele com greve de fome teve alguma influência em seu gesto?

Dom Cappio – Gandhi me fascinou notadamente no meu tempo de militância como estudante, e em alguns dos meus primeiros anos em São Paulo, na Pastoral do mundo do trabalho, quando estávamos no auge da repressão política brasileira. Se alguém desejar ser fiel ao Evangelho e fiel ao carisma de São Francisco de Assis tem de se exercitar numa postura não-violenta, de tolerância. Exercitar sua fé no amor, acreditar na possibilidade de um mundo melhor, sem o uso da violência. Porque a violência atrai a violência e o amor gera o amor. Uma figura muito atualizada nesses valores foi Gandhi. A ideologia da não-violência dele era profundamente iluminadora e isso nos ajudou muito, pois ele sempre indicava um caminho. Embora eu não tenha me aprofundado no estudo da vida de Gandhi, ele foi uma personagem histórica que marcou a sua época e sua luta tinha um conteúdo que nos ajudou numa fase muito difícil como aquela que vivemos no Brasil durante tantos anos.



A razão e a loucura

Paulo Nogueira Batista Júnior – Quando o sr. iniciou a greve de fome, disse aquela frase que foi muito citada: "Quando a razão se extingue, a loucura é caminho". Qual é o papel que o sr. vê para a razão e a loucura nos assuntos humanos e nas questões sociais?

Dom Cappio – Aquela frase ficou um tanto ambígua. Mas quem penetra nas entrelinhas do significado dos termos entende as razões profundas daquela frase. Eu diria o seguinte: minha vida é alimentada pela fé. O que me norteia é minha fé incondicional. A presença de Deus na minha vida, a sinceridade com que procuro trazer para ela essa presença do Deus vivo e do desejo de estar no meio do seu povo, segue aquela lição de São Paulo – "a de que para o mundo a fé é uma loucura". O que o mundo não entende só pode ser explicado pelo lado da fé. Então, um gesto como esse para o mundo é uma loucura. Como é que alguém que tem tudo para ter uma vida razoavelmente tranqüila faz a opção de morrer por uma causa do seu semelhante? Isso é loucura... Eu diria – é até uma insanidade. Quem olha para o significado dos termos formais pode até pensar que aquela pessoa está louca, e deve ser levada para um tratamento psiquiátrico. Entretanto, quem lê as entrelinhas e conhece um pouquinho do coração da gente sabe que os motivos são bem outros. Quando eu dizia loucura, me referia à loucura da fé, de alguém que faz uma opção de vida que está na contramão do pensamento das pessoas normais. Desde meus primórdios, pois venho de uma família abastada, fiz um voto de pobreza, entrei numa ordem religiosa, vou para o sertão e, de repente, opto por morrer. Então, para alguém que não traz em seus parâmetros a fé, tudo é uma loucura, uma insanidade. Nesse sentido, Jesus e São Francisco de Assis foram loucos. Uma loucura que não é a insanidade da razão, mas a saúde espiritual do coração.

Paulo Nogueira Batista Júnior – Essa decisão de realizar a greve de fome foi tomada solitariamente, ou antes o sr. consultou amigos, correligionários, parentes e pessoas da Igreja?

Dom Cappio – Essas decisões não podem ser tomadas em mutirão, pois dizem respeito só a você mesmo. É algo que pertence ao fórum íntimo que alguém toma diante de Deus e diante dele mesmo. Esse ano de 2005 foi o mais difícil da minha vida, já que convivi com a morte 24 horas por dia. Meu documento anunciando a greve de fome foi assinado no domingo de Páscoa, no final de março. Isso porque o início das obras da transposição estava previsto para abril. Porém, aconteceu que, justamente naqueles dias, estourou a denúncia da corrupção em Brasília. Então, todos se voltaram durante meses para esse problema. Em fins de setembro as questões em Brasília se amenizaram e, quando ocorreu o plebiscito em torno da venda de armas, percebi que era o momento de realizar o gesto contra a transposição do São Francisco. Assim, desde o início do ano até o final de setembro convivi com o espectro da morte ao meu lado, e isso é doloroso e cruel. Foi uma experiência dura e exigente. Por outro lado, foi rica, pois foi vivida dentro de um espírito de muita fé. Acredito que, se não fosse a fé que me alimenta, eu não teria suportado. No dia seguinte, quando tomou conhecimento da minha luta, sem pensar muito, o presidente Lula comentou: "Ah, e se agora pegar moda de todo mundo fazer greve de fome diante de um problema qualquer...". Em nossa conversa, no Palácio do Planalto, comentei com ele: "Olha, presidente, essa moda não pega. É cruel e desumana".

Paulo Nogueira Batista Júnior – Um aspecto interessante é a reação da Igreja diante da sua iniciativa. Antes de iniciar a greve de fome o sr. conversou com seus superiores hierárquicos?

Dom Cappio – Logo depois que tomei a decisão de promover a greve de fome, conversei com Adriano Martins, sociólogo ambientalista, uma pessoa pela qual nutro grande respeito, quer pela sua capacidade intelectual quer pela sua amizade. Fiz dele um grande interlocutor. Ele, também por amor à causa, com muita dor no coração, pois me estima muito, aceitou esse desafio que foi tão pesado para ele. Também comuniquei a meus familiares a decisão que havia tomado. Porém, não pedi sugestões e conselhos. Os senhores podem imaginar o quanto isso foi doloroso para eles que sempre caminharam ao meu lado. Igualmente, conversei com alguns colegas. Meu gesto não foi aprovado por ninguém, mas foi aceito. Com a CNBB houve a mesma coisa, pois ela nunca concordou com a minha decisão, mas sempre a respeitou. Não gosto dessa expressão "greve de fome". No entanto, é uma questão de palavra. Se eu dissesse: "Vou para Cabrobó fazer um jejum de oração", não criaria impacto. O importante é entendermos os fatos. Embora estivesse pronto para morrer, tinha certeza que se iria encontrar uma solução. Isso porque vivemos no contexto de uma nação onde se pode discutir em torno de uma mesa para se chegar a um consenso, sem a necessidade de haver um cadáver no meio da discussão. Todavia, um jornalista da BBC, de Londres, disse a meus familiares (como fiquei sabendo depois) que eles deveriam se preparar porque eu iria morrer, pois o governo não cederia.

Paulo Nogueira Batista Júnior – Ninguém tentou impedi-lo de realizar a greve de fome?

Dom Cappio – Recebi uma carta do Vaticano, através da Secretaria para os Bispos, pedindo insistentemente que voltasse a me alimentar, pois a minha atitude estava causando um grande problema de ordem moral – a questão da opção pela vida, ou pela morte –, sendo um fato sem antecedentes. O Vaticano, então, pediu que eu me mantivesse aberto a todas as possibilidades de uma solução. Foi o que fiz. Quando o Jacques Wagner chegou a Cabrobó levando uma segunda carta do presidente Lula, disse a ele: "Ministro, não estou satisfeito com o teor dessa carta, por isso permaneço sem me alimentar". Foram cinco horas e meia de discussão. Ele com todas as suas energias renovadas e eu com onze dias de jejum. No entanto, era ainda capaz de discernir o que era melhor ou não. Enfim, cheguei a um acordo, sendo fiel ao que me foi pedido, ou seja, que me mantivesse aberto a todas as possibilidades para que minha vida não fosse tolhida. Fiquei satisfeito quando o ministro Wagner disse que não se falaria mais em transposição a fim de abrirmos um grande diálogo. O resultado transcendeu as minhas expectativas, porque no início também eu estava sendo autoritário. Contudo, tive a capacidade de me abrir para o diálogo. Tanto é que isso me levou a interromper o jejum, abrindo esse diálogo em que participaria a nação brasileira, deixando de ser apenas um problema meu, para se tornar um problema nacional. Havia grande preocupação com a minha vida e um bem-querer muito grande por parte da Igreja. A CNBB – na figura de Dom Geraldo Majella – foi um pai, um irmão, um amigo que me ligava todos os dias para saber como eu estava. Meu queridíssimo Dom Luciano de Almeida estava preocupado e, encontrando-se em Roma naqueles dias, também fez jejum em solidariedade a mim. O mesmo sucedeu com tantos outros, alguns que não concordavam comigo, mas que também são meus irmãos. Era tanta gente comigo que me sentia confortado.



O transcorrer da greve de fome

Paulo Nogueira Batista Júnior – O sr. entrou em greve abruptamente, ou foi diminuindo a alimentação aos poucos?

Dom Cappio – Abruptamente. Sempre fui muito comedido no comer e no beber, além de haver sempre gozado de boa saúde. Só bebia água do São Francisco. No dia 26 de setembro tomei, como última alimentação, um suco de maracujá, mais ou menos às dez horas da manhã. Depois de doze dias recebi soro no hospital. Minha primeira ingestão foi de água de coco.

Paulo Nogueira Batista Júnior – E o sr. teve acompanhamento médico?

Dom Cappio – Lá estiveram o juiz de Direito de Cabrobó e o promotor de Justiça pedindo cordialmente que eu aceitasse o acompanhamento médico. Concordei, mas como a cidade tem apenas um médico, disse que gostaria que ele não ficasse à minha disposição, quando tanta gente carente necessita dele. Ele poderia vir apenas de vez em quando, medir a pressão etc. E assim foi. A partir do oitavo dia ele passou a me visitar duas vezes ao dia para fazer um pequeno check-up. Havia também uma ambulância à disposição. Houve esse acompanhamento, e foi muito carinhoso. A secretária de Saúde do Estado de Pernambuco foi me visitar para saber como eu estava sendo tratado. Não posso reclamar porque fui bem acompanhado, sendo alvo de muito carinho e cuidado.


Paulo Nogueira Batista Júnior – E como é suportar uma greve de fome?

Dom Cappio – É uma loucura. Se a gente não tiver um suporte espiritual, uma experiência muito profunda de Deus na sua vida, de uma fé de que a morte não é o fim, é passagem. Como diz São Francisco, é morrendo que se nasce. Se não tivermos uma profunda convicção da eternidade presente no tempo, não fazemos nada. Uma greve de fome é uma agressão tremenda, já que faz parte do instinto humano a preservação da vida. Só tendo uma convicção espiritual muito forte podemos vencer o instinto. Os quatro primeiros dias são insuportáveis e muito dolorosos porque se tem a expectativa do organismo pelo alimento que deve receber, que vem de fora. Depois disso o organismo está psicologicamente preparado, pois sabe que não vai receber nada e passa a se autoconsumir. Você não sente tanto a necessidade do alimento, mas o enfraquecimento é visível e cada vez mais você percebe a debilidade em seu corpo. Começa a faltar a memória e aparecem as dificuldades de se locomover. Depois fiquei sabendo que, pelas previsões médicas, eu agüentaria apenas mais dez dias.



O diálogo com Lula e o governo

Marco Antônio Coelho – Como foi a negociação no Palácio do Planalto?

Dom Cappio – Na conversa com o presidente da República, exatamente há um mês, o senhor Luiz Inácio Lula da Silva me questionou: "Dom Luiz, por que o senhor antes não veio conversar comigo e apresentar suas razões a respeito da transposição do São Francisco?". Respondi: "Presidente, vim sim, e não apenas uma vez, mas diversas vezes. Participei de todos os debates e seminários em defesa do rio, do povo, e do semi-árido. O senhor pode ver que em todos os documentos enviados encontra-se a minha assinatura. Porém, infelizmente, esses documentos nunca foram examinados. O governo sempre colocou de lado a contribuição que veio da sociedade brasileira. Os senhores decidiram realizar esse projeto na contramão do desejo do cidadão brasileiro. Assim, dentro de nosso discernimento, somente um gesto desesperado poderia sensibilizar o governo. Por isso é que assumi esse grito, sem prever suas conseqüências e resultados. Ou seja, a CNBB me apoiar e, a partir dessa postura, obter a cobertura da mídia nacional, tornando o Brasil e o mundo sensíveis à causa do São Francisco. Porém, o resultado poderia ser outro. Todos poderiam ignorar meu comportamento e hoje eu poderia estar descansando num campo santo. As conseqüências desse gesto eram imprevisíveis, portanto. A vida é sempre um risco e em decisões você corta alguma coisa. Num gesto desesperado, cortei até a possibilidade de viver. Foi uma decisão, na tentativa de meu protesto ser ouvido. Isso porque a minha fala civilizada foi inútil, sendo necessário um gesto louco para minha opinião ser levada em conta".

Marco Antônio Coelho – O governo está firme na disposição de levar adiante o projeto da transposição. Diante disso, embora seja uma especulação, qual será sua posição face ao desatino do governo?

Dom Cappio – Quando fomos ao Palácio do Planalto, para o governo, o encontro conosco seria o término do diálogo acertado em Cabrobó. Todavia, tive o cuidado de dizer ao presidente Lula que naquele encontro simplesmente iniciaríamos o processo de discussão. Portanto, alterei o sentido daquela reunião em Brasília. Para o presidente e seus assessores, principalmente o ministro Ciro Gomes, tudo se resumiria no seguinte: "Pronto, recebemos o bispo, ouvimos suas reclamações e encerramos os compromissos assumidos em Cabrobó". Assim, os surpreendemos quando afirmamos que apenas estávamos iniciando um debate. Conversamos duas horas e meia naquela reunião no dia 15 de dezembro. Ao final, o presidente disse: "A minha posição é de fazer a transposição, pois estou convencido que é importante. É uma meta de meu governo". Então, qual foi a posição do presidente? Destaco três pontos: 1. o propósito dele é realizar o projeto de transposição de águas do rio; 2. ele aceitou nosso pedido de abrir o debate na sociedade brasileira; 3. afirmou que poderá mudar de idéia caso nossos argumentos sejam convincentes. Ouvi esses três pontos. Já que estou disposto a conversar, tenho de confiar no presidente. Se não, nem teria ido lá. Com freqüência estão saindo nos jornais notícias que a transposição será feita. Porém, conhecemos a mídia e o jogo que ela faz. Para nós, vale o que foi firmado. E até agora tem sido respeitado tudo que combinamos. Pode ser que, daqui a três meses, quando for publicada esta entrevista em Estudos Avançados, estaremos diante das seguintes possibilidades: 1. o governo não mais poderá realizar nenhum projeto em razão de exigências legais que impedem o início de obras nos meses que antecedem o pleito eleitoral; 2. no entanto, pode ser que comecem as obras se o governo rapidamente eliminar na Justiça as medidas que paralisaram a execução do projeto da transposição. Então, se isto suceder, veremos o que poderá ser feito.

Paulo Nogueira Batista Júnior – Se o governo não cumprir o acordo, o sr. tem dito que voltará a Cabrobó e não voltará sozinho. Qual sua expectativa em relação a isso?

Dom Cappio – Minha palavra se mantém. Porém, há outras formas de luta. Decisões extremas talvez aconteçam apenas uma vez na vida. Pela mobilização que minha atitude ocasionou, temos outras formas de impedir esse projeto de transposição. O grito foi dado, mas não é gritando continuamente que resolvemos os problemas. Com o trabalho que realizamos em Brasília, com aquelas discussões a respeito de medidas sobre o semi-árido, conseguimos reunir quem estava conosco, pois o governo estava coeso, mas nós ainda não. Agora falamos a mesma linguagem. Todos podemos explicar por que o rio necessita da revitalização e daquilo que propomos como alternativa. Hoje existe um conjunto comum de teses que nos unem. Todavia, ainda há um imenso trabalho a ser feito. No entanto, se isso não for respeitado e se amanhã aparecer nos jornais a notícia de que o "governo iniciou a transposição", vamos decidir o que fazer – e vocês ficarão sabendo.

ANEXOS

Carta ao presidente da República

É IMPORTANTE reconhecer e destacar que esta audiência dá início à participação da sociedade na discussão de um modelo de desenvolvimento baseado na convivência com o semi-árido, que priorize os direitos dos pequenos. Os movimentos sociais e seus coletivos há muito fazem a reflexão das alternativas, origem da pauta inicial para este processo de discussão.

Não mudamos nossa compreensão da transposição de águas do Rio São Francisco, conforme já expressa em Cabrobó. A transposição recebe severas críticas dos movimentos sociais, dos coletivos populares, amparados em estudos de técnicos e especialistas em recursos hídricos.

O Brasil possui uma das mais injustas concentrações no acesso à água. A transposição do Rio São Francisco é um projeto de segurança hídrica dos grandes reservatórios, o que reafirma atual lógica de exclusão no acesso à água. Ele não contempla a democratização ao acesso à água e a ampliação da rede de distribuição. Não é verdade que a transposição levará água a quem tem sede e isto, por si só, já é um impedimento ético mais do que suficiente para justificar a oposição a este projeto.

De qualquer forma, tomamos a iniciativa de trazer um documento que sintetiza os principais argumentos éticos e sociais que amparam a consciente oposição à transposição.

O Rio São Francisco, vítima de décadas de descaso e exploração insustentável, agoniza lentamente. É imperativo um pacto nacional pela recuperação do rio. Os diagnósticos da situação são amplamente conhecidos e os documentos que trouxemos demonstram claramente isto.

Precisamos passar do diagnóstico para o tratamento real e efetivo, acima e além de quaisquer interesses regionais ou institucionais isolados e de curto prazo.

O desenvolvimento do Nordeste brasileiro exige a superação da visão preconceituosa do que seja a vida no semi-árido. Já existe uma proposta básica, um indicativo de caminho, para um projeto de desenvolvimento, baseado na convivência com o semi-árido. Uma proposta viável em termos técnicos e econômicos, além de socialmente justa e inclusiva.

Em primeiro lugar, é de fundamental importância que a democratização do acesso à água seja o tema central do modelo de desenvolvimento a ser discutido. A água é um direito humano fundamental, secularmente negado à população do Nordeste brasileiro, porque as obras hídricas sempre reproduziram o modelo concentrador e excludente.

Para o desenvolvimento de um sistema integrado de gerenciamento dos recursos hídricos existentes no semi-árido brasileiro será essencial que a água democratizada esteja realmente disponível para o atendimento das demandas da população.

Mas a água por si mesma não é suficiente para garantir um desenvolvimento socialmente justo e economicamente inclusivo. É essencial a concepção de uma reforma agrária que seja desenvolvida a partir das reais características do semi-árido.

Existem inúmeras iniciativas da sociedade organizada que demonstram as potencialidades da convivência com o semi-árido. As cisternas de placas para consumo doméstico, as cisternas de produção, as barragens subterrâneas, as microbarragens, dentre outras, precisam do apoio de políticas públicas que integrem e sistematizem as ações atualmente isoladas.

O modelo de desenvolvimento sustentável no semi-árido é um tema complexo, que demandará amplas discussões entre a sociedade, especialmente no semi-árido e o governo.

Mas, quaisquer que sejam as dificuldades operacionais deste debate, é importante reafirmar a necessidade de um modelo nascido de forma democrática e participativa.

Um modelo de desenvolvimento sustentável no semi-árido é um importante componente de um projeto de país, que seja realmente democrático, justo e inclusivo a toda população historicamente marginalizada.

Esperamos que a abertura deste grande processo de discussões receba as bênçãos de Deus e que seja um marco histórico na transformação de nosso país.

Brasília, 15 de dezembro de 2005.

Dom Luiz Flávio Cappio, bispo diocesano de Barra, BA.

Relatos de uma peregrinação

O LIVRO Rio São Francisco – uma caminhada entre vida e morte (Cappio et al., 1995) registra o que sucedeu na caminhada da Serra da Canastra até a foz do São Francisco, realizada durante um ano – de 4 de outubro de 1992 até 4 de outubro de 1993. Nela participaram frei Luiz Flávio Cappio, a irmã Conceição Tanajura Menezes, Orlando Rosa de Araújo e Adriano Martins.

Esses relatos foram escritos por solicitação de entidades atuantes na defesa do rio. Mensal ou bimensalmente, os peregrinos definiam os assuntos mais importantes daquele período e eram redigidos por Adriano Martins em forma de cartas. Transcrevemos, a seguir, uma delas, escrita na cidade de Januária, em 4 de fevereiro de 1993:

"Amigos do São Francisco,

Escrevo tardiamente. Já se passaram dois meses desde nossa última carta. A fadiga das longas caminhadas e travessias do rio, a exigência do trabalho e as condições simples do povo que nos hospeda dificultam as escrituras. A lida com as palavras, sempre árida em relação ao vivido, tenta partilhar um pouco destes últimos dois meses de caminhada.

Desde o início de dezembro estamos percorrendo a área mineira do Polígono das Secas, região onde a chuva se torna escassa e o vínculo de dependência entre a população e o rio passa a ser fundamental. Aqui, o rio do povo e o povo do rio compõem fios de uma única e vital rede de interdependência. É do Rio São Francisco a água que se bebe, é ele que fornece o peixe e é do plantio nas ilhas e vazantes que vem o sustento do povo barranqueiro. O rio gera a base de sobrevivência e as atividades econômicas e fundamentais do seu povo. Ouvimos de Dona Iraci, na Barra do Rio Urucuia: 'Quem na beira do Rio São Francisco morá, de fome não morrrerá'.

Em nossa caminhada vemos, com tristeza, os fios desta rede de interdependência serem rompidos. O povo do rio está sendo cada vez mais afastado de suas beiras, tomadas pelas fazendas de gado. Está sendo afastado também das chapadas, tomadas pelo carvoejamento e pela monocultura do eucalipto. Desde que o rio passou a ser visto como área de interesse para a expansão do capital, o povo do rio se vê ameaçado em sua sobrevivência. Destruir ou alterar as condições naturais do São Francisco e seus ecossistemas significa destruir as condições básicas de sobrevivência dos milhões de seres humanos que formam o povo do Rio.

Concentração das terras – Durante uma celebração na cidade de São Francisco conversávamos sobre a necessidade urgente de recuperar as matas da beira do Rio. Uma senhora, bastante sensibilizada e disposta a agir, perguntou:'Como poderemos replantar a beira do rio se hoje ela está nas mãos dos ricos'?

Assoreamento e diminuição da vazão do Rio – Relato feito em Pirapora, durante uma reunião: 'Tenho 70 anos e já vi o Rio São Francisco, na seca, com mais água do que agora com as chuvas'. Outro relato, feito pelo dirigente da comunidade de Bom Jardim em São Francisco: 'O rio está morrendo e nós aqui já descobrimos. Antes, de barranco a barranco eram mil metros, hoje é cada coroa que em alguns lugares já diminuiu para 500 m'.



A fome – Quando fomos de Barra do Pacuí (município de Ibiaí) para Ponto Chic (município de Ubaí), a uma certa altura a chuva impossibilitou a continuidade da caminhada e nos abrigamos em uma casa próxima ao Riacho da Fama. Eram 15h00 e esta família não tinha nada além de pequi para o almoço (fruto generoso do cerrado). Até a farinha tinha acabado. Em muitas comunidades fomos hospedados por famílias de pescadores que dificilmente comem do peixe que pescam. Normalmente o dono do armazém local é também o 'atravessador' do peixe, e os pescadores, pressionados por dívidas que nunca têm fim, repassam diretamente a este todo o fruto de seu trabalho. Ouvimos em Palmeirinha, município de Pedras de Maria da Cruz, este bendito entoado por um povo familiarizado com a doença, a fome e a violência:

'Viva São Francisco de toda grandeza /Retrato de Cristo, ele é Pai da pobreza /Senhora Santana livrai-nos da peste /Da fome, da guerra e dê chuva na terra'.

Intoxicação nos eucaliptais – Depoimentos de uma senhora que já trabalhou aplicando agrotóxicos em eucaliptais de Buritizerio, sobre o socorro prestado aos colegas que desmaiavam durante a aplicação: 'Quando caía, a gente levava o companheiro para perto da água e lavava com sabão até chegar o carro para levar a pessoa para a cidade. O veneno era o Blenco' (Blenco ou Bromex é um gás de brometo de metila altamente tóxico, de Classe I, proibido em sete países).

As veredas do grande sertão – As veredas (ecossistemas das nascentes nos cerrados brasileiros) eram tão freqüentes no município de Buritizeiro que foi cenário para filmagens da minissérie 'Grande Sertão: Veredas', adaptação do romance de João Guimarães Rosa, produzida e veiculada pela rede Globo de Televisão. Hoje, o município de Buritizeiro já não poderia mais servir de cenário para a saga de Riobaldo Tatarana. A maior parte de suas veredas, ecossistema protegido por lei, foi barbaramente destruída ou danificada pelo carvoejamento.

Segundo informação obtida na câmara de vereadores daquele município, Buritizeiro possui hoje a maior área de monocultura de eucalipto do Brasil. Em 1972, a chegada das carvoeiras no município foi saudada pelas oligarquias locais como sendo 'o dedo de Deus' promovendo o progresso da região. Poucos anos depois, o povo começou a descobrir a farsa: carvoeiras e 'reflorestadoras' – é possível chamar uma monocultura ecologicamente tão danosa como a do eucalipto de floresta? – são, na verdade, o 'diabo verde' a infernizar a vida já sofrida do povo pobre do sertão.


Poluição do ar e das águas promovida com o dinheiro público – A industrialização de áreas-pólo no Nordeste brasileiro, estratégia adotada pela Sudene, consumiu somas fabulosas do erário público com a justificativa de minorar as condições de miséria no sertão. Da forma que foi implantada, via de regra, esta estratégia criou problemas sociais graves, acentuando consideravelmente o êxodo rural (Montes Claros, cidade-pólo do norte de Minas, tem hoje 90 mil favelados). Além dos problemas sociais, agravam-se os problemas ambientais. Em Pirapora empresas que produzem e exportam ferro silício para o Japão lançam no ar resíduos altamente prejudiciais à saúde da população. Empresas têxteis lançam restos de tinta e soda cáustica diretamente nas águas do Velho Chico. A desinformação e o pequeno poder de pressão da população local, herança da cultura de dominação política no nordeste, aliados ao sucateamento e corrupção nos órgãos públicos, responsáveis pela fiscalização ambiental, fazem do Vale do São Francisco uma terra-de-ninguém, onde o lucro irracional de poucos significa a morte para milhares.

Os cerrados – Segundo bioma (conjunto de ecossistemas) em extensão da América Latina, os cerrados brasileiros entram em contato com todos os demais biomas do país: Floresta Amazônica, Mata Atlântica, Pantanal Mato-Grossense, Caatinga, Mata de Araucária e os Pampas. A altitude e a grande capacidade de absorção da água da chuva pelos solos arenosos dos cerrados fazem deste bioma uma verdadeira caixa d'água, alimentando seis das oito maiores bacias hidrográficas do país. Da região dos cerrados parte o Velho Chico e seus mais importantes afluentes, a maioria dos rios da margem direita do Amazonas, todos os rios da bacia Araguaia-Tocantins, grande parte dos rios da bacia do Prata e parte considerável dos rios das bacias do leste e nordeste brasileiros. Não obstante a sua fundamental importância para o equilíbrio dos demais ecossistemas brasileiros, como dispersor de águas, os cerrados têm sido vorazmente destruídos nas últimas décadas. A destruição dos cerrados tem financiamento subsidiado e isenções fiscais do governo brasileiro e envolve interesses de grandes grupos internacionais. Até quando o nosso silêncio condenará os cerrados ao fenecimento? Este alerta do 'Manifesto Grande Sertão Veredas' (Grupo de Estudos e Ações Ambientais, Montes Claros) tem sido refletido amplamente em nossa peregrinação, a partir das experiências concretas da seca de vários riachos e ribeirões em conseqüência do desmatamento do cerrado.

Atividades – Foram grandes as distâncias percorridas a pé durante este período de dois meses entre Pirapora e Januária. Neste tempo de férias escolares os espaços de debate e reflexão foram, além das celebrações, as reuniões com grupos específicos: crianças, jovens, educadores, pescadores, vazanteiros, lavadeiras, sindicatos rurais e urbanos, associações de desenvolvimento comunitário. Nestas reuniões tentamos, além de trocar informações sobre a situação da bacia do São Francisco e dos problemas locais, pensar e realizar ações concretas e possíveis para a preservação do Rio. Têm sido especialmente frutíferas as experiências com o plantio de árvores. Tentamos estimular ações possíveis ao indivíduo, ações possíveis através do trabalho coletivo em grupos e associações e ações possíveis através da pressão sobre órgãos públicos, governantes e empresas. Muitas sementes estão sendo plantadas. Que as águas do São Francisco reguem no coração de todo barranqueiro a responsabilidade e o carinho com o futuro do nosso vale.

Prefeituras e câmaras de vereadores – É muito importante espaço que temos ocupado, pois é fundamental que os municípios tomem posição frente à destruição do rio e o empobrecimento de suas populações. Na cidade de Januária, em resposta a nossa iniciativa, a presidência da câmara instituiu uma comissão composta por cinco vereadores. Esta comissão deverá coletar, junto à população de Januária, sugestões para a preservação do rio e propor a criação de leis e fomentar o desenvolvimento de ações e projetos. Durante nossa estadia no município discutimos e propomos a esta comissão sugestões relativas ao carvoejamento, ao tratamento dado ao esgoto da cidade, ao lixo (doméstico e hospitalar) à arborização da cidade, às áreas de preservação; propomos ainda projetos de desenvolvimento com aproveitamento dos frutos do cerrado, o trabalho de educação ecológica através das escolas e dos meios de comunicação etc..."(p.38-42).



O polígono da maconha

Na carta datada de 4 de setembro de 1993, escrita na cidade de Amparo do São Francisco, pode-se ler o seguinte trecho:

"O 'polígono da maconha' – No dia 24 de julho, atendendo ao convite do bispo Dom Ceslau Stanula, nos afastamos 60 km da beira do rio para um dia de intensas atividades na sede da diocese. Ao chegarmos em Floresta, PE, soubemos que a programação estava suspensa, pois na véspera 'mais um' tinha sido assassinado na guerra que envolve problemas de família e disputas pelo domínio nos negócios de produção e tráfico da maconha. Os moradores, certos e temerosos do revide, mal saíam à porta de suas casas e qualquer movimentação maior seria perigosa. Tivemos assim nosso primeiro dia de 'descanso forçado' na longa jornada pelo São Francisco. Fatos como este são hoje comuns em Floresta, um dos centros do 'polígono da maconha'. Este 'polígono' compreende uma vasta área dos estados da Bahia e de Pernambuco, hoje maior produtora da droga no mundo. Desde Xique-Xique já nos deparávamos com a violência ligada ao narcotráfico, mas neste último trecho a máfia da droga se tornou de tal forma poderosa que o terror e a impunidade compõem o cotidiano das comunidades. Em Belém do São Francisco ouvimos de uma mãe de família: 'Graças a Deus, lá em casa só mataram um'. No interior de Juazeiro foi assassinado um agente de pastoral, o Manequinha, suspeito de ter denunciado uma plantação de maconha. Se forem feitas estatísticas sobre os assassinatos ligados à droga nesta região, ficará evidenciada uma das mais graves situações de violência do país. Por que tamanho silêncio e tão grande impunidade?


Silêncio e impunidade – Os negócios da maconha movimentam a economia regional, envolvendo grandes interesses. Uma região castigada pela pobreza, pelo coronelismo e pelas políticas agrícolas excludentes em relação à pequena produção, foi um terreno fértil para a máfia da droga. A atuação da polícia se mostra ineficiente e também perversa, quando evita a punição dos grandes responsáveis por esta situação (donos das plantações, grandes traficantes, lideranças políticas envolvidas, etc...) e acirra a violência sobre e entre os moradores locais. Apesar da gravidade da situação, pouquíssimo se fala a este respeito na região. Em relação aos meios de comunicação, com poucas exceções, o silêncio é sepulcral. À exceção do jornal Diário de Pernambuco e das entrevistas ao vivo em algumas rádios, todos os demais meios de comunicação a que tivemos acesso (foram várias rádios, TVs e jornais) omitiram declarações sobre o assunto. Em meio a este silêncio opressivo ganha força a voz profética de Dom José Rodrigues, bispo de Juazeiro, BA, a única autoridade da região a denunciar esta situação de morte e opressão. Nas comunidades do interior o medo é tal, que os moradores evitam falar no assunto. No projeto Brígida, re-assentamento dos atingidos de Itaparica em Orocó, PE, ao final da celebração, alguns moradores, mais animados a enfrentar o problema, nos diziam que aquela foi à primeira vez que lá alguém teve a coragem de pronunciar em público a palavra 'maconha'. Comunidades como Itamotinga, interior de Juazeiro, sofrem tamanha violência que os moradores amedrontados, não ousam sair de suas casas depois do anoitecer. A desconfiança e o medo tomam o lugar da espontaneidade e da hospitalidade tão características no interior nordestino. Em todas as comunidades que visitamos este assunto foi abordado de maneira enfática. O clima era tenso e muitos irmãos na caminhada temeram por nossas vidas. Deus nos quis vivos e nos sustentou, a questionar este caminho de desagregação e violência.

Ética e trabalho – Na borda do Lago de Sobradinho visitamos uma família que sabíamos envolvida com a droga. Ao perguntarmos à dona da casa pelo seu filho, esta nos informou que ele estava trabalhando em uma roça de cebola. Perguntamos, sem rodeios, se junto com a cebola ele não plantava também maconha. A resposta foi surpreendente: 'Não deixa de plantar, porque aqui todo mundo planta'. Perguntada se o filho fumava maconha, esta senhora quase desmaiou: 'Nossa Senhora me livre dessa hora má'! Percebemos que entre a população existe uma condenação terrível em relação aos usuários e uma tolerância imensa em relação aos que lucram com a maconha. Uma profunda e generalizada interdição faz da erva e dos seus usuários os 'malditos'. Por causa do dinheiro, muitos se sujeitam a trabalhar na produção daquilo que íntima e profundamente condenam, gerando uma situação de mal-estar com implicações psicossociais ainda pouco aquilatadas. Esta dissociação entre o que se pensa e o que se faz em relação à maconha é a vivência, no sertão, de um corte que a nossa civilização produziu: ética para um lado, trabalho para o outro. Da mesma forma que o nosso povo justifica trabalhar no que condena por causa do dinheiro auferido, países fomentadores e beneficiários da indústria bélica se arrogam defensores da paz. Esta dicotomia quebra dentro de nós algo sagrado: nossa inteireza, nossa integridade. Daí o mal-estar. Acreditamos que todos, independentemente do seu grau de instrução e informação, são capazes de apreender o que é essencial. Mesmo as idéias mais sutis, desde que colocadas de forma acessível, são temas para debate. Por isso, esta dicotomia entre ética e trabalho, questão fundamental da crise civilizatória que vivemos, foi debatida com todos os grupos e comunidades que visitamos. Às vezes, o trabalho com os pobres está imbuído de uma idéia distorcida, que os isenta da responsabilidade sobre sua situação de opressão. A 'culpa' recai exclusivamente sobre os opressores e o sistema opressor, mas é esquecido que os pobres são peças fundamentais na manutenção desta engrenagem. Nosso trabalho com estas comunidades foi questionar o quanto cada um, por proveito próprio ou omissão, é também responsável pelo terror que todos estão vivendo. Buscamos fortalecer a resistência destas comunidades à violência que se banaliza pela freqüência e pela impunidade. Buscamos fortalecer a disposição de cada um a trilhar o caminho reto, a não ceder ao cinismo de querer 'levar vantagem em tudo'. Que cada um se saiba responsável pela vida que constrói para si e para sua comunidade" (p.63-5).



As meninas-formicida

Na carta escrita no trajeto de Dores do Indaiá a Várzea da Palma, em 4 de dezembro de 1992, aparece o seguinte registro:

"As 'meninas-formicida' – São as crianças e adolescentes que trabalham para as empresas de reflorestamento aplicando formicida nas áreas de eucalipto, constituindo um novo tipo de bóia-fria que se espalha pelo sertão mineiro. 'O serviço é duro e cansativo, cansa e irrita a mão, mas é o único trabalho que sobrou numa cidade cercada de eucalipto por todo lado', informa uma das tantas 'meninas-formicida' de Felixlândia, MG. O trabalho consiste em aplicar, com as mãos, formicida granulado ou líquido nos formigueiros que proliferam entre os eucaliptais. As 'meninas-formicida' não usam máscara, nem luvas, apesar de estarem em permanente contato com um inseticida altamente tóxico, como indica a faixa preta da embalagem. A preferência na escolha por meninas para esse trabalho se deve ao fato de elas terem uma maior paciência para procurar os formigueiros. Estivemos no embarque das turmas de 'meninas-formicida' de Felixlândia, que diariamente se dirigem para as áreas das reflorestadoras Mannesmann, Ical e Verágua" (p.33).

Referência bibliográfica

CAPPIO, L. F. (Frei OFM); MARTINS, A.; KIRCHNER, R. (Org.) Rio São Francisco: uma caminhada entre vida e morte. Apresentação Nancy Mangabeira Unger. Petrópolis: Vozes, 1995.

Revista Estudos Avançados - 2006

Experiências internacionais de um cientista inquieto - Ignacy Sachs


IGNACY SACHS é uma personalidade singular no panorama das ciências sociais no mundo e no Brasil. Acima de tudo porque reza pela cartilha dos que consideram a Economia Política uma disciplina que analisa a evolução e os fatos econômicos, relacionando-os com outras áreas das ciências humanas e no plano mais geral da cultura. Sua trajetória o levou a um conhecimento direto do Terceiro Mundo, especialmente porque passou muitos anos imerso na vida de países como o Brasil e a Índia. Seu conhecimento aprofundado do quadro mundial decorre ainda de outros fatos. Em primeiro lugar, ter vivido a realidade de uma nação que, durante quase meio século, tentou, sem êxito, abrir caminhos para construir uma sociedade socialista, exatamente seu país natal, a Polônia. Em segundo lugar, porque, nas últimas décadas, Ignacy Sachs colocou-se no centro de um observatório privilegiado do cenário internacional, na qualidade de professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris.

No dia nove de junho, durante duas horas o entrevistamos, recolhendo suas valiosas lições e experiências, porque duas características destacam esse famoso scholar: ele acompanha há muitos anos o que sucede no Brasil, inclusive percorrendo o interior de nosso país, e sempre procura "soluções positivas" para os problemas. Assim, nunca foi e nunca será o magister que se limita a afirmações generalizadas e abstratas sobre as questões.

Em resumo, essa foi a sua entrevista a ESTUDOS AVANÇADOS.

* * *

ESTUDOS AVANÇADOS - O termo desenvolvimento foi e continua sendo essencial na sua reflexão social, econômica e ambiental. Como esse tema se formou ao longo da sua trajetória intelectual?

Ignacy Sachs - A partir de um acidente biográfico. Cheguei ao Brasil no dia 6 de janeiro de 1941, pelo último navio português que aportou ao Rio de Janeiro, como refugiado de guerra. Então, descobri o Brasil com um espelho da Polônia da minha infância. Naturalmente, então não raciocinava daquela maneira, mas é evidente que alguém que se interessasse pelo Brasil na década de 1940 não podia deixar de pensar no que hoje chamamos de desenvolvimento, de tanto ouvir isso.

Fiquei no Brasil durante catorze anos, até 1954. Fiz o curso de Economia na Faculdade de Ciências Políticas e Econômicas do Rio de Janeiro, hoje Cândido Mendes. Ao mesmo tempo, trabalhava na Embaixada da Polônia, nos serviços culturais, e me preparava para voltar à Polônia. Completei minha formação no Brasil em cursos da SBPC. Tive o grande prazer e o privilégio de ter Giorgio Mortara como professor de Estatística. Fui orientado por correspondência por Oskar Lange - um dos grandes economistas poloneses e que, na época, era reitor da Escola de Planejamento em Varsóvia. Como o país necessitava de estatísticos matemáticos, especializei-me nessa disciplina. Mas meu trabalho cotidiano, vivido no Rio, me fez imergir na problemática do desenvolvimento.

Meu projeto intelectual, pessoal, se formou claramente ao voltar à Polônia - queria trabalhar que dissesse respeito ao Brasil. Fui muito bem recebido no Instituto das Relações Internacionais, em 1954. Mas me foi dito que a Polônia era um país pobre demais para pagar um salário de jovem pesquisador dedicado ao estudo de um só país. Assim, tornei-me um dos primeiros pesquisadores na Polônia a trabalhar com o tema do desenvolvimento e do subdesenvolvimento.

Portanto, o que foi, numa primeira fase, uma imersão na problemática por razões pessoais, passou a ser minha razão de ser profissional. Um dos trabalhos iniciais que me foi encomendado foi acompanhar a primeira Conferência de Solidariedade Afro-asiática, em Bandung. Em 1955, fiz a edição de um volume de documentos dessa conferência. Logo depois foi anunciada a visita de Jawaharlal Nehru à Polônia, primeiro-ministro da Índia. Trabalhei na tradução da Constituição da Índia e, na ocasião, fiz várias resenhas de livros sobre esse país, a começar pela Descoberta da Índia, de autoria desse grande estadista, e um livro de entrevistas realizadas por um jornalista francês de origem húngara, Tibor Mende (Conversation avec Nehru).

Voltei à Polônia com oito caixotes de documentação para continuar a trabalhar sobre o Brasil. Em seguida, escrevi uma brochura sobre como viviam os camponeses na América Latina e, com um colega, logo depois, lancei um livrinho que se chamava No país das plantações de café. Esses livros, todavia, eram exercícios encomendados e sem importância.

Era para mim óbvio que meu doutorado devesse girar sobre problemas do desenvolvimento e, em vez de fazer uma monografia sobre o Brasil, comecei a trabalhar sobre o papel do Estado no desenvolvimento, muito influenciado pelo debate que, naquele momento, ocorria no Partido Comunista Italiano, que contestava as teses simplórias do capitalismo monopolista de Estado e tentava mostrar que o papel do Estado, mesmo no capitalismo, podia variar, dependendo das políticas seguidas.

Na mesma época, havia um outro debate que não era de economistas e sim de historiadores, mas muito importante para os economistas: sobre a passagem do feudalismo para o capitalismo. Desde aquele tempo comecei, sem me dar conta, a "trair" a economia. Por quê? Porque quem diz desenvolvimento diz que existe a necessidade de se liberar do reducionismo economicista.
A estada na Índia

Em 1956 ocorreram grandes transformações políticas. A Polônia apareceu como um dos países candidatos a construir um socialismo com rosto humano. Foi para nós todos uma grande mudança. Nessa situação, o diretor do instituto com quem eu trabalhava (porque eu fazia parte do que chamávamos de "bombeiros", pois cada vez que havia necessidade de buscar uma documentação sobre um tema urgente, apareciam duas ou três pessoas que eram chamadas porque tinham um certo conhecimento de línguas), foi nomeado embaixador da Polônia na Índia. Ele se propôs a me levar com ele, como segundo secretário na Embaixada, a fim de cuidar de assuntos relacionados com o intercâmbio científico entre a Polônia e a Índia.

Coloquei três condições. Primeiro, que não iria entrar na carreira diplomática; segundo, que isso não deveria durar mais de três anos; e terceiro, que permitiria minha inscrição para o doutorado na Delhi School of Economics. O que eu já tinha lido, da literatura sobre desenvolvimento, era o suficiente para saber que a Delhi School of Economics era um dos lugares onde se elaborava o pensamento endógeno indiano sobre o desenvolvimento. As três condições foram aceitas. Em 1957, seguimos - eu, minha esposa e meus filhos - para Delhi, onde passamos três anos. Saímos de lá tendo completado, ambos, nossos doutorados na Universidade de Delhi. Ela, em literatura e eu com uma tese sobre os modelos do setor público nos países subdesenvolvidos, que foi publicada na Índia e republicada no Brasil pela Editora Vozes, numa edição da qual não tive conhecimento, com o título mudado para Capitalismo de Estado e desenvolvimento.

A partir daí minha trajetória ficou absolutamente clara. Como já disse, descobri, ainda sem nenhuma bagagem teórica, o Brasil no espelho da Polônia da minha infância. A minha ida à Índia já era um passo consciente. Munido do espelho brasileiro, parti para a descoberta da Índia. Esse processo foi de uma riqueza intelectual extraordinária. Isso explica como o desenvolvimento entrou na minha vida pessoal e como estudos comparativos pluridisciplinares de desenvolvimento passaram a ser o eixo da minha reflexão. Olhando para trás, posso dizer que deram unidade ao que realizei no decorrer desse meio século.

ESTUDOS AVANÇADOS - A estada na Índia influenciou sua concepção de desenvolvimento? Em que sentido?

Ignacy Sachs - É difícil sobrestimar a importância dessa estada e sobretudo a importância de que ela se seguiu aos catorze anos no Brasil. Primeiro, porque a comparação se impunha de manhã à noite, no cotidiano, nas formas, no modo de vida etc. Segundo, porque com o estatuto de alguém que tratava de assuntos de cooperação científica na Embaixada e, ao mesmo tempo, era doutorando na Universidade, onde fui muito bem recebido, desliguei-me totalmente da vida diplomática. Funcionamos, aliás, ambos, eu e minha esposa, no meio de jovens pesquisadores e intelectuais indianos que passaram, ou estavam por passar, pelas grandes universidades inglesas. Foi naquela época que conhecemos Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia. Ele é bem mais jovem do que eu, mas já lecionava na Delhi School of Economics, um verdadeiro gênio, o professor mais jovem na história das universidades indianas. Somente depois é que fez o doutorado em Cambridge.

Realizei contatos extremamente ricos naquele país, embora seja muito difícil entrar em sua cultura. No começo, pensamos que faríamos isso com um bom método que aprendemos na França. Começamos por estudar sânscrito e hindi, mas depois de três meses entendemos que, ou iríamos virar especialistas em cultura indiana (porque o investimento é enorme), ou teríamos que nos contentar com aquilo que se lê em inglês, que continua a ser a língua da universidade na Índia. Mas o contato com os intelectuais indianos, com aquela mistura de uma educação de tipo britânico com a bagagem da cultura tradicional, é muito enriquecedor.

As teses de Mahatma Gandhi

Aqui introduziria mais um fator, a importância que teve na minha vida o contato com o pensamento de Gandhi. Isso começou por um acidente de história, outra vez. Gandhi foi assassinado em 1948. Na época, eu vivia no Rio de Janeiro, lendo filósofos orientais, porque tinha que esperar um ano para ingressar na faculdade a fim de homologar meu baccalauréat, do Liceu Pasteur no Colégio Pedro II. Trabalhava com o professor Hignette, que ensinava filosofia nesse Liceu. Esse tomista me fez sofrer muito no baccalauréat. Conhecendo minhas conexões com a esquerda, na argüição oral de filosofia, onde apresentei como matéria preferencial os filósofos pré-socráticos, ele formulou uma pergunta sobre Heródoto como filósofo do imobilismo. Briguei durante 45 minutos, mas o resultado foi uma proposta dele de aprofundar, sob a sua direção, um tema que não era exatamente o mais pertinente para o estudo do Brasil, ou seja Pascal lecteur de Montaigne. Estava trabalhando nos serviços culturais da Legação da Polônia, estudando Pascal nas horas vagas e vivia maravilhado com os filósofos orientais.

Numa tarde, as rádios anunciaram o assassinato de Gandhi. Entrei na primeira cabine telefônica e telefonei para o jornal Correio da Manhã, a fim de perguntar se aceitariam um artigo meu sobre Gandhi. Disseram: "se você trouxer até às 9h da noite, tudo bem". Foi o primeiro artigo que publiquei na minha vida, no Correio da Manhã. Chamava-se "O nosso santo de lá".

ESTUDOS AVANÇADOS - Professor, do ponto de vista político, não há dúvida que a pregação de Gandhi teve como conseqüência a Independência da Índia. Do ponto de vista econômico, ele defendia determinadas teses voltadas para sabotar o império britânico, mas também refletia uma volta atrás na evolução econômica. O senhor não acha, porém, que, do ponto de vista da economia, Gandhi continua tendo razão em diversas de suas teses?

Ignacy Sachs - Essa pergunta é muito pertinente. Ao chegar à Índia, dei-me conta de que existia um círculo razoavelmente extenso de gandhianos que tinham a mesma relação com o pensamento de Gandhi como os marxistas dogmáticos em relação a Marx. Ou seja, que ficavam fazendo exegese dos textos. As obras completas de Gandhi estão reunidas em 110 ou 120 volumes, porque ele escrevia diariamente dois artigos de jornal. Encontram-se na obra de Gandhi opiniões sobre tudo, inclusive teses que contrariavam pontos de vista anteriormente explicitados por ele mesmo. Pode-se, então, fazer uma leitura da obra do Mahatma como um dos grandes pensadores progressistas da história da humanidade e também pode-se ridicularizá-lo pinçando alguns artigos. Ele pedia o boicote dos produtos e do estilo de vida britânicos, mas escreveu que a escova de dentes é supérflua porque se pode limpar os dentes com um raminho de árvore.

Contudo, não havia na Índia um só discurso político que não se referisse a Gandhi da maneira mais respeitosa, adicionando ao seu nome o sufixo ji, (Gandhiji). Havia, pois uma analogia com a maneira como eram citados na Europa Oriental os clássicos do marxismo, numa veneração puramente formal, verbal. De outro lado, encontrei três scholars indianos, com doutorados ocidentais, que estavam fazendo trabalhos sobre Gandhi. Estabeleci com eles um excelente contato. Interessei-me muito e pensei até em mudar o tema do meu doutorado para estudar o pensamento econômico de Gandhi. Mas houve um empecilho, porque tinha meus afazeres profissionais e, na época, as obras completas de Gandhi não estavam reunidas. Assim, trabalhar comesse tema teria demandado um enorme esforço para encontrar os textos. Para isso eu não tinha absolutamente condições, porque escrevia meu doutorado nas noites e aos domingos. Nunca deixei, porém, de acompanhar as teses de Gandhi.

Gandhi e a economia

Posso dizer o seguinte: a independência da Índia e a maneira como ela aconteceu, assim como a influência de Gandhi, deveriam ser objeto de estudo em todas escolas do mundo, porque é um caso sem precedentes. Isto é, como um país colonizado consegue se livrar da dominação do maior império colonial do mundo quase sem derramamento de sangue? A mensagem é absolutamente extraordinária. Infelizmente, é um caso isolado na história. Assim mesmo, vale a pena lembrá-lo. Diria que essas lições deveriam ser dadas certamente já na escola secundária, e quem sabe na primária, como exemplo de que a humanidade é capaz de coisas bem diversas e isso se contrapõe evidentemente ao holocausto.

Mas essa não era a minha problemática com o gandhismo. Gandhi para mim era e continua a ser o precursor das boas teorias de desenvolvimento, pela maneira como considerava a massa camponesa como o ator central do processo de desenvolvimento. Ademais, ele teve uma grande sensibilidade para aquilo que depois se chamou no debate de tecnologias intermediárias. Isto é, o que se pode fazer com tecnologias simples. Há uma semelhança extraordinária entre o pensamento de Gandhi e o de Franklin, um pragmático. Por exemplo, os dois dizem que se deve varrer as ruas do vilarejo para reduzir o pó e diminuir os casos de doenças pulmonares. E por assim adiante. De qualquer maneira, uma sensibilidade para o homem. Simultaneamente, uma total incompreensão do que significa produtividade econômica. Isto foi objeto de várias discussões minhas com Oskar Lange, que era um erudito em várias áreas. Ele dizia que Gandhi não entendia a produtividade do trabalho, porque a ética ocupava um espaço exclusivo na sua visão das relações inter-humanas.

Outro aspecto do pensamento de Gandhi que continua mais vivo do que nunca diz respeito ao autocontrole dos seres humanos, sua capacidade de limitar suas necessidades. Penso que esse é um desafio fundamental para a cultura dos países industrializados. Voltamos à pergunta "o quanto é bastante?" em 1975, num relatório da Fundação sueca Dag Hammarskiöld, preparado por ocasião da sessão especial da Assembléia das Nações Unidas, convocada para debater a Nova Ordem Econômica Internacional. Houve um debate acirrado naquela oportunidade a partir de provocações como as seguintes: é possível autolimitar o consumo da carne, o número de metros quadrados do apartamento? Vale a pena ter um carro particular na cidade? Não seria suficiente ter apenas agências de aluguel de carros para viajar fora da cidade? Portanto, o quanto é bastante? Essa é uma questão gandhiana.

Gostaria de terminar com um outro ponto ligado a Gandhi. A Índia tem uma geração de intelectuais que fizeram uma síntese extremamente interessante entre as teses de Nehru e as de Gandhi. O primeiro era um homem voltado para a modernidade, na trilha do socialismo fabiano. Falava muito do scientific temper, o espírito científico. Houve uma época, logo depois da independência, em que o legado de Gandhi ficou de lado e passou a dominar esse espírito científico, a fé na ciência e na tecnologia. Todavia, com o tempo, houve uma síntese do legado gandhiano com o de Nehru. Resumindo, Gandhi foi e é para mim um dos precursores das teorias modernas de desenvolvimento e a Índia deve a ele não só a maneira extraordinário pela qual se deu a independência, mas também uma formação intelectual singular.


A pobreza e a poluição
ESTUDOS AVANÇADOS - Os relatórios do programa das Nações Unidas para o meio ambiente dizem que os atuais padrões de consumo no mundo estão além da capacidade de reposição da biosfera. O senhor concorda? É possível mudar esse quadro?

Ignacy Sachs - Certamente, concordo. Diria que, por ter participado da preparação da conferência de Estocolmo em 1972, que foi a primeira reunião das Nações Unidas sobre o meio ambiente, e, vinte anos mais tarde, da Cúpula da Terra no Rio de Janeiro, este é um tema absolutamente central. Para compatibilizar os objetivos sociais, econômicos e ambientais, temos de nos dedicar ao que chamaria de um jogo de harmonização. Nesse jogo temos que mudar, por um lado, os padrões da demanda e, por outro lado, os padrões da oferta. Estes últimos são os mais fáceis de manejar e vão nos remeter ao problema dos recursos naturais, aos tipos de energia, às tecnologias e à localização espacial das produções, porque as mesmas produções têm impactos ambientais diferenciados, segundo o lugar onde elas acontecem.

A mudança do padrão da demanda é logicamente a variável mais importante nesse jogo de harmonização, porém, ela passa pela modificação dos estilos de vida e dos padrões de consumo, assim é uma variável extremante difícil de se manipular e exige, antes de mais nada, um enorme esforço de educação. As margens de manobra seriam muito maiores se estivéssemos vivendo num mundo mais igualitário. Porque é muito difícil pregar a simplicidade voluntária quando se tem uma massa de excluídos, de pobres, que não vivem numa simplicidade voluntária. Vivem numa miséria imposta, um "castelo sem ponte levadiça", no dizer de Albert Camus.

Essa discussão sobre a mudança dos padrões de consumo e dos estilos de vida deve levar em conta que o desenvolvimento é a construção de uma civilização do ser na partilha equalitária do ter, na definição lapidar do padre Lebret e, portanto, é impossível apostar numa mudança da civilização do ser antes que essa partilha aconteça na realidade. Este é o impasse atual. A parte mais importante da revolução ambiental no pensamento que ocorreu nos anos de 1970 foi a percepção de que não se pode dissociar a problemática ambiental da social. Em Estocolmo, a então primeira-ministra da Índia, Indira Gandhi, fez um discurso memorável no qual disse que a pobreza é a pior das poluições.

As micro e as pequenas empresas

ESTUDOS AVANÇADOS - Por que seu livro Desenvolvimento humano e trabalho decente dá ênfase sobretudo aos empregadores de pequeno e médio porte?

Ignacy Sachs - Porque esse era o tema do livro, um informe preparado conjuntamente pelo Sebrae e pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. O livro reivindica de uma ótica do desenvolvimento a partir da geração de oportunidades de trabalho decente, no sentido da Organização Internacional do Trabalho, ou seja, razoável em termos de remuneração, de condições e de relações de trabalho. O importante é dar-se conta de que as abordagens de desenvolvimento que se concentram no problema do crescimento do PIB e tratam a geração de emprego como uma mera resultante, que pode ser boa ou ruim, acabam por aceitar, na prática, que a exclusão social é um mal necessário, é o preço inelutável do progresso. Enfim, o mínimo que se pode dizer é que são incompletas. Não vamos ter geração de empregos sem crescimento, mas podemos ter crescimento econômico sem geração de emprego (jobless growth). Para evitar isso necessitamos de um conjunto de políticas explícitas que corrijam o viés do crescimento moderno, que se caracteriza por uma alta intensidade de capital e uma baixa densidade em emprego.

Dentro dessa problemática aparece, como uma das frentes de batalha importantes, o problema dos empreendimentos de pequeno porte. O micro-empreendedor é, em grande parte, informal, trabalhando por conta própria ou trabalhando em pequenos negócios. É lá que está a maior parte dos empregos. As estratégias de desenvolvimento precisam prever o que fazer com que esta gente que mal se mantém com o nariz acima da água, recorrendo àquilo que Fernando Fajnzylber (um economista chileno destacado que, infelizmente, morreu muito jovem) chamou de competitividade espúria. A competitividade deles passa por salários ou rendimentos muito baixos, jornadas de trabalhos longas, ausência da proteção social etc. O que fazer com essas pessoas? Como criar condições para que elas saiam da informalidade? Como criar condições para que a competitividade delas não seja unicamente uma competitividade espúria e sim transformada em competitividade real? Esse é um dos desafios da política do desenvolvimento e passa por um feixe de políticas públicas. Várias políticas públicas ao mesmo tempo, aquilo que o presidente do Sebrae, Silvano Gianni, chama de lei áurea do pequeno empreendimento.

Posso especificar o que é necessário. Primeiro, desburocratizar o processo da entrada na economia formal. Teoricamente, existe no Brasil um mecanismo que se chama Fácil, mas ele não é tão fácil com indica o nome e nem tão barato como deveria ser. Portanto, precisamos de um Fácil mais fácil. Por outro lado, sempre se pautando pelo principio de que, dadas as desigualdades e a heterogeneidade da sociedade brasileira, temos de aplicar um tratamento desigual aos desiguais, um tratamento preferencial para os mais carentes e fracos, o que significa uma fiscalidade diferente, com alíquotas mais baixas. Precisamos no Brasil de um Simples Fiscal, mas tem de ser mais abrangente do que ele é hoje, porque ele não abrange, por exemplo, os impostos municipais, que são os que mais incidem sobre os serviços.

Por analogia, um Simples Previdenciário que pague menos e que entre no sistema da Previdência, quando atualmente fica de fora. Depois, acesso à tecnologia. Da mesma maneira que o progresso das zonas rurais (da agricultura familiar e da reforma agrária) vai depender muito da construção de um sistema de extensão agrária eficiente, deveríamos pensar num sistema de extensão para os pequenos produtores urbanos, extensão para prestar assistência técnica. Depois vem o acesso ao crédito. A discussão gira ao redor do que se chama micro-crédito. Prefiro dizer crédito para micro-empreendedores em vez de micro-crédito, que é apenas uma forma, e talvez não a mais pertinente.

Em seguida vem o problema do acesso ao mercado que, entre outras coisas, demandaria uma política que permitisse aos pequenos abocanharem uma parcela maior de contas públicas. Nos EUA, há uma lei que obriga todos os organismos públicos a gastarem mais de 20% com os pequenos empresários.

As cooperativas e a informalidade

Finalmente, para que esses pequenos queiram e possam sair da informalidade, pois hoje eles não estão convencidos disso, é preciso dar ênfase muito maior ao empreendedorismo coletivo - cooperativas, associações, consórcios. O empreendedorismo coletivo não é uma antítese do individual. A união faz a força, como se diz. É lindo um livro de Kropotkine sobre a ajuda mútua ao dizer que a seleção natural pode ser feita de duas maneiras: pela luta ou pela ajuda mútua. Cinqüenta padeiros que passam a comprar farinha em conjunto vão ter preços melhores. Por incrível que pareça, as chamadas cooperativas de táxis na cidade de São Paulo não compram os automóveis para os cooperados, nem fazem coletivamente o seguro dos veículos. Imagino que, ao entrar numa loja de automóveis, se um representante de uma cooperativa manifestar que pretende comprar trezentos automóveis, certamente ele conseguiria um preço muito mais em conta. Mas devemos lembrar que o país tem uma tradição de pseudocooperativas de trabalho que são formas de burlar a legislação trabalhista. Essas devem ser eliminadas na medida do possível. Mas não há razão para que cooperativas genuínas de trabalho, devidamente enquadradas nas leis trabalhistas e previdenciárias, não sejam um parceiro privilegiado de obras públicas - municipais, estaduais e federais. Só quando tudo isso funcionar desse modo, é que estaremos criando um ambiente para que esses pequenos empreendimentos prosperem.

No Brasil, o conceito de cooperativas funciona, na realidade, em dois níveis. Há os catadores de lixos, badalados na imprensa, para dizer que se está fazendo alguma coisa para os excluídos. Por outro lado, há cooperativas agrícolas no Estado do Paraná que são de uma eficiência indiscutível, constituem um elemento importante do agro-negócio brasileiro. Entre os dois há um enorme espaço, por exemplo, para criar cooperativas de poupança e crédito.

Houve uma mudança legislativa recente que é importante - a de criar cooperativas que não são unicamente de pessoas que trabalham no mesmo ramo. Por exemplo, uma cooperativa de lojistas de uma rua. Estamos, na realidade, falando de formas do que no Brasil se chamou de economia solidária. Na Europa, denomina-se economia social, pois economia solidária é um conceito mais estreito, é uma parte da economia social. Fizemos o relatório já mencionado para o Sebrae e o PNUD essencialmente para mostrar que os pequenos são também heterogêneos. Porque não dá para ter a mesma política para o catador de lixo e para o fornecedor de software. Existem pequenas empresas de alta tecnologia e há, nas universidades, incubadoras de empresas de alta tecnologia. Mas para cada segmento dessa população heterogênea é preciso ter políticas diferentes. Uma pesquisa recente sobre a informalidade, preparada pela consultura McKinsey, está sendo muito badalada pela imprensa aqui no Brasil. Todavia, a meu ver, passa ao lado da verdadeira problemática, porque coloca todas as informalidades no mesmo saco. Na realidade, existem pelo menos dois tipos de informais: de um lado estão os informais por necessidade (ou por desespero), ou seja, os trabalhadores por conta própria e os empregados dos micro-negócios buscando estratégias de sobrevivência, e de outro lado estão os informais por decisão - malandros, sonegadores, contrabandistas, aproximando-se da fronteira tênue entre as atividades informais porém lícitas e as atividades ilícitas.

Um estudo publicado pelo Valor mostrou que, durante vários anos, a Souza Cruz, uma das maiores empresas de produção de cigarros no mundo, estava exportando quantidades fabulosas de cigarros para o Paraguai, sabendo perfeitamente que esses cigarros voltam como contrabando para o Brasil. Do ponto de vista jurídico, a exportação era legal. Contudo é estranho que a empresa não tenha se dado conta de que estava fomentando o contrabando. Essa história de que a principal razão da informalidade são os impostos altos está longe de oferecer uma explicação convincente da informalidade.

A recuperação do mercado interno

ESTUDOS AVANÇADOS - Que alternativas a curto e médio prazo podem ser propostas para a recuperação do mercado interno e do emprego no Brasil?

Ignacy Sachs - A política com relação aos micro e pequenos empresários é uma parte da questão, mas há outras possibilidades. Primeiro, a produção do que os economistas chamam de bens e serviços não-comerciáveis (ou seja, que não estão sujeitos à competição internacional), cria um maior espaço para a seleção de tecnologias. As obras públicas, de que já falamos, a construção civil, a produção de serviços, podem ser feitas com técnicas mais densas em empregos, sem cair no exagero das frentes de trabalho "só com uma pá na mão". Mas entre essas frentes de trabalho "só com a pá na mão" e os equipamentos mais modernos, importados para a construção de estradas, temos um largo espaço para diversas escolhas

Em segundo lugar, continuo convencido de que o maior trunfo deste país é a possibilidade de entrarmos num novo ciclo de desenvolvimento rural. Há ainda um potencial de empregos a serem criados ao redor do que se pode chamar de aumento da produtividade dos recursos naturais, ou seja, tudo aquilo que leva à conservação da energia e da água, à reciclagem, à reutilização de materiais etc. Em outras palavras, pode-se tirar mais do aparelho de produção existente, contribuindo para o desenvolvimento sem necessidade de grandes investimentos. Por analogia, tudo que diz respeito a uma manutenção mais cuidadosa do patrimônio existente de infra-estrutura, equipamentos, parque imobiliário, parque viário etc., prorroga a vida útil desse patrimônio. Portanto, reduz a demanda por capital de reposição e libera mais capital para novos investimentos. Diria que nestas três vertentes há muito o que fazer.

E agregaria outra. A economia brasileira não poderá prescindir de investir muito no núcleo modernizador constituído por empresas de alta tecnologia que não vão gerar empregos diretos. Creio que há, no entanto, um campo para uma negociação entre as grandes empresas e os empreendimentos de pequeno porte ao seu montante e juzante para gerar empregos indiretos em quantidade maior do que está acontecendo. O Brasil poderia retomar a experiência abandonada de câmaras setoriais, só que precisamos de uma negociação quadripartite com os seguintes participantes: trabalhadores, empresários, o Estado como mediador e a sociedade civil organizada. De uma maneira geral, o futuro das políticas de desenvolvimento passa pelo conceito de desenvolvimento negociado e pactuado pelos parceiros do processo, pela definição clara do que cada um faz e como cada um contribui.

Uma nova civilização no trópico

ESTUDOS AVANÇADOS - Quanto à questão do trabalho no mundo rural, que iniciativas podem ser tomadas? No nível da reforma agrária, no da agricultura familiar, em face do agro-negócio e da agricultura transgênica?

Ignacy Sachs - O Brasil possui a maior biodiversidade do mundo, uma reserva confortável de solos agrícolas (mesmo que não se toque em uma só árvore da flo-resta amazônica), climas amenos, vantagens naturais do trópico na produção de biomassa etc. O sol é nosso e assim ficará quaisquer que sejam as vicissitudes do regime político. Há uma massa de gente que está reclamando terra e que criaria um problema muito mais grave ao desfilar pelas ruas de São Paulo pedindo emprego no asfalto. Por fim, o Brasil tem uma pesquisa agronômica e biológica de classe internacional.

Ao juntar todas essas coisas pode-se partir para um objetivo extremamente ambicioso, o da construção de uma nova civilização do trópico, baseada no trinômio biodiversidade, biomassas e biotecnologias, estas últimas utilizadas para, por um lado, aumentar a produtividade das biomassas e, por outro lado, abrir o leque dos produtos delas derivados: alimentos, ração, energia, fertilizantes, materiais de construção, matérias-primas industriais, fármacos e cosméticos. É todo um mundo que se pode construir a partir da biomassa, caminhando dessa maneira para um desenvolvimento ecologicamente sustentável.

Os adjetivos utilizados para se qualificar o desenvolvimento têm variado. Hoje, trabalho com três: includente do ponto de vista social, sustentável do ponto de vista ecológico e sustentado do ponto de vista econômico. Esse é o tripé. Dentro dessa visão, podemos almejar uma civilização moderna do vegetal, por analogia com as grandes civilizações do vegetal do passado, tão bem descritas pelo geógrafo tropicalista Pierre Gourou, autor de Terras de boa esperança. Uma civilização moderna é perfeitamente possível com o pró-cana e o pró-diesel como carros-chefe.

O que é preciso para isso? Primeiro, evidentemente, acelerar e completar a re-forma agrária. A revista Estudos Avançados publicou um documento importante sobre o assunto. A reforma agrária não se limita à distribuição de terra. A analogia é perfeita com o que eu disse a respeito dos empreendedores de pequeno porte. Os assentados da reforma agrária necessitam não só do acesso à terra, mas também aos conhecimentos, ao crédito, aos mercados. É indispensável uma política de apoio à agricultura familiar, tanto a resultante da reforma agrária como aquela que já existe. Isso leva a um conceito de agro-negócio que é diferente do grande agro-negócio atual. Este, baseado essencialmente na produção de grãos e de carne, gera divisas, riqueza, mas poucos empregos.

A chance histórica do Brasil é que ele pode se dar ao luxo de manter por algum tempo ambas as formas. Há espaço para uma, há espaço para outra. Não é preciso proceder a arbitragens dolorosas, mas é essencial que haja um feixe de políticas públicas voltadas para essa questão. E dentro dela vai haver certamente espaço para a articulação dos pequenos produtores com empresas industriais de porte maior, buscando sinergias positivas em vez de relações adversariais. Se não fizermos desse problema de articulação uma política, onde deve haver mais transparência e espaço para a negociação, onde haja regras que fortaleçam o pequeno frente ao grande, corremos o risco de não realizar os objetivos sociais do desenvolvimento.

Confesso que não tenho sobre os transgênicos uma opinião firme. A não ser o seguinte: não façamos disso um caso de religião. A analogia com a energia nuclear é bastante forte. Não nos privemos do acompanhamento dos progressos científicos nesse domínio. Ao mesmo tempo, tentemos introduzir os conceitos de prudência e de bioética. A partir daí, examinemos os casos um por um. Só acrescentaria que, ao lado do mega-agro-negócio, pode existir um agro-negócio democrático, baseado nas cooperativas e em outras modalidades de economia solidária.

A ampliação do número de empregos

ESTUDOS AVANÇADOS - De que modo as obras públicas podem induzir o crescimento do número de postos de trabalho na infra-estrutura, na área de habitação e em outras?

Ignacy Sachs - Podem e devem criar um número grande de empregos, mas na realidade isso nos remete a uma das grandes controvérsias do pensamento econômico. Ou seja, como fazer com que o crescimento não seja inflacionário? Há duas doutrinas. Existe a doutrina monetarista, que engessa o país alegando a vulnera-bilidade externa, o problema da dívida externa, e não permite avançar nesse caminho. E existe a teoria estruturalista da inflação, na qual se destacaram vários economistas latino-americanos. É possível avançar na direção de mais obras públicas sempre que a economia tenha capacidade de produzir os bens de consumo para enxugar a demanda adicional proveniente dos salários distribuídos nas obras públicas. Na realidade, existem só dois limites, o primeiro é a capacidade de incrementar a produção de bens de consumo e o outro são problemas relacionados com a capacidade de importar.

No caso do Brasil, é possível imaginar obras públicas que não requerem um dólar de importação e é óbvio que a economia brasileira possui hoje capacidades ociosas na produção de alimentos, de havaianas, de jeans e de camisas, que são os bens que esta gente vai comprar. Portanto, os estruturalistas deveriam pleitear, a meu ver, pelo menos um maior afrouxamento do crédito, já que a relação crédito/PIB no Brasil é uma das menores do mundo e que uma parcela diminuta desse crédito vai para o tipo de obras de que estou falando.

Creio, portanto, que há possibilidades de avançar mais rapidamente, mas isso requer a superaração da herança maldita de 25 anos da contra-reforma neoliberal que continua a fazer a cabeça de muitos economistas.

Moradia é um outro caso que me parece sub-aproveitado. Creio que esse país tem tudo para realizar um grande programa de autoconstrução de moradias populares. Não se deve deixar a construção unicamente na mão do futuro morador. É preciso que haja planejamento, assistência técnica, que o processo seja conduzido numa parceria público-privada, mas na qual os futuros moradores contribuam com uma parcela substancial do custo através de uma poupança não monetária. Ao trabalharem na sua futura casa, na realidade eles estão poupando, mas não poupando em termos monetários. Isso é um elemento adicional para financiar o crescimento econômico.

Em geral, o investimento não monetário tem também uma grande importância na agricultura familiar. A família que constrói sua casa, que faz as cercas, está na realidade investindo, sem investir um real. É um investimento não-monetário subes-timado nas estatísticas.

A influência dos mercados financeiros

ESTUDOS AVANÇADOS - Os mercados financeiros estão afetando a governa-bilidade dos países "em desenvolvimento"?

Ignacy Sachs - Sua pergunta me lembra aquela do menino que pergunta ao pai se cobra tem rabo, o pai responde: a cobra é só o rabo. Ou seja, a resposta é óbvia, porque são um empecilho enorme. Primeiro, devido à flutuação, à incerteza permanente que reina. Da manhã à noite os noticiários falam do risco Brasil, que é algo não totalmente arbitrário mas manipulável. Segundo, eles (os mercados financeiros) têm uma influência enorme sobre o comportamento das pessoas. Terceiro, existem os acordos internacionais que impõem toda uma série de regras desfavoráveis aos países do Sul. Portanto, os mercados financeiros criam para os países como o Brasil um ambiente externo desfavorável, para não dizer hostil.

Estudos Avançados - Há exemplos de países que foram capazes de contornar os constrangimentos impostos pelo Fundo Monetário Internacional? A moratória parcial seria realmente catastrófica?

Ignacy Sachs - Evidentemente, há exemplos. Existem trabalhos de J. Stiglitz e de outros economistas que apontam para a diferença entre o que está acontecendo na América Latina e o comportamento que tiveram certos países asiáticos - China, Índia, Malásia etc. O próprio Chile teve por muitos anos uma política que controlava as entradas e saídas de capital especulativo através do regime fiscal. Portanto, métodos existem. Dão resultados? Sim, mas temos de ser prudentes.

A China e a Índia, que estão sendo hoje apontados como países que têm altas taxas de crescimento, estão num crescimento rápido, numa modernização fortíssima, numa industrialização acelerada. No caso da Índia, há uma entrada espetacular no mercado internacional de serviços informáticos. Contudo, trata-se de um modelo que o Brasil já teve sob os generais, ou seja, crescimento rápido, porém socialmente perverso, excludente e concentrador da renda. Resultado, o governo indiano, contra todas as expectativas, perdeu as eleições, apesar dos seus sucessos internacionais e da sua propaganda sobre a "shining Índia", a Índia que brilha. Por que este paradigma funcionou no passado no Brasil e está funcionando hoje na China, porém sofreu o repúdio por parte da população indiana? Qual a diferença? É a democracia.

É importante ter uma política que proteja o país contra as pressões do mercado financeiro. O embaixador Rubens Ricupero insiste sempre sobre as diferenças entre a globalização comercial e a financeira. A globalização comercial oferece oportunidades, enquanto a financeira gera obstáculos. Devemos ambicionar não só um crescimento forte, mas um crescimento que seja socialmente includente e ambiental-mente sustentável. O caso da China, do ponto de vista ambiental, se posso me ex-pressar assim, é uma tragédia grega.

Examinemos a questão da moratória e o caso da Argentina. É muito importante porque, para pensarmos o desenvolvimento no século XXI, temos de partir de uma visão histórica do que aconteceu com os diferentes paradigmas de desenvolvimento nesse último meio século. Tivemos, depois da Segunda Guerra Mundial, uma fase de trinta anos que eu chamaria de capitalismo reformado, baseado na idéia de pleno emprego, do Estado protetor e do planejamento. Funcionou trinta anos porque os capitalistas tinham de enfrentar a competição do socialismo real, que, no após guerra, afigurava-se como uma alternativa crível; veja-se a votação que obtinham os partidos comunistas da França e da Itália.

Estávamos, portanto, com dois modelos - o capitalismo reformado e o socialismo real. Por razões que seriam longas demais para explicitar, podemos dizer que o poder atrativo do socialismo real foi diminuindo e entrou em agonia com a invasão da Tchecoslováquia, em 1968, acabando por morrer com a queda do muro de Berlim em 1989. Assim que a credibilidade do socialismo real começou a baixar, o capitalismo voltou à sua arrogância de antes, anterior a 1930, e tivemos a contra-re-forma, pela mão da Margaret Thatcher e do falecido presidente Ronald Reagan. No bojo dessa contra-reforma surgiu o consenso de Washington.

As lições da Argentina

Há um belíssimo texto de Marshall Berman (aquele sociólogo norte-americano autor do livro Tudo que é sólido se desmancha no ar) que apresenta a segunda parte do Fausto, de Goethe, como a primeira tragédia do desenvolvimento. Podemos dizer que este episódio de Fausto foi uma tragédia vitual. A descida da Argentina ao inferno foi uma tragédia verdadeira, que representou, para o consenso de Washington, o que a invasão da Tchecoslováquia e a queda do muro de Berlim foram para o socialismo real. Em sendo assim, é difícil pensar que o consenso de Washington sobreviva por muitos anos à tragédia da Argentina, um dos países mais avançados do mundo após a Primeira Guerra Mundial, mas que agora acabou nesse "buraco negro".

Os argentinos não tinham outra solução além da moratória. E podemos dizer que até agora nenhuma das ameaças proferidas contra eles se cumpriram. O caso não está encerrado. Penso que uma renegociação séria das dívidas deve partir da avaliação do quanto o devedor pode pagar sem asfixiar a sua economia. Ou seja, em vez de matar a galinha dos ovos de ouro, os credores deveriam contentar-se com ovos de prata, fornecidos por um período de tempo mais extenso. A capacidade de pagar é o ponto de partida e o que deve ficar em aberto é o número de anos necessário para saldar a dívida, desde que se afete uma porcentagem fixa das exportações ao serviço da dívida. Assim, o país credor passa a estar interessado no aumento das exportações do país devedor, porque quanto maior for o valor das exportações tanto menor será o período em que esse país pagará a dívida. Isso na hipótese de que os países credores queiram realmente o pagamento da dívida. Normalmente, o banqueiro não deseja que a dívida seja quitada, o que interessa são os juros.

Não foi feita até hoje uma tentativa suficientemente séria de renegociação das dívidas dos países pobres e não a teremos enquanto não houver uma coordenação e maior solidariedade entre os países devedores. Daí para mim a importância do que o governo brasileiro atual está fazendo para consolidar o G3 - Brasil, Índia e África do Sul e, na medida do possível, reconstruir o bloco dos não-alinhados! Hoje, não são mais os não-alinhados porque não estamos mais num mundo bipolar, no qual se enfrentavam o bloco ocidental e o bloco soviético (com a China correndo por seu lado), procurando atrair para si os países do Terceiro Mundo. Agora, estamos cada vez mais nos aproximando de uma nova configuração bipolar com os países industrializados por um lado e os demais por outro.

Os países industrializados conversam entre si e possuem organizações que permitem a articulação de suas políticas. Não em tudo, é óbvio, porque existem contradições sérias entre os Estados Unidos, o Japão e a Europa. A Europa está longe de ter uma posição comum, mas existe uma Comunidade Européia. Porém, até hoje não há uma comunidade dos países pobres. Aliás, esta foi uma das propostas que formulamos em 1975 no informe Que fazer, já mencionado.

É essencial o planejamento

ESTUDOS AVANÇADOS - Atualmente, a idéia de planejamento parece ter perdido muito de sua importância. No entanto, o desenvolvimento sustentado demandaria o restabelecimento dessa idéia, ainda que em moldes distintos. Como o senhor vê essa questão, especialmente no que diz respeito aos papéis que podem desempenhar o Estado e a sociedade civil?

Ignacy Sachs - Estou totalmente de acordo. Diria que esta é uma das minhas preocupações principais. O fato de que o planejamento de tipo soviético tenha mor-rido na praia não significa que devamos nos desfazer do conceito de planejamento. Não conheço nenhuma grande empresa de porte mundial que não esteja planejando. Como é que os Estados-nação poderiam prescindir de planejamento?

Alguns ideólogos da globalização (aliás, a globalização é também uma ideologia) dizem que o Estado-nação perdeu a sua importância na época atual. Isso é uma balela. Mais do que nunca, para se proteger contra os efeitos negativos da globalização e para aproveitar, na medida do possível, as oportunidades que surgem, precisamos de estratégias nacionais. Esta foi umas das tônicas da mensagem de Rubens Ricupero na última UNCTAD.

Se assim é, essas estratégias requerem, como Celso Furtado não se cansa de repetir, um projeto nacional discutido, negociado, que surja de um grande debate social. Um projeto nacional que resulte de um planejamento estratégico, flexível, onde não são os objetivos quantitativos que dominam. Planejamento contextual, onde não se atua diretamente sobre o objetivo, e sim cria-se condições que empurram os atores para determinadas direções. Planejamento negociado, onde o Estado, os empresários, os trabalhadores e a sociedade civil sentam à mesa. Planejamento pactuado, onde se chega à contratualização dos objetivos e das obrigações dos diferentes parceiros. O aprimoramento dos métodos de planejamento do desenvolvimento é uma das grandes tarefas das ciências sociais. Em vez de tratá-lo como um apêndice do planejamento econômico, devemos inverter esta relação: o econômico é apenas uma das dimensões, por importante que seja, do desenvolvimento.


Desenvolvimento e cultura

Estamos vivendo uma série de confusões semânticas que, na realidade, são confusões epistemológicas. Por exemplo, em quase todos países do mundo, o desenvolvimento ambientalmente sustentável é atrelado ao Ministério do Meio Ambien-te. Um absurdo. O desenvolvimento socialmente includente e ambientalmente sustentável requer a coordenação de todos os ministérios. Ele deve informar a estratégia global do país. E não é um sub-secretário de um Ministério do Meio Ambiente, como ocorre hoje, por exemplo, na França, que está em condições de coordenar os pesos-pesados representados pelos ministros das Finanças, da Indústria, da Agricultura etc.

Como já foi dito, queremos planejar o desenvolvimento, que evidentemente depende do crescimento econômico, mas não é uma resultante automática deste. O desenvolvimento é, por definição, um conceito pluridimensional com um forte componente cultural. Celso Furtado sempre insiste que o desenvolvimento requer a invenção do futuro. Não uma invenção resultando de voluntarismo desenfreado e sim baseada no exercício de um voluntarismo balizado pelo princípio da responsabilidade de Hans Jonas, e inspirado pelo princípio da esperança de Ernest Bloch. Portanto, uma invenção que exige uma dupla imersão, na cultura e na ecologia.

A cultura é um conceito polissêmico. Numa nota de trabalho que entreguei ao ministro Gilberto Gil usei uma definição do professor Bosi, colocada na Dialética da colonização. A cultura do antropólogo é uma coisa, a cultura como conjunto de atividades culturais, artísticas, é outra coisa. Existe ainda a cultura representada pelo conhecimento da sociedade sobre o seu meio.

É a partir dessas três culturas que podemos definir as metas, os objetivos do desenvolvimento. Aí vai aflorar fortemente a problemática dos estilos de vida, dos modos de consumo. Por isso deveríamos dedicar mais atenção à análise dos modelos culturais do uso do tempo. Ou seja, quanto tempo alocado às atividades do homo faber, do homo civis, do homo ludens, quanto tempo do homo faber no mercado e em atividades econômicas fora do mercado etc. Devemos reabilitar a distinção entre o trabalho heterônomo e o trabalho autônomo e analisar a diversidade dos estilos de desenvolvimento, a partir desse ponto de entrada que é a articulação dos diferentes modos de uso do tempo.

É óbvio que sendo um conceito pluridimensional, o desenvolvimento requer abordagens pluridisciplinares e não a prepotência do economista. Com essas ressalvas, considero que se deve voltar simultaneamente ao ensino do planejamento e da teoria do desenvolvimento, disciplinas que estão desaparecendo em muitas universidades, pois a vulgata reformista liberal considera esses dois conceitos como redundantes.

Se se acredita numa economia atópica e atemporal, aplicável da mesma maneira em qualquer lugar do mundo, para que perder o tempo com o desenvolvimento?

Para complicar ainda mais a situação, surgiu um ataque organizado de certos pós-modernistas contra o conceito de desenvolvimento. Eles acham que o desenvolvimento foi uma armadilha ideológica para enganar os países do Sul. Deveríamos, portanto, deixar de lado o palavrório do desenvolvimento e partir para um pós-desenvolvimento. Estou, porém, à espera de um texto que explique o que isso vai significar e demonstre que não se trata de uma mera brincadeira semântica.

Uma vertente do pós-desenvolvimentismo consiste na volta à ecologia profunda, à deep-ecology e a uma exortação para parar de crescer de uma vez para não prejudicar ainda mais os desequilíbrios ecológicos. Contra eles digo: enquanto houver diferenças abismais entre os pobres e os ricos, dentro dos países e entre os países, não temos o direito de parar. Precisamos resgatar a dívida social e fazer isso com urgência, porque de todos os desperdícios que caracterizam nossa civilização o mais terrível é o das vidas humanas causado pelo desemprego, subemprego e exclusão social. As vidas humanas fluem, não é possível estocá-las, por isso é absurdo falar de capital humano. O capital a gente coloca no banco e ainda ganha os juros. Uma pessoa que não tem condições de se realizar é um desperdício irreparável, irreversível, um insulto à ética.

Mais do que nunca temos urgência na problemática do desenvolvimento, conceito duplamente central. Primeiro, porque permite analisar o passado não para encontrar modelos a serem replicados, mas para construir muletas para a imaginação social, para encontrar exemplos que devem ser superados na medida do possível; a ambição deve ser sempre de se dar um passo à frente.

Segundo, porque oferece um arcabouço intelectual para a invenção do projeto nacional. O desenvolvimento é pluridimensional, plurisciplinar, subordinado ao duplo imperativo ético de solidariedade sincrônica com a geração presente e de solidariedade diacrônica com as gerações futuras. Portanto, requer um paradigma oposto ao excludente e concentrador que conhecemos no passado, o essencial é criar um desenvolvimento includente e, ao mesmo tempo, superar os modos predatórios de utilização da natureza. Não se trata de não usar a natureza. Não se trata tampouco de propor o não- desenvolvimento em nome do ambientalismo. Trata-se de definir o bom uso da natureza. Du bon usage de la nature é o título de um livro de um casal francês, os Larrere. Ela ensina filosofia em Bordeaux e ele é agrônomo.

E, finalmente para acontecer, o projeto de desenvolvimento tem de ser economicamente viável.



O papel do Estado

Agora a pergunta - qual o papel do Estado? Não acredito que voltemos, num futuro próximo, à idéia de um Estado onipotente, mas acredito e faço votos que superemos o mais cedo possível a idéia de um Estado mínimo, que permeia a teologia neoliberal. Portanto, se não queremos o Estado mínimo nem o Estado onipotente, o que desejamos? Queremos um Estado enxuto, não aquele monstro super dimensionado. Queremos um Estado limpo, não corrupto. Queremos um Estado atuante e pró-ativo. Um Estado que organize e conduza o processo de negociação entre todos os atores do processo de desenvolvimento. Este é um dos desafios maio-res que o futuro nos coloca.



Lições de uma pesquisa no Brasil

O que a teoria oferece? As ciências sociais são essencialmente heurísticas, permitem formular perguntas que não são óbvias, que não estão na superfície dos acontecimentos. As respostas vêm sempre a partir da práxis. O diagnóstico aprofundado exige também uma visão aprofundada da realidade social. Portanto, há anos aceito, sempre que posso, os convites para andanças que permitem visitar os mais diversos lugares. Tive várias experiências no Brasil muito bem-sucedidas, do que poderia se chamar de seminários peripatéticos. Ou seja, partir com um grupo e discutir durante a viagem. Fiz um seminário desses, memorável, com o pessoal do Instituto de Tecnologia de Minas Gerais, com o então secretário adjunto de Ciência e Tecnologia daquele Estado, Otávio Elísio Alves de Brito, na região do lago de Três Marias.

Era nossa primeira tentativa de definir um projeto de eco-desenvolvimento, que deu depois com os burros n'água, numa cidadezinha que se chama Juramento. Estávamos lá, numa paisagem que faria jus a um conto de Guimarães Rosa. Fiquei absolutamente abismado com a quantidade de espaço livre. E, por outro lado, de ter encontrado num povoado uma mulher grávida, vivendo numa choupana, embaixo dos fios elétricos, mas sem acesso à rede. Era um casebre de dez metros quadrados. Ela cozinhava num fogareiro, na frente da casa, porque não havia lugar lá dentro. Tinha dois filhos. O marido estava trabalhando na produção de carvão vegetal, longe dali. Dois filhos tinham morrido e dois outros estavam com os sogros. Todos numa miséria absoluta, no meio de todo este chão, que não podiam cultivar. Uma horta instalada ao longo da estrada vicinal já seria uma mão na roda. Essa foi uma primeira coisa que discutimos no seminário.

A razão de irmos até aquele lugar decorreu do fato de que, na época, Antunes (um dos grandes industriais brasileiros), acabava de comprar uma imensa gleba porque pensava em produzir álcool a partir da mandioca. Eu estava defendendo a idéia de que a mandioca pode ser produzida por cooperativas de pequenos agricultures familiares e que as ramas da mandioca poderiam ser utilizadas para criar porcos. E como estávamos à beira do lago, o esterco dos porcos poderia ser aproveitado para criar peixes, se fosse possível se proteger contra as piranhas que infestavam o lago. Portanto, seria extremamente interessante obter uma gleba ao lado para criar uma cooperativa de cem famílias com vinte hectares cada uma. A propriedade do Antunes tinha duzentos mil hectares. Eu queria muito menos e estava pleiteando ao mesmo tempo duas ilhas no meio do lago. Uma, para criar um observatório das transformações da ecologia do lago e a outra para criar uma fazenda-modelo-escola para ensinar aos membros da futura cooperativa como se implanta e administra um sistema integrado de produção de alimentos e energia (álcool) a partir da mandioca. O projeto acabou em nada porque a Codevasf nos informou que não tinha mais hectare de terra algum disponível naquela área.

Mas nesta viagem aconteceu um episódio que sempre conto em aulas. Subimos numa balsa para atravessar um braço do lago. Ao nosso lado havia um caminhão. O caminhoneiro informou que ia para Feira de Santana, distante de mais de novecentos quilômetros e próxima do litoral. Perguntei o que ele levava para lá? Respondeu: "peixe". "Que peixe?" A pergunta ficou três vezes sem resposta. Finalmente o homem disse: "Vejam lá". Ele estava transportando uma tonelada de piranhas no gelo. Levei um certo tempo para resolver o caso, porque não sabia que a sopa de piranha era um afrodisíaco muito estimado na Bahia e por isso valia a pena transportá-la por 960 quilômetros de asfalto.

Sempre uso esse episódio para dizer que não dá para discutir o desenvolvimento sem um forte embasamento na antropologia cultural. Nenhum modelo matemático de economia vai resolver um assunto como este. Precisamos desses conhecimentos. Ciências sociais são ciências de campo e não devem erigir barreiras entre as diferentes disciplinas. Isto aprendi com a École des Annales. Os historiadores dessa escola praticam uma história global e não se questionam se estão no âmbito da história, da antropologia, da economia ou da sociologia.

O ofício do planejador do desenvolvimento assemelha-se muito ao ofício do historiador, com a diferença de que este trabalha sobre o que já aconteceu, e nós temos a arrogância, a pretensão, a ambição ou talvez a insensatez de pensar que é possível dar uma inflexão à trajetória futura. A respeito deste paralelo entre os ofícios do planejador e do historiador, escrevi um pequeno ensaio para o Festschrifit oferecido a Paul Bairoch.



Inesquecíveis experiências em Varsóvia

ESTUDOS AVANÇADOS - Como foi sua passagem pela Escola Superior de Planejamento e Estatística, em Varsóvia, na década de 1960 (a famosa SGPIS)? Essa escola não teve inegável importância na formação de planejadores de países do Terceiro Mundo? O senhor não gostaria de contar aos nossos leitores algo de sua experiência como professor nessa escola?

Ignacy Sachs - Foi uma das experiências que mais me enriqueceram. Ao voltar da Índia, em 1960, fui encarregado da criação do primeiro centro de pesquisas sobre economias de países subdesenvolvidos, em Varsóvia. Era na Escola de Planejamento e Estatística, na qual lecionei de 1961 a 1968. Michal Kalecki era o presidente do Conselho desse Centro, um presidente atuante. Durante oito anos nos víamos diariamente. Assim, tive o privilégio de conviver e colaborar com um dos maiores economistas do século e um homem admirável, pela sua modéstia e pelo seu caráter. Começamos a realizar diversos trabalhos, inclusive seminários sobre o desenvolvimento dos países do Terceiro Mundo. Neles participavam Kalecki, Lange e Bobroswski, os três principais economistas da Polônia, além dos pesquisadores poloneses encarregados de missões de assistência técnica nos países africanos e asiáticos. Além disso, vinham convidados para o Seminário renomados economistas estrangeiros, atraídos pelos nomes de Kalecki e Lange.

Daí surgiu a idéia de se criar um curso de planejamento para economistas do Terceiro Mundo, com um forte apoio das Nações Unidas, o que nos permitiu dar bolsas e custear a vinda de professores, notadamente da Ásia e da América Latina. Esse curso começou em 1963 e tivemos um grupo de brasileiros: Jorge Miglioli, Lenina Pomeranz, Ivan Ribeiro Filho e Artur Candal. Na época, éramos conhecidos como a Cambridge do Leste. Um relatório de uma subcomissão do Senado norte-americano chegou a dizer que o curso era uma arma extremamente forte na luta pela alma do terceiro mundo, pelo fato de que não tentava fazer doutrinação ideológica alguma.

Nosso trabalho estava baseado na seguinte idéia: venham compreender como funciona na realidade (sem esconder os seus defeitos) uma economia socialista, mas não transponham diretamente essa experiência para seus países, porque há diferenças fundamentais entre países capitalistas desenvolvidos, países socialistas e países do Terceiro Mundo. Kalecki, com aquela sua capacidade de fórmulas extremamente compactas, resumiu essas direrenças da maneira seguinte: os países desenvolvidos têm problemas de demanda efetiva e devem administrá-la para evitar as crises. Os países subdesenvolvidos e os países socialistas têm em comum o fato de que são limitados pela oferta, pela insuficiência do aparelho de produção. Os países socialistas, em comparação com os países do Sul, têm um grau de controle muito maior sobre a economia. Estes últimos juntam o pior dos dois mundos.

Toda a tônica do ensino era mostrar como funcionava a economia polonesa, com uma crítica objetiva das insuficiências do sistema, apontando ao mesmo tempo as diferenças, com o caso dos países subdesenvolvidos.

Dávamos grande importância a uma singularidade do caso polonês, o único país do leste que não implantou a coletivização completa no campo. Fez uma coletivização que mal abrangeu 10% a 15% das terras e em 1956 permitiu que as cooperativas se dissolvessem. Portanto, era um país com uma agricultura camponesa, individual e com minifúndios. Nesse contexto, vale a pena mencionar Jerzy Tepicht. Ele tem um livro em francês com um título péssimo, Le marxisme et le paysan polonais. Depois de ter sido responsável pela coletivização, cargo a que renunciou depois de um ano, ele foi para o Instituto de Pesquisas sobre o Desenvolvimento Rural, onde passou quinze anos a refletir porque a coletivização não podia resolver o caso polonês. Chegou, então, a uma teoria extremamente original, na qual afirmava que a coletivização das terras deveria ser a última etapa da socialização do campo, quando o que pregava a ortodoxia era que fosse realizada em primeiro lugar. Essa reflexão se inspirava, entre outras coisas, em teses de Chayanov, o teórico russo do cooperativismo e apontava para o potencial das reservas da mão-de-obra na agricultura familiar para alavancar o desenvolvimento. Ivan Ribeiro estudou com afinco o pensamento de Tepicht. Era evidente o enorme interesse despertado pelo curso em vários países do Terceiro Mundo. Vivi essa experiência seis anos, e passaram pela nossa mão mais de duzentos economistas do Terceiro Mundo. Fizemos, num dado momento, um curso à parte, em francês, para os argelinos. Quando saiu aquele relatório da subcomissão do Senado norte-americano, fomos chamados pelo ministro da Educação, que nos perguntou: "o que vocês precisam a mais?" Respondemos: não precisamos de grande coisa a mais, queríamos apenas integrar o Seminário de Kalecki, o nosso centro de pesquisas e o curso de planejamento num Instituto.

Mas veio o ano de 1968 e fomos alvos de uma campanha feroz. Não era ainda a demissão do Gomulka, era a preparação da invasão da Tchecoslováquia. Houve uma provocação em que fomos acusados de sermos uma quinta-coluna sionista e revisionista. Depois de um ano ou dois daquela avaliação tão favorável ao nosso trabalho, ninguém se lembrou dos elogios que nos tinham sido feitos.

Atravessei esse período conturbado de 1968 em parte na América Latina, porque fui fazer uma palestra no México e depois passei três semanas num seminário da Cepal em Santiago. Quando voltei a Varsóvia o reitor me chamou e disse: "O seu projeto de Instituto foi aprovado". Em seguida, ele citou os nomes dos novos diretores dessa instituição. Respondi que a única coisa que me restava era entregar as chaves. Ao que ele disse: "Não, lhe peço um favor pessoal, isso ainda não está formalizado. Continue na chefia do Centro". Assim passaram duas semanas e numa manhã abri o jornal e aprendi, entre outras coisas, que, sob o pretexto de construir pontes entre Leste e Oeste, eu fazia o contrabando do estruturalismo de Lévi-Strauss e de outros "ismos" burgueses.

Na verdade, na época participei de um grande projeto da Unesco sobre as tendências principais nas ciências sociais. Nele fui representar Oskar Lange, que logo depois morreu. Eu atuava ao lado de Lévi-Strauss, Lasarsfeld, Piaget, Jakobson, Trist, além de outros cientistas de renome internacional.

Esses foram os eventos que me afastaram de meu país natal. Contudo, em 1968, retomei à mesma problemática num âmbito mais auspicioso, em Paris, convidado por Fernand Braudel, para integrar a hoje École des Hautes Études en Sciences Sociales.
Revista Estudos Avançados