sábado, 8 de agosto de 2009

Tim Jackson - Efeito estufa


Efeito estufa: do jeito que está, não dá para ficar
É impossível reduzir as emissões de gases do efeito estufa sem pôr um freio no crescimento da economia, afirma o inglês Tim Jackson
por Estela Silva
A atual crise financeira global vem tirando o sono de muita gente – de trabalhadores angustiados com o fantasma do desemprego a investidores que amargam prejuízos com a quedNegritoa da bolsa de valores, de empresários que estão arrancando os cabelos por causa da diminuição de seus lucros a governantes preocupados com a ameaça da recessão. Esse cenário sombrio, no entanto, é uma excelente oportunidade para as pessoas refletirem sobre as armadilhas do atual modelo econômico, baseado na busca obsessiva do crescimento. É o que diz o matemático e filósofo inglês Tim Jackson, professor de desenvolvimento sustentável da Universidade de Surrey, na região de Londres. Para Jackson – um estudioso das relações entre o estilo de vida e o ambiente –, se a economia mundial continuar a crescer no mesmo ritmo dos últimos anos, será impossível garantir a sustentabilidade das próximas gerações. Segundo ele, a atitude mais sensata que cada um de nós pode adotar para um mundo mais sustentável é comprar menos – já que as medidas adotadas até agora têm sido insuficientes para neutralizar as emissões de gases que causam o efeito estufa. “Acreditar que as emissões vão diminuir enquanto a economia continuar crescendo sem limites é a receita do desastre”, afirma Jackson na entrevista a seguir.

Qual é o papel da economia para a sustentabilidade do mundo?

Em geral, a economia trata do gerenciamento de recursos – humanos, naturais e financeiros. Uma sociedade justa e saudável, que viva dentro de limites ambientais definidos, precisa ter sustentabilidade econômica, na qual se concentram os recursos apropriados para várias gerações. No momento, nossa teoria econômica não funciona bem dessa forma.

Como ela funciona?

A crise financeira é um exemplo e um grande alerta. Ela demonstra que ainda não sabemos como lidar com a economia. A única maneira com que fazemos a economia funcionar é estimular cada vez mais consumidores a gastar com coisas de que eles realmente não precisam, o que compromete os recursos naturais e polui o ambiente. O problema financeiro mundial que veio à tona agora mostra que estamos na armadilha de um modelo econômico falido. E também se trata de um desastre em termos ecológicos. A boa notícia é que temos uma oportunidade única de tirar lições da crise e construir algo melhor.

O capitalismo é negativo para a sustentabilidade?

Sim. Generalizando, a idéia do capitalismo irrestrito é uma das responsáveis por este caos que estamos vivendo. Achar que isso pode ser uma saída é um pensamento extremamente otimista.

Qual é a saída então?

O crescimento é essencial para o desenvolvimento das economias. A idéia de que podemos tirar 2 bilhões de pessoas no planeta da mais absoluta pobreza sem crescimento é claramente problemática. Isso significa que cada país pode continuar crescendo sem limites? Não acredito nisso. No momento, o crescimento é estruturalmente importante. Mas isso acontece porque uma economia em crescimento é estável, enquanto uma economia que pára de crescer corre o risco de entrar em colapso. É realmente importante construir novas macroeconomias, que encontrem uma forma de estabilidade que não esteja baseada no crescimento ilimitado.

Não parece tão simples. Em sua opinião, como deve ser a construção dessas macroeconomias?

Esse é possivelmente o problema mais importante do nosso tempo, mas ainda posso contar nos dedos de uma mão o número de pessoas que estão trabalhando com esse objetivo! A idéia mais aceita é que devemos continuar crescendo, mas isso não faz sentido. A crise financeira nos mostra que nem economicamente faz sentido. Imagine, então, ecologicamente. Para mobilizar uma mudança de fato na economia, o governo tem de liderar a iniciativa de diminuição de consumo e do crescimento. Não faz sentido pensar nisso se não houver uma contribuição das empresas e dos consumidores, pois cada um tem o seu papel. O papel do governo é a responsabilidade pela formulação da macroeconomia. Esta é uma das lições muito claras desta crise: quando as coisas vão mal, o Estado é o agente que está habilitado a resolver.

É possível fazer a economia crescer e, ao mesmo tempo, reduzir as emissões de gases nocivos?

Sim, acredito que seja possível. Em algumas nações desenvolvidas já podemos observar algumas dessas tendências. Globalmente, o melhor que se observa é algo que está ainda em processo, onde as emissões vêm sendo controladas e seu aumento tem sido mais lento do que o ritmo do crescimento econômico. Temos como exemplo alguns dos países signatários do Protocolo de Kyoto, como o Reino Unido, que vem seguindo as regras de diminuição mundial, mas ainda não está atendendo às expectativas internas. Porém, em alguns segmentos produtivos, como nas indústrias de cimento, metais e bauxita, a tendência é pior que essa. Esses crescem acima da taxa de expansão da economia. Estamos indo para a direção errada! Acreditar que as emissões vão diminuir enquanto a economia continua crescendo é a receita do desastre.

Os recursos tecnológicos criados com o objetivo de diminuir a poluição e as emissões estão esgotados? Como eles podem contribuir para melhorar a sustentabilidade dos países?

Os avanços tecnológicos e de produtividade, em particular, são absolutamente vitais. Não podemos pensar em sustentabilidade sem eles. Mas eles são limitados em termos da eficiência que podem atingir. A má notícia é que, apesar dessas melhorias, não estamos diminuindo nossas emissões ou o consumo de recursos que impactam o ambiente. Seria necessário concentrar mais esforços numa política de investimentos para aumentar essa eficiência, a fim de substituir produtos e processos mais poluentes por outros menos poluentes.

Quanto deveria ser o crescimento mundial por ano para um ambiente sustentável?

Muito difícil responder. O crescimento é claramente necessário por várias décadas ainda na maioria dos países em desenvolvimento, mas o ambiente de negócios atual, que acredita que o crescimento econômico deve ser 10 vezes maior até 2100, não tem credibilidade em termos ecológicos. Atualmente, já estamos acima do limite de emissões, já que, de acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), deveríamos reduzir as emissões de carbono em 80% em relação à quantidade do ano de 1990 para prevenirmos a interferência no clima mundial.

Há muitas diferenças entre os países desenvolvidos e os em desenvolvimento?

Sim, as diferenças são enormes. Os países desenvolvidos deveriam assumir a liderança na busca de soluções reais para os problemas de sustentabilidade. Afinal, eles ainda são os maiores consumidores per capita de recursos e em emissões de poluentes. Os países pobres lutam com os poucos recursos que têm para aumentar os padrões básicos de sobrevivência. Os países ricos precisam dar o exemplo de crescimento às nações em desenvolvimento, se quisermos viver num mundo sustentável onde as pessoas possam ter um padrão de vida decente em qualquer lugar do planeta.

Você concorda com a maneira como os políticos vêm lidando com a questão da sustentabilidade?

Não, eles não têm feito o suficiente pela sustentabilidade. Embora as mudanças climáticas, finalmente, estejam recebendo a atenção merecida, ninguém está tratando com seriedade as limitações de recursos, como a biodiversidade, a segurança da água, o uso da terra, a segurança alimentar, o gerenciamento das florestas ou a conservação dos oceanos. E, certamente, estamos longe de dar atenção aos impactos sociais das economias não sustentáveis.

Qual seria sua proposta para promover sustentabilidade e evitar a recessão global?

Ninguém sabe ao certo, mas alguns caminhos ajudariam, como redesenhar toda a economia, principalmente a macro. Não podemos acreditar num sistema de aceleração de consumo com o aumento de dívidas. Poderíamos também buscar mais equilíbrio entre consumo e investimento, mais flexibilidade no mercado de trabalho para facilitar o pleno emprego sem a necessidade de contínuo crescimento. Seria importante também desenvolver instituições internacionais fortes para regular o fluxo econômico e dar amplo apoio às nações em desenvolvimento na transferência de tecnologias que ajudem na diminuição de emissões. Outra sugestão seria ajustar procedimentos contábeis, nacionais e internacionais, para que se tornem adequados e beneficiem tanto as finanças quanto o ambiente, e reestruturar a sociedade para dar suporte aos produtos e serviços importantes para as comunidades, que devem estar capacitadas para prosperar – dentro de limites ecológicos claros. Talvez a recessão não seja o pior que vá acontecer para nós....

O que poderia ser pior que a recessão?

Pergunte à Rússia e à África. Um colapso no sistema social realmente traz perdas para o bem-estar humano, diminuindo a expectativa de vida, aumentando a mortalidade infantil e trazendo perdas para a unidade social, entre outros problemas. A longo prazo, isso é o que teremos de enfrentar se não construirmos um sistema econômico robusto e sustentável em termos ecológicos.

O que as pessoas podem fazer individualmente para que isso não aconteça?

Comprar menos, ser mais eficiente no uso da energia, viajar menos de carro e de avião, economizar, fazer investimentos éticos e protestar!



Faça a sua parte
Como você pode contribuir para um mundo mais sustentável, segundo Tim Jackson
Compre com moderação

Pense duas vezes antes de comprar um produto. Você realmente precisa dele? Consumir menos é a atitude individual mais importante que você pode tomar para diminuir as emissões de gases causadores do efeito estufa.

Dedique-se a ações comunitárias

Não se deixe influenciar pelos anúncios publicitários. Para tirar da cabeça a idéia de fazer compras, você pode, por exemplo, passar mais tempo com a família e dedicar-se a atividades comunitárias.

Escolha bem os produtos

Já que vai comprar, dê preferência a produtos sustentáveis, como os eletrodomésticos que consomem menos energia. Evite o uso de sacolas plásticas e colabore para aumentar a reciclagem de embalagens.

Selecione o fabricante

Consuma produtos éticos, fabricados por empresas reconhecidas por adotar boas práticas no seu relacionamento com os parceiros de negócios, aí incluídos os clientes, os funcionários e os fornecedores.

Use o transporte coletivo e caminhe

Evite o transporte individual e utilize mais o transporte público. Se tiver de usar o carro para locomover-se no dia-a-dia, procure compartilhar a viagem com outras pessoas que fazem o mesmo roteiro. Caminhe mais.


Tim Jackson
• É mestre em filosofia pela Universidade de Western Ontario, no Canadá, e Ph.D em física pela Universidade de St. Andrews, na Escócia.

• Publicou estudos sobre a relação entre consumo, estilo de vida, bem-estar e ambiente.

• Desde 2000 é professor de desenvolvimento sustentável da Universidade de Surrey (a primeira instituição na Grã-Bretanha a criar um departamento voltado para questões de sustentabilidade).

• Paralelamente ao trabalho científico, é um premiado autor de dramas para rádio, as peças radiofônicas. dezembro/2008

Revista Super Interessante

PADDY CLARK HA HA HA" - RODDY DOYLE


Subúrbio de Dublin ganha o mundo
O escritor irlandês Roddy Doyle conquista público e crítica com 'Paddy Clarke Ha Ha Ha', lançado no Brasil
FERNANDA SCALZO
O irlandês Roddy Doyle, 37, é um daqueles casos em que crítica e público se encontram. Em 1993, com "Paddy Clarke Ha Ha Ha", que agora está sendo lançado no Brasil, ele ganhou o mais importante prêmio de literatura da Grã-Bretanha, o Booker Prize.
Mas antes desse reconhecimento da crítica, Doyle já vendia como água sua trilogia da família Rabbite: "The Commitments", "The Snapper" e "The Van", ainda não traduzidos no Brasil.
"The Commitments" virou filme de Alan Parker. "The Snapper", filme de Stephen Frears (aqui chamou "A Grande Família"). "The Van" está sendo filmado por Frears também.
"A primeira resenha de meu primeiro livro, 'The Commitments', dizia que ele teria muito pouco interesse fora de Dublin", disse Doyle, nesta entrevista concedida por fax, de Dublin, à Folha. Os livros de Doyle estão traduzidos em 20 línguas.
Paddy Clarke, protagonista e narrador do livro (leia texto ao lado), é um garoto de dez anos que conta suas aventuras em Barrytown, subúrbio de Dublin.

Folha - Em "Paddy Clarke Ha Ha Ha" parece que as coisas acontecem todas ao mesmo tempo para o menino. Você acha que as crianças percebem o tempo desta maneira?
Roddy Doyle - Não acho que as crianças percebam o tempo da mesma maneira que nós. Nós organizamos o tempo para elas; impomos os horários. Se ficassem por conta própria, iriam dormir quando caíssem, comer quando tivessem fome. Tentei colocar uma estrutura não-cronológica no livro. Ele cobre cerca de um ano, mas não de uma maneira organizada ou adulta. Queria que as coisas parecessem mais caóticas.
Folha - Paddy Clarke vai ficando mais velho e um pouco mais amargo. Você acha que isso faz parte da vida adulta?
Doyle - Não acho que a amargura seja inevitável. Nunca vi a transição da infância para a vida adulta como a perda da inocência ou de outra coisa. Não gostaria de ser criança novamente. Sou um adulto satisfeito _mas gostaria que meu cabelo não caísse tão depressa.
Folha - A tradução de seu livro mantém a fala das crianças, que soa bastante natural e infantil. Você tem filhos? De onde você pega essas falas?
Doyle - Tenho dois filhos, mas um nasceu apenas algumas semanas antes de eu começar a escrever o livro e o outro nasceu depois. Eles não me ajudaram nada! Fui professor durante 14 anos; isso me ajudou. Mas, principalmente, me apoiei na memória. Tentei me lembrar como as crianças falavam quando eu era criança.
Folha - Em sua crueldade e no seu jeito de fazer as pequenas coisas parecerem "incríveis", Paddy parece realmente um menino de dez anos. De onde vem essa sua percepção da infância?
Doyle - Da observação e da memória. Gradualmente, enquanto escrevia, comecei a me lembrar incidentes cruéis e absurdos. Lembrei-me de pequenos acontecimentos que se transformaram em grandes fatos da mitologia da minha família. Tive, sobretudo, uma infância feliz, mas pude me lembrar de momentos de crueldade, incerteza, solidão e medo.
Folha - Quanto Paddy Clarke tem de você mesmo?
Doyle - Obviamente, não poderia ter escrito "Paddy Clarke Ha Ha Ha" se eu não tivesse sido um garoto de 10 anos alguma vez, mas não acho que eu seja Paddy Clarke. Minha mãe também não acha e acredito em sua opinião. A história, Paddy vendo seus pais se separarem, não tem nada a ver com minha vida. Nunca vi meus pais discutindo ou brigando; eles ainda são casados.
Folha - Como escritor irlandês, o que acha de ser comparado a James Joyce pelos críticos?
Doyle - Enquanto escrevo, não penso em mim como um escritor irlandês. Não penso nas consequências ou na importância do que estou fazendo. Simplesmente quero contar bem uma história. Quanto às comparações com James Joyce, nós dois somos irlandeses e míopes _elas acabam aí.
Folha - Você ganhou o Booker Prize. Esperava esse tipo de reconhecimento?
Doyle - Não esperava muita coisa quando comecei a escrever. A popularidade de meus livros, os prêmios, foram uma surpresa muito boa. A primeira resenha de meu primeiro livro, "The Commitments", dizia que ele teria muito pouco interesse fora de Dublin. Nove anos depois, meus livros foram traduzidos em 20 línguas.
Folha - Você escreveu o roteiro de "The Van", que Stephen Frears está filmando agora. Também escreveu os roteiros para "The Commitments" e "The Snapper"? O que um livro perde e o que ganha ao se transformar em filme?
Doyle - Escrevi o roteiro de "Snapper" e co-escrevi o de "The Commitments". A qualidade do filme depende da qualidade das pessoas que o produzem. Eu tive muita sorte. Muito do livro original se perde, mas também muito se ganha _imagens, expressões faciais, expressões visuais etc.
Folha - Você imagina um filme de "Paddy Clarke"?
Doyle - Não posso imaginar um filme de "Paddy Clarke" _ainda. Não quero fazer _ainda. Seria muito, muito difícil.

Folha de São Paulo

ALLEN GINSBERG - ARTE BEAT


Folha - O sr. acha que o cidadão ainda é capaz de influenciar a política?
Ginsberg - Acho que você pode perceber a influência de gente como Burroughs ou Gary Snider ou mesmo Kerouac, talvez minha própria, na penetração do pensamento oriental, o que teve algum importe político _consciência ecológica, crítica da guerra às drogas, fim da censura sobre os livros e, agora, da censura sobre a TV e a mídia eletrônica, que o senador Jesse Helms e a Federal Comunications Comission impuseram. Em última instância, acho que alguns indivíduos ajudaram a pôr fim à Guerra do Vietnã _Abbie Hoffman, David Dellinger, Dorothy Day e outros líderes do movimento antibélico de fato afetaram o resultado final.
Folha - Afetando a consciência do público?
Ginsberg - Bem, Ellsberg disse-me que, quando trabalhava como assistente de Kissinger durante a eleição de 1968, Nixon anunciou um plano secreto para acabar com a guerra. O plano secreto era o de lançar bombas nucleares sobre o Vietnã do Norte. E só o protesto nas ruas, o movimento antibélico, liderado por indivíduos, conseguiu detê-los. Quer dizer, eles tiveram medo de que o país se cindisse se de fato fizessem aquilo.
Folha - O que o sr. acha que de fato aconteceu a Kerouac nos anos 60? Não conseguiu se adaptar ao novo ambiente social?
Ginsberg - Ele estava bebendo, velho. Além disso, jamais teve muita disciplina. Jamais aprendeu a meditar. Jamais teve uma figura de autoridade, um guru hierárquico, com exceção de Burroughs _mas não teve um verdadeiro professor zen. Havia um problema na relação de Kerouac com sua mãe. Os ataques incessantes da mídia e da "intelligentsia...
Folha - Mas o sr. também foi atacado várias vezes e não reagiu como ele.
Ginsberg - Sim, mas eu tinha mais apoio, porque era um bom rapaz judeu. Ninguém me atacava integralmente como faziam com ele. Todos sabiam que eu me havia formado em Columbia. Perceberam que não me podiam tachar de ignorante ou delinquente juvenil. Podiam me atacar por ser inconveniente ou homossexual. Mas Kerouac eles podiam atacar como bárbaro "goyishe", e isso eles não deixaram de fazer. Ademais, ele foi traído por Kenneth Rexroth (poeta e crítico influente em San Francisco), cuja resenha do livro-poema "Mexico City Blues" era realmente maldosa, dizendo que Kerouac não sabia escrever, que ele era um fogo de palha e sua obra um palavrório incoerente.
Folha - O sr. imagina por que tantos ocidentais têm sido atraídos pelo budismo no último quarto de século?
Ginsberg - Porque estão escapando à noção unilateral, irascível e gananciosa de monoteísmo, onde há um só Deus e acabou. Só há uma noção do que seja correto, e tudo o mais é maldito, ou digno de ostracismo, ou ainda "contracultura McGovernick" _conhece a expressão? (de George McGovern, democrata liberal que concorreu com Nixon em 1972).
O deputado Newt Gingrich (líder republicano e presidente da Câmara) declarou guerra contra o que chamou de "contracultura McGovernick". Foi manchete no "The New York Times" _querer fazer do Partido Democrata em bloco um representante da contracultura. E ele disse que "por volta de um terço das pessoas na Casa Branca já usaram drogas". Não que ele próprio não tenha! Gingrich em pessoa disse ter fumado maconha _e tragado. Depois disse: "Grande erro".
Pois bem, aí está essa aposta fundamentalista, monoteísta, numa verdade absoluta, um fascismo ou uma ditadura mental no qual toda autoridade deriva do ponto de referência central. Se é essa a direção que estão tomando, e se as igrejas liberais são demasiado débeis e desinteressantes, então tudo o que os fundamentalistas estão atacando _coisas como o relativismo moral, o relativismo psicológico ou a variabilidade_ torna-se mais atraente, justamente por ser mais próximo da mente, do homem. E toda a minha poesia refere-se aos pensamentos por que passei. Ela não tem que ser tão verdadeira quanto Deus; basta ser verdade que eu pensei aquilo. Não estou certo de que alguém possa querer mais de seus pensamentos. Alguém poderia ter esse pensamento final que representaria a concepção última do universo? A exceção é a idéia de que a mudança é permanente.
Folha - Para onde o sr. acha que a poesia está indo?
Ginsberg - Acho que haverá um grande renascimento da poesia em oposição ao ataque neoconservador à arte, hoje, nos EUA. Os neoconservadores não têm quaisquer artistas, são inanes imaginativamente. Assim, depois que eles abolirem a National Public Radio, a TV educativa e o National Endowment for the Arts, todos sairão como cães raivosos latindo contra o governo.
Folha - O sr. foi influenciado pelas canções políticas que ouvia no círculo de amizades de seus pais? O sr. usou "Soviet Star" em "Kaddish".
Ginsberg - Eu conhecia Josh White e ouvia as "Dustbowl Ballads". Ouvia Burle Ives nos tempos de escola, quando ele era um jovem cantor, e também Leadbelly _"Bourgeois Blues" e "Jim Crow Blues"_ que são ambos abertamente políticos ao mesmo tempo que fazem blues. Dylan tem uma faceta apocalíptica, agora como antes _de "You Gotta Serve Somebody" até "Hard Rain".
Folha - E The Clash?
Ginsberg - O Clash é político, mas muitos grupos de rock estão envolvidos com algum tipo de questão social, mesmo U2 e Sonic Youth, fazendo o que podem. Os Stones tentaram com "Street Fighting Man". Até os Beatles tentaram. Um caso chocante com os Beatles foi, em certa ocasião, durante a Guerra do Vietnã, quando eles tinham um álbum popular mesmo, cuja capa mostrava um monte de bonecas cobertas de sangue. Livingston, presidente da Capital Records, recusou-se a aceitar a capa. Era um grande sinal social. Em vez de se eximirem, os Beatles fizeram esse gesto social, antibélico. Era uma coisa de fato terrível. Lennon acabou declarando sua independência pouco depois, em 71 ou 72. Fala-se muito que o rock foi cooptado nos anos 70, tornou-se baboseira, comércio e mercadoria. Não deixa de ser verdade, mas havia também a subversão do "glitter rock" e...
Folha - O punk.
Ginsberg - O punk, mas também rock n'roll de qualidade, a tendência satânica.
Folha - E Frank Zappa.
Ginsberg - Ou os travestis.
Folha - Isso, David Bowie estava em alta.
Ginsberg - "Diamond Dogs".
Folha - O que acha das letras dos Beatles?
Ginsberg - Eu gosto delas, acho-as ótimas. Especialmente "A Day In The Life" _é um grande poema: "Now we know how many holes it takes to fill the Albert Hall" (Agora sabemos com quantos buracos se enche o Albert Hall). É um poema moderno muito bom, que, pela construção, pelos cortes abruptos e pela modernidade, me faz pensar em "Zone" de Apollinaire, mas muito comprimido. Muitas das letras são muito engenhosas e modernas, como "Lovely Rita, Meter Maid". "She's Leaving Home" é surpreendente, também musicalmente, e a letra é muito simpática.
Estive em Londres no ano passado e fui visitar Paul McCartney. Ele trouxe uma resma de poemas. Queria que eu os examinasse e criticasse. A maior parte me pareceu vaga e algo sentimental, com alguns instantes em que se percebiam a alegria e o brilho dos Beatles, mas o ponto central da conversa foi: por que os poemas eram tão abstratos e nebulosos, quando as letras dos Beatles são por vezes tão precisas. E ele disse: "Bem, eu e John sabíamos disso. Em música, você tem mesmo que ter seus Strawberry Fields _lugares precisos, fatos reais_ mas eu achava que com poesia seria diferente". E eu disse: "Vocês estavam no caminho certo!". Você sabe quem não é nada mau como poeta? Jimmy Carter. Li uma resenha maldosa no "The New York Times" que o depreciava, mas abri o livro em algum shopping e fiquei impressionado _era concreto, detalhista, perspicaz. Não era algo de poeticamente dopado. Era uma poesia judiciosa, levemente realista, cínica, quase à maneira de Thomas Hardy.
Folha - Queria lhe perguntar sobre algo que encontrei diversas vezes em sua poesia _a combinação e a diferença entre desejo e amor. O sr. vê as duas coisas como idênticas ou cada qual ocupa uma esfera diferente em sua poesia?
Ginsberg - Sorte de quem conseguir combiná-las. Se o seu coração bate mais forte por alguém e se além disso há desejo, rapaz, isso é ótimo _ao menos se você conseguir satisfazê-lo. Tenho vários relacionamentos que não envolvem desejo genital ou qualquer coisa do gênero. E são todos satisfatórios _com mulheres e com homens. Quero dizer que há homens pelos quais sinto afeição despida de desejo.
Folha - E Neal Cassady?
Ginsberg - Com Cassady é diferente. Havia amor, mas desejo também. Gostava dele das duas maneiras. Peter Orlovsky, desejo total, mas ao mesmo tempo um amor muito forte e, agora que nenhum de nós está em forma para o sexo _já que mudamos fisicamente_, ainda ouço Peter em meu coração, sem nenhum anseio sexual, mas com certeza ainda o ouço em meu coração.
Folha - Pode-se dizer que toda a sua obra lidou com o aspecto pessoal. O manifesto de Frank O'Hara sobre o "Personism" dizia: "Percebi que usar o telefone era tão fácil quanto escrever um poema" _mas é claro que ele continuou a escrever poemas. No poema "Now and Forever", o sr. diz querer ser lembrado por sua poesia. O que é mais importante para o sr., o modo de levar a vida ou a arte que o sr. cria?
Ginsberg - As duas são uma mesma coisa. A poesia e a vida são por assim dizer idênticas. A poesia vem das coisas que penso na vida real ou das atitudes que tomo. Tal como na expressão de Whitman _"quem toca isto, toca o homem"_, gostaria que a poesia refletisse uma pessoa real, na linha do candor whitmaniano. Se você quer ser cândido em sua escrita, você tem que não se envergonhar do que faz na vida. Ou pelo menos não ser tão envergonhado a ponto de não poder escrever! Mas o veículo das palavras é a respiração, e elas são reprodutíveis pela respiração de qualquer um. As palavras e a respiração podem ser idênticas ou intercambiáveis.
Folha - O sr. se impõe tarefas em poesia? Quero dizer, o sr. alguma vez diz: "Por Deus, eu gostaria de escrever um poema sobre isto ou aquilo"?
Ginsberg - Ah, sim _noite passada estava lendo um panfleto de Todd Colby, da banda de rock Drunken Boat. Era engraçado, e quando acabei de ler aquela coisa agressiva, pensei: "Bem, eu também vou escrever um poema agressivo". Pus-me então a imitar Todd Colby. Fiquei acordado até as três da manhã e escrevi uma coisa que batizei de "It's Time I Got Mad". Aí está um conceito _ficar louco.
Folha - Isso me faz lembrar seu poema sobre Pessoa, "Salutations to Fernando Pessoa", que me interessou porque eu o li de duas maneiras diferentes. Numa das leituras, o sr. está de fato louco, com ciúmes de Pessoa; mas na outra, o sr. ama Pessoa e a raiva" é uma espécie de encenação. Lembro que o sr. disse certa vez que, se nascesse de novo, gostaria de ser Pessoa. Fui reler o poema de Pessoa, "Saudação a Walt Whitman", do heterônimo Álvaro de Campos.
Ginsberg - É um poema colossal, mas ele "hiper-whitmaniza" Whitman. Quero dizer que ele incorpora o entusiasmo de Whitman ao mesmo tempo em que o parodia; ele simultaneamente homenageia e acaba com Whitman. Você sabe: coisas como "o grande masturbador" ou "o bastardo do universal" _mas o que eu de fato gostei foi que, em vez de desatarraxar a porta, ele a derruba. E eu o estava imitando, mas outra vez indo um pouco além, como ele fizera com Whitman. É uma imitação de "Saudação a Whitman", porque eu "curto" muito Pessoa. Eu gosto muito de sua extravagância e de seu candor _seu egocentrismo impressionante, bem-humorado, expansivo e auto-consciente, que se torna quase sublime. Isso é personalidade.

VINCENT KATZ é poeta e tradutor; seu livro mais recente é "Charm", com traduções do poeta latino Sextus Propertius

Tradução de SAMUEL TITAN JR.

Folha de São Paulo