quarta-feira, 28 de outubro de 2009

A nova (des) ordem do trabalho - Giuseppe Cocco


A nova (des) ordem do trabalho
Por Ana Paula Conde

Para o cientista político Giuseppe Cocco, a cultura é o novo paradigma do trabalho e as favelas são “reservatórios de mobilização produtiva”



As condições de trabalho estão mudando rapidamente. A transformação contínua exige novos paradigmas de análise. Em tempos de globalização, flexibilização, terceirização, desemprego e sociedade de rede, não é mais possível pensar as relações de trabalho sob um único ponto de vista. Afinal, como afirma o cientista político Giuseppe Cocco, 51, não é o trabalho que está desaparecendo, mas sim o seu estatuto e o seu conteúdo que estão mudando radicalmente. “O desafio daqui para frente é a discussão sobre a necessidade de se pensar novas formas de remuneração e proteção”, diz Cocco.
De acordo com o pesquisador, pensar essa nova realidade é perceber como as relações tornaram-se mais fragmentadas, apesar de mais livres, e como as condições de trabalho da área cultural passaram a marcar os mais diversos setores.
“O trabalho na área cultural, por definição, é produzido por projetos (contratos). Ele tem fases de atividades com renda e fases sem projetos e sem renda. O que antes era especifico dessa área, é hoje a condição paradigmática do trabalho em geral. Daí a crise do ‘emprego’”, afirma.
Para discutir esses e outros temas, Cocco, que é professor de sociologia do trabalho na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador geral do Laboratório Território e Comunicação (LABTeC), organizou o seminário "A constituição do comum: cultura e conflitos no capitalismo contemporâneo", que, depois de ser realizado no Rio de Janeiro, em Vitória (ES) e em Salvador (BA), será apresentado no próximo dia 19 em Belém (PA). Da organização do seminário também participa a professora e crítica Ivana Bentes, diretora da Escola de Comunicação da UFRJ.
O objetivo do evento tem sido refletir sobre trabalho, produção cultural e trabalho informal no capitalismo contemporâneo. O projeto faz parte do programa Cultura e Pensamento 2007, do Ministério da Cultura (MinC). As discussões apresentadas nas mesas serão publicadas em livro e na revista “Global/Brasil”, da qual Cocco é editor.
Francês de origem italiana, Cocco é doutorado em história social pela Universidade de Paris I (Pantheon-Sorbonne) e vive há 12 anos no Rio. “Trabalho, desde o início, com as dimensões produtivas da comunicação e do território. Creio que o Brasil, apesar de tudo (e esse tudo é muito grande), é atravessado hoje por uma das dinâmicas sociais e políticas mais interessantes”, diz.
Além de coordenar o LABTeC, ele participa da edição das revistas “Lugar Comum” e “Multitudes”, esta fundada na França por intelectuais que trabalham com as idéias de Gilles Deleuze (1925-1995), Michel Foucault (1926-1984) e Antonio Negri (1933). Ele também coordena as coleções “Espaços do Desenvolvimento” (ed. DP&A) e “A Política no Império” (Civilização Brasileira).
Em 2005, lançou com o pensador italiano Toni Negri, do qual é constante colaborador, o livro “Glob (AL) - Biopoder e Luta em uma América Latina Globalizada” (Record), um balanço crítico da teoria da dependência no continente. Entre seus projetos para 2008, estão a publicação de uma coletânea de artigos escritos com Negri para a imprensa brasileira e a finalização de um livro que aprofunda os temas de “Glob (AL)”.
Na entrevista a seguir, Cocco fala sobre os principais estudos desenvolvidos atualmente pela sociologia do trabalho, da importância das atividades imateriais (cognitivas). Ele também defende uma renda universal para as populações e diz que as periferias das metrópoles brasileiras, apesar dos problemas, são celeiros de recursos produtivos.
“Há, por um lado, a pobreza, a miséria, a informalidade, a violência e o crime do poder; mas, por outro, encontramos um gigantesco reservatório de mobilização produtiva, cujo potencial se exprime, por exemplo, na capacidade que a multidão metropolitana mostrou ao construir seus espaços habitacionais de maneira independente, apesar das péssimas condições materiais”, afirma.
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O que motivou a realização do seminário "A constituição do comum: cultura e conflitos no capitalismo contemporâneo"?
Giuseppe Cocco: O tema é uma conseqüência da seguinte realidade atual: por um lado, temos a cultura como referente de um novo paradigma social e econômico; por outro, temos um novo tipo de trabalho que, exatamente, deriva desse novo paradigma e o determina. O trabalho, hoje em dia é cada vez mais fragmentado, mas também é cada vez mais livre.
Ora, ao passo que o mercado pretende se impor (ideológica e politicamente) como a esfera de regulação de um novo tipo de trabalho composto por fragmentos que competem entre si, as atividades produtivas aparecem, por trás da fragmentação, como sendo o resultado da combinação e recombinação de singularidades livres. A clivagem entre a condição de fragmento e a de singularidade é extremamente sutil: flexível, modulável e transversal.
Quer dizer, a mesma pessoa, as mesmas atividades podem ser atravessadas continuamente por condições de extrema subordinação (fragmentação) e de absoluta liberdade (singularidade). O desafio é trabalhar no sentido da abertura dessa clivagem em direção a um novo ciclo de conciliação e constituição dos direitos. Para isso, precisamos de uma base comum, ou seja, do reconhecimento das dimensões comuns das atividades colaborativas.
É por isso que a produção da cultura aparece como paradigmática: dela depende a agregação de valor aos suportes materiais e a organização colaborativa e em rede do trabalho. Ao mesmo tempo, a cultura aparece como a fronteira de constituição do comum.

A última etapa do projeto acontecerá no dia 19 de agosto, em Belém. Você poderia fazer um balanço do evento até o momento. Quais foram os pontos principais de discussão?
Cocco: Creio que o seminário está alcançando seus objetivos. Em Vitória, a discussão foi particularmente interessante, pois ela conectou as dimensões gerais desse debate sobre a constituição do comum com os projetos municipais que visam a construção de condições de acesso universal à rede, por exemplo com a construção de um anel lógico que permitirá a conexão gratuita e wireless à internet.
No Rio de Janeiro, podemos averiguar como o momento político e teórico brasileiro -e, mais em geral, latino-americano- indica hoje um horizonte aberto e inovador inclusive para as experiências européias que estavam presentes, da França, da Espanha e da Itália.
Em linhas gerais, me parece que avançamos na direção de uma reflexão que junte essas questões -da cultura, das redes, da comunicação e, pois, da TV digital, da propriedade intelectual, dos movimentos culturais etc.- com as que dizem respeito às novas formas de trabalho que as caracterizam: em particular o que chamamos de “precariado” da cultura.

Como é o trabalho desenvolvido no LABTeC. Quais são os principais temas de discussão no campo da sociologia do trabalho hoje?
Cocco: O LABTeC nasceu há cerca de 10 anos em torno da idéia de que estávamos entrando em um novo paradigma socioeconômico. Entendíamos que o pós-fordismo era e é pós-industrial, ou seja, baseado em um trabalho difuso. Para analisar a nova realidade devíamos pensar as relações entre a nova qualidade do trabalho (a comunicação) e as redes territoriais (o território). Nessa linha, organizamos cerca de 15 seminários internacionais, a coleção “Espaços do Desenvolvimento” (DP&A editora), bem como várias cooperações internacionais e algumas coletâneas.
No que diz respeito aos temas de discussão da sociologia do trabalho, diria que os sociólogos que, ao longo da década de 1990, insistiam em acreditar que a crise era apenas do emprego, devido às fracas taxas de crescimento, estão enfim levando em conta os temas da “precariedade”.
Quer dizer, eles estão considerando que não é o trabalho que está desaparecendo, mas sim que o seu estatuto e o seu conteúdo estão mudando radicalmente. O desafio daqui para frente é a discussão sobre a necessidade de se pensar novas formas de remuneração e proteção social. Nesse sentido, a discussão sobre a renda mínima e a renda universal é fundamental.

O que seria exatamente a renda universal?
Cocco: É uma renda incondicional para todo o mundo, inicialmente para os mais pobres. Sua justificativa está na necessidade de se reconhecer a dimensão produtiva da vida. Seu nível deveria ser pensado de maneira a permitir a reprodução mínima de cada um. Digamos que no Brasil isso deveria ser no nível do salário mínimo.

Somente neste ano, sete fábricas de componentes eletrônicos fecharam as portas na Zona Franca de Manaus em razão da concorrência chinesa. Qual é o impacto da economia chinesa nas relações de trabalho no Brasil e no mundo?
Cocco: Temos aí várias questões. A primeira, mais importante e estrutural, é a da deslocalização. É uma tendência que começou na década de 1970 e que nos últimos anos foi se aprofundando em direção à China, mas não apenas em relação a esse país.
A segunda questão diz respeito ao seguinte fato: se, por um lado, essa tendência levou à explosão do crescimento chinês a patamares extremamente elevados, por outro, ela é profundamente ligada a uma profunda definição das bases de acumulação. O que o país, por exemplo, agrega à fabricação material de um sapato (um tênis Nike, por exemplo) é muito pouco (algo entre 5% a 10% do total), ao passo que entre 90% a 95% do valor é gerado pelas atividades imateriais (cognitivas) de concepção, design, marketing, logística etc.
Ora, essas atividades não se deslocam segundo a mesma lógica que as fábricas. Não são os baixos salários, as infra-estruturas sociais precárias e o controle autoritário das relações de trabalho (ou seja, tudo que a China oferece) que essas atividades procuram. Elas buscam bacias metropolitanas altamente integradas por redes de circulação que, ao mesmo tempo, são redes de produção.
A terceira questão é a que coloca em xeque o modelo da própria Zona Franca de Manaus -e que atualmente está se querendo multiplicar com as 17 ZPEs (Zonas de Processamento para Exportação) prestes a serem aprovadas pelo Congresso. Não adianta querer juntar baixos custos de mão-de-obra e subsídios fiscais.
Em primeiro lugar, as plantas industriais que assim se desenvolvem não arrastam o desenvolvimento dos territórios, onde na realidade vão funcionar como verdadeiros enclaves.
Em segundo lugar, trata-se de especializações ambíguas em função de baixos custos de mão-de-obra, que não vão na direção de um desenvolvimento endógeno capaz de agregar as atividades materiais e imateriais. Ora, sem essas últimas, não há nem valor agregado (geração de riqueza), nem criação de emprego, que não está mais nas montadoras, mas nos serviços de todos os tipos.

Alguns analistas defendem a criação de uma espécie de ISO para assegurar aos consumidores que determinado produto não utilizou mão-de-obra escrava ou infantil, por exemplo. Qual é a sua opinião sobre a adoção dessa medida?
Cocco: Isso pode ser bom e ruim ao mesmo tempo. Por um lado, é evidente que podemos e temos que ser a favor da implementação de formas de regulação que obriguem as empresas a competir por “cima” e não por “baixo”. Ou seja, competir pela inovação, e não pelo uso de formas de trabalho “indecentes”. Isso, aliás, vale também para as questões do meio ambiente.
Ao mesmo tempo, contudo, precisamos evitar que isso seja usado pelos países mais desenvolvidos como mais uma barreira protecionista de suas indústrias que, no fim das contas, acabaria tendo resultado oposto: travando a modernização da produção nos países emergentes e obrigando-os a especializar-se nas atividades mais tradicionais, nas quais encontramos as formas mais degradantes de trabalho.
Em linhas gerais, o que me parece é que esse debate deve se articular em dois momentos complementares. No nível internacional, no aprofundamento de uma diplomacia Sul-Sul, para que o liberalismo dos países do G8 e mais em geral dos vários órgãos internacionais (Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial etc.) não continue funcionando na geometria variável. E no nível nacional (e regional, da América Latina), para que se pense a erradicação das formas degradantes de trabalho de um outro ponto de vista.
Vamos ver o exemplo dos cortadores de cana. Por um lado, há um certo moralismo por parte dos que enxergam, nos objetivos de produção impostos pelos usineiros, apenas a lógica do patrão. Claro, essa lógica é neo-escravagista. Mas, na realidade, há também uma lógica desses trabalhadores sazonais, que provêm de condições de vida ainda mais duras, e, visando o maior ganho líquido possível, acabam aceitando metas de produção estafantes.
Por outro lado, escamoteia-se o fato mais relevante: que o único jeito de “cortar” essas condições de trabalho dos cortadores implica em uma mecanização do trabalho do campo, que reduziria ainda mais o emprego. Há uma contradição entre condenar essas condições de trabalho e continuar assumindo o emprego como a única maneira de se integrar socialmente.
A verdadeira alternativa está em sustentar o processo de mecanização e assumir, ao mesmo tempo, o desafio de se pensar a distribuição de renda (e o próprio sistema de proteção social) de maneira independente da relação de emprego: por exemplo, massificando ainda mais o Bolsa Família.

Estamos na era da informação e, quanto mais bem educado é um povo, maior é a possibilidade de desenvolvimento de um país. A nova realidade aumentou a distância entre países pobres e ricos?
Cocco: Podemos dizer mais uma vez que a distância aumentou e, ao mesmo tempo, diminuiu. Por um lado, na medida em que o conhecimento é um dos elementos estratégicos do novo regime de acumulação, países como o Brasil, que ainda não conseguiram democratizar seu sistema educacional, vêem aumentar as dificuldades para se posicionar no novo contexto global. É mesmo que constatamos ao falar, antes, da China. O Brasil perde as plantas de fábrica sem especializar-se na produção do intangível (conhecimento, tecnologia etc.).
Por outro lado, a “era da informação” é, na realidade, uma era das redes e, dentro da dinâmica do trabalho colaborativo em rede, é o próprio conceito de conhecimento e de educação que muda. Seja do ponto de vista de como ele se propaga, seja do ponto de vista de como ele se produz e reproduz. As redes se integram sem respeitar fronteiras, de maneira horizontal e difusa -rizomática. Elas atravessam os muros das universidades, dos bairros, das regiões e dos países. E esse movimento encolhe as distâncias.
São esses movimentos contraditórios e paradoxais que definem a globalização como um não-lugar, como um espaço policêntrico, no qual centro e periferia se misturam sistematicamente. As contradições e os conflitos estão todos dentro desse novo espaço, por mais fragmentado e desigual que seja.

De acordo com a ONU, o nível de urbanização mundial ultrapassou os 50% em 2007. Qual o impacto desse quadro para as relações trabalhistas? A tendência é o aumento da informalidade e da precariedade?
Cocco: Isso não é novidade para o Brasil. Há um discurso que apreende a dinâmica das grandes metrópoles nos mesmos termos que se discute a questão ambiental, o efeito estufa e o aquecimento global. As metrópoles seriam como que um “câncer”, algo que precisaríamos extirpar, e com elas os pobres que as habitam e as constroem.
Os conservadores não abrem mão do velho sonho de “expulsar” os pobres, colocá-los naqueles “bantustan” edificados, não por acaso, pelo regime sul-africano do apartheid. Mas as críticas de esquerda acabam, paradoxalmente, não sendo muito diferentes. Trata-se sempre de “eliminar” os “slums” (favelas), mesmo que isso passe pela erradicação da pobreza.
Ora, nesse sentido, a pobreza não deixa de ser apreendida como uma doença, cujo combate nos faz pensar na higiene, do mesmo modo que essa nos faz pensar na eugenia, a mãe de todos os racismos científicos.
Mike Davis explicita a dimensão negativa da urbanização, fazendo abertamente referência a uma degradação social e urbana que corresponderia a um tipo de “brasilianização” do mundo, no livro “Planeta Favela” (Boitempo, 2006). Nisso, o autor se associa àqueles setores da elite brasileira que não abriram mão do sonho de remover as favelas e os pobres de volta ao campo da invisibilidade.
Eu não compartilho dessas visões. Pelo contrário, pois nas metrópoles brasileiras encontramos elementos ambíguos e dramáticos de um único processo. Há, por um lado, a pobreza, a miséria, a informalidade, a violência e o crime do poder; mas, por outro, encontramos um gigantesco reservatório de mobilização produtiva, cujo potencial se exprime, por exemplo, na capacidade que a multidão metropolitana mostrou ao construir seus espaços habitacionais de maneira independente, apesar das péssimas condições materiais.
Esses dois lados estão dramaticamente ligados (uma ligação que passa pela quase guerra civil), mas é claro também que é na inflexão dessa dinâmica e dessas ambigüidades -e não contra elas- que precisamos apostar. Aliás, é exatamente nas metrópoles brasileiras e em suas periferias que se encontram os maiores recursos produtivos a serem mobilizados na economia das redes. A mobilização produtiva da metrópole indica um novo terreno constituinte de radicalização democrática, do qual os movimentos culturais das periferias são a maior expressão.

Como reverter a tendência à informalidade e à terceirização. Quais são as possíveis saídas para esse problema?
Cocco: A questão não é como “reverter” a informalidade, a terceirização e a precarização, e sim como deslocar o problema. Parte dele é o fato das novas capacidades técnicas (informacionais) que o capital tem de usar as diferentes condições sociais e níveis de desenvolvimento para incluir (colocar para trabalhar) sem por isso integrar socialmente, fragmentando a relação salarial do ponto de vista do que ela representava em termos de conflito entre capital e trabalho.
A outra parte disso é o fato de que a saída para além da sociedade salarial acontece na continuidade inercial de suas instituições. Essa continuidade das instituições oriundas da relação de emprego faz com que, por um lado, todo o sistema de proteção social continue a organizar-se em função de uma relação de emprego que não para de encolher. Por outro, isso faz também com que a multiplicidade das condições de trabalho seja reduzida, no plano da proteção e da formalidade, à grande clivagem que opõe quem está dentro a quem está fora.
Precisamos, pois, trabalhar para a constituição de um novo pacto, de um novo sistema de proteção, que ultrapasse e desloque essa clivagem. O problema não é ser flexível, mas não ter proteção.

Em "Glob (AL): Biopoder e Luta em uma América Latina Globalizada", você afirma que vivemos uma época de transformação e de possibilidade de uma nova ordem de valores e instituições, radicalmente democráticos, na qual a forma de governar está mudando, com maior participação dos movimentos populares. Mas, considerando as questões relativas ao trabalho, como se daria essa transformação? É possível resistir às pressões de instituições internacionais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), por exemplo?
Cocco: É possível resistir, sim, às instâncias oligárquicas de governo da globalização. É possível e, sobretudo, necessário, pois não há alternativa. Sem essa desconexão, haveria conseqüências sociais e econômicas ainda piores, e isso levaria a quê? A um soberanismo impotente, que só encontraria espaço nas brigas com a Bolívia ou a Venezuela.
Trata-se de governar a interdependência, e o governo Lula tem feito avanços importantes nesse sentido. Hoje em dia, os constrangimentos externos são bem menos importantes do que as questões internas da democratização, da distribuição de renda e do meio ambiente.
Trata-se de ver que distribuição de renda (políticas sociais) e mobilização política (radicalização democrática) não constituem mais elementos sucessivos às taxas de crescimento (política econômica) e à tomada de decisão (política de Estado). A qualidade da política econômica e da tomada de decisão do governo depende das políticas sociais e da radicalização democrática, pois essas são imediatamente produtivas.

O livro foi escrito em 2005, em um período de "busca de novos equilíbrios internacionais e de experimentação de transformacões político-sociais na América Latina", como você escreve. O que mudou nesses dois anos? Como você vê a proposta de mudança na CLT?
Cocco: Vejo a proposta de mudança da CLT como uma armadilha. É o velho discurso. A informalidade existe porque os custos da formalização são excessivos e acabam travando o processo de integração formal da maioria. É a velha tática de querer colocar aqueles que estão fora contra aqueles que estão dentro.
Contudo, se os sindicatos e os movimentos sociais organizados pensam que a resposta deve se resumir na mera defesa da CLT e do status quo, eles estão errados, pois vão entrar no mesmo esquema.
Do ponto de vista da transformação, mais uma vez, é preciso deslocar essa armadilha, pensar e constituir o comum. Isso passa pela discussão sobre a distribuição de renda, como já disse, em direção a uma renda universal.

Ana Paula Conde
É jornalista, mestre em ciência política pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutoranda em história, política e bens culturais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Revista Trópico

Outras Vidas Além da Minha - Emmanuel Carrère


Extraordinários seres comuns
Por Leneide Duarte-Plon

O escritor Emmanuel Carrère aborda pequenas e grandes tragédias, como a do tsunami, em "Outras Vidas Além da Minha"

Ele é escritor, cineasta e roteirista. Seu novo livro, “D’Autres Vies Que la Mienne” (Outras Vidas Além da Minha), elogiadíssimo pela crítica, de uma delicadeza extraordinária, luminoso, apesar de tratar de histórias trágicas, já é apontado como um dos livros do ano, sério candidato a um dos prêmios literários do outono francês.
Nele, Emmanuel Carrère, 51 anos, está presente como o narrador-escritor, como em seus dois livros anteriores ("L’Adversaire" e "Un Roman Russe"), mas o livro gira em torno de outros personagens. Na primeira parte, um casal de franceses que perde a filha de quatro anos no tsunami ocorrido no Sri Lanka, do qual o próprio autor foi testemunha, quando estava em férias com a mulher e os filhos em dezembro de 2004. Na segunda parte, os personagens são dois jovens juízes que travam uma batalha diária por pessoas humildes, vítimas de endividamento devido a falhas na lei, o que faz que muitas vezes a Justiça favoreça as empresas de crédito.
Etienne e Juliette são os dois juízes chamados de “vermelhos” pelos colegas conformistas por tomarem a defesa dos mais fracos. Etienne venceu a luta contra um câncer na adolescência, mas perdeu uma perna. Juliette sucumbe à doença. São as duas vidas que ocupam a segunda parte do livro.
“Mesmo se o livro trata de coisas dolorosas, difíceis, não o escrevi com dúvidas quanto à minha legitimidade, meu direito de escrever. No fundo, não é um livro escrito contra, é um livro desejado pelas pessoas envolvidas na história. Logo, mesmo se o que ele narra é duro, foi escrito num relativo conforto psicológico, o que era novo para mim”, diz Carrère, em entrevista a Tropico, em seu confortável apartamento parisiense.
A seguir, ele discute o termo "autoficção", usado por alguns autores franceses para definir relatos autobiográficos e diz que deseja ser lido pelo maior número possível de pessoas. "Tenho um desejo: que o que escrevo possa atingir leitores não necessariamente atentos à literatura", afirma.
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"Outras Vidas Além da Minha" foi escrito a partir de fatos reais trágicos, mas, apesar disso, o livro foi qualificado por um crítico como “surpreendentemente luminoso”. Ele fala de perdas, de doenças, mas também de uma tomada de consciência de que a felicidade existe e está ao nosso alcance, tratando de histórias reais. Você chegou a hesitar em escrevê-lo?
Emmanuel Carrère: Não, não cheguei a hesitar. O livro tem duas partes, uma mais longa que a outra. A primeira trata do tsunami, do qual fui testemunha há quatro anos. A segunda parte gira em torno de um drama mais pessoal e mais banal de certa forma: a morte de minha cunhada, Juliette, uma jovem de 33 anos, que tinha câncer. Sobre isso, não sei se eu teria pensado em escrever.
Mas, como conto no livro, houve esse encontro com o colega de Juliette, o juiz Etienne Rigal, que tinha tido um câncer também e no dia seguinte à morte nos falou dela de uma forma tal, por duas horas, que saí de sua casa totalmente fascinado por tudo o que ele havia contado, a tal ponto que disse a mim mesmo: “Tenho que escrever um livro, um relato para tentar passar a emoção que senti ao escutar Etienne”.
Foi apenas isso. E acho que o livro cumpre o programa que tracei. E o que demonstra que não hesitei muito é que, no fim dessa visita, esse homem que me conhecia como escritor se virou e me disse: “Essa história talvez seja para você”. Na mesma noite pensei: “Ele me encomendou um livro, tudo bem”.
Falei com minha companheira, que era uma das pessoas envolvidas na história, e depois do enterro voltei a falar com Etienne para lhe dizer que eu estava de acordo, que ia começar a ouvir o que ele tinha a contar, sem saber se daria um livro. Falamos muito, nos tornamos muito amigos e de certa maneira essa decisão foi rápida, enquanto que para outros livros foi complexa, longa, difícil, o contrário do que aconteceu com os dois outros livros meus, anteriores a esse ("L’Adversaire" e "Un Roman Russe").
Eles tratavam, ambos, de histórias reais com personagens reais. E eu estava muito atormentado pela pergunta seguinte: “Com que direito eu escrevo essa história?”. Mas, para esse livro, não tive essa dificuldade, porque eu tinha a impressão que esse direito me tinha sido dado primeiramente por Etienne, depois pelo marido de Juliette, Patrice.
Mesmo se o livro trata de coisas dolorosas, difíceis, não o escrevi com dúvidas quanto à minha legitimidade, meu direito de escrever. No fundo, não é um livro escrito contra, é um livro desejado pelas pessoas envolvidas na história. Logo, mesmo se o que ele narra é duro, ele foi escrito num relativo conforto psicológico, o que era novo para mim.

Seu livro trata tudo com uma delicadeza impressionante. Seus personagens seriam como heróis, mesmo não tendo realizado feitos heróicos?
Emmanuel Carrère : Concordo plenamente. E é por isso que a delicadeza que você atribui a esse livro não foi um grande esforço, porque eu tinha por essas pessoas um sentimento de simpatia, de amizade, de respeito e mesmo de admiração que fez com que se estabelecesse uma relação de confiança particular e muito grande.
Etienne veio me pedir para escrever, mas Patrice me demonstrou uma confiança extraordinária, e a minha preocupação maior era de não traí-lo, de ser digno dessa confiança, e acho que fui. Eu o conhecia muito pouco, ele tinha perdido sua mulher poucos meses antes e fui vê-lo para dizer: “Sabe, quero escrever um livro sobre sua mulher”. Outras pessoas teriam dito: “Não acho de muito bom gosto”.
O livro não foi escrito num espírito de contradição, de ambiguidade, de dificuldade, foi feito de maneira natural.

Você encontrou pessoas que viveram tragédias e tiveram força para superá-las. Por exemplo, os pais da pequena Juliette, morta no tsunami, e o juiz Etienne Rigal. Mas também a juíza Juliette, que assumiu todas as suas escolhas e teve a coragem e a sabedoria de construir sua felicidade contra todas as circunstâncias adversas. O que eles lhe acrescentaram?
Carrère: Muita coisa. Esse livro me transformou, mesmo eu não sendo o personagem principal, mas o narrador e uma testemunha muito presente. Tenho a impressão de que esse personagem, quer dizer, eu, mudou bastante entre o início e o fim do livro. A mudança se deu graças a esses encontros e à atenção recíproca. Fui durante quase toda a minha vida, o que testemunham os meus livros, alguém muito atormentado, muito dividido.
Fui poupado das grandes dores da vida: não conheci até hoje perdas importantes, não conheci a doença, não tive verdadeiras dificuldades materiais. Tive uma vida ao mesmo tempo muito protegida e difícil, porque muito neurótica. E, quando digo muito neurótica, não o digo com menosprezo, como se dissesse que há as verdadeiras misérias da vida e há as falsas.
Não penso que é uma infelicidade falsa. Penso que a neurose também é uma grande fonte de infelicidade. Mas tenho a impressão que essa espécie de confronto que se produziu, por acaso, com essas desgraças e a maneira como as pessoas que conheci as enfrentaram me deram de repente consciência da precariedade da vida e me revelaram uma disposição para a felicidade que eu não sabia que possuía. Esse livro foi para mim uma experiência muito decisiva e muito positiva.
Tenho a impressão que escrevê-lo me fez muito bem. Tem também uma coisa comum a todos os personagens do livro: eles são todos, sem exceção, capazes de amar, de amor muito grande, muito fiel, constante, feito de escolhas. E isso é um dado comum a todos, aos pais de Juliette, a Juliette e Patrice, a Etienne e sua mulher, e na amizade que liga Etienne e Juliette.
Com o distanciamento, percebi que é um livro sobre o casal e sobre o que pode ser a beleza e a força do casal. E eu escrevera muito sobre a dificuldade que havia para mim em fazer parte de um casal. Sei que a consciência da existência desses casais tornou a minha vida mais fácil.

Você disse que o livro não é autoficção uma vez que é 100% real, logo a ficção é reduzida a zero. A autoficção existe realmente?
Carrère: Sou reticente a respeito dessa palavra, não ao que ela pretende significar. Acho que existe hoje na França, e não somente na França, uma produção que não é romance no sentido estrito. Muitas vezes se escreve a palavra “romance”, e penso que é um certo abuso. Não é grave, não deve haver uma querela de palavras. Sei qual é a origem da palavra autoficção, inventada nos anos 80 pelo professor e escritor Serge Doubrovsky. Mas me parece uma palavra pouco feliz.

Essa palavra só é utilizada na França ou foi adotada no mundo todo ?
Carrère: Não sei se é somente na França. Pode ser que eu pense que há uma tendência generalizada quando se trata apenas de meu gosto particular, mas os livros que mais me agradaram nos últimos anos foram livros autobiográficos. Por exemplo, o livro de Daniel Mendelsohn, “Les Disparus” (Os Desaparecidos), que acho magnífico. Ou então o de Joan Didion, "The Year of Magical Thinking" (O Ano do Pensamento Mágico), no qual ela conta o luto por seu marido. São livros autobiográficos.
Mendelsohn é o narrador de seu livro, ele está presente, mas não fala de si mesmo, fala muito da história de sua família, da grande história. Quanto a mim, sou mais sensível a livros como esses do que à maioria dos romances clássicos. Mas não tenho nenhuma posição teórica contra o romance, nenhuma crítica a sua perda de influência...

Mas você não tem vontade de escrever romances?
Carrère: Talvez volte a fazê-lo um dia, não sei. Por enquanto, não tenho apetite pelo romance, nem como autor, nem como leitor. Tenho a impressão de que as coisas que mais me interessam estão nesse espaço que é muito amplo, pois inclui tanto narrativas autobiográficas e relatos que não são autobiográficos, mas relatos da vida de outra pessoa ou mesmo livros de pesquisas históricas. Pessoalmente, isso me atrai mais, atualmente.
Acho a palavra "autoficção" redutora, porque me leva a pensar na palavra "ficção" no sentido mais clássico, isto é, “relato de acontecimentos imaginários”. E a autoficção me parece ser algo que precisamente não é ficção. Portanto, acho a palavra inapropriada.
De qualquer forma, é por isso que tenho tendência a recusá-la para qualificar o que eu escrevo, pois não é ficção. Isso não impede que sejam livros que utilizam todos os recursos do romance, como o suspense, tudo o que é usado para manter a atenção do leitor, os flash-backs e outros recursos. Utilizo as técnicas do romance com o maior prazer, sem escrúpulos. Meus livros não são de forma alguma documentos brutos.

Existe a pena e a técnica do romancista, mas trata-se da vida verdadeira...
Emmanuel Carrère : Sim, mas isso tem um preço, que são pequenas inexatidões. Seria mais ou menos como quando fazemos um filme documentário e o montamos. Podemos aproximar dois momentos de uma conversa, que, na realidade, estavam separados por horas ou mesmo por dias. Existe uma construção, uma montagem, mas todo o material continua sendo autêntico. E, mesmo no trabalho de montagem, tenho a preocupação de ser fiel, de não trair.

Parece-me que, para a criação de seus livros, você realiza também um trabalho prévio muito próximo do jornalismo, entrevistando pessoas, apurando fatos etc. Estou correta?
Emmanuel Carrère : Exatamente. Durante mais de 15 anos escrevi romances. E há uns dez anos escrevo conforme esse modelo, que integra em grande parte um trabalho de jornalista. “L’Adversaire” foi o primeiro nesse gênero e foi muito influenciado por "A Sangue Frio", de Truman Capote, que é o grande protótipo desse tipo de livro.
Capote teorizou muito sobre o que ele chamou de “non-fiction novel”, que é uma expressão um tanto pesada, mas me parece mais apropriada que "autoficção". Isso corresponde ao que faço, é romance, mas não é ficção.
“L’Adversaire” parte de um crime e fiz um trabalho de investigação muito longo, complicado, não materialmente, mas sobretudo do ponto de vista psicológico, pois o contato muito próximo com um criminoso que cometeu atos terríveis é muito difícil. Isso implica problemas humanos, morais. O livro foi difícil de fazer. Mas tenho a impressão que qualquer coisa mudou em mim, como se fosse um caminho sem retorno. Mas, se amanhã tiver vontade de escrever um romance, não tenho nada contra. Eu o escreverei.

Você disse numa entrevista que a neurose protege da infelicidade verdadeira, pois ela faz a pessoa pensar que é imortal. No livro você diz que tem “boas razões de pensar que a vulgata psicanalítica sobre os benefícios da palavra contrariamente à devastação do silêncio é verdadeira”. Qual é o lugar que a psicanálise ocupa na sua vida?


Carrère: Li bastante Freud, que aprecio muito como escritor. Lacan é muito difícil para mim. Freud é um escritor magnífico. As histórias que ele relata nos "Cinco Casos" são textos de um grande autor.
Eu fiz análise durante cerca de dez anos, com algumas interrupções, com três analistas diferentes. Parei há uns três anos. Existe um discurso contemporâneo antipsicanálise, mas eu sou um cliente satisfeito. A psicanálise me fez muito bem, me ajudou muito, coincidiu com a escrita dos meus três últimos livros.
Acho que ela me ajudou a dar um passo à frente. Não posso dizer que a psicanálise é uma panacéia, que ela resolve tudo, claro que não. Mas estou convencido de que ela foi fundamental para mim. Posso mesmo dizer que me salvou.
No meio literário parisiense já se aposta que seu livro estará entre os premiados de 2009 e até que será o livro francês de 2009. Qual a importância dos prêmios literários para um autor?
Carrère: Não sei desses comentários dos meios literários parisienses. Não penso que posso ganhar nenhum prêmio porque meu livro saiu no início de 2009, e não em setembro, data dos lançamentos maciços que antecedem os prêmios. Além disso, não é um romance. Mas fico feliz com o que pode aumentar a penetração de um livro. Não vou bancar o difícil. De maneira geral, tenho vontade que meus livros sejam lidos, faço o possível para isso. Mesmo se eles tratam de coisas muito complexas, tenho o cuidado de escrevê-los com simplicidade, da maneira mais clara possível, para mim isso é um objetivo literário.
Há uma frase de Hemingway de que gosto muito. Ele dizia: "Conheço tantas palavras difíceis quanto os outros, mas faço um esforço danado para não usá-las”. Este é um pouco o meu credo de escritor. Quando eu era jovem, era totalmente influenciado por Nabokov, meu herói literário. Há uma grande sofisticação nele, uma relação muito aristocrática com a literatura. Tenho um desejo: que o que escrevo possa atingir leitores não necessariamente atentos à literatura, quero escrever coisas que podem atingir a quem lê dois ou três livros por ano.
Mas os prêmios literários são importantes para ampliar o público. O leitor do prêmio Goncourt não lê necessariamente vários livros por ano...
Carrère: Sou fatalista. Mas claro que isso me daria prazer. Mas, se não for agora, será de outra vez, não é grave. Esse livro já encontrou um público, mas o prêmio literário é importante, claro. Há uma frase no livro, desculpe me citar, mas que me agrada muito. Ela diz: “Hoje dou mais valor ao que me aproxima dos outros homens do que ao que me distingue deles”.
Passei uma grande parte de minha vida, como muitos de nós, a dar enorme importância ao que me diferenciava dos outros, ao que tenho de particular. Vem um momento na vida em que se tem a impressão de que o que é mais importante é exatamente o que é comum, banal, partilhado, o que nos faz iguais aos outros.
Cito a propósito de Etienne essa frase muito conhecida, atribuída a Montaigne, mas que creio vir de mais longe, de um autor latino: “Sou um homem, e nada do que é humano me é estranho”. Isso é um clichê, mas penso que é um resumo da filosofia. Tudo o que se pode fazer é se esforçar para que seja verdadeiro.
Você tem um projeto de escrever sobre o escritor russo Edouard Limonov. Nesse livro, é a Rússia dos últimos anos que lhe interessa de fato?
Carrère: Entre outras coisas. É uma trajetória que inclui os últimos 60 anos. Ele nasceu logo depois da vitória de Stalingrado, está vivo, é uma espécie de agitador político um pouco bizarro. Mas não é um cara por quem tenho uma estima sem limite.
Mas é uma biografia ?
Carrère: É uma biografia à minha maneira. Ele viveu nos anos 80 na França, eu o conheci e depois voltei a Moscou para fazer uma reportagem sobre ele, há dois anos. Passei uns 15 dias com ele. Foi interessante.
Mas é uma biografia autorizada ?
Carrère: Não tem a menor necessidade de ser autorizada. Limonov é um personagem público, que escreveu muita coisa sobre sua vida em seus livros e não hesitarei em usar essas informações. Se amanhã eu quiser escrever um livro sobre Sarkozy, por exemplo, não tenho necessidade de ter a permissão de Sarkozy.
Se falo de uma pessoa que não tem uma vida pública, com quem tenho laços de amizade, como Etienne ou Patrice, me parece moralmente indispensável ter o acordo deles.
Se falo de alguém como Limonov ou de um homem político, posso pedir sua permissão, mas isso ela não é necessária, uma vez que se trata de personagem público. A Rússia dos últimos 20 últimos é um assunto que me fascina. Talvez por razões familiares, já que minha mãe (Hélène Carrère d'Encausse) é historiadora e a grande especialista francesa da Rússia.
Tenho a impressão de que vivemos num país que declina aos poucos e onde vivo uma vida bastante confortável, bastante protegida. Não temos a impressão de que a França está no meio do turbilhão da história. Na França, isso foi no passado. A Rússia é um país que viveu os 70 anos de experiência comunista, uma coisa assustadora, mas gigantesca. A saída do comunismo e o que se passa há 20 anos é também uma convulsão histórica gigantesca.
Mas temos a impressão que esse trabalho de análise da saída do comunismo não foi ainda realizado...
Carrère : Há cerca de dez anos eu vou à Rússia. No meu livro anterior “Un Roman Russe” conto detalhes desta história. Fiz um filme no país, passei muito tempo, e vou lá duas vezes por ano, por cerca de 15 dias. Antes, eu tinha ido uma vez quando criança, com minha mãe.
Depois, me afastei, talvez porque era o território da minha mãe. Por fim, é como se eu tivesse aceito uma herança que era também minha. Tudo isso é contado em detalhes no livro, que é também o livro do fim de minha psicanálise e no qual tenho a impressão de ter acertado contas, como se eu tivesse feito um grande pacote de neuroses que coloquei na beira da estrada para poder continuar meu caminho de maneira mais leve.
Amo a Rússia. É um país brutal, violento, prefiro mil vezes morar na França, evidentemente. Mas acho a Rússia fascinante, há ali uma grande intensidade emocional, as relações humanas são sempre numa espécie de relação de verdade, de escalada emocional. Observo o que se passa nesse país, extremamente caótico, complicado e difícil de analisar, e não tenho a pretensão de fazê-lo, mas pretendo tentar contar algumas coisas. Isso me fascina.
Quando o livro será publicado?
Carrère : Isso vai me tomar o tempo que for preciso, sou assim. Comecei, mas é um trabalho longo. Limonov tem 65 anos, aconteceram muitas coisas na sua vida, ele tem um pouco de um aventureiro...
Seus livros foram traduzidos em português e você foi ao Rio em 2005, para um festival de cinema, apresentar seu filme “La Moustache”, feito a partir do romance homônimo. Você conhece a literatura brasileira ou portuguesa?
Carrère : Honestamente, não muito. Fui duas vezes ao Brasil, uma delas quando tinha 20 anos. Tinha um amigo que trabalhava num convênio de cooperação franco-brasileira em Brasília. Aproveitei a oportunidade de ter onde me hospedar e passei um mês e meio de férias no país. Viajei um bocado, foi fascinante.
Depois, voltei em 2005 para o festival do Rio. Mas não conheço bem o Brasil, não falo uma só palavra de português. Conheço um pouco a literatura brasileira, como Jorge Amado, mas não tenho um conhecimento aprofundado.
Li alguns romances de Saramago, que admirei muito, mas ao mesmo tempo é algo distante de mim. Todo mundo tem seus tropismos, e o meu é o mundo do Leste europeu, que me atrai como um ímã.
Que lugar o cinema ocupa em sua vida atualmente? Você tem outros projetos de direção de filmes ou de roteiros?
Carrère: Fiz um filme ("La Moustache", 2005) de ficção e um documentário ("Retour à Kotelnitch", 2003). E prefiro o documentário. "La Moustache" é um filme que fiz com prazer, adaptado do livro que eu escrevi há 20 anos. Acho o livro melhor que o filme, funciona melhor. O documentário é menos conhecido, mas gosto mais dele.
Você tem outros projetos para o cinema?
Carrère: Não. Continuo a escrever roteiros regularmente. Ganho minha vida assim há muito tempo. Gostaria de fazer um novo filme como diretor, mas sou incapaz de fazer várias coisas ao mesmo tempo. Quando faço uma coisa, faço somente aquilo.
No início de março, você foi a Nova York com mais dez autores franceses para promover a literatura francesa. Entre esses “french writers”, quais os que você lê e aprecia?
Carrère: Há alguns com quem tenho relações de amizade. Leio os franceses contemporâneos com prazer.
Você declarou que gosta da literatura de Michel Houellebecq. É seu autor francês preferido?
Carrère: Não sei se é meu autor preferido, mas acho que ele é incontestavelmente um escritor importante. Há posições muito hostis a ele e posso compreender, não é uma literatura simpática. Mas não há dúvida de que é um escritor importante. É como se existisse uma obra na qual um momento da história de um país, de uma época se encontrasse, isso fala de algo, de um momento histórico, sociológico. E penso que ele diz isso com muita força, mesmo se é desagradável. Houellebecq me impressiona, pela visão que ele tem do mundo, do momento de civilização que a gente atravessa. Uma visão nada simpática, nada atraente...
Ele é um personagem nada atraente também.
Emmanuel Carrère : Sim, ele faz um tipo e um gênero desagradável. Houellebecq é um "rock star". Ele faz um gênero. Eu o conheço pouco, encontrei-o duas vezes, mas acho que ele é bastante importante.

Revista Trópico

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Maria Rita Kehl - Tecendo a vida adoidada


Tecendo a vida adoidada
Para a psicanalista Maria Rita Kehl, a forma como a sociedade lida com o tempo só faz bem para a indústria de antidepressivos


Por: Paulo Donizetti de Souza

Publicado em 01/05/2008
Maria Rita Kehl é polivalente. Aos 56 anos, doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP, atende em seu consultório desde 1981. Antes, já freqüentava o mundo da literatura com o livro de poesias Imprevisão do Tempo (1979), experiência que repetiria com O Amor é uma Droga Pesada (1983) e Processos Primários (1996). E, além de se dedicar intensamente ao complexo universo dos indivíduos, costuma passear os olhos clínicos pelo mundo e transformar em ensaios questões coletivas da humanidade (leia em www.mariaritakehl.psc.br). Há cerca de um ano tenta terminar um novo livro, sobre depressão. Para tanto, utiliza as poucas horas vagas, e às vezes ainda tem de ceder um pedacinho delas para entrevistas como esta, feita em “prestações”, nos dias 22 e 26 de abril. Talvez seja também ela uma vítima desse tempo, que segundo Antonio Candido, antes de ser apropriado pelo ritmo alucinante do capitalismo, deveria ser tratado como o tecido da vida. Mesmo pressionada pelo relógio, ela conversou com desenvoltura com a Revista do Brasil sobre processos de comunicação, política, família, juventude, amor. Pena que o tempo acabou.

Em casos como o da menina Isabella, é o interesse do público por tragédias que move a mídia ou o exagero na cobertura que move o público?
As pessoas se interessam pela tragédia há 3.000 anos. Esse assassinato, em particular, inquieta e satisfaz as pessoas. Quase todo mundo conhece o sentimento de irritação extrema, de não conseguir lidar com as emoções. Então, a primeira reação é de prejulgar, é de fúria, é “eu jamais faria isso”, “eu não conheço esse sentimento”, “eu sou completamente diferente”... O que não é verdade. No inconsciente, a gente reprime sentimentos parecidos. Outra coisa é a possibilidade de haver um sentimento contra a figura da madrasta. Ser mãe biológica não é garantia de bons sentimentos, mas colocamos a mãe sempre num altar e usamos a madrasta para representar o lado escuro da mãe, desde os contos de fadas. E tem, ainda, um pouco da idéia de que família boa é aquela que tem o pai e a mãe biológicos e os filhos. Casou de novo, “olha aí, está vendo...” E como a gente está numa sociedade muito carente de valores públicos, em que pouco se faz em nome do bem comum, a família está muito idealizada. Um crime dentro de uma família, ou a suspeita de, deixa as pessoas indignadas e, como tudo o que nos enfurece, também excitadas e curiosas.Mas por que não quiseram influir nos outros casos? Por que contra as outras atrocidades e impunidades o povo não se mobiliza com tanta energia? As pessoas não se mobilizam contra crime que envolve criança pobre. Antes daquela brutalidade com o menino João Hélio, no Rio (em fevereiro de 2007, que gerou muitos protestos, comoção social), havia acontecido a chacina em Nova Iguaçu e Queimados, na Baixada Fluminense (em março de 2005), em que policiais abateram 29 pessoas na rua, incluindo crianças e adolescentes. Não houve grandes protestos.

E a exploração pela mídia também teve dimensões diferentes.
É evidente que os temas de grande interesse popular são sempre os mesmos, erotismo ou pornografia, crime, violência, acidentes, porque são os grandes temas do inconsciente. Por que quando há um atropelamento a maioria das pessoas pára para olhar? É porque a morte nos fascina. A morte, a violência fascinam, como todos os temas ligados àquilo que é mais reprimido na gente. Mas não há espaço de destaque para o assassinato de criança negra e pobre.

É por isso que o público aceita, por exemplo, que o autor da novela da noite leve o grande vilão, um crápula que roubou tudo da mãe de seu filho, a se redimir, quem sabe até ficar com a moça?
Isso tem a ver com essa tese de que os valores sentimentais é que contam. Impressiona muito nas novelas que seja raro o bandido ser punido na forma da lei. No final, ou morre num desastre, ou alguém o mata – é a vida que castiga. É raro uma novela terminar com o bandido preso e julgado. No Brasil, no nosso imaginário, primeiro a gente ouve muito que “Deus vai castigar”. E há essa pressa em perdoar. Basta ver o modo como terminou a ditadura: terminou, terminou, não se fala mais nisso. Não houve pressão para punir os ditadores. Agora acontecem algumas indenizações, mas não houve julgamento. Todo mundo foi perdoado e nem sequer pediu perdão. Nem se dá nome aos responsáveis. O brasileiro tem horror ao enfrentamento do conflito.

Isso é sintoma de depressão? Ou apenas omissão?
Isso produz depressão. Nós ficamos, digamos, fatalistas, “deixa Deus resolver nossos problemas”. É um pouco conseqüência daquilo que o Sergio Buarque detectou também no que chamou de homem cordial. E também não é omissão, tem a ver com o coração. É a idéia de que valores da vida privada é que regem a vida pública, os valores do sentimentalismo ou mesmo a cordialidade que faz com que o povo comum diga “ah, vamos perdoar ele, não vamos mais nos ocupar disso, vamos curtir a vida, bola pra frente”. Cordialidade é isso, os valores do coração. Os sentimentos regem a vida pública. O que pode dar em linchamento também.

Você acha que a competitividade nas várias circunstâncias da vida esteja levando a algo epidêmico?
Não seria epidêmico, mas trato a depressão como um sintoma social, e o principal fator contemporâneo que produz o aumento da depressão é o aumento da velocidade com que a gente vive nosso tempo. Eu mesma estou aqui contando os minutos (daqui a pouco tenho de atender). É como se a gente tivesse uma urgência temporal que faz com que a vida perca completamente o valor. O tempo da experiência, da reflexão, todo o tempo da chamada vida subjetiva está sendo atropelado pelo tempo do capitalismo. Esse é o primeiro fator da depressão, essa desvalorização do tempo como tempo de vida. Como diz o professor Antonio Candido: “O capitalismo se considera o senhor do tempo. Essa idéia do ‘tempo é dinheiro’ que rege a nossa vida é uma brutalidade. O tempo é o tecido da nossa vida”. Então, se você negocia a matéria-prima da sua vida, valendo dinheiro, a vida se desvaloriza. Se a vida se desvaloriza, para que viver? A depressão tem um pouco a ver com isso.

Para se adequar às exigências.
Vivemos numa sociedade do capitalismo avançado, de consumo, toda voltada para a felicidade, para o gozo, para festas. Então, por que há estatísticas sérias da Organização Mundial da Saúde dizendo que a depressão está aumentando e pode vir a ser, daqui a dez anos, a segunda principal causa não de morte diretamente, mas de morbidade?

Em tese, existem melhores condições de vida hoje do que antigamente.
Aparentemente. Mas temos notado uma coisa muito importante. A indústria farmacêutica vem sofisticando, desde os anos 70, as pesquisas de antidepressivos. Existe uma oferta grande de medicamentos e ao mesmo tempo uma divulgação não do remédio, mas da depressão. Você vai a um consultório, a um posto de saúde, e vê na sala de espera uns folhetinhos bem-intencionados perguntando “você tem isso, isso, e isso?” Aí tem uma lista de sintomas que qualquer um em algum momento difícil da vida já sentiu: falta de sono, perda de apetite, desânimo, falta de ar, angústia...

Como alguns horóscopos: qualquer situação se encaixa em qualquer dia para qualquer signo...
Exatamente. Então, tem uma procura enorme por antidepressivos. Li numa reportagem do Valor Econômico que a venda de antidepressivos no Brasil cresce algo próximo a 22% ao ano e movimenta US$ 320 milhões. É muita grana. As pessoas começam a tomar antidepressivo porque estão numa sociedade que não tolera a tristeza, o abatimento, ou que você não esteja sempre apto a achar que a vida é maravilhosa.

Mas precisam recorrer a médicos para usar?
Mesmo que seja um picareta, mas sem receita você não compra. Há médicos convencidos de que você tem de tratar aquilo que a gente chama de “dor de viver” – que é vital no ser humano – com antidepressivo. Até amigos dizem “ah, você tem de tomar um antidepressivo, você está muito caído”. A ideologia é esta: não tente curar suas dores pela reflexão, não dê o tempo que o luto precisa, tome um remédio e toque em frente. O trabalho é cada vez mais competitivo, quanto mais depressa o cara estiver bombando de novo, melhor. E não tem a ver só com trabalho, mas com os imperativos do consumo. É isso que impede que as pessoas tenham o tempo que precisam para se recuperar das quedas, perdas, crises. Tenho observado e conversado com psicanalistas, e há um aumento alarmante de suicídios entre adolescentes, pelo menos de classe média. Alarmante! Não sei se isso significa que os adolescentes estão passando por crises mais graves do que as crises de adolescência de 20 ou 30 anos atrás. A adolescência dos anos 60, 70 tinha um prestígio. O adolescente em crise juntava os amigos para falar, tinha uma certa rede de solidariedade e de interesse, a crise significava que você estava amadurecendo.

Não estou enaltecendo um clube da fossa, como a gente brincava. Mas o adolescente não se sentia um subumano por estar em crise. Hoje não há espaço, amigos e adultos não querem saber. Os adultos vão correndo levar o filho para o psiquiatra porque não sabem como acompanhá-lo solidariamente. Os pais se sentem culpados: “O que eu fiz de errado? Meu filho não está enturmado, não está indo trabalhar, não está indo para a balada”. Quando ele vai para a balada todo sábado, os pais se preocupam porque ele corre outros riscos. Mas quando ele se recolhe no quarto os pais acham intolerável. Tenho um colega que é orientador num colégio de classe alta. Ele me contou que de 40 e poucos adolescentes, meninos e meninas, que naquele ano tinham passado por perdas graves na vida, apenas um diz que conversou com um amigo. Os outros diziam: “Imagina, ninguém quer saber...” O ambiente solidário que permitia contar com os companheiros vai se substituindo por um ambiente de competitividade. Quem fica ou transa mais, quem vai para mais balada, quem é o mais popular. Então, o adolescente que passa por uma crise se recolhe. E ao sofrimento com a própria crise se acrescenta outro – na adolescência muito grave – , que é se sentir por baixo, errado.

E medicação, nesse caso, não quer dizer remédio.
A depressão é um sentimento de empobrecimento da vida subjetiva. Eu não estou falando contra medicação. Mas medicação como panacéia, que dispensa o trabalho de terapia, de a pessoa tentar elaborar o que está acontecendo, acaba favorecendo esse empobrecimento da vida psíquica. O sujeito automatiza alguns comportamentos, consegue estar mais ativo, regular o sono, comer, ir para o trabalho, mas não sabe por que depois de alguns anos continua deprimido. Como diz uma paciente após muito tempo de medicação: “Sou um fantasma que anda; faço tudo, mas não sinto nada. Então, prefiro me arriscar a sentir a tristeza que sentia antes mas falar dela, a ficar nesse automatismo”. É importante redescobrir até o valor da sua tristeza. A tristeza exige um tempo psíquico diferente do tempo do capitalismo. Mesmo o lazer, principalmente entre jovens, está muito dominado pela velocidade, por performance. Tempo é dinheiro, não perca tempo, manda ver. Essa modulação de ritmo, que permite que você tenha em contraposição ao ritmo acelerado do trabalho um tempo do lazer ou do ócio, vai se perdendo. E o que a gente tem como ócio hoje em dia? Deitar no sofá em frente à TV. As pessoas falam: “Ali eu me desligo”. Mas uma parte está ligada, senão você não ficaria vendo televisão; ficaria ouvindo música ou em silêncio, pensando. A televisão reproduz essa velocidade.

E nesta sociedade acelerada o amor também estaria mais veloz? Casais se separam mais rapidamente, aumenta o número de casamentos. Esse fenômeno não leva a um novo perfil da família?
Eu não gostaria de abordar as transformações do amor fazendo uma defesa da antiga família patriarcal, monogâmica, fechada sobre si mesma etc. Freud começa a observar o sofrimento das mulheres histéricas, dos neuróticos, dos filhos incestuosos grudados na saia da mãe no apogeu dessa família perfeitinha, desse casamento-para-sempre que é a família moderna burguesa. Isso vem do século 19 até metade do 20. É uma família construída para manter uma tal estabilidade e uma tal garantia de que os filhos vão herdar não só o patrimônio, os padrões de comportamento. Essa idéia dos pais dentro de casa, a mãe dentro de casa, dedicada aos filhos, é um celeiro de neuroses.

O que vem substituindo essa família?
Aí tem uma contradição interessante. Por um lado, com os valores da vida pública tão esfacelados, o amor virou o grande valor da vida individual. A gente o idealiza. Esse casamento burguês (em termos de conduta, não de classe) antigo não é necessariamente por amor. Tem a ver não raras vezes com conveniência. Claro que podia haver amores e paixões, mas o casamento se mantinha muito além da duração do amor, porque era a regra. Mesmo depois do divórcio já legalizado, a lei moral era manter esse casamento até a morte. Hoje essa lei moral não existe e o casamento passa a ser mais baseado no amor e paixão. O que por um lado é muito interessante porque as pessoas buscam os parceiros que realizam suas fantasias amorosas, o seu erotismo, as mulheres têm liberdade sexual, elas podem escolher, “com esse não deu, vou com aquele”. Tem um lado mais legal principalmente para as mulheres. Acabou a esposa que casa virgem com o único homem da sua vida e passa a vida inteira sem conhecer a felicidade sexual. Às vezes o homem achava que estava autorizado a procurar outras, ela não.

Agora, o amor virou uma espécie de mercadoria também. Sexo e amor já estão tão associados ao discurso das mercadorias que viraram uma espécie de valor agregado delas. As pessoas têm uma pressa muito grande de encontrar um grande amor, têm uma pressa muito grande de definir essas relações eróticas do começo da vida. Há uma liberdade sexual muito maior, os jovens já podem morar juntos, ou levar a namorada para a casa dos pais, as parcerias sexuais se intensificam muito rapidamente. E ao mesmo tempo somos uma sociedade tão voltada para o prazer imediato que o amor resiste pouco às suas crises, que são próprias do amor, as decepções, a pessoa não estar o tempo todo naquele estado de apaixonamento.

As pessoas não têm paciência para cuidar?
Menos paciência. Fazer renúncias (a outras formas de prazer) em nome de quê? E tem um apego muito grande. Se a vida pública, social não favorece, se você pertence só à sua familinha, ao seu parceiro, você se apega muito rapidamente, espera muito do outro, sobrecarrega o balaio do amor. Todas as situações da vida têm de ser compensadas por uma felicidade amorosa, digamos, para usar uma linguagem banal, seis dias de semana de trabalho cansativo, avassalador, exaustivo, para um sábado à noite no motel. Aí não resiste. Fica pesado para o amor. Aí as pessoas têm a ilusão de que se resolverá trocando de parceiro – e às vezes precisa trocar mesmo, há desentendimentos importantes, por isso que não faço a defesa do antigo casamento. Mas também há uma certa impaciência, principalmente entre os jovens, de “ah, não está mais rolando”. Passou a fulaninha, com sorriso mais legal, então vai rolar com ela... (pausa, olha para a parede) Pronto, já estou aqui de novo, na frente do meu relógio!

Colaborou Xandra Stefanel

Revista do Brasil

Mino Carta - Teclas capitais


Teclas capitais
Para Mino Carta, o país tem inúmeras soluções e um único problema: uma elite medieval, diante da qual o presidente Lula amarelou. Aos 74 anos, depois de comandar publicações ousadas e criativas, ele ainda quer escrever um livro chamado “O Brasil”


Por: Paulo Donizetti de Souza e Vander Fornazieri

Publicado em 01/04/2008

(Foto: Jailton Garcia)

Mara Lúcia da Silva é coordenadora de produção da Carta Capital. Tinha 18 anos quando começou como secretária na redação da IstoÉ. “Secretária” costuma ser eufemismo para designar a faz-tudo do pedaço. Aos poucos, foi absorvida pelo então diretor de redação da revista, Mino Carta, que nunca mais lhe deu alforria. Vinte anos depois, Mara é a sua “escrava” preferida. É a encarregada, em meio às pesquisas iconográficas para os fechamentos semanais, de contornar o pavor do chefe a tecnologias. Hoje, pelo menos, já conta com ajuda de companheiros de redação para dividir o fardo de passar para o computador os textos que o veterano digita, ou melhor, datilografa, como se dizia antigamente. Até as respostas aos e-mails, acessados e impressos pelos escravos, são feitas a mão pelo chefe e digitalizadas pelos destemidos “escravos”, como Mino chama os intermediários entre ele e a vida real movida a computador – do qual não se aproxima para não ser devorado. Seria um sinal de conservadorismo? Afinal, além da secretária de duas décadas, há 40 anos o mesmo motorista o leva para cima e para baixo – sim, o criador de Quatro Rodas conta que nunca dirigiu nem sabe distinguir um Fusca de um Mercedes.

Enquanto alguns o acusam de ser chapa-branca, ele puxa sem dó as orelhas do presidente Lula, que diz ser um sintoma de que alguma coisa começou a mudar no Brasil, mas de quem guarda uma sincera decepção pela falta de ousadia. “Para que agradar tanto aos banqueiros?”, reclama. Nesta entrevista, que por uma questão de espaço está mais recheada de detalhes no site, Mino Carta fala do preconceito do mercado publicitário contra quem critica o pensamento único. Fala das origens da passividade do povo, da selvageria do capitalismo, de cinema, gastronomia e de amor. Conservador nas miudezas e anárquico no atacado, ele não tenta se explicar, mas será facilmente entendido.

Aqui é o lugar onde você mais gosta de trabalhar de todos os que já passou?
Talvez seja onde a margem de criação é maior. Mas cada coisa se encaixa no seu tempo e à moldura das possibilidades oferecidas. Eu lancei o Jornal da Tarde, foi uma empreitada valiosíssima, mas estava trabalhando no Estadão. A autonomia que tive foi muito grande em termos de criação, paginação, texto, o jornal foi até bastante revolucionário, mas politicamente a margem de manobra era mínima. Você tinha de se adaptar aos pensamentos da casa. Na Veja eu contava com patrões idiotas, e isso ajuda um bocado. Os Civita não sabiam onde estavam, e foi fácil fazer uma revista que mereceu censura, que foi perseguida violentamente.

Você já contou várias vezes a história da sua saída da Veja, em 1976. Isso é algo que o marcou, não?
Certamente, e positivamente. É problema você no Brasil lidar com a mídia, ela não quer saber de quem nada contra a corrente. A mídia está toda compactada nos patrões, em seus sabujos da redação, que giram em torno de uma idéia única. A idéia é reagir a qualquer tipo de ameaça, porque não se aceita a possibilidade de que o sistema possa ser interrompido, posto em risco, em xeque. Espanta o comportamento dos jornalistas brasileiros; não têm noção do que é ser jornalista. O jornalismo decaiu muito.

Por que o jornalismo hoje não se compara com o que se fazia na década de 60, 70...
Ou mesmo antes. Rubem Braga e Joel Silveira cobriram a campanha dos pracinhas na Itália, na Segunda Guerra Mundial, de forma impecável, com textos dignos do melhor jornalismo contemporâneo do mundo. Se você pensa que o jornalismo brasileiro já teve esse tipo de herói, você põe as mãos nos cabelos! Cláudio Abramo...

Perseu Abramo...
Perseu era mais notável não como jornalista, mas como político, como intelectual, que transmitia integridade, sem dúvida. Era sobrinho do Cláudio, embora a diferença de idade não fosse assim tão grande (seis anos), e filho do Athos, o segundo da estirpe (Lívio, Athos, Fúlvio, Lélia, Beatriz, Mário e Cláudio). O primeiro era o Lívio, grande gravurista, artista extraordinário. Entre o Lívio e o Cláudio tinha 20 anos de diferença. O Athos era o segundo. Com a Lélia eu trabalhei. Meu pai arranjou um emprego para ela. Ótima atriz, muito talentosa. Quando voltou da Itália, já era quarentona, trabalhou numa companhia amadora de teatro. Fez de tudo, teatro, cinema, e era engajadíssima.

Dessa geração que você viu, com a qual trabalhou, conviveu esses anos todos, quem você destacaria?
Ah, tem muitos. Eu não gostaria de cometer injustiças. Quando eu voltei da Itália, em 1960, fui lançar a Quatro Rodas – sem saber dirigir, até hoje não sei, e não distingo um Volkswagen de um Mercedes. Tive ali repórteres extraordinários. Trabalhei com Zé Hamilton Ribeiro e Paulo Patarra, depois veio o Sérgio de Souza. O Hamilton Almeida, que foi um excelente repórter, Tão Gomes Pinto. Estive em contato com gente de altíssima qualidade, jornalistas como hoje não se fazem mais.

E o Reali Jr.
O Reali é ótimo, é um grande sujeito. Eu acho que ele vai escrever coisa para a Carta Capital agora, de Paris. Já estamos engatilhando algo para que o Reali escreva pra gente. Meu pai era amigo do pai dele, é uma coisa muito, muito antiga.

Recentemente houve dois importantes “não-acontecimentos”: a batalha de Luis Nassif com a Veja e a saída de Paulo Henrique Amorim do IG. Como vê esses dois episódios?
Isso se encaixa exatamente na lógica do que eu disse. No Brasil você tem uma situação muito peculiar, que não existe em outros lugares que já saíram da Idade Média. Uma mídia compactamente unida apenas em torno da defesa dos interesses piores, aqueles da minoria branca, para usar a expressão do Cláudio Lembo. É muito simples: quem de alguma forma põe em xeque, critica a minoria branca e identifica esses interesses, que são os dela apenas, e não os do país, da sociedade brasileira, do povo brasileiro, quem faz isso é ignorado. E a técnica é a de sempre, antiqüíssima, usada inescapavelmente em todas as situações: “Ignore, porque aí não acontece, ninguém vai saber”. A estratégia, do ponto de vista deles, é extremamente eficaz. Saiu nesses dias um estudo em que você verifica que 58% da população brasileira não lê jornal, não lê livro, não vai ao cinema, não vai ao teatro. Alimenta-se só de TV, quem se alimenta. Há um distanciamento brutal em relação às notícias, à existência de fatos. Isso é muito claro no Brasil. E eles se aproveitam disso.

O que nasceu primeiro: a indiferença do povo ou a péssima qualidade da mídia?
Nada acontece por acaso e certas situações são inescapáveis. O povo brasileiro é um povo que traz no lombo a herança do chicote e da escravidão. Que seja um povo paciente, resignado, é indiscutível. É um povo que vive no limbo, isso não é nem o inferno, nem o purgatório. O Brasil sofreu desgraças terríveis. Foi uma terra predada como colônia, antes pelos portugueses, depois pelos ingleses, depois submetida ao superpoder americano. Essa foi a primeira desgraça. A segunda foi a escravidão, pela qual pagamos até hoje. E a terceira o golpe de 1964, o golpe da minoria branca. Hoje me surpreende a mídia falar em ditadura; antes falavam em revolução. Agora falam em ditadura, mas acrescentam “militar”. Isso me deixa num estado de profunda irritação: os militares foram os gendarmes que executaram o serviço sujo dos seus patrões brancos. Quem fez esse golpe senão a mesma mídia que agora decidiu mudar o nome de “revolução” para “ditadura militar”? Neste país, onde é muito fácil manipular a opinião pública, a chamada classe média estava convencida de que o golpe era absolutamente indispensável porque havia a “marcha da subversão” que batia às portas. Vocês viram a marcha da subversão? Eu espero até hoje... O golpe deu-se em uma hora, sem que fosse derramada uma única e escassa gota de sangue nas calçadas. Que golpe é esse? Era assim: amanhã tem o golpe. Vamos programar para amanhã porque é um dia bom, parece que vai ter sol.

Que arma a sociedade tem para enfrentar uma elite golpista?
Eu não tenho muitas esperanças em relação ao Brasil, infelizmente. E vocês vejam: país extraordinário, recursos absolutamente fantásticos, mais fértil do mundo, muito mais que a China. Onde você plantar, dizia o Pero Vaz de Caminha e é verdade, a coisa dá. Não tem cataclismo, o subsolo é rico em minérios, metade do ferro do mundo está aqui, agora descobrimos também petróleo onde não imaginávamos que houvesse. E temos a pior elite do mundo! A elite (desculpe a referência chula e mesquinha, talvez) da Daslu, de exibicionistas, cafajestes, cheios de si próprios, se acham notabilíssimos, inteligentes, elegantes, brilhantes. É um bando! É o país onde se fala mais palavrões na rua, desbocado, vulgar. Eu não tendo a enxergar o pecado no povo, o povo é o que pode ser. Os que mandam são os que não fizeram esforço algum para ser diferentes, para pensar em todo mundo, em vez de pensar somente neles próprios.

Mas o povo não tem uma responsabilidade por não reagir a isso?
Aí é que está. O golpe de 1964 é uma desgraça porque interrompe um processo, que não se realizaria no dia seguinte. Ia se realizar no espaço de 10 ou 15 anos, paulatinamente. Surgiria inevitavelmente aquilo que foi bucha de canhão dos grandes partidos de esquerda europeus: um operariado mais consciente. Os operários que não queriam ser operários, queriam ser burgueses. Hoje efetivamente a questão esquerda e direita tem de ser dimensionada de forma diferente, mas não no Brasil, ao contrário do que supõe o senhor Gabeira. Eu nasci na Itália, ela não vive um momento excelente – eu diria muito ao contrário –, mas apesar disso a Itália que saiu da guerra em escombros, muito atrasada, conseguiu superar-se graças ao Partido Comunista Italiano, que foi um grande partido, graças à presença de um proletariado que começou a ter consciência de sua força, e cuja força era de pretender ser burgueses. Eles eram proletários, mas queriam ser burgueses. Esse sonho todo de uma certa esquerda de que o operário adora ser operário é uma bobagem inominável. Isso encanta porque normalmente é uma esquerda mais ou menos intelectual, que gosta da companhia do operário porque depois diz: “Olha aí como eu sou generoso”. Não tem nada disso: o operário é ótima bucha de canhão. Eles querem ser burgueses. Na Itália, sindicatos fortes faziam greves gerais de um dia para o outro, paravam tudo. A elite brasileira que viajava para a Europa ficava desesperada, descia do avião e não tinha carregador para as malas; desciam dos trens e cadê os carregadores? Se queixavam muito. A greve parava mesmo, não tinha trem, você ficava preso em um lugar, tinha programado uma visita no dia seguinte e não podia viajar. Era muito triste.

E a imprensa noticiava isso?
A imprensa não funcionava se a greve envolvesse a categoria dos jornalistas, não funcionava e havia uma parte conspícua da imprensa que apoiava os trabalhadores. O jornal de maior tiragem na Europa era o L’Unità, do partido comunista. Estou falando dos anos 50. Havia três edições do L’Unità, em Roma, em Milão e em Turim, cada uma com sua redação. Hoje seria possível fazer um jornal só e mandar para qualquer lugar, mas nesse tempo não. Eram três redações distintas que tiravam 1,5 milhão exemplares por dia juntas. Portanto, era uma outra coisa.

O capitalismo brasileiro, depois dos estragos da passividade colonial, da escravidão e do autoritarismo na formação do país, não aprendeu com esses erros? Não amadureceu a ponto de querer construir um país menos concentrador?
Acho que eles estão pensando como sempre. Embora possa haver alguns sintomas de mudanças em cantos afastados das metrópoles. Rondonópolis (MT), me dizem que é um exemplo de lugar muito álacre e muito bem-sucedido, que avança à revelia dos padrões do Brasil que aparece mais. Eu acredito que possa acontecer uma espécie de revolução, não política, mas de hábitos relacionados inclusive com a produção na periferia do Brasil. Isso é possível e seria bom.

Mas os grandes centros ainda determinam os rumos do país, não?
Não sei. Sou bastante decepcionado com o governo Lula de vários pontos de vista, mas a eleição do Lula – e, muito mais que ela, a reeleição – mostra que uma mudança se dá. Talvez sem clara percepção por parte da maioria, mas os senhores do poder sabem perfeitamente da gravidade dessa mudança para eles. Tanto que malham o Lula automaticamente – não que ele não mereça, até porque ele faz tudo para agradá-los, sem conseguir, aliás. Mas eles sabem o significado da eleição de alguém que é igual ao povo brasileiro. Essa é a grande novidade. O povo brasileiro, que achava que o presidente da República tinha de ser bacharel e dormir de gravata, de súbito decide eleger um igual a ele, um operário, um tosco, despreparado, como diz a minoria branca. O Lula, a meu ver, não entendeu. Se tivesse entendido, teria ido bem mais longe do que foi. Por que agradar tanto aos banqueiros?

O que lhe desagrada mais?
Tem duas coisas que para mim têm importância e são positivas. Uma, muito claramente, é a política exterior. A segunda, a verificar os efeitos em longo prazo, é a expansão do crédito, que a meu ver é mais importante que o Bolsa Família, que é melancólico. Não porque eu ache que é uma medida assistencial, uma espécie de esmola. Não. É porque é triste. Um povo que se contenta com 50 paus a mais é porque realmente estamos mal. Agora, continuamos a ser exportadores de commodities.

Há quem diga que se Lula não tivesse cumprido os compromissos assumidos na Carta aos Brasileiros teria caído.
Eu duvido. Quem dá o golpe se o povo elegeu e reelegeu esse cara da forma como o elegeu e, sobretudo, como o reelegeu? A mídia compactamente contra ele, todo dia soltando informações sobre corrupção, envolvimentos terríveis com o que há de pior etc. etc., e assim mesmo ele foi reeleito. Quer dizer, a estratégia da minoria branca, que normalmente dá certo, desta vez falhou. Não acho que havia condições para nenhum tipo de golpe. Os grandes estadistas têm coragem. Claro, se ele me ouvisse dizer essas coisas, diria: “Ah, o Mino é um iludido, um anárquico”. Conheço o Lula há 30 anos, sei o que ele pensa. Em inúmeras vezes percebi que ele me achava incômodo. Sou amigo dele e gosto muito dele, o acho um sujeito extremamente dotado, além de tudo tem um QI muito bom. Mas falta peito, falta coragem.

Não acha que agora, no segundo mandato, ele está participando mais da política e sendo um pouco mais claro nas questões ideológicas?
Acho que o segundo mandato está pior que o primeiro. Fiz uma longuíssima entrevista com ele – 13 páginas – em novembro de 2005 e ele me disse: “Você sabe, Mino, que eu nunca fui de esquerda...” É um erro grotesco dos países de hoje, contemporâneos, dizer que a esquerda e a direta não existem mais. Como, se num país onde 5% vivem entre razoavelmente e bem demais e 95% vivem mal ou tragicamente? Como é possível dizer “aqui não existe esquerda e direita”? Tem uma metáfora magnífica que é a do metrô paulistano: se São Paulo tivesse um metrô digno de uma grande capital, como Londres, Paris, você teria muito menos carros na rua. O metrô é um transporte fantástico. Não! Eles cuidaram de construir túneis. Agora tem a ponte Espraiada e uma prefeita do PT chamou aquilo de Conjunto Viário Roberto Marinho, um salteador que infelicitou o Brasil, uma vergonha mundial, “jornalista”... Este é o único país que eu conheço onde jornalista chama o patrão de colega e o patrão consegue com o sindicato uma carteirinha de jornalista. Isso é Idade Média. Uma vergonha! Aqui temos diretores de redação por direito divino.

E como o país caminha para 2010?
Mal. Acho que se o Lula não se convencer de que não consegue fazer seu candidato, que não tem chance, que ele não transfere seu prestígio pessoal – e o Aécio já está dizendo isso –, ele vai optar por essa solução (mostra capa da Carta Capital de 2/4/2008, com reportagem abordando a possibilidade de Aécio Neves sair para presidente com Ciro Gomes de vice). E essa dupla (Aécio e Ciro) vai fazer as mesmas coisas que estão sendo feitas agora. Não imagine mudanças.

Como você vê o PT nessa história?
Há no horizonte claramente esboçada uma crise do PSDB, mas há também uma crise do PT, que no fundo já está em andamento. Já houve uma primeira fratura e haverá inevitavelmente outra. Eu sei que o Luiz Dulci (ministro da Secretaria-Geral da Presidência e liderança do PT de MG) não concorda com essa aliança mineira (do PT e do PSDB em torno do candidato do PSB à Prefeitura de BH). O Lula está feliz da vida com essa pax mineira. Há dentro do PT quem perceba que o partido está sendo de alguma forma diminuído, está perdendo peso, prestígio e importância.

Mas você vê um futuro com o Lula rompido com o PT?
Não posso crer. Acho que os partidos brasileiros não existem, são clubes recreativos para a minoria branca. Mas eu cheguei a achar que o PT tinha algo diferente. Nunca fui ligado a partido, mas apoiei muito o PT no seu nascimento, dentro das minhas modestíssimas possibilidades, porque sempre entendi que um partido forte de esquerda no Brasil, com coragem e determinação, poderia ter um papel muito importante. Mas o PT, em última análise, no poder, mostrou-se igual aos outros. É claro, o Brasil está crescendo no momento, mas está crescendo em cima de commodities, vamos ser claros! Isso é um futuro maravilhoso? Eu diria que não.

O que o governo deveria fazer para mudar isso?
É uma questão mundial. O deus-mercado é o pior dos deuses que o homem já conseguiu inventar. É uma desgraça. As bolsas do mundo – aliás, o Brasil cogita criar a terceira maior – são cassinos. Privilegiou-se a produção de dinheiro, em lugar da produção de bens. E eu me pergunto: isso leva a quê? O Brasil está nessa.

Tem alguém no mundo que não esteja?
Não, acho que o mundo está submetido a essa idéia. E estamos vendo que o mundo piora a cada dia. Temos por exemplo a “arte moderna”, uma prova da imbecilidade do mundo.

O Caio Túlio o procurou quando você deixou o IG em solidariedade a Paulo Henrique Amorim?
No próprio dia em que o Paulo Henrique caiu fora ele (Caio Túlio Costa, diretor do IG) ligou um monte de vezes, e eu acabei falando com ele à noite. Ele queria colocá-lo dentro de um fato consumado, deu as razões dele (por tirar Amorim do IG sem prévio aviso, meses antes de terminar o contrato). “Eu não quero perder você, pelo amor de Deus”. Aí a questão é de princípios. Eu não tenho dúvidas que o Caio Túlio agiu porque foi autorizado a tanto.

Você costuma navegar pelos blogs ou não se rendeu ao computador?
Não, tenho medo de computador. Computador me engole, ele tem uma bocarra que esconde os dentes, é coisa pior que tubarão. Se chegar muito perto, ele me engole. Já engoliu um monte de gente, principalmente a garotada, que vai pagar caro por isso.

Mas como você faz para responder aos seus leitores?
Tem aí uns escravos (risos, apontando para a redação).

Você compartilha da opinião de Paulo Henrique de que a internet como meio de comunicação é o “must”?
Eu diria que o instrumento é uma coisa e o homem que usa é outra. É como a televisão. Não é um instrumento fantástico? Você pode usá-la com os piores propósitos ou com os melhores. Idem a internet.

Paulo Henrique define a internet como o último reduto do jornalismo independente, pois o meio impresso, o rádio e a TV já estão dominados.
Isso no Brasil, nas nossas circunstâncias. Certamente não é na Europa. No Brasil é inevitável que ela também seja controlada, está sendo, o Brasil é medieval. A Europa não me parece que seja assim. Não que a internet não tenha uma razão de ser também lá. Mas se você pensar na mídia européia, por mais que existam lá os murdoch e os berlusconi, há uma diversidade muito grande. De alguma maneira, todas as tendências possíveis estão representadas na mídia. Na Itália tem um jornal extraordinário, o Il Manifesto, com paginação brilhantíssima, e de esquerda razoavelmente radical, não brinca em serviço.

De que jornais você gosta?
Il Manifesto é excelente. Não gosto muito do El País, aos espanhóis falta senso de humor, eles levam tudo muito a sério. A mídia americana já foi excelente, hoje está muito mal, como os Estados Unidos. La República é um jornal muito bom, muito melhor que o El País. Guardian, Independent são excelentes, de centro-esquerda, não de esquerda, mas muito bons. O Le Monde acabou, hoje é um jornal claramente comprometido. Já foi importante, até pela tentativa de criar ali uma cooperativa de jornalistas, de passar por cima e eliminar a figura do patrão. Infelizmente, e isso é cada vez mais claro, qualquer empreendimento editorial tem de ser encarado como negócio. Precisa ter retorno, senão você fecha.

Esse seu posicionamento em relação à elite branca gera algum problema comercial, de captação de publicidade para sua revista?
Gera. Tem muito publicitário que se submete à manipulação da Globo, da Veja, que repete as frases feitas da moda. É uma categoria muito alcançada por esse tipo de estratégia da minoria branca. Ela própria pertence à minoria branca. Ali tem um monte de gente que descobriu o vinho faz alguns meses e toma vinho nos restaurantes, e o ficam girando no copo e olhando e tal, e tem gravatas amarelas dessa largura, que são um símbolo dessa gente que está por dentro.

Você não tem gravata amarela?
Em princípio, não tenho nada contra, depende de como você a usa. Num tom não muito agressivo, usada com um paletó de tweed irlandês, por exemplo, eu diria até uma gravata de lã, é aceitável. Mas eles usam com terno azul marinho! (risos)

O que o anima? Cozinhar?
Sim, claro, cozinhar, comer.

Você come aqui no seu vizinho, o Massimo?
Nas noite de quinta, mas vai mal o Massimo. Houve uma briga entre os dois irmãos. Morreu a mãe, que era o tecido conectivo, e desandou. O Massimo propriamente dito já saiu, está aí o irmão. Mas não está indo bem.

Onde se come bem em São Paulo?
Dizem que é uma capital gastronômica do mundo... Mas come-se muito mal. É possível que aqui se possa comer comida japonesa muito bem – acho uma comida muito bonita, bem apresentada, uma arte, mas a comida em si, confesso, não me diz nada. Comida árabe eu acho muito saborosa, eu acho um quibe cru ótimo, uma abobrinha recheada ótima, é uma comida agradável, mas acredito que aqui a comida árabe no sentido completo da palavra não existe, porque sei de árabes que comem de uma forma bem mais criativa e com um cardápio muito mais amplo. A comida italiana em São Paulo é uma piada, dá para rolar de dar risada. A francesa também. Eu gosto de comer no Rufino porque tem um peixe muito fresco que eles fazem no vapor, temperam com azeite limão e sal, e está perfeito. Tem um restaurante engraçado, o La Frontera, do lado leste do cemitério da Consolação. De lá, eu olho para o canto onde está o Cláudio Abramo e isso facilita a minha digestão. É um restaurante engraçado, espirituoso, ambiente legal.

Você deu uma boa receita de bacalhau no blog.
Aquele bacalhau é um bacalhau à siciliana, não é único. Eu entendo que há três pratos de bacalhau que são imbatíveis. À portuguesa clássico, com legumes cozidos na água com bastante azeite, e o próprio bacalhau cozido na água com azeite, no fogo lento, por oito minutos mais ou menos, com dentes de alho que depois você retira, ovo duro, azeitona preta. Você sente o bacalhau, não é encoberto por molho ou coisa assim. Depois tem o bacalhau à espanhola, aquele em camadas: batatas, cebolas, pimentão, tomate, bacalhau. É excelente. E o outro é esse à siciliana, que faço com molho de tomate.

Você vai ao cinema, teatro?
Ao cinema eu não vou muitíssimo, mas vou. Infelizmente, São Paulo não recebe todos os filmes que eu gostaria de ver, mas recebe alguns, como esse filme dos irmãos Cohen (Onde os Fracos Não Têm Vez), extraordinário. Gostei desse Oscar. O Sangue Negro, eu gostei menos, está clara a metáfora do capitalismo e eu acho que essa idéia está perfeita, mas a realização e a interpretação do ator, que é endeusado, esse Daniel Day-Lewis, eu não gostei. E a culpa nem é dele, é do roteiro, você não entende direito o que é aquele cara. Aí você diz “é um louco”, e no que um louco representa o capitalismo? O capitalismo é outra coisa, tem de ser um cara muito esperto, muito egoísta, muito violento.

Você viu Jogos do Poder, em que Tom Hanks faz o papel de um deputado republicano que abasteceu a guerra do Afeganistão?
Um grande filme com o Tom Hanks é o Forrest Gump, que é uma metáfora dos Estados Unidos muito boa. (Sobre os Estados Unidos na guerra) assisti no último fim de semana em CVD, CDV...

DVD!
(Risos) Vê como eu sou tecnológico? Aliás, alguém tem de colocar o disco para mim, porque até agora eu não entendi como vai... Assisti ao No Vale das Sombras, com uma interpretação magistral de um ator chamado Tommy Lee Jones, que está no filme dos irmãos Cohen. É história de um marine cujo filho é chamado para a guerra no Iraque. É um bom filme, um pouco lento para o meu gosto também, mas a figura é perfeita, ao contrário do Sangue Negro, que não me entusiasmou. Gostei muito dos dois filmes do Clint Eastwood. Mas os dois são um pouco compridos. No que descreve o lado japonês (Cartas de Iwo Jima), à certa altura eu começo a sentir os glúteos em estado de letargia. Aí é ruim. O do lado americano (A Conquista da Honra) eu achei mais fácil de ver, e o outro, mais bonito. Mas o mais bonito nem sempre é o que você prefere, porque acontece que os glúteos se manifestam.

Falando em glúteos que se manifestam, você pensa em se aposentar?
Não, não tenho idade.

Depois de Quatro Rodas, Jornal da Tarde, Veja, IstoÉ, Jornal da República, Carta Capital, qual é a próxima cartada?
Não, não tem próxima. Eu estou pensando em escrever um livro, o terceiro, que seria “O Brasil”, falando do Brasil, o que é o Brasil para mim. Mas não escrevi nada ainda.

Quem vai passar para o computador?
A Mara.

A Mara é sua escrava?
É uma das.

E quem conserta a máquina?
A Mara chama o técnico. Às vezes encavala a fita.

Ainda se faz fita para máquina de escrever?
Faz, acho que estão pensando em mim. É uma regalia. Eu tenho uma Olivetti Lettera 32 em casa e esta (Linea 88) aqui no escritório. Não me largam.

Nós ainda pegamos essa fase da máquina de escrever, pegamos a transição.
Você é muito novo.

Tenho 43.
É surpreendente. O meu filho (Gianni) tem 44.

Você tem mais filhos.
Tenho também uma filha (Manuela) e um enteado. Casei duas vezes. O primeiro casamento foi um episódio discutível, mas produziu dois filhos, e tem uma grande ligação entre nós. Depois tive um segundo casamento, muito bem-sucedido, muito feliz. Foram 29 anos de vida em comum. Infelizmente ela (Angélica) morreu, faz 11 anos, de câncer. Foi um baque. Era um casamento muito bom, mesmo. Eu tive, de certa forma, essa sorte e também padeci dessa desgraça. A sorte confrontada com esse momento é um golpe. Até hoje tomo todo dia remédio para estabilizar os humores. Eu sempre tive uma saúde de ferro. Nunca tinha tomado nem remédio para dormir, e durmo pouquíssimo. Aí eu comecei a querer me atirar pela janela. Faz 11 anos que eu tomo esse remédio.

Você chegou a parar de trabalhar?
Ela, durante anos, sempre venceu as paradas muito bem. Você olhava para ela e dizia “ela está ótima, não tem doença alguma”. Mas a partir de setembro de 1996 a coisa começou a ficar muito feia e eu me dediquei muito a ela (muito emocionado). Ela foi a melhor pessoa que eu conheci na vida. Além de ser a mulher que me despertava, era certamente a pessoa mais importante.

Seus filhos são casados?
Minha filha é divorciada, meu filho é muito bem casado, mas ele é um rapaz esperto, casou-se com 36 anos. Os dois são jornalistas. O meu enteado é casado e o filho dele do primeiro casamento, que está completando 16 anos, vive comigo. Era muito ligado à avó. A casa dele, para ele, é a nossa casa. Meu filho mora fora do Brasil desde os 15 anos. A minha filha é publisher disso aqui, é a única da família que lida com dinheiro. Eu me mantenho o mais possível longe, porque posso causar estragos absolutamente inimagináveis.

Onde você economiza?
Economizo na idéia de que é melhor você ter uma equipe pequena e bem paga – isso é muito claro para mim desde que saí da Veja, porque a partir daí tive de inventar outros empregos. Isso, além de tudo, cria uma afinação entre as pessoas, um entendimento, uma harmonia e um ambiente muito produtivo.


Você poderia posar para umas fotos?
Mas como? Eu sou um velho ridículo... Onde você quer?


Revista do Brasil

Augusto Capelo - Coliseu pós-moderno

(Foto: Maurício Morais)

Coliseu pós-moderno
Reality show: verdade ou mentira? O psicanalista Augusto Capelo põe no divã o mundo Big Brother. Para ele, ao penetrar na privacidade e nos podres dos “gladiadores”, o telespectador compensa os próprios defeitos

Por: Flávio Aguiar

Publicado em 01/01/2008

Um dos momentos de maior audiência na televisão são aqueles chamados de “reality shows” – o Big Brother Brasil é o mais famoso. Existem outros programas, em que noivas flagram noivos caindo em tentação, famílias em conflito, espetáculos religiosos com descarregos. No limite, toda a vida pode se tornar a busca frenética de um show, dos 15 minutos de fama nessa lareira das imaginações, o fogo sagrado ou seu simulacro, que é a televisão, ou melhor, a empresa televisiva. Os atuais reality shows nasceram em 1999, na TV holandesa. Ganharam a Europa, a América do Norte, o mundo. Estão presentes em mais de 40 países. Baseados em mecanismos psicológicos complexos e por vezes violentos, têm suscitado polêmicas sobre seus efeitos sobre o público e os próprios participantes. Houve casos, em outros países, em que perdedores e até vencedores tentaram suicídio ao “cair na real”. O psicanalista Augusto Capelo, junguiano, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, é “por obrigação” um espectador assíduo.

Qual a origem desse tipo de programa, do estilo Big Brother?
Vou responder como analista de formação junguiana (de Carl Gustav Jung, 1875-1961, precursor de uma linha de psicanálise), que leva em consideração que existe um inconsciente coletivo. Temos um ego, uma identidade. “Abaixo” dessa identidade tem o que o Freud já tinha postulado, o inconsciente. Um inconsciente pessoal, que chamarei de um “fichário”, em que se depositam experiências – boas, más, conflitos, repressões. Jung postulou que “abaixo”, ou além do inconsciente pessoal, existe um inconsciente coletivo. Isso explica os rituais, certos comportamentos comuns a culturas diferentes. Existem símbolos, arquétipos, com que todo ser humano comunga, seja de que cultura for. A maioria das culturas tem o símbolo do dragão, e nunca ninguém viu um. Um programa do tipo Big Brother talvez seja o último de uma série de entretenimentos que a humanidade tem praticado durante seu percurso. Já houve programas como No Limite. Antes tinha as famosas “gincanas”, grupo contra grupo. Não deixa de ser um ritual, expressão de um comportamento. Voltando no tempo, você chega ao Coliseu, na antiga Roma. Muita gente assistiu a esse filme Gladiador, que conta algo sobre aqueles espetáculos. Eles tinham etapas, e a apoteose era a luta de todos contra todos, como no Big Brother, embora possa haver pactos momentâneos, como no filme, quando o herói faz pacto com o gladiador negro.

O senhor os vê regularmente?
Não tenho vergonha de dizer que assisto ao BBB. Chego em casa e minha família está vendo, compartilho. E sou psicanalista, profissional da área do comportamento. Sou quase obrigado. Programas desse tipo são expressões do inconsciente coletivo. Milhões de pessoas os acompanham, pelo seguinte: todos nós somos um pouco voyeurs. Todos temos uma fatia da personalidade que chamamos de “sombra”, que fica entre o consciente e o inconsciente. Essa sombra a gente nunca reconhece como sendo da gente. Nessa instância da nossa personalidade estão depositadas certas coisas que são nossas, tais como você ser avarento, chato, impertinente, que você acha que não é. Aí mora o perigo. E quem é especialista em sombra? As crianças e os inimigos da gente. É preciso escutar o que as crianças falam de você, e também o que os inimigos falam. Eles dão apelidos, “fulano é muquirana”. Quando isso me chega aos ouvidos fico brabo. Por quê? Porque sou mesmo! (risos) Todos temos uma parte sombria. Normalmente ela não é bem-vista socialmente.

Mas qual é a relação desse mundo pessoal com a organização social, o coletivo?
Na penúltima edição do BBB houve uma menina, chamada Grazi, que se mostrou esplendorosa, parecendo ser uma promessa da nova casta de atrizes. Ela é bonita, é boa gente... Mas no programa mostrou partes da intimidade, chegou a falar sobre como ia ao banheiro. A gente sabe que ela falou porque as câmeras captaram. Quando você, ou eu, um simples mortal, vê uma pessoa como ela, na TV, falando aquilo, essa pessoa fica mais confortada. “Ah”, ela se diz, “o ’outro’ também tem falhas.” O Alemão, vencedor do ano passado, ao ser grosseiro, ou mentir, dá um certo alívio pra gente. Voltamos ao Coliseu. É claro que um Estado como Roma, guerreiro, não ia organizar um ritual zen. Faz um ritual guerreiro, por todos os motivos do mundo. Imagine: para um cidadão romano comum, era uma catarse ver pessoas se matarem na arena. E há uma catarse quando se vê um programa desses. Funciona. Na verdade verdadeira, as pessoas que estão nesse tipo de programa não são um recorte da sociedade brasileira. E tem mais: todos são bonitos. O menos bonito ainda é bonito. É preciso dar esse desconto todo. Mas, ainda assim, nós vemos esses programas porque eles falam para a nossa “sombra”. Eles dizem que os semideuses da tela também têm defeitos grandes.

Cria-se uma relação metafórica, não só para cada espectador, indivíduo, mas para o conjunto deles?
Na verdade, é isso mesmo que acontece na vida. É muito duro isso... Eu podia usar palavras mais poéticas. Mas é isso mesmo que está sendo traduzido: todos contra todos. Existe uma palavra na nossa área, a psicanálise, que se chama “complacência”. Para usar outra metáfora, se você for apertando o parafuso de uma instituição, algumas pessoas começam a espanar, como se diz. Se você aperta o parafuso um pouco mais, bota mais pressão, o cidadão sai da cidade para o bairro, depois para a rua, depois para a casa, para a família e ali ele pega alguém: onde falta pão, sobra bofetão. Às vezes vira mesmo todos contra todos. A gente conhece a história de grupos étnicos perseguidos em que uns viraram carrascos de seu próprio grupo. Você vê nos dias de hoje famílias sendo carrascas dos próprios filhos, às vezes de uma forma mais ou menos velada, às vezes de forma literal, às claras. Tem filho dando tiro em pai. O fundo do inconsciente coletivo pode nos deixar muito próximo dos animais.

Parece ser uma sociedade na qual todos os pactos são frágeis, os contratos são apenas degraus que levam até o momento em que se possa trair o outro.
Temos de ter um pouco de cuidado, senão se começa a olhar para o futuro vendo só muita nebulosidade, muita turvação. Sou otimista profissional. Antes era assim também, só que maquininhas como o computador e a televisão deram a isso tudo uma visibilidade muito maior. Li no ano passado uma biografia do Leonardo da Vinci. Fiquei impressionado com a história da família dos Médici, seus contemporâneos (que governaram a cidade de Florença, um dos berços do Renascimento). Dos dois irmãos, um (Juliano) foi assassinado e o que sobreviveu (Lourenço) mandou prender a família adversária. Mandou jogar os membros dessa família – todos – de cima da torre do Palácio da Senhoria. E proibiu que os corpos fossem recolhidos. Esse homem foi um príncipe do Renascimento... Homens como ele patrocinaram Da Vinci, Michelangelo e tantos outros.
Aqui no Brasil, há 120 anos, éramos “donos” de gente, ou podíamos ser escravos. Isso era aceito! Isso me leva a pensar no seguinte: vou defender o futuro. O Big Brother é uma forma sublimada do Coliseu. Eu me pergunto: o que será o Big Brother do futuro? Não sei, mas sei que esse que aí está é melhor do que o Coliseu. Se você tivesse uma máquina do tempo, e pudesse ir ao Coliseu, iria. Passaria um mês deprimido, mas não perderia a oportunidade. Temos de reconhecer o seguinte: a cultura, o futuro têm suavizado as relações. Hoje tem o imbróglio do capital faturando em cima de tudo isso, mas também havia quem faturasse no tempo dos Césares. A grana está aí nessa parada toda, mas essa só funciona porque o ritual tem função, traz para quem vê um certo alívio psicológico. E há ainda os paradoxos nesses programas. Nem sempre quem ganha vai melhor depois. É como na vida: nem sempre o primeiro da classe tem o melhor desempenho depois.

Até que ponto o que se vê nesses programas, as personalidades, não são construções, simulacros?
Mas na vida real nós construímos as nossas também. Freud dizia que a mentira era um lubrificante da cultura. É claro que há gradações, há mentiras grandes e pequenas. Mas todos nós temos o que os antigos chamavam de persona. Ou seja, as máscaras do teatro antigo, personare, “falar através de”. Ninguém agüenta ficar exposto o tempo inteiro. Eu tenho uma curiosidade muito grande: que tipo de contrato essas televisões fazem com as pessoas? Para mim, deve ser um calhamaço. E eles devem ter uma assessoria muito boa. Porque o risco de alguém ter um surto psicótico dentro de uma casa como a do Big Brother é muito grande. Num confinamento daqueles, com aquele tipo de competição, de estresse, de desorientação, tudo pode acontecer. É uma câmara de tortura.

Mas o senhor parece estar descrevendo mais do que uma câmara de tortura. Está descrevendo um escritório de uma empresa atual.
Sim, até mesmo uma universidade, uma instituição financeira. Mas acontece que num programa desses tudo fica compactado. Agora você entendeu a função do rito. Obviamente aquilo tudo é glamorizado, com as cores e o poder da televisão, mas é por isso mesmo que ele traz uma sensação de esvaziamento. Você “se refresca” vendo aquilo. Por que a gente conta contos de fadas para as crianças, à noite? O lobo mau que devora a vovozinha é uma imagem duríssima. Hoje em dia tem a solução: o caçador tira a vovó da barriga do lobo. Mas, mesmo que no conto original não fosse assim – o lobo devorava a Chapeuzinho também e ficava por isso mesmo –, a historieta tem uma função hipnótica e sonífera, “outra pessoa passou por isso”. A criança vai e dorme. E, no caso de programas como reality shows, há ainda a edição, por menor que seja. A gente sabe que na vida não tem edição, não tem como voltar atrás, rebobinar. O Big Brother termina proporcionando às pessoas algo como um “genérico” − você até encontra tragédias ali, mas suavizadas, um “genérico de tragédia”, vamos dizer.

Mas há todo um universo por trás desses programas, as pessoas que ganham com isso, que agem por detrás...
Existe esse universo paralelo que fatura e ganha em cima. Voltemos ao Coliseu: havia os treinadores de gladiadores, os traficantes que iam buscar as feras, que dizimavam os animais, houve noite em que se mataram 20 mil feras. Eu falei que a gente tem sombras individualmente, mas veja bem: uma família tem sombra, uma cidade tem sombra, uma cultura tem sombra. Um acontecimento dessa ordem, um reality show, também tem sua sombra. A gente não sabe nem metade da missa. Por isso é difícil comentar. Tem sempre um editor, que é quem decide o que a câmera vai mostrar, se o choro de um ou o riso do outro, ou os dois fazendo uma combinação sacaninha...

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