sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Paulo Arantes - O CAOS COMO REGRA

Doutor em Filosofia pela Universidade de Nanterre, na França, Arantes comenta nesta entrevista o caos sistêmico pelo qual o mundo passa e a ausência de política, que leva a guerras e ao terrorismo

POR PATRÍCIA PEREIRA
FOTOS: PAULO BRASIL

“A rigor, ninguém sabe ao certo por que Bush invadiu o Iraque. Obviamente, petróleo, Israel, establishment industrial-militar etc. pesaram, mas o que realmente se tinha em mente continua um mistério”
Paulo Arantes aposta que “dentro em pouco o caos iraquiano estará sendo vendido à comunidade internacional como um paradigma de best practice”. O filósofo marxista lançou em 2007 o livro Extinção (Boitempo Editorial), em que, entre outros temas, analisa o imperialismo norte-americano e a guerra no Iraque. Graduado pela Universidade de São Paulo (USP) – onde foi professor do Departamento de Filosofia de 1968 a 1998 – e doutor em Filosofia pela Universidade de Nanterre, na França, Arantes comenta nesta entrevista o caos sistêmico pelo qual o mundo passa e a ausência de política, que leva a guerras e ao terrorismo. Também afirma que a Era dos Extremos, que se encerrou com o breve século XX, segundo Eric Hobsbawm, parece estar de volta. Só que escalando entre extremos indiscerníveis.

FILOSOFIA - Em seu mais recente livro, Extinção, você cita a presença dos EUA no Iraque como exemplo da desordem que o mundo vive hoje. Diz que não dá mais para diferenciar quem ganha e quem perde ou onde termina a guerra e começa a paz. O cenário de caos que se alastrou no mundo é conseqüência de um somatório de decisões aleatórias, não interligadas, ou é o resultado de uma nova forma de organização social, ainda que caótica?
Paulo Arantes - É como você diz, a novidade não está no cenário de caos, mas na impossibilidade de saber onde termina o surto de insanidade social e começa a rotinização do impensável. A governança global hoje é o caos sistêmico, os opostos estão se tornando indiscerníveis. Não por acaso alguns sociólogos brasileiros já estão falando numa Era da Indistinção, em primeiro lugar porque a grande mutação cataclísmica da sociedade brasileira mostrou-lhes que não dá mais para distinguir, por exemplo, entre a ebulição participativa dos movimentos sociais e o protagonismo da sociedade civil exigido pelo grande capital privatizante – quer dizer, entre nova esquerda e nova direita. Também ficou difícil distinguir no aplicador financeiro indireto de um fundo de pensão, o assalariado do qual se extrai mais-valia, portanto o rentista, do explorado, para não falar no trânsito popular infernal pela miríade de ilegalismos alimentados por uma outra crescente indistinção entre o lícito e o ilícito. Em suma, a mesma lógica da indistinção ou da intercambiabilidade entre opostos indiscerníveis vem a ser o princípio do governo pelo caos que se alastra por um mundo que virou de vez a página da normalidade capitalista, com ou sem aspas. Por isso, a invasão e a ocupação do Iraque – uma guerra de escolha e não um último recurso – tornou-se paradigmática: caos programado ou desastre estratégico? Segundo Paul Virilio, chegamos a um ponto em que o substancial e o acidental já não se distinguem mais como nos tempos da ontologia aristotélica, isto é, desde sempre. Não só o acidente tornouse substantivo – o que em si mesmo já definiria a novidade radical de nossa atual Sociedade de Risco – como a explosão acidental de uma megaestrutura crítica tornou-se para todos os efeitos e nova direita. Também ficou difícil distinguir no aplicador financeiro indireto de um fundo de pensão, o assalariado do qual se extrai mais-valia, portanto o rentista, do explorado, para não falar no trânsito popular infernal pela miríade de ilegalismos alimentados por uma outra crescente indistinção entre o lícito e o ilícito. Em suma, a mesma lógica da indistinção ou da intercambiabilidade entre opostos indiscerníveis vem a ser o princípio do governo pelo caos que se alastra por um mundo que virou de vez a página da normalidade capitalista, com ou sem aspas. Por isso, a invasão e a ocupação do Iraque – uma guerra de escolha e não um último recurso – tornou-se paradigmática: caos programado ou desastre estratégico? Segundo Paul Virilio, chegamos a um ponto em que o substancial e o acidental já não se distinguem mais como nos tempos da ontologia aristotélica, isto é, desde sempre. Não só o acidente tornouse substantivo – o que em si mesmo já definiria a novidade radical de nossa atual Sociedade de Risco – como a explosão acidental de uma megaestrutura crítica tornou-se para todos os efeitos

1Acidente ocorrido na cidade Bhopal, centro da Índia, no dia 3 de dezembro de 1984,
quando produtos químicos foram liberados acidentalmente da fábrica de pesticidas
da Union Carbide, provocando a morte de cerca de 3 mil pessoas e milhares
de feridos. Os responsáveis ainda não foram culpados pela tragédia.

FILOSOFIA - De que maneira a Era dos Extremos estaria de volta?
Paulo Arantes – Parece estar de volta. Só que, desta vez, escalando entre extremos indiscerníveis. Trata-se de uma verdadeira ruptura de época e da correspondente obsolescência de antigas categorias, a começar pela racionalidade estratégica, por exemplo, na adequação entre meios e fins. A rigor, ninguém sabe ao certo por que Bush invadiu o Iraque. Obviamente, petróleo, Israel, establishment industrial-militar etc. pesaram, mas o que realmente se tinha em mente continua um mistério – talvez porque não haja mesmo resposta para uma pergunta formulada nos moldes antigos: por exemplo, a que política a guerra do Iraque estaria dando continuidade por outros meios? Conhecemos a resposta de Baudrillard – nada trivial: a nenhuma! Mais precisamente, tanto as atuais guerras de gestão do caos quanto a correspondente escalada terrorista nada mais são do que o prolongamento por outros meios da ausência de política. Absolutamente nada foi dito nem exigido em troca no 11 de setembro. Quanto à estranha mescla de caos e grand design atualmente em curso no Iraque e no Afeganistão, da qual, segundo os autores do livro Afflicted Powers [Iain Boal, T. J. Clark, Joseph Matthews, Michael Watts, entre outros, que fazem parte de um grupo baseado em São Francisco, Estados Unidos, antagonista do capital e império], nenhuma análise meramente econômica ou política dará mais conta, é preciso por certo convir que plantar uma presença militar americana de larga escala e longa duração no coração do Oriente Médio representa uma enorme iniciativa estratégica, destas de criar ou quebrar impérios. Quem assim se exprime é um calejado estudioso da comunidade americana de segurança, Thomas Powers, que não obstante chegou à conclusão paradoxal de que parece mesmo não ter havido nenhuma versão interna, sofisticada, profissional, dos motivos que levaram a uma guerra de dissolução do Estado e da sociedade iraquianos. Ausência de “pensamento” também. Não menos interessante, continua o argumento, é a evidente vontade da maioria parlamentar democrata de não saber quais foram os motivos que levaram Bush à guerra. Daí o desfecho revelador do novo curso do mundo, apenas enunciado como um teorema da névoa que envolve as guerras caotizantes de agora: “Não saber por que entrávamos permitiu que entrássemos; não saber por que deveríamos sair tornará impossível sair”. Tampouco Hobsbawm está entendendo muita coisa (com todo o respeito) dessa nova era de extremos indiscerníveis, neste caso, ordem e desordem. Como se pode depreender de seu último livro, o epicentro da desordem mundial se encontra no governo incontrolável e irracional que se estabeleceu em Washington, como se o princípio freudiano de realidade não funcionasse para Bush e seus milhões de eleitores milenaristas. Até mesmo Perry Anderson [intelectual e historiador marxista inglês, editor da revista New Left Review] parece derrapar no último editorial da New Left Review (novembrodezembro de 2007). A seu ver, embora seja inegável o declínio da economia americana num contexto global no qual despontam outros centros alternativos de poder capitalista, sua capacidade gerencial em termos de ativos estruturais de poder continua mais do que nunca indispensável aos sócios da assim chamada comunidade internacional de oligarquias rentistas e monopolistas. Quanto ao mundo subalternizado do trabalho, cuja população simplesmente dobrou na presente conjuntura – aproximadamente 3 bilhões de indivíduos são esfolados numa escala que nem mesmo o século XIX conheceu – no curto prazo constitui muito mais um ativo do que uma ameaça para o capital, enquanto o seu poder de veto permanecer próximo de zero. A conjuntura é, portanto, de harmonia (a Casa da Harmonia – na fórmula de Perry Anderson) num ambiente de negócios densamente interconectados: se porventura a supremacia americana vier a ser desafiada, o sistema enquanto tal ainda permanecerá fora de questão, sistema, no entanto, que esta mesma supremacia controla frouxamente, porém defende com firmeza nunca vista.

O termo caos tornou-se lugar comum, expectativa
de paz com o fim da Guerra Fria


Arqueologia dos temores
[Sobre os intelectuais] No Brasil e no mundo, todos e cada um encasulados em uma espécie de bunker particular. Como gerentes de risco de si mesmos, não mexem um dedo sem garantias contra qualquer excesso. É bem verdade que muitos experimentos anticapitalistas do passado são mesmo de meter medo, sendo aliás imprudente caluniar abstratamente a polícia. Essa a conjuntura mental que um retrato intelectual do Brasil contemporâneo deveria rastrear, uma arqueologia dos temores que paralisam faz algum tempo a inteligência do País. Quando se instalou exatamente essa estratégia de sobrevivência, que se poderia caracterizar como um estado de sítio moral? Qual a matriz desse mecanismo defensivo que se exprime por estereótipos economicistas acerca da falta de alternativas? A história social do medo intelectual no Brasil nos levaria longe.

Trecho do livro Extinção, de Paulo Arantes, da editora Boitempo

FILOSOFIA - Dentro desta perspectiva, como pode ser encarado o conflito atual no Oriente Médio?
Paulo Arantes - Nesta “sinfonia da ordem capitalista global”, o conflito no Oriente Médio só pode aparecer como uma “irracionalidade”, histórica e regionalmente circunscrita – entre as aberrações responsáveis por esta descalibragem assustadora, a defesa incondicional do poder colonial de Israel. A mencionada ausência de pensamento estratégico que teria dado forma a este episódio central do “império do caos” – como Alain Joxe designa a estratégia americana de externalização da violência – seria assim a expressão desta interrupção anômala do cálculo capitalista, confrontado com uma zona opaca de desmandos imperiais acumulados, ponto cego dos planejadores americanos ao tratar o Oriente Médio como um campo de forças qualquer.

FILOSOFIA - Que conseqüência essa “falta de pensamento” trouxe para o mundo?
Paulo Arantes - À cegueira dessas irrupções na região – região, no entanto, desde sempre fidelizada aos imperativos da acumulação - corresponde à série de efeitos bumerangue que culmina no 11 de setembro, acrescentando assim uma nova e desnecessária rodada na “espiral de irracionalidades”. Enfim, não estava provado que uma solução de mercado não fosse possível. Simples assim. Perry Anderson chega ainda a especular, com muita verossimilhança, a propósito, se não seria o caso, colocando afinal a região nos eixos, de uma histórica visita- Nixon ao Irã, onde não faltam mulás milionários, bazaari poderosos, profissionais ocidentalizados, estudantes “bloguisados”, etc. Sobressaltos irracionais à parte, a normalidade capitalista retomaria seu curso neste último bolsão de turbulências incompreendidas pelos gestores globais de segurança do sistema. No fundo, ainda uma variante do argumento blowback, algo como um contravapor ou ricochete explosivo, formulado pela esquerda liberal americana: estamos colhendo as tempestades provocadas pelos ventos semeados com nossa desmesurada projeção de poder nas regiões críticas do mundo. Um pouco como Sarkozy atiçando a “ralé” dos “bairros sensíveis” da periferia francesa. Endossando tal argumento, a teoria crítica volta a marcar passo ao procurar preservar assim uma noção de causa e efeito cujo prazo de validade venceu, além de demarcar um mundo polarizado entre a ordem do centro e a desordem da margem. A observação é de Susan Willis analisando a multiplicação dos focos de anomia na própria sociedade americana, cuja normalidade derrete ao sol da expectativa do próximo ataque, de resto uma desordem também “interior”.



FILOSOFIA - Voltando ao “caos” iraquiano...
Paulo Arantes - Na falta de melhor palavra: decididamente a raiz conservadora do termo acaba baralhando a percepção da reviravolta em curso, pois, afinal, o caos tem origem social subalterna enquanto o cosmo espelha no universo o ordenamento cívico dos civilizados. De resto, o termo caos tornou-se um lugar comum datado, exatamente do sentimento de frustração das expectativas investidas nos quiméricos dividendos da paz a serem distribuídos com o fim da Guerra Fria. Nem mesmo teóricos do World System como Giovanni Arrighi escaparam inteiramente da armadilha, batizando de caos sistêmico o interregno turbulento historicamente recorrente toda vez que se processa uma mudança da guarda nos círculos superiores da hegemonia mundial, como é o caso hoje com o declínio violento de um hegemon recalcitrante, com uma novidade geopolítica que, no entanto, faz toda a diferença no emprego do termo equívoco caos, uma inédita bifurcação entre capacidades financeiras e militares, sem precedentes nas outras transições hegemônicas: é que se uma tal bifurcação reduz a probabilidade de eclosão de uma guerra entre as unidades mais poderosas do sistema, como nos séculos anteriores, não reduz as probabilidades de que a atual crise hegemônica “degenere” num “caos sistêmico” indefi- nidamente prolongado, adiando ameaçadoramente a recondução do sistema ao seu trilho habitual de governança. Daí a inversão pela qual comecei a resposta à sua dúvida na primeira pergunta. Estava obviamente citando. Ora, o caos iraquiano – e demais “ocupações” correlatas mundo afora – é um desses laboratórios de gestão-dissolução. Será, todavia, mais convincente um argumento involuntário nascido no próprio establishment, no caso um artigo irônico do jornalista Jim Holt, afirmando que é o petróleo sim e que os Estados Unidos estão encalacrados justamente onde Bush & Cia. queriam, e que por isso mesmo não há nem pode haver estratégia de retirada. Ora, dizer que a ocupação do Iraque não foi um fiasco, mas um sucesso retumbante, que foi precisamente um serviço horrivelmente malfeito, pouco importa se de caso pensado ou não, basta agir com a desmedida de uma força da natureza, que praticamente garantiu que o Iraque venha a se transformar num protetorado americano é o mesmo que admitir então, atinando enfim com a real acepção contemporânea da palavra caos, que a desgraça social está se convertendo hoje não só numa gigantesca fronteira de acumulação, mas também na principal alavanca disciplinar de controle das populações. Tanto faz se desconectadas e em situação de risco, ou integradas, porém ameaçadas em meio à afluência, assentadas em territórios convulsionados, também tanto faz se por conflitos militares ou catástrofes naturais que no limite já são plenamente sociais. Dentro em pouco o caos iraquiano estará sendo vendido à comunidade internacional como um paradigma de best practice.

Há quem veja na virada atual de maré o início de uma terceira
onda emancipatória no continente (latino-americano)

Guerra preventiva
O sistema capitalista de exploração e controle se caracteriza pela autonomização recorrente de processos sociais que passam a funcionar como uma segunda natureza. A sensação de que a administração Bush perdeu o contato com a realidade se explica em grande parte por essa circunstância. Num certo sentido, a paranóia que a impulsiona é objetiva, pois obedece a uma tal necessidade de segundo grau. No entanto, não é menos verdadeiro que se trata de uma guerra por escolha, e não por necessidade. A analogia com o etos guerreiro do cowboy tem sua razão de ser: numa guerra preventiva, em princípio também vence quem saca primeiro, porém na segunda ou terceira guerra não se poderá mais ignorar o aberrante automatismo do gesto.


Trecho do livro Extinção, de Paulo Arantes, da editora Boitempo

FILOSOFIA - Partindo dessa perspectiva, caos viraria a norma?
Paulo Arantes - Se Naomi Klein tem razão, a indistinção entre boa governança e caos sistêmico (as aspas agora ficam subentendidas) assinala a irresistível ascensão do “capitalismo de desastre”, algo como a privatização final da guerra e dos “acidentes”, de preferência em escala mega: assim como as guerras hoje são, sobretudo, de escolha ou preventivas, bem como também podem eclodir ou “estourar” como o rompimento de um dique, os acidentes também podem ser induzidos ou simplesmente “acontecer”. O princípio do disaster capitalism complex, que englobou e expandiu seu precursor industrial-militar dos tempos de Eisenhower, é o da tábula rasa social, a constelação de traumas e destruições que limpam o terreno para os negócios privados, dos socorros humanitários às reconstruções, passando obviamente pelos da segurança, qualquer que seja a natureza do sinistro, maremoto, quebra financeira ou atentado terrorista, qualquer ambiente caótico em suma que configure um estado de necessidade demandando medidas de urgência. Chegamos assim a uma derradeira indistinção entre forças produtivas e forças destrutivas. Daí o outro tipo de estado de guerra permanente: segundo a lógica do capitalismo de desastre, a do caos sistêmico como força produtiva, não é mais preciso aguardar o fim da guerra para abrir os novos mercados da paz. A guerra inteiramente privatizada segundo o modelo do for-profit warfare já é ela mesma o novo mercado a todo vapor. Vale para as novas guerras de produção e gestão do caos o que vale para a indústria cultural: o meio é a mensagem, no achado de Naomi Klein: mas guerras assim politicamente vazias só se autonomizam como assunto privativo de Estados em simbiose com as Corporações, nada mais distingue Big Government e Big Business, os oligarcas são indistintamente russos, americanos ou chineses. Governa-se gerando e gerindo traumas de toda ordem, o capitalismo hoje só acumula empurrado por ondas de choque: não por acaso a tortura está de volta com uma base social ampliada em escala global. O desastre governável e rentável não pode prescindir destes estados de choque intermitentes, cuja sinistra trivialização qualquer brasileiro conhece muito bem.


“O princípio do disaster capitalism complex, que englobou e expandiu seu precursor industrialmilitar dos tempos de Eisenhower, é o da tábula rasa social, a constelação de traumas e destruições que limpam o terreno para os negócios privados, dos socorros humanitários às reconstruções, passando obviamente pelos da segurança”
FILOSOFIA - O nome do livro, Extinção, remete a um fim certo, sem possibilidade de salvação para o mundo. Você enxerga algum caminho político para reverter esse processo?
Paulo Arantes - Colhido por assim dizer em estado de dicionário, só o título, e olhe lá. Quanto ao autor, quando muito limita-se a seguir o velho preceito de esquerda, pessimismo da inteligência e otimismo da vontade. Dito isto, talvez ajude uma digressão contra-intuitiva. É que parece estar se dando na presente conjuntura um tremendo disparate intelectual: tudo indica que está desabrochando na esquerda um paradoxal otimismo da inteligência. Pelo menos é nesta chave que Perry Anderson, no editorial citado há pouco, encara algumas leituras alternativas da atual convivência, digamos ultra-imperialista à maneira de Kautsky, entre Harmonia capitalista e Guerra idem. Quatro posições críticas, porém, positivadoras do novo curso do mundo são brevemente resenhadas: o esquema do Império de Toni Negri, a Nação global de Tom Nairn, as visões chinesas do Giovanni Arrighi de Adam Smith em Pequim e a menos conhecida elaboração do filósofo Malcolm Bull acerca de uma reconstituição da Sociedade Civil em bases pós-mercado graças à entropia dos Estados imperiais (Europa, União Soviética, Estados Unidos). Está claro que não vem ao caso resumi-las, apenas chamar atenção para a bizarria desta evocação, à qual se deveria acrescentar sua contraparte: num ensaio anterior, o mesmo Perry Anderson mostrava como filósofos tão construtivos como Habermas, Bobbio e Rawls haviam se tornado não obstante, ou por isso mesmo, os mais consistentes advogados das novas guerras justas, claro, e sempre em nome da humanidade contra o seu inimigo de turno. Como disse, todos saúdam a entrada em cena da globalização como um sinal precursor da superação do capitalismo enfim encaminhada. Mas essas positivações - mais ou menos na mesma linha do progressismo oitocentista - não deixam por sua vez de pagar o seu tributo ao senso comum do nosso tempo: tudo se passa como se um choque aberrante entre fundamentalismos simétricos empurrasse o mundo para a beira do abismo. Vimos que não é bem assim como querem: algo como a constituição em processo de uma economia mundial senão igualitária, pelo menos em condições de reverter a polarização do período inicial da globalização, agora atalhada pela metamorfose militarista do poder americano: até então Estado hegemônico criador de ordem, os Estados Unidos se tornaram agentes do caos - a implosão iminente do Paquistão que o diga, muito embora na gramática superficial do mero convite ao bom senso, para variar, o confronto de sempre entre normalidade e exceção.

FILOSOFIA - Contra o neoliberalismo, há uma reviravolta iniciada por alguns países da América Latina, onde esquerdistas governam. É uma luz que se abre?
Paulo Arantes - De fato a nova paisagem latino-americana im pres siona, sobretudo se comparada ao relativo bloqueio dos movimentos sociais europeus, nele incluído os mais recentes combates franceses de retaguarda. Há quem veja na virada atual de maré o início de uma terceira onda emancipatória no continente, que por aqui sempre foi ambiguamente bifronte, a um tempo ruptura moderada das classes proprietárias com os centros cíclicos metropolitanos, e insurgência radical dos povos subalternizados desde a Conquista. A primeira onda assistiu à formação dos Estados Nacionais. A segunda, foi deflagrada com a crise dos anos 30 e se espraiou pelas várias frentes mais ou menos heterodoxas de luta contra o subdesenvolvimento. Foi precisamente no pico deste ciclo que a Revolução Cubana avançou o sinal. No interregno neoliberal que se seguiu ao colapso da modernização, a reconversão colonial voltou a ameaçar, mas algumas economias haviam logrado, no entanto, completar a sua matriz industrial. Ora, cada uma destas esquinas históricas foi dobrada num período propício de crise global das hegemonias mundiais, mudança da guarda no centro, liberdade de manobra na periferia. Além do mais, foram momentos por assim dizer ascensionais da expansão capitalista, bem ou mal incorporando sujeitos e direitos novos. Não poderia ser maior o contraste com a fase destrutiva de agora, a começar pela turbulência global que acompanha a geopolítica errática do alto comando capitalista. Neste vácuo, a América Latina começou a se mexer, empurrada pelo fracasso retumbante das políticas impostas pelo Consenso de Washington e a nova corrida mundial aos recursos naturais, o que acarretou uma relativa folga na escolha de rotas nacionais de adaptação ao novo mundo dos negócios globais. Mas estamos falando de sociedades detonadas e elites cronicamente predadoras. Por isso as “refundações” nacionais envolvem programas sociais de emergência, como as “missões” venezuelanas indicam no próprio nome. Não se trata de trilhar o caminho certo ou errado, foi o único que se abriu na presente circunstância de ... “caos sistêmico”. Aliás, todos pularam sobre a mesma janela de oportunidades, resguardadas as diferenças locais de calibragem. Até o famigerado Consenso de Washington não é mais o mesmo e se encontra em sua terceira geração – é só aplauso para as bem- sucedidas políticas latino-americanas de gestão da pobreza e desenvolvimento humano.

PATRÍCIA PEREIRA é jornalista e escreve para esta publicação

Revista Filosofia

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

MOACYR SCLIAR - Literatura e medicina

Literatura e medicina

Os livros têm a ver com a condição humana

MOACYR SCLIAR

Moacyr Scliar / Foto: Francesco Barale

Moacyr Scliar, natural de Porto Alegre, divide sua vida profissional entre a medicina e a literatura. Como médico, é especialista em saúde pública e doutor em ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública. Foi professor visitante na Brown University e na University of Texas-Austin, nos Estados Unidos.
Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), é autor de 80 obras de vários gêneros, entre romances e livros de contos, ensaios, crônicas e ficção infanto-juvenil, com edições em pelo menos 20 países.
É colunista dos jornais "Zero Hora", de Porto Alegre, "Folha de S. Paulo" e "Correio Braziliense". Recebeu vários prêmios, entre os quais o Prêmio José Lins do Rego, da ABL, o da Academia Mineira de Letras, o Prêmio Jabuti, o Prêmio Casa de las Américas, o Prêmio Guimarães Rosa e o Prêmio Mário Quintana.
Esta palestra de Moacyr Scliar foi proferida no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio, Sesc e Senac de São Paulo, no dia 18 de junho de 2009.


Em 1993, o chefe do Departamento de Estudos Literários da Brown University, uma pessoa que já conhecia, me convidou por telefone a dar um curso de seis meses sobre literatura para os alunos da universidade. Fiquei um tanto intimidado e lhe disse que era escritor, não professor de literatura, e não me sentia em condições de dar esse curso para estudantes de letras. Ele: "Mas quem falou em estudantes de letras? São alunos de medicina". Mais: disse que o curso não seria o único e haveria outras pessoas lecionando para a mesma área. Quando cheguei lá, descobri que a área se chamava humanidades médicas e envolvia várias disciplinas, como história da medicina, antropologia, ética, comunicação, e que minha disciplina seria literatura e medicina.

Foi uma experiência extremamente interessante e comecei a me dar conta de que não se tratava, vamos dizer, de uma diversão intelectual. Os americanos são extremamente pragmáticos e aquilo tinha uma razão muito objetiva. Era a crise na medicina americana. Ela vive várias crises e atualmente estão tendo uma discussão ampla sobre a reformulação do sistema de assistência médica. É a medicina mais cara do mundo, é claro que também extremamente eficiente, mas deixa a desejar sob muitos aspectos. Um deles é que cerca de 40 milhões de americanos não têm nenhuma cobertura assistencial, porque lá isso depende em grande parte de seguros de assistência médica.

Justamente quando cheguei lá, o presidente Bill Clinton ia tomar posse e uma das coisas que propunha fazer era reformular a assistência médica do país. A pessoa encarregada disso era Hillary Clinton e o local onde anunciou os planos foi a Brown University. Esta foi escolhida porque vários dos assessores de Hillary eram dessa universidade, mas as medidas anunciadas nunca saíram do papel. Era um plano extremamente ambicioso, porém muito complicado e por isso não decolou. O problema administrativo continuou, mas havia um outro, e este os levou a mudar o currículo médico. Era a questão do mau relacionamento entre médicos e pacientes nos Estados Unidos. O número de ações movidas contra médicos estava aumentando exponencialmente e continua em crescimento, obrigando os profissionais a fazer seguro.

Entre as várias pessoas que conheci lá havia um médico que foi obrigado a fechar seu consultório, porque não tinha como pagar o seguro contra processos. Simplesmente encerrou a prática privada e foi trabalhar como empregado numa policlínica, pois a empresa pagava seu seguro. A situação era muito preocupante e uma das coisas que eles identificaram como causa disso foi que, em função do desenvolvimento tecnológico da medicina, a relação médico-paciente havia mudado, e não para melhor. O que acontecia era uma consulta muito sumária, em que o médico perguntava algumas coisas e solicitava uma bateria de exames, seguidos de uma série de procedimentos. Os pacientes se sentiam mal atendidos com isso. E quando entravam na Justiça, na verdade não estavam se queixando de erros médicos, mas de um problema psicológico.

A discussão dessa realidade fez com que chegassem à conclusão de que deveriam mudar a formação profissional, o ensino. Introduziram então esse conceito de humanidades médicas. Devo dizer que até hoje isso continua sendo uma tentativa, mas não ocorreu a eles outra coisa. Em alguns casos, o fundamento é evidente quando falam em comunicação. É óbvio, porque há médicos que não sabem falar com o paciente.

Quando comecei a trabalhar em saúde pública, meu primeiro consultório foi num posto de saúde nas vizinhanças de Porto Alegre. Eu conversava com as pessoas e explicava certas coisas, por exemplo, como tratar uma diarreia infantil. Nunca tinha me ocorrido indagar se elas compreendiam o que eu estava dizendo, mas um dia perguntei a uma mulher: "A senhora entendeu o que tem de fazer com sua filha?" Ela disse: "Entendi". Retruquei: "Então me diga com suas palavras o que a senhora entendeu". Ela começou a chorar, porque na verdade não tinha entendido nada, mas sentia vergonha de dizer. A gente se dá conta dessas coisas dolorosamente, ao longo de muitos anos.

Esse problema já tinha sido identificado numa conferência que ficou famosa, proferida em 1959 pelo físico e escritor Charles Percy Snow. Era uma aula inaugural e se tornou conhecida como "As Duas Culturas". Ficou tão famosa que foi transformada em livro que circula por aí, as edições em inglês são incontáveis. Este ano faz exatamente 50 anos que a palestra foi proferida e continua na ordem do dia. Percy Snow levanta o conceito das duas culturas, que a rigor não é totalmente novo, sabemos disso, e que ele resume neste trecho: "Intelectuais e literatos de um lado, cientistas de outro. Entre os dois lados, um abismo de mútua incompreensão e às vezes até de hostilidade. Cada lado tem uma imagem distorcida do outro. Os não cientistas tendem a pensar nos cientistas como arrogantes, otimistas ingênuos, ignorantes da condição humana. Os cientistas acham que escritores e intelectuais não têm nenhuma visão do futuro, que não estão preocupados com os seres humanos e que restringem arte e pensamento apenas a um momento existencial". Ele realmente descreveu, de forma bem sintética, esse abismo, essa diferença entre duas maneiras de sentir, que acabei experimentando na própria carne, por assim dizer.



Fonte de informação



Sou escritor, escrevo desde criança, nem podia ser outra coisa porque, menino do bairro do Bonfim em Porto Alegre, sou filho de um pai imigrante que era um grande contador de histórias. Era desses narradores que conseguem fascinar as pessoas contando histórias de imigrantes, de como era a Rússia quando vivia lá, como foi a viagem, a descoberta do Rio Grande do Sul, para onde veio para um projeto de colonização agrícola. E de uma mãe também imigrante, extremamente dedicada e culta, ao contrário de meu pai, que não cursou colégio. Ela era professora, adorava literatura e deu para o filho o nome de um personagem de José de Alencar. A crença que tinham no livro era uma coisa comovente. O livro não era só uma fonte de informação ou uma maneira de conhecer literatura. Era a porta de entrada para um mundo melhor, porque éramos pobres. Meu pai era marceneiro, minha mãe ganhava pouco como professora, e o que queria dizer com cada livro que ela me dava (e me deu muitos) era: "Nossa vida é precária, mas a tua vai ser muito melhor, se entrares no mundo da cultura, da informação".

Então muito cedo eu escrevia minhas historinhas e muito cedo pensava em medicina. Tornei-me escritor porque gostava de escrever e me tornei médico (isso concluí depois de pensar muitos anos) porque tinha medo de doença. Não medo de ficar doente, não sou hipocondríaco, mas quando meus pais ficavam doentes eu entrava em pânico. O temor de que alguma coisa acontecesse com eles era de tal ordem que eu tinha uma curiosidade anormal em relação à doença. Perto de casa havia um hospital famoso, o Pronto-Socorro de Porto Alegre, e eu ficava espiando os médicos pela porta. Fiz medicina, trabalhei um tempo como clínico e depois fui para a saúde pública, em grande parte motivado pelos impulsos de minha geração, que queria mudar o país e o mundo. Não conseguimos, evidentemente, mas saúde pública, para quem fazia medicina, era uma forma de chegar a isso. A ideia era levar os benefícios da medicina ao povo brasileiro.

O problema da comunicação em saúde deriva em primeiro lugar da incompreensão por parte do médico em relação às palavras utilizadas pelo paciente para expressar a dor, o sofrimento, o significado que a doença tem para ele. Não se envolver parece ser uma palavra de ordem, primeiro para não perturbar o raciocínio. A ideia é esta: o médico tem de ser uma pessoa isenta, não pode estar emocionalmente comprometido para não perturbar a capacidade de julgamento. Não pode, por exemplo, atender um parente, mas isso significa um distanciamento às vezes excessivo. Existe um trabalho que mostra que 50% dos pacientes que consultam um clínico geral nos Estados Unidos descrevem uma série de sintomas que o médico simplesmente ignora. Isso acontece porque seu raciocínio está dirigido para a elaboração do diagnóstico e ele automaticamente vai descartando o que considera colateral na narrativa do paciente. O paciente se dá conta de que o médico não presta atenção no que ele diz ou que não o ouve. Às vezes ele não presta atenção porque está anotando ou verificando a tela do computador em vez de olhar para o paciente.

Os psicanalistas descobriram isso muito cedo, não os de divã, mas os que fazem psicoterapia, e aprenderam que é preciso ficar olhando para o paciente enquanto este fala. Por outro lado, os médicos também têm dificuldade de se comunicar com o paciente. Quando o futuro médico entra na faculdade de medicina, troca sua linguagem e começa a falar "mediquês". É um processo absolutamente imperceptível. Esquece o vocabulário "vulgar" e passa a usar palavras técnicas. De repente está dizendo ao paciente: "O senhor tem uma flebite". Será que ele sabe o que é flebite? Hoje em dia as pessoas de classe média estão bem mais informadas, graças à internet, mas os mais pobres continuam sem esse conhecimento.

Existe uma dificuldade para o paciente aderir ao tratamento. Quais são as soluções para isso? Uma delas é abordar o paciente e não a doença como centro de estudos. Eu ainda era estudante de medicina e meus professores diziam: "Não existem doenças, existem doentes". Por outro lado, há a questão da empatia, participar das emoções do paciente. Não se trata de se deixar contaminar pela sua emoção, mas de entendê-la e analisá-la de forma serena e tranquila.

Formação continuada

Um segundo item, que tem a ver com o convite da Brown, é a nova abordagem da educação do profissional de saúde, não só do médico. Inclui a formação continuada, com essas pessoas analisando constantemente seu próprio desempenho, conhecendo suas falhas, erros e as atitudes que podem melhorar. Em terceiro lugar, o exercício humanista da profissão. Para isso é necessário ter informação e conhecimento, altruísmo e solidariedade, profundo respeito pelas pessoas e capacidade de comunicação interpessoal. O objetivo é ver a pessoa como um todo. Em inglês há dois termos para doença, um é disease, que é a doença propriamente dita, e outro é illness, que é a condição de estar doente, é como a pessoa se sente, como vive sua doença. A tuberculose, por exemplo, é uma doença (disease), de uma pessoa infectada por um bacilo. Illness é como essa pessoa vive sua tuberculose. Essa diferença é muito importante. Um grande médico americano do século 19 dizia: mais importante do que aquilo que o médico faz é o que o paciente pensa que o médico faz, ou seja, como o paciente vê a ação do médico. Pode ser um argumento subjetivo, aparentemente pouco científico, mas é o que acaba regendo a relação médico-paciente que pretendemos humanizar.

A questão literatura e medicina vem ao encontro de outra conjuntura que faz parte de nossa cultura, que é a maneira como encaramos a literatura. Acaba de sair um livro do filósofo búlgaro Tzvetan Todorov, atualmente residente em Paris, que discorre sobre a crise nessa área. O que está acontecendo com o ensino da literatura é um pouco o que acontece com a medicina. A literatura hoje em dia nas escolas e nas universidades é uma disciplina curricular, cai em vestibular. Em Porto Alegre, agora menos, porque o tempo passou, mas quando meus amigos tinham filhos vestibulandos era certo que na véspera do exame um deles me telefonava: "Tio, amanhã tu vai cair no vestibular. Tio, me resume aí a tua vida e a tua obra. Caso tu caia no vestibular, eu preciso saber alguma coisa sobre ti". É o que vai acontecer no juízo final, vamos ser interpelados a resumir a vida e a obra ligeirinho, porque a fila é grande. Então a literatura se transformou numa coisa classificatória, é preciso saber se o autor é de tal ou qual escola, seu estilo, como se desconstrói, como se estrutura etc. Pergunta-se sobre obras literárias como se pergunta quais são os afluentes do Amazonas, a pessoa tem de memorizar. Mas que utilidade tem saber quais são os afluentes do Amazonas se ela não vai para o Amazonas? Se for, ela estuda isso. Mas a literatura ficou assim mesmo, uma coisa objetiva, seca. Os alunos estudam através de resumos, os trabalhos que eles têm de fazer já estão prontos na internet, é só buscar.


O exemplo de Tolstói


Então há uma crise dentro da literatura. Temos de um lado a crise de desumanização da medicina, de outro lado a crise da literatura e de repente estou lá na universidade Brown tentando, junto com um grupo de alunos, superar essas duas crises. Fazer com que eles se deem conta de que a relação médico-paciente é entre seres humanos e conseguir isso através de obras literárias. Dá para fazer, porque existem obras literárias que são absolutamente decisivas não só na compreensão da existência humana como também na compreensão da relação médico-paciente.

Vou dar um exemplo, que considero definitivo. É uma novela de Liev Tolstói, chamada A Morte de Ivan Ilitch. É um texto muito curto, o que é muito bom, livro não precisa ser longo. Foi escrito por um homem conhecido como humanista, uma pessoa voltada para a condição humana. É considerada por muitos críticos como a melhor novela já escrita. Quando a lemos, percebemos que, se não é a melhor, é forte candidata a ser a melhor, se é que existe tal classificação. A Morte de Ivan Ilitch fala de um homem que vai morrer, o que já sabemos pelo título. Quem é ele? É um advogado conhecido, extremamente arrogante e cônscio de sua importância, um profissional que brilha nos tribunais. Um dia fica doente. Tolstói não diagnostica a doença e isso não tem importância, mas é certo que vai matá-lo. À medida que se vai lendo, percebemos muitas coisas que são importantes para a compreensão do fenômeno da doença e da condição humana. Primeiro, a reação do próprio Ivan Ilitch é curiosa. Ele, como acontece com as pessoas que ficam gravemente doentes, precisa encontrar uma causa, um bode expiatório, algo em que possa botar a culpa de seu mal. E a culpa é que ele bateu em uma mesa com o abdômen, e a partir daí começou a ter problemas e desenvolveu uma doença.

Quem é médico sabe que frequentemente as pessoas atribuem seus males a algo que aos olhos do profissional é absurdo, mas faz sentido dentro da conjuntura emocional delas. Lembro-me de que um dos primeiros pacientes que atendi, ainda como estudante de medicina em Porto Alegre, era um homem com insuficiência cardíaca, completamente inchado, que me repetia constantemente: "Doutor, eu estava bem, mas um dia fui comer um ovo duro e fiquei assim". Ele odiava esse ovo duro. Esse ovo duro para ele não era um ovo, era outra coisa, outra história que eu, por ingenuidade, não perguntei, mas devia ter perguntado. Eu teria descoberto que comer esse ovo duro para ele talvez tenha sido uma transgressão, uma coisa que ele vacilou em fazer, que não devia fazer. Fez e o resultado foi esse castigo, a insuficiência cardíaca brutal. Mas eu já estava pensando como médico, acreditando que isso era bobagem, uma besteira, não tinha nada a ver. E não tinha mesmo, objetivamente não faria muita diferença para ele como cardíaco, mas muita diferença para ele como pessoa. Só que eu via nele um cardíaco, não uma pessoa.

Depois Ivan Ilitch começa a consultar médicos e aí vem o drama, pois os médicos não dão a mínima para ele. Não querem nem que fale e de repente ele se sente como um réu no tribunal, aquelas pessoas não são médicos, são juízes, não estão dando um diagnóstico, mas um veredicto. Um dos médicos diz a ele: "Não precisa falar, vou dizer o que você tem". A desgraça continua porque a família também não entende, e ele não recebe o apoio que esperava. No fim, a única pessoa que o ajuda é um empregado, um camponês russo ignorante, mas que tem uma qualidade absolutamente fundamental, a compaixão. Tem pena do patrão, ajuda-o e faz o papel do médico.



Condição humana



Ler uma novela dessas é absolutamente importante, e eu arriscaria dizer que o estudante de medicina aprende tanto num texto desses, quando o discute convenientemente, quanto nos manuais técnicos que consulta. Há mais exemplos. Para ficar em escritores brasileiros, meu conterrâneo Érico Veríssimo tem um livro chamado Olhai os Lírios do Campo. Não é de suas obras-primas, mas é um livro muito sensível, porque o autor tinha uma vocação médica mal contida. Trabalhou muito tempo em farmácia e conhecia doentes. Médicos aparecem constantemente em sua obra. Tenda dos Milagres, de Jorge Amado, é uma obra na qual se discute a arrogância médica, que não era infrequente na Bahia no começo do século 20, como não era em outros lugares. A Montanha Mágica, de Thomas Mann, tem aquele diálogo famoso, um médico que conversa com seus pacientes no sanatório de tuberculose. Lá pelas tantas ele diz: "A doença é o resultado de uma paixão que não se concretizou. A doença é a paixão transformada". Isso não é verdade no caso da tuberculose, que é uma doença microbiana, ainda que os fatores psicológicos possam ter importância, mas explica muitas coisas. Realmente tudo aquilo que numa época se chamou de medicina psicossomática resulta das paixões transformadas em doença.

Isso mostra como numa área que é hoje muito tecnológica, a medicina, pode-se superar o abismo entre as duas culturas, unindo-as. Não duvido que isso possa ser feito em todas as áreas. Estamos no momento discutindo o papel que a literatura vai ter nas escolas e é muito importante que pais e educadores se deem conta de que o livro medeia uma relação humana. Quem recomenda um livro, quem lê para uma criança, quem discute um livro com uma criança está fazendo, ao fim e ao cabo, uma verdadeira psicoterapia. Literatura é mais do que o estilo, é mais do que a escola literária, é mais do que a denúncia. A grande literatura tem a ver com a condição humana e nesse sentido ela tem um papel cada vez maior no mundo.

Debate

SAMUEL PFROMM NETTO – Ainda há pouco o jornal "O Estado de S. Paulo" publicou um artigo instigante, e ao mesmo tempo desalentador, a respeito da edição de livros de ficção de autores brasileiros. Nessa crítica falou-se da proliferação de traduções de best-sellers, a maioria de língua inglesa, boa parte dos quais de valor literário reduzido ou absolutamente nulo. A esse quadro acrescento a ausência em nossas livrarias dos livros dos mais notáveis escritores patrícios do passado. É inútil buscar, por exemplo, a não ser nos sebos, as obras extraordinárias de José Américo, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Dalcídio Jurandir, Valdomiro Silveira ou Érico Veríssimo, para citar apenas meia dúzia das muitas dezenas de notáveis escritores do passado. A exceção corre por conta deste ou daquele autor exigido nos vestibulares como leitura obrigatória. Isso contrasta vivamente com o que se observa em outros países, particularmente no que respeita a Europa, Estados Unidos, Canadá e Japão. A esse processo de desnacionalização da literatura entre nós acrescento o desaparecimento dos autores portugueses, que num passado não muito distante nos ajudavam a falar, a escrever e a pensar em nosso idioma comum. Estaríamos perante uma hecatombe literária no Brasil?

MOACYR SCLIAR – Não estamos diante de uma hecatombe, acho que não. Realmente é uma situação que pode não ser justificável, mas é explicável. Em primeiro lugar, a questão dos best-sellers. Vivemos num mundo globalizado, lemos o que todo o mundo lê, assim como vemos os filmes que todos veem e ouvimos as notícias que todos ouvem. Não temos, por exemplo, como escapar da indústria cinematográfica americana, primeiro porque é extremamente eficiente, sabe produzir e distribuir filmes interessantes, sabe apelar. Dizem que O Código Da Vinci é um filme horrível, mas todos vão ver, não há como não ver. Todo mundo fala de Harry Potter, e me surpreende que os jovens leiam livros de 600 páginas. Isso de um lado. De outro, temos a questão dos clássicos. Vou dar uma de menino travesso. Com o centenário de Euclides da Cunha, em agosto de 2009, todos falam de Os Sertões. Reli esse livro há dias e me chamou a atenção a última frase, que diz mais ou menos o seguinte: "Não existe nenhum Maudsley que nos explique, enfim, os conflitos brasileiros". Não sei se alguém sabe quem foi Maudsley. Eu teria obrigação de saber, porque ele era médico, um psiquiatra inglês extremamente popular na época de Euclides da Cunha. Henry Maudsley usava a psiquiatria para entender os problemas da cultura. Mas isso no século 19. Hoje em dia ninguém mais sabe quem é ele, é preciso entrar na internet para descobrir. O resultado é que terminamos de ler Os Sertões nos deparando com uma frase que não entendemos. Imaginem a sensação do leitor quando o livro que está lendo termina com uma frase incompreensível, que às vezes ele nem sabe como pesquisar. Isso sem falar do livro, que é importantíssimo, transcendental, mas ilegível. As novas gerações não conseguem ler Os Sertões porque aquele vocabulário e aquela forma de redigir não são os que elas usam.
No colégio que frequentei em Porto Alegre, tínhamos um bom professor de literatura, mas havia outros muito ruins que insistiam nos clássicos. Só que éramos obrigados a ler os clássicos portugueses, porque caíam no exame, e além disso havia um castigo nesse colégio, em que os alunos travessos, caso deste que vos fala, tinham de ficar depois da aula e copiar 20 estrofes de Os Lusíadas. Copiei tantas vezes Os Lusíadas que duvido que algum de vocês conheça a obra melhor do que eu, pelo menos as 20 primeiras estrofes. Mais tarde descobri que Jorge Amado também copiou Os Lusíadas como castigo, era uma praga no Brasil transformar em castigo uma obra literária fundamental da cultura lusófona.

ZEVI GHIVELDER – Mas gerou grandes escritores.

MOACYR SCLIAR – Isso não gerou um escritor, gerou um grande revoltado. Estamos diante de uma situação que tem de ser enfrentada, mas com habilidade. A palavra-chave para apresentar a literatura, tanto na relação entre pais e filhos como entre professores e alunos, é interação. Aquilo não pode ser apresentado como uma coisa sagrada, intocável, venerável. Eles têm de mexer naquilo, têm de pegar um Dom Casmurro e fazer uma adaptação para o teatro, fazer a versão deles dessa obra, mexer no texto, familiarizar-se, entender quem foi Machado de Assis, não como escritor venerável, mas como um mulatinho do Rio de Janeiro, uma pessoa doente, epilética, gaga, que conseguiu dar a volta por cima e terminou morto não numa sarjeta, mas como o maior escritor brasileiro. Essas coisas são importantes. Não dá para enfiar goela abaixo, as pessoas têm de ser convidadas a entrar na literatura, seduzidas, e isso não se faz, infelizmente, com os clássicos. Há exceções, é claro; Machado de Assis é um escritor que se lê perfeitamente hoje, mas José de Alencar já é um problema.
Não estamos aqui para discutir o ensino de literatura, mas isso é sintoma de uma realidade brasileira, da cisão que existe entre a cultura erudita e a ralé que não consegue chegar aos livros. Como membro da Academia Brasileira de Letras, quero dizer que é uma instituição que tem de mudar, tem de deixar de ser o que é. Nós, os acadêmicos, temos de fazer um esforço para acabar com o elitismo que transforma os membros da academia em imortais, diferentes do comum dos homens.

PFROMM NETTO – Lembro que, embora suas observações sejam judiciosas, há um fato que não é controverso. Os ingleses continuam lendo Shakespeare e Thomas Hardy, os franceses Balzac e Flaubert. Há novas edições de Flaubert, lindas, em todas as livrarias da França. Os alemães leem Goethe, os italianos Dante. E nosso companheiro Ernani Donato vai lançar, felizmente, a reedição de sua primorosa tradução de A Divina Comédia.

MOACYR SCLIAR – Faço uma pergunta a Samuel: que autor os franceses leem mais, Balzac ou Paulo Coelho?

PFROMM NETTO – A questão não é o que leem mais, mas o que há nas livrarias.

MOACYR SCLIAR – E o que tem mais nas livrarias?

PFROMM NETTO – Paulo Coelho está nas livrarias, mas Flaubert também está e as pessoas compram.

MOACYR SCLIAR – Aqui também temos Machado de Assis. Paulo Coelho é uma pessoa com quem me dou muito bem, acho que desempenha uma função importante, que é a de introduzir as pessoas na literatura. Ele faz isso muito melhor quando é traduzido, por razões óbvias. Agora, condenar Paulo Coelho não adianta. Em cada palestra que faço, seja em colégio ou universidade, esse tema vem à baila; sempre alguém pergunta por que Paulo Coelho está na Academia e invariavelmente aparece um rapaz que diz: "Olha aqui, eu só leio Paulo Coelho. E daí, vai encarar?"

JOSUÉ MUSSALÉM – Qual é o papel do livro nesta época de internet? Acredito que a obra impressa ainda é muito importante. Editoras europeias, como a Bertrand, de Lisboa, a Casa del Libro, de Madri, e a Gallimard, de Paris, que inclusive reeditou Gilberto Freyre, estão crescendo. No Brasil temos a Siciliano, que agora pertence à Saraiva, e a Livraria Cultura, com áreas de expansão na venda de livros. É interessante também notar que há tipos de lojas com livrarias dentro delas. Como vê o futuro do livro?

MOACYR SCLIAR – Nós provavelmente somos gente do livro, sem ele não podemos passar, é uma coisa que faz parte de nosso modo de vida. Érico Veríssimo tem uma historinha sobre pessoas que não podem passar sem livro. É do sujeito que mais entendia de vinho no mundo, sabia tudo. Um dia lhe perguntaram qual era seu vinho preferido e ele respondeu: "Eu não bebo". Foi uma surpresa, como isso era possível? Perguntaram-lhe então de onde tinha tirado aquele conhecimento enciclopédico. Ele disse: "Durante a ditadura, fiquei preso e a maior tortura era não ter nada para ler. O carcereiro ficou com pena de mim e me deu um livro, um manual de vinhos, que li e reli tantas vezes que acabei memorizando-o de cabo a rabo". Sentimos uma necessidade física do livro, precisamos dele, mas temos de aceitar que isso não é mais uma regra geral. A tela veio para ficar. É uma surpresa, porque alguns anos atrás se dizia que a tela derrotaria o livro, mas falávamos daquela do televisor, com imagens. Agora temos uma tela com texto, é diferente. Isso é um espaço literário.

PFROMM NETTO – Já existe Shakespeare em livro eletrônico.

MOACYR SCLIAR – Sim. E a Amazon Books acaba de lançar um sistema pelo qual baixamos livros via internet. A obra é lançada e pode ser baixada instantaneamente. Frequentemente me pedem que resenhe livros, e o pessoal do jornal ou da revista me manda o texto por e-mail, para ganhar tempo. Tenho de ler o livro na tela, é um suplício. Entre outras coisas, por que não se pode anotar nada. Como fazer para sublinhar uma frase, para escrever na margem? E, além disso, é um exercício cansativo. E não dá para levar para o banheiro. Mas temos de admitir que o computador e a internet vão se transformar num espaço literário, o blog está aí para ficar e alguns tipos de livros já eram, como as enciclopédias. Tenho uma em casa que não uso mais, queria doá-la para algum colégio, telefonei para uns 20, ninguém queria, nem para vender como papel usado. Estamos então diante de um fato novo e será um erro muito grande dizer que o jovem não quer mais saber de livro, só de internet e computador. Isso só vai acentuar esse abismo intergeracional.

MOACYR VAZ GUIMARÃES – Queria dizer apenas que o jovem não lê, tem outras atrações, inclusive navegar pela internet, e não estamos fazendo nada para que volte a ler. Hoje não há leitura na faixa de estudantes do ensino médio e mesmo no superior, a não ser algo muito restrito, especializado. Lembro-me de um verso que é uma proclamação admirável, pela síntese e profundidade, do poeta que dizia: "Oh! Bendito o que semeia livros... livros a mancheia... e manda o povo pensar! O livro caindo n’alma é germe – que faz a palma. É chuva – que faz o mar".

MOACYR SCLIAR – Esse verso todos conhecemos, aprendemos no colégio. Mas quero dizer uma coisa. A ideia de que os jovens não leem pode ser equivocada. Dou um exemplo: tenho um filho, que agora é um homem, que não lia, para desgosto de seu pai. Não lia mesmo, inclusive os trabalhos de colégio eu tinha de fazer junto com ele e às vezes para ele, não me envergonho de confessar. Como eu queria que ele lesse, dediquei a ele um dos livros que escrevi. Quando a obra chegou da editora, eu lhe disse: "Olha, este livro está dedicado para ti, queria que pelo menos este você lesse". Ele olhou aquele objeto ameaçador e disse: "Tu não podia me resumir isso aí?" Pois esse menino que não lia se tornou um leitor adulto voraz. É fotógrafo e é capaz de ler um livro de mil páginas sobre fotografia ou a biografia de um grande fotógrafo. Ele lê o que lhe interessa. O pai dele não interessava para ele, nem com o nome dele na dedicatória do livro, e eu tinha de aceitar esse fato.

MARISA AMATO – Realmente a literatura é um elo em muitas situações, não só na medicina. Hoje a distância está ficando muito grande entre as pessoas e consigo mesmas. Quando se fala em abismo entre médico e paciente, com certeza a literatura pode oferecer uma grande contribuição, porque é uma maneira de dar mais cultura aos profissionais, mas existem outros aspectos. A superespecialização é um deles, que aumenta a distância entre médico e paciente. Mais: graças à internet, o paciente procura o médico já com um diagnóstico pronto. É um conhecimento absolutamente superficial e às vezes com informações erradas, porque a internet tem de tudo, coisas muito boas e também muito lixo. Um doente com dor nas costas, o que faz? Marca consulta com um especialista, onde acha que deve ir. Precisamos de médicos generalistas, com uma cultura diversificada, que os pacientes tenham como responsáveis pelo tratamento e que se encarreguem de encaminhá-los para os especialistas.
Nos Estados Unidos, os pacientes se queixam porque às vezes não conseguem falar com o médico, mas com uma enorme equipe multiprofissional, encarregada de dar todas as informações. Estamos vivendo isso aqui da mesma maneira. Se o médico está atendendo um paciente não se justifica que este fale com a psicóloga, a nutricionista, o fisioterapeuta a respeito de seu problema. O acesso ao médico deveria ser fundamental.

ISAAC JARDANOVSKI – Os pacientes chegam ao consultório já com diagnóstico pronto graças à internet, mas não é só isso, muitos já vêm com a solicitação de exames. Precisam do médico apenas para coonestar os pedidos no seguro-saúde.

MOACYR SCLIAR – Algumas coisas que estão acontecendo são irreversíveis. A especialização é inevitável. Com o conhecimento vastíssimo que hoje caracteriza a medicina, não há como uma pessoa saber tudo. Então os especialistas são inevitáveis. E a questão da assistência primária, o general practitioner dos americanos, também é importante. Mas nada impede que um especialista, que sabe tudo sobre determinada área, se interesse pela pessoa como pessoa. Entende de diabetes? Tudo bem. Mas entenda de pessoas também. Uma coisa não contraria a outra. É que existe também um componente de preguiça, comodismo: peço exames e prescrevo a receita. Outra pessoa que fale com o paciente.

MARISA AMATO – Mas há estudantes que durante a graduação já não se interessam por algumas matérias porque vão fazer determinada especialidade. É o absurdo do absurdo, mas é verdade.

MOACYR SCLIAR – A conclusão a que chegamos é esta: se há um lugar onde se pode transformar isso é no ensino. A Brown estava inteiramente certa ao pretender mudar o currículo médico para pelo menos tentar alargar o horizonte das pessoas.

ZEVI GHIVELDER – Pergunto se é possível fazer boa literatura sobre temas exclusivamente médicos. Isso porque o autor britânico Oliver Sacks, que escreve exclusivamente sobre temas médicos, é admirável. Há um indiano também, cujo nome esqueci, que usa esses temas, mas escreve um monte de bobagens.

MOACYR SCLIAR – Oliver Sacks faz ensaio, não ficção. Ele é neurologista, e sua área abre essa possibilidade, porque acontecem coisas surpreendentes com as pessoas, como a história do homem que confundiu sua mulher com um chapéu e queria colocá-la na cabeça, uma situação incomum. E ele não descreve isso para dizer que é uma coisa engraçada, mas como uma forma de pensar a condição humana. A doença revela certos aspectos curiosos de nossa personalidade, por isso ele é muito bom. O indiano a quem você se refere chama-se Deepak Chopra e escreve livros de autoajuda.

ZEVI – Insuportável.

MOACYR SCLIAR – Aí depende. Se o autor escreve uma obra de autoajuda realmente útil para as pessoas, dá conselhos, tudo bem. Se faz isso pensando no mercado, então é negócio, é diferente. A verdade é esta: temos muitos médicos escrevendo para o público em geral que estão fazendo algo excelente. Hoje informação médica é uma área de especialização, há gente que se dedica só a isso e faz um trabalho muito bom. Temos também autores que fazem ficção sobre a medicina, e muitos médicos que foram escritores. O exemplo mais fantástico é o de Anton Tchekhov, que era médico, escritor e doente, tuberculoso. Tinha, então, uma tríplice vivência da enfermidade.

IZABEL ALEXANDRE – Quero lembrar um médico também, meio esquecido, que é um dos melhores escritores de língua portuguesa, Lobo Antunes. Ele é psiquiatra, faz ficção e seus temas não são as doenças propriamente ditas. Como psiquiatra ele sabe construir muito bem os personagens e coloca um país inteiro no divã. Em O Esplendor de Portugal, por exemplo, analisa o colonialismo, a relação de Portugal com a Europa e com o Atlântico, tudo isso sem falar propriamente em doença, mas com um pano de fundo que é seu conhecimento de psiquiatria.

NEY FIGUEIREDO – Falou-se do aspecto negativo da internet, quero falar do positivo. Estamos vivendo uma revolução de tal ordem na informação que hoje é impossível, em minha área, por exemplo, saber tudo o que está acontecendo. Na medicina ocorre uma coisa interessante: todo dia há uma novidade, como sobre o ovo, que tinha colesterol e que não tem mais, o ômega 3, que era bom e não é mais. Houve um caso em minha família, com minha irmã de 80 anos, que teve um problema de saúde e estava sendo tratada como se tivesse sofrido um AVC [acidente vascular cerebral]. Meu filho, que mora na China, preocupado com a tia, me perguntou quais eram os sintomas e de lá, na internet, descobriu qual era a doença dela. Os sintomas eram muito parecidos com os de um AVC. Levei a informação ao médico, que pesquisou e tudo foi resolvido, ela ficou boa. Nesse momento a internet foi fundamental. E pessoas com uma boa bagagem intelectual conseguem deixar o médico numa saia justa. O senhor acha que isso tem procedência?

MOACYR SCLIAR – Penso que certamente o conhecimento médico já não é mais privilégio de quem faz medicina. É uma coisa curiosa, mas temos de aceitar que a medicina como profissão institucionalizada e codificada é algo recente na história da humanidade. Isso é do fim da Idade Média. Antes médico era alguém que se dizia médico. Não há uma fronteira nítida entre o conhecimento médico e o geral. No último "British Medical Journal", uma revista inglesa muito prestigiosa, há uma carta com uma história contada por um endoscopista de um cliente que lhe disse: "Olha, doutor, sou encanador e estou acostumado com isso que o senhor faz. Vou lhe dar um conselho: se o senhor rodar o tubo, ele vai penetrar melhor".

LUIZ GORNSTEIN – Gostaria de ouvir seu comentário, como escritor, sobre a reforma ortográfica.

MOACYR SCLIAR – Não sou filólogo. O acordo corresponde a uma necessidade real de unificar a grafia portuguesa. O espanhol escrito na Espanha, na Venezuela, em Cuba é o mesmo. O francês do Canadá e da França é o mesmo. O inglês é mais ou menos o mesmo na Inglaterra e nos Estados Unidos. Mas sabemos que o português de Portugal é completamente diferente do nosso. Lembro-me de que ao publicar meu primeiro livro em Portugal, o editor me disse: "Vamos publicar em brasileiro mesmo, para não dar muito trabalho". Não traduziram. Então esse acordo tem seus méritos, porque elimina algumas coisas, inclusive o trema, o que vai facilitar bastante. Na verdade, o português tem acentos demais, a começar pela crase. Ferreira Gullar sempre escreve na "Folha de S. Paulo" sobre isso. Ele diz: a crase não foi feita para humilhar ninguém. Ele está enganado, a crase foi feita exatamente para humilhar os que não sabem usá-la. Andando pelas estradas brasileiras vemos coisas assim: "Caxias do Sul à tantos quilômetros". Sempre tem crase, porque quem fez a tabuleta, na dúvida, concluiu que é melhor assim, porque gente fina usa crase. Realmente, temos uma grafia terrível, que não resulta de um acaso, mas exatamente disso de separar as pessoas que dominam a grafia daquelas que não a dominam e de mostrar quem é quem. Então esse mérito o acordo tem. Mas está sendo muito criticado, atacado e realmente não sei qual é a procedência dessas críticas.

EDUARDO SILVA – Há 25 anos, meu pai tinha uma doença grave e, nas consultas, grande parte do diálogo com o médico era sobre livros. Eram conversas prolongadas e ele sempre voltava melhor da consulta. Se eu tivesse percebido isso antes, teria levado outras pessoas para falar sobre literatura com ele, pois isso se revelou um remédio.

CECÍLIA PRADA – Em primeiro lugar, uma coisa que impressiona é que o jovem – e o adulto – de hoje não lê. Esse não ler tem duas conotações. Uma é simplesmente não pegar um livro para ler. A outra é que ele não sabe ler, mas não sabe mesmo. É um analfabeto que conhece apenas as letras do alfabeto. Se você der um texto para uma pessoa qualquer dessa jovem geração, ela não vai ler; ela não sabe para que existe aquela vírgula, para que o ponto. Isso é grave e estamos nos tornando um povo analfabeto. Então não concordo com dizer que eles não leem e temos de nos adaptar a eles. Ao contrário, temos de salvar o que ainda há a ser salvo, despertar a consciência do que estão perdendo, em primeiro lugar como habilitação para qualquer carreira. Quem não tem formação terá mais dificuldade em qualquer profissão. A segunda coisa é a situação do escritor. A preocupação da maioria dos escritores jovens é aprender a escrever para ganhar dinheiro. Ou então fazer o roteiro de uma novela da Globo, que é a ambição máxima. Eles não têm a noção de que sua missão deveria basear-se em algo que está faltando, a introspecção.

JÚLIO ABRAMCZYK – No mundo da medicina, chegamos a um diagnóstico através dos sintomas. Você falou em crise da literatura, crise da medicina, temos crise no Senado, crise no atendimento médico nos Estados Unidos e aqui, também, a crise das greves no atendimento médico etc. Pergunto-lhe: o que essas crises têm em comum? A que diagnóstico podemos chegar?

MOACYR SCLIAR – Crise indica basicamente um processo de transformação. Vou usar uma frase de Gramsci: é quando o velho ainda não morreu e o novo ainda não nasceu. Não há dúvida de que as transformações rápidas da medicina entraram em choque com as formas de assistência médica tradicionais e daí resulta toda essa confusão, esse mal-estar na cultura médica, para usar uma frase de Freud. Isso é inevitável. Mas não há nenhuma razão para ser catastrofista. Escrevo para o jornal "Zero Hora" e toda semana tenho de discutir com o pessoal, porque o que mais adoram é dizer que estamos à beira do abismo em termos de saúde. Não estamos. A expectativa de vida não para de crescer, a mortalidade infantil continua diminuindo, doenças foram erradicadas. Basta lembrar a varíola, uma doença que conseguimos erradicar. A situação está melhorando.

JÚLIO – Havia um problema com a varíola. O pessoal, quando entrava no estado de São Paulo, pagava o equivalente a R$ 20 para não ser vacinado.

MOACYR SCLIAR – Bem, essas coisas aconteciam. Conheci um secretário de Saúde que guardava atestados de vacinação preenchidos e os dava aos amigos, para que não passassem pelo incômodo de se vacinar. Era um secretário de Saúde. Tirando essas exceções, a verdade é que a população se vacinou contra a varíola. E o SUS [Sistema Único de Saúde] melhorou. Pessoas de classe média adoram falar mal do SUS. Quem trabalhou no SUS sabe que pode haver problemas com o sistema, mas sem ele seria uma catástrofe, as pessoas morreriam na rua.

ADIB JATENE – O escritor é um especialista em gente, por isso consegue escrever e ser apreciado pelas pessoas. O médico em primeiro lugar tem de ser um especialista em gente, isso é coisa fundamental, porque todo doente, independentemente de seu nível cultural e de sua situação econômica, diante da doença se transforma num ser frágil, aflito, angustiado, com medo. E o oposto do medo não é a coragem, é a fé. Ele precisa acreditar, então tem de encontrar um profissional que acredite que está interessado nele e não em sua doença. Acontece que com o desenvolvimento científico e tecnológico o mundo mudou, o que tem valor são as coisas que as pessoas têm, não são as pessoas. O carro, a casa, o patrimônio, a posição social, isso é o que a sociedade valoriza. Por isso é que a pessoa deixou de ter importância e o médico foi contaminado, porque virou técnico, está mais interessado na doença do que no doente, sendo que a definição de médico é o indivíduo que está interessado no doente e não na doença. Esse enfoque que você colocou, da humanização, é absolutamente fundamental e é aí que literatura e medicina se encontram.

MOACYR SCLIAR – Melhor que isso só mesmo ganhar o Prêmio Nobel. Muito obrigado, professor Jatene.

Revista Problemas Brasileiros

Guilherme Cassel - Qual o futuro da agricultura familiar?

Qual o futuro da agricultura familiar?

O ministro Guilherme Cassel fala de reforma agrária e propriedade rural

CARLOS JULIANO BARROS

Arte PB

Poucos temas despertam tantas paixões políticas e controvérsias ideológicas quanto a reforma agrária. Com o agronegócio participando cada vez mais ativamente da pauta de exportações da economia nacional, há quem entenda que a distribuição de terras para o fortalecimento da agricultura familiar já não faz mais sentido. Por outro lado, não se pode negar que a concentração de imensas áreas nas mãos de poucos proprietários é um dos pilares históricos que sustentam a desigualdade social no país, responsável por violentos conflitos que há décadas aparecem nas manchetes dos jornais. Para discutir essas e outras questões, como o desmatamento na Amazônia e a influência da "bancada ruralista" no Congresso, Problemas Brasileiros entrevistou Guilherme Cassel, 52 anos, titular do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), pasta que cuida especificamente da agricultura familiar e da reforma agrária no governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Engenheiro civil, Cassel ocupou o cargo de secretário executivo do MDA de 2003 a 2006, assumindo a seguir o posto de ministro em substituição a Miguel Rossetto, com quem já havia trabalhado no governo estadual do Rio Grande do Sul anos antes.

Problemas Brasileiros – O agronegócio brasileiro é o maior exportador mundial de soja, carne bovina, dentre outras commodities. Porém, segundo o próprio MDA, a agricultura familiar responde por 70% dos alimentos que consumimos no dia a dia. É possível estimular uma política de expansão do agronegócio, voltada principalmente ao mercado internacional, sem prejudicar a oferta de alimentos baratos e de qualidade para a população do país?
Guilherme Cassel – Acho que é possível fazer as duas coisas. Quando pensamos em um projeto de desenvolvimento para o país, temos de ser capazes de enunciar com clareza qual é o meio rural que queremos – com ou sem gente, só com grandes plantações e máquinas ou com comunidades, escolas e produção de alimentos? Acho que temos de escolher para o futuro um meio rural com cada vez mais gente tendo acesso à terra, com produção voltada principalmente para a segurança alimentar. Essa é uma agenda contemporânea, de futuro. O mundo não será o mesmo quando sair desta crise. Hoje é muito mais importante garantir o abastecimento interno, com alimentos de qualidade e baratos para a população, do que se preocupar com a balança comercial. É necessário continuar produzindo grãos e exportando? Sim. Só que mais ainda, inclusive como princípio de direito humano à alimentação, é garantir a segurança alimentar da população.

PB – O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão vinculado ao MDA, reduziu de 100 mil para 75 mil a meta de famílias a ser assentadas em 2009. Além disso, houve corte de mais de 40% no orçamento deste ano previsto para desapropriações e para assistência técnica. A reforma agrária não é mais prioridade no governo Lula?
Cassel – Temos de olhar o governo Lula em todo o seu período, e não pinçar um dado isolado dos outros. Por que hoje o governo pode investir mais em desenvolvimento dos assentamentos e menos em obtenção [de novas áreas]? Porque nos últimos seis anos assentamos 550 mil famílias. Isso é 59% de tudo o que foi feito no país, em toda a sua história, em termos de reforma agrária. Nunca ela andou tanto neste país como nos últimos seis anos. Quando entramos no governo, havia mais de 200 mil famílias acampadas à espera de terra. Hoje não há 50 mil.

PB – Desde o começo de sua gestão, porém, o governo Lula vem sendo acusado de contabilizar indevidamente a regularização fundiária de áreas já ocupadas por posseiros com o objetivo de inflar o número de novos beneficiários da reforma agrária. Como o senhor encara essas críticas?
Cassel – Nunca houve esse tipo de crítica. A que houve e que hoje não existe mais, inclusive, era de que estávamos retomando lotes de reforma agrária que tinham sido vendidos ou que tinham sido abandonados e colocando ali novas famílias. Isso é reforma agrária, sim. Outra crítica é de que utilizávamos terra pública para fazer reforma agrária. Fizemos isso, sim, e defendo que a reforma agrária também tem uma dimensão no norte do país. Se o governo federal dispõe de terra pública, e ela está irregularmente ocupada ou não está ocupada, vamos retomá-la para utilizar da forma mais racional possível. É preciso responder por que, nos últimos três anos, diminuiu tanto o número de conflitos agrários no país. Isso aconteceu porque a reforma agrária avançou.

PB – Uma das queixas mais contundentes com relação à política de reforma agrária é a de que, historicamente, os governos não têm demonstrado coragem para mexer na estrutura fundiária do centro-sul e do nordeste. Para amenizar a tensão, a maior parte dos assentamentos vem sendo criada na Amazônia, onde há grandes estoques de terras públicas. Como o senhor vê essa avaliação?
Cassel – A reforma agrária tem um objetivo: garantir terra para quem não tem. Para uma família que quer produzir e não tem terra, não interessa se esta é pública, se foi adquirida por compra e venda ou por desapropriação. Não é verdade que a maioria dos assentamentos fica em terras públicas no norte do país. Aquela região congrega menos de 40% de todos os assentamentos, e ali estão 60% de todo o território nacional. Mesmo na regularização fundiária, quanto mais se garante a democratização do acesso à terra, mais se mexe na estrutura fundiária. Por exemplo, os dados prévios do Censo Agropecuário do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] mostram que aumentou o número de proprietários no meio rural e que diminuiu o tamanho médio da propriedade. Por que isso está acontecendo? Porque a reforma agrária tem avançado. Primeiro, a crítica era a seguinte: a reforma agrária não está andando. Quando as pessoas começam a ter acesso à terra, muda a crítica: a reforma agrária tem de ser antilatifundiária. A reforma agrária é um processo.

PB – As entidades ruralistas costumam afirmar que não há mais fazendas improdutivas. Por outro lado, uma das principais bandeiras dos defensores da reforma agrária é a revisão dos índices que o governo utiliza para medir a produtividade dos imóveis rurais. Os índices em vigor, que datam ainda da década de 1970, vão ser atualizados?
Cassel – Espero que sim. Todo o trabalho técnico está feito já há mais de dois anos, em acordo entre o Ministério da Agricultura e o MDA. O que existe, evidentemente, é sempre uma reação muito forte no Congresso, principalmente por parte da bancada ruralista.

PB – É um problema político, então?
Cassel – Acho que é político. E a pergunta que sempre faço é: quem tem medo da produtividade? Quem produz direito não tem medo. Acho que existem áreas improdutivas no país. Muitas. E os setores que não querem a atualização dos índices são improdutivos e têm medo.

PB – O governo anunciou um projeto de regularização fundiária da Amazônia, batizado de Terra Legal, para ordenar o atual caos fundiário da região, legalizando a situação cadastral de fazendas de até 1,5 mil hectares. Porém, esse plano suscitou muitas críticas e até foi ironicamente apelidado de Plano de Aceleração da Grilagem [apropriação ilegal de terras públicas]. O governo pode garantir que não haverá regularização fraudulenta das áreas ocupadas irregularmente?
Cassel – Quem acha que esse plano é de aceleração da grilagem está do lado da grilagem. O que temos visto na Amazônia nos últimos anos é um processo de grilagem de terras públicas, de desmatamento criminoso e de exploração ilegal de madeira. O programa Terra Legal visa estancar esse processo. Creio que há pessoas que querem que não façamos a regularização fundiária e que em vez disso se proponha uma discussão sobre critérios de desmatamento. Seria um longo debate, que significaria abrir um espaço e um tempo ainda maiores para a grilagem.

PB – Mas o que alguns dos críticos do Terra Legal defendem é justamente a expansão da reforma agrária na região, porque ali há muitas fazendas de tamanho gigantesco...
Cassel – O programa Terra Legal tem dois grandes eixos. O primeiro deles é garantir a preservação da floresta e do meio ambiente. O segundo é assegurar direitos aos pequenos. Então, o programa de regularização fundiária vai nos próximos três anos regularizar a propriedade de 300 mil posseiros que têm até quatro módulos fiscais [módulo fiscal é o sítio mínimo necessário à sobrevivência de uma família, com no máximo 100 hectares]. Estamos falando de gente que tem pouca terra. Até 15 módulos fiscais, dos médios proprietários – a segunda etapa do programa –, as pessoas vão ter de pagar preço de mercado pela terra. E, acima disso, só com licitação. Ou seja, não se estão ampliando em nada as garantias que já existem. Aquelas pessoas que por acaso hoje ocupam mais de 1,5 mil hectares de terra não podem ter e não terão as áreas regularizadas. Primeiro, vamos regularizar as posses dos pequenos e, depois, identificar os grandes grileiros e retomar as áreas deles.

PB – O governo, porém, vai precisar de um aparato de fiscalização forte para impedir que um grileiro legalize vastas extensões de terra colocando títulos em nome de parentes, de "laranjas"...
Cassel – É por isso que a nova legislação não permite a venda de lotes por um período de dez anos, justamente para evitar que se faça esse trabalho com "laranjas". Agora, não podemos deixar de fazer a regularização fundiária para 300 mil agricultores familiares que estão lá, e que têm pouca terra, porque meia dúzia de bandidos podem se utilizar de artimanhas para burlar a lei. O Estado brasileiro tem de ser capaz de enfrentar essas burlas.

PB – No final do ano passado, o Ministério do Meio Ambiente divulgou uma lista que colocava seis assentamentos entre os dez maiores desmatadores da Amazônia. Estudo recente do próprio Incra mostra que 869 assentamentos contribuíram para a devastação, em 2008. A política de fazer reforma agrária na floresta deveria ser repensada?
Cassel – Acho que existe uma ânsia bastante grande em jogar a responsabilidade pelo desmatamento da Amazônia em quem não tem culpa. Todos os dados oficiais dão conta de que 18% do desmatamento está em áreas de reforma agrária e de agricultura familiar. Ou seja, há 82% do desmatamento que não têm nada a ver com assentamentos ou com a reforma agrária. É verdade que os assentamentos têm problemas ambientais? Sim. Por quê? Porque as terras que retomamos na Amazônia tinham sido griladas e devastadas. Então, os assentados, quando recebem uma área, assumem também um passivo ambiental muito grande. Eles têm inclusive a tarefa de recuperar tudo. Isso é caro e trabalhoso. É necessário repensar a reforma agrária na Amazônia? Sim. E nós já fizemos isso. Tanto que não desenvolvemos mais projetos de assentamentos comuns. Só fazemos agora assentamentos agroextrativistas, agroflorestais e de desenvolvimento sustentável. Mudamos isso a partir de uma longa discussão com ambientalistas, movimentos dos trabalhadores sem-terra daquela região e governadores estaduais.

PB – Há mais de uma década, tramita no Congresso uma proposta de emenda constitucional (PEC) que prevê o confisco de fazendas em que for constatado trabalho escravo. O senhor é a favor da aprovação dessa PEC?
Cassel – Claro que sim. Essa é uma PEC civilizatória. Sua não aprovação e o fato de ela se arrastar no Congresso há mais de 15 anos mostram de maneira muito crua e cruel um Brasil arcaico que está escondido. Em nosso país, historicamente, a propriedade da terra e o poder político sempre andaram de mãos dadas, e essa situação faz com que não se consiga superar o tema da escravidão. Onde está concentrada a grilagem, convergem também o latifúndio, o trabalho escravo e o infantil, e o desmatamento ilegal.

PB – Meses atrás, um conflito por terra em Pernambuco, em que quatro seguranças foram mortos e um sem-terra acabou ferido, e outro ocorrido no Pará, no município de Xinguara, em que militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) entraram em uma fazenda, tiveram grande repercussão na mídia. Qual é sua avaliação sobre a atuação dos movimentos sociais?
Cassel – Uma das riquezas da história contemporânea brasileira é a ação dos movimentos sociais. Aqui no MDA trabalhamos junto com eles quando elaboramos políticas públicas. Faço questão de dialogar. Mas reconheço também que eles têm um papel e o governo, outro. Mantenho discordâncias importantes com alguns movimentos sociais, mas que não me impedem de conversar com eles.

PB – Que tipo de discordâncias?
Cassel – Acho que às vezes os movimentos sociais têm uma dificuldade enorme de fazer um balanço adequado sobre o governo Lula e os avanços da reforma agrária. Verdadeiramente se começou a mexer na estrutura fundiária deste país. É muito significativo que 550 mil famílias tenham tido acesso à terra, que o orçamento do Incra tenha sido o que mais cresceu no Planalto, que a vida nos assentamentos tenha melhorado muito. Acho que alguns movimentos têm muita dificuldade em reconhecer isso e se escondem atrás de slogans, "não se está fazendo nada", "a reforma agrária não avança", quando todos os dados oficiais e não oficiais mostram que o número de conflitos fundiários, a concentração de terra e o tamanho médio das propriedades diminuíram. Isso não foi conquista do governo apenas, mas dele e da sociedade brasileira.

PB – Em maio, o senhor se encontrou com o ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), para o lançamento do Fórum Nacional para Monitoramento e Resolução dos Conflitos Fundiários, a fim de agilizar os processos que tratam de disputas por terra. Falta sensibilidade ao Poder Judiciário em relação a essa questão?
Cassel – Acho que o tema do Judiciário se insere em um âmbito maior. É importante olharmos para a Constituição de 1988. Ela tratou de todos os temas de interesse nacional, menos da questão da propriedade da terra, que ficou intocada por conta do poder político dos grandes proprietários. No Brasil, não existe limite de propriedade de terra. Ainda desapropriamos terras improdutivas pagando valor de mercado. Premia-se a improdutividade. Acho que todo o tema da propriedade da terra precisa ser revisto com um olhar mais civilizatório e contemporâneo. Não é à toa que há trabalho escravo, desmatamento, pistoleiros no meio rural. Temos um país novo, dinâmico, moderno, em pleno século 21. Contudo, convivemos também com um Brasil do século 19, que não permite que seja aprovada a PEC do trabalho escravo. Nesse ambiente, existem as dificuldades que encontramos no Poder Judiciário. Hoje, por exemplo, temos mais de 200 processos em todo o país que estão em tramitação. Isso envolve 200 mil hectares de terra, que poderiam garantir que 11 mil famílias fossem assentadas. Agora, estamos trabalhando em conjunto com o ministro Gilmar Mendes. Construímos esse fórum para agilizar com o Judiciário, o Incra e o MDA. Estou apostando muito nisso, para encontrar caminhos dentro da legislação atual que minimizem essa demora.

PB – Todos os anos acontecem negociações para a chamada "rolagem" das dívidas agrícolas, decorrentes do não pagamento dos créditos contraídos nas diversas linhas de financiamento oferecidas pelo governo. Segundo estudo do Ministério da Fazenda, a dívida total dos grandes produtores chega a R$ 74 bilhões, enquanto a da agricultura familiar atinge R$ 13,4 bilhões. De que maneira os senhor avalia esse tradicional socorro financeiro aos produtores rurais brasileiros?
Cassel – No ano passado, pela primeira vez, se fez um estudo profundo, uma radiografia da dívida rural do país. Acho que restou claro para a sociedade brasileira quem é bom pagador e quem não é. Os pequenos pagam bem e pagam sempre. E a história da República nas últimas décadas é de rolagens sucessivas de um punhado de grandes produtores que devem muito. É muito fácil ter uma boa produtividade quando se está devendo muito. No ano passado, fizemos a derradeira renegociação da dívida, em que foi possível tratar toda ela em conjunto, e penso que daqui para a frente esse tema está resolvido.

PB – Tendo em vista o peso do agronegócio, da bancada ruralista e do histórico de privilégios aos grandes proprietários de terra, qual é o futuro da agricultura familiar?
Cassel – Ela tem um vigor extraordinário, está crescendo, tem produzido cada vez mais, e o país tem se identificado com ela. Hoje, a agricultura familiar entrou no vocabulário nacional. As pessoas sabem que são os agricultores familiares que produzem 70% daquilo que elas consomem no dia a dia. Quando se estimula esse setor com crédito, assistência técnica, programas de comercialização, seguro-agrícola, ele responde de maneira rápida e muito efetiva. A agricultura familiar do Brasil é um valor que este país tem. Vivemos em uma sociedade democrática, e ela tem de escolher qual é o meio rural que deseja: com gente, produzindo alimento, ou sem gente, produzindo para exportação. Esse é o nosso dilema.

Revista Problemas Brasileiros

Washington Novaes - No limite da sustentabilidade

No limite da sustentabilidade

Sobrevivência humana ameaçada


Washington Novaes
Foto: Nicola Labate

Washington Luiz Rodrigues Novaes é bacharel em direito pela Universidade de São Paulo e jornalista há 52 anos. Foi repórter, editor, diretor ou colunista de várias publicações brasileiras, como "Folha de S. Paulo", "O Estado de S. Paulo", "Jornal do Brasil", "Última Hora", Correio da Manhã", "Veja" e "Visão". Na televisão, foi editor-chefe do "Globo Repórter" e editor do "Jornal Nacional", além de comentarista de telejornais das redes Bandeirantes e Manchete e do programa "Globo Ecologia". Como produtor independente de televisão, dirigiu as séries "Xingu", "Kuarup" e "Pantanal".
Recebeu inúmeros prêmios internacionais e nacionais de jornalismo e televisão, e ainda o de Meio Ambiente da Unesco, em 2004.
Tem vários livros publicados, entre eles "Xingu – Uma Flecha no Coração", "A Quem Pertence a Informação?", "A Terra Pede Água" e "A Década do Impasse". Foi consultor do primeiro relatório brasileiro para a Convenção de Diversidade Biológica e dos relatórios sobre desenvolvimento humano da ONU, além de sistematizador da Agenda 21 brasileira.
Atualmente é colunista dos jornais "O Estado de S. Paulo" e "O Popular", de Goiânia. É consultor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo, supervisor e comentarista do programa "Repórter Eco". Representou durante quatro anos a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência na Comissão de Políticas de Desenvolvimento Sustentável e Agenda 21 Brasileira.
Esta palestra de Washington Novaes, com o tema "Os limites da sustentabilidade no mundo atual", foi proferida no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio, Sesc e Senac de São Paulo, no dia 16 de abril de 2009.

Estamos vivendo um novo tempo, porque já não se trata mais de cuidar apenas do meio ambiente. É bem mais do que isso: a questão é não ultrapassar limites que colocam em risco a própria vida. Para isso invoco as palavras de Kofi Annan, que durante mais de uma década foi secretário-geral da Organização das Nações Unidas [ONU], uma pessoa com muito conhecimento. Ele diz que hoje o problema central da humanidade está nas mudanças climáticas e na insustentabilidade dos padrões de produção e de consumo no mundo, porque já estão além da capacidade de reposição do planeta. Ele afirma que essas duas questões ameaçam a sobrevivência da espécie humana. É preciso prestar atenção nisso.

Vejamos a questão do clima. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas [IPCC, na sigla do nome em inglês], órgão científico da ONU para a Convenção do Clima, diz que as ações humanas já aumentaram a temperatura do planeta em quase 0,8 grau Celsius, e para evitar que o acréscimo vá além de 2 graus será preciso reduzir as atuais emissões em 80% até 2050. Elas, porém, continuam crescendo. Às vezes as pessoas estranham que um aumento de temperatura de 0,8 grau tenha efeitos tão graves, mas, sendo bastante simplistas, podemos dizer que a Terra é um organismo vivo e sabemos o que acontece no organismo humano quando a temperatura sobe um grau. É o início de um processo de febre que, se não for contido, terá sérias consequências. No planeta não é diferente. O IPCC afirma ainda: se as emissões continuarem no ritmo atual, a temperatura poderá elevar-se em quase 6 graus neste século e o nível dos oceanos poderá subir até 88 centímetros, o que produzirá aumento de secas, inundações e outros desastres.

Há uma parte dos cientistas, pequena, que nega a validade dessas conclusões do IPCC, mas lembro que eles são minoria e se dividem em várias categorias, sendo muitos ligados a indústrias relacionadas com combustíveis fósseis, com petróleo, outros que são absolutamente céticos e outros ainda que dizem que realmente o planeta está se esquentando, vai se aquecer muito mais ainda, mas que isso é um processo do sistema planetário e não consequência de ações humanas. As previsões do IPCC, porém, têm o consenso entre mais de 2,5 mil cientistas de quase 200 países. No último relatório do órgão, que é o quarto, somente se publicou o que foi objeto de consenso e com probabilidade acima de 90% de se confirmar. E os diagnósticos mais recentes mostram que talvez já estejamos adiante das previsões do IPCC, com o derretimento do gelo que se verifica nos polos e nas montanhas da Groenlândia. A ameaça maior nessa área é o aquecimento do permafrost [solo formado por terra, rochas e gelo], uma camada que esconde uma quantidade imensa de metano, gás 23 vezes mais poluente que o carbono. Um dos últimos números da revista New Scientist publicou um trabalho aprofundado sobre isso, revelando que é alguma coisa assustadora. O estudo prevê que em 20 ou 30 anos talvez já não haja mais gelo no Ártico e que a camada de poluentes que pode ser liberada é 1,6 mil vezes maior do que a concentração que já está na atmosfera.

A cada ano cresce o número de vítimas dos desastres naturais. O último balanço referente a 2008 mostra que 200 milhões de pessoas no mundo foram atingidas por eles. O prejuízo causado por esses acidentes, calculado por um conglomerado de empresas da área de seguros, principalmente a Munich Health, chegou a US$ 200 bilhões em 2008. E o Brasil já é o décimo primeiro país em número de vítimas. Tivemos furacão em Santa Catarina, tornados, inundações e outros eventos extremos. As emissões totais no mundo hoje estão acima de 25 bilhões de toneladas anuais em equivalente de carbono. A China passou a ser o maior emissor, seguida dos Estados Unidos. O Brasil, se forem utilizados também critérios de emissões de carbono e metano em função de desmatamento, mudanças no uso da terra e queimadas, é o quarto maior emissor. Em 1994, no primeiro e único inventário que o Brasil fez, apresentado apenas em 2004, as emissões atingiam mais de 1 bilhão de toneladas de dióxido de carbono e mais de 30 milhões de toneladas de metano.

Recentemente esteve no Brasil Nicholas Stern, ex-economista chefe do Banco Mundial, que não é um cientista voltado para o meio ambiente mas fez um estudo sobre as mudanças climáticas a pedido do governo britânico. No programa Roda Viva, da TV Cultura, gravado em novembro de 2008, ele afirmou que as emissões brasileiras já estavam entre 11 e 12 toneladas anuais por habitante, o que significaria que dobraram em relação a 1994. Há um novo inventário brasileiro, que vem sendo adiado desde 2005, mas cuja apresentação está prevista para este ano. A peculiaridade é que quase três quartos das emissões brasileiras se devem a mudanças no uso do solo pela agropecuária, desmatamentos e queimadas, e que 59% dessas emissões acontecem na Amazônia. O restante ocorre principalmente no cerrado, embora não se fale disso.

O cerrado é uma espécie de primo pobre dos biomas brasileiros e por isso muitos pensam que ali se pode fazer tudo, desde que se preserve a Amazônia. Segundo o último estudo do Instituto Sociedade, População e Natureza [ISPN], junto com a Universidade de Brasília, o cerrado está perdendo 22 mil quilômetros quadrados por ano, uma barbaridade. Cerca de 50% de sua vegetação, que é irrecuperável, já se foi. A área de preservação obrigatória por lei é muito pequena e o avanço continua muito acentuado. E não se fala que uma grande parte das emissões brasileiras acontece nas áreas de cerrado.

Das emissões totais de metano no país, a maior parte se deve à pecuária e à agricultura. Um estudo da Embrapa Meio Ambiente mostra que cada boi emite 58 quilos de metano por ano com os seus arrotos e flatulências. Esse valor multiplicado por 205 milhões de cabeças significa mais de 10 milhões de toneladas desse gás, que vão equivaler a perto de 250 milhões de toneladas de carbono.

O problema, no rumo em que está, tende a se agravar no mundo, que não encontrou ainda soluções. A Agência Internacional de Energia mostra que o consumo de energia no planeta vai aumentar 71% até 2030. E 80% das emissões se devem à queima de combustíveis fósseis, principalmente para geração de energia. Os países industrializados consomem 51% da energia total, mas como eles têm uma população que não chega a 20% da mundial, cada habitante dos países ricos emite 11 vezes mais do que um habitante das nações mais pobres.

Diante desse quadro, não temos nem regras nem instituições capazes de impor mudanças de forma global, obrigatórias para todos os países, como deve ser. Nem o Protocolo de Kyoto, que previa uma redução de 5,2% nas emissões dos países industrializados, foi ainda cumprido. Os Estados Unidos não ratificaram o acordo, que é de 1997, bem como outros países. O prazo vai até dezembro de 2009, quando haverá uma nova reunião em Copenhague, para que se defina um novo acordo e se regulamente a Convenção do Clima. Houve recentemente um encontro em Bonn mas não se conseguiu nenhum avanço importante. A Europa propunha reduzir 20% nas emissões dos industrializados até 2020 e se dispunha a chegar até 30% se houvesse acordo, que não aconteceu. O novo governo dos Estados Unidos propõe reduzir as emissões em 15% em relação ao que eram em 1990, que é a base do Protocolo de Kyoto, mas o Congresso americano não aprovou nada ainda.

Novas tecnologias

Há quem acredite que o caminho não será um acordo internacional e, sim, a adoção de novas tecnologias que permitam resolver a questão. A primeira delas, mais significante, seria o chamado sepultamento de carbono. Essa tecnologia permitiria capturar o carbono na fonte de emissão, principalmente nas usinas de produção de energia que queimam carvão mineral e gás, e colocá-lo no subsolo, em antigos campos de petróleo esgotados, ou no fundo do mar. A ideia foi avaliada em princípio pelo Painel do Clima, que concluiu que tecnicamente é viável. Mas é preciso ver que consequências, geológicas e hidrológicas principalmente, sísmicas talvez, haverá no fundo da terra. E para a diversidade marinha. Os especialistas dizem que no mar será um desastre, porque na água não há como conter o carbono, que se espalhará e provocará não apenas aquecimento do oceano como praticamente a extinção da biodiversidade.

Outra possibilidade seriam as fontes de energia renováveis e limpas – energia solar, eólica, das marés e os biocombustíveis. A grande questão são os custos. Serão viáveis, competitivas em matéria de preço? Tudo dependerá dos fatores que entram ou não na questão. Por exemplo, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais [Inpe] de São José dos Campos, avalia que o potencial de energia eólica no Brasil é maior do que todo o consumo brasileiro de energia hoje. Alega-se, porém, que essa fonte não é permanente, pois há momentos de pausa nos ventos. Por essa razão, o sistema tem de ser ligado a outras fontes energéticas que possam supri-lo nos períodos de falta de vento.

Quanto à energia solar, há um estudo que mostra o seguinte: se um quarto da área do reservatório de Itaipu fosse ocupado com painéis solares, isso produziria tanta energia quanto a própria usina. Nesse caso, a questão é como armazenar essa energia. A tecnologia para a qual se caminha é de aquecimento de óleo, que depois seria aproveitado progressivamente. Mas aqui há também o problema dos custos. Nessa questão, os defensores da energia eólica e solar perguntam: quem coloca na conta da energia derivada dos combustíveis fósseis o custo da poluição do ar, ou dos gastos com a saúde? Ou ainda os de implantação e manutenção do sistema viário? Quem faz a conta dos desperdícios? Um automóvel, por exemplo, pode chegar a utilizar 90% da energia para transportar a si mesmo e não ao passageiro. E perde 70% sob a forma de calor, usando somente 30%.

O professor Adriano Murgel Branco mostrou recentemente que numa viagem por automóvel se consome 20 vezes mais energia que no mesmo trajeto por metrô. Então há muitas contas a fazer, e isso vai determinar o rumo das decisões. De qualquer forma parece inevitável que se caminhe realmente em direção a uma nova matriz de transportes e veículos menos poluentes, como aqueles híbridos, que queimam combustível somente para a partida e depois usam energia elétrica. Mas há o lado da indústria automobilística, cujo lucro por unidade de produto, se forem usados os veículos híbridos em lugar das supercaminhonetes, pode cair em até 15 vezes. Então há questões econômicas e comerciais a considerar.

Nos cenários possíveis, Nicholas Stern disse em 2006 que teríamos dez anos para enfrentar essa questão, ao custo de 1% do produto bruto mundial a cada ano. Isso significaria cerca de US$ 600 bilhões hoje. Ele afirmou: "Se não o fizermos, teremos a maior recessão de todos os tempos, poderemos perder 20% do produto bruto mundial". Em 2009, quando esteve em São Paulo, disse que foi muito otimista em 2006. Não tínhamos dez anos, o prazo era muito menor e o custo será muito maior, de 2% a 3% do produto bruto mundial a cada ano, o que significaria de US$ 1,2 trilhão a US$ 1,8 trilhão por ano.

A Agência Internacional de Energia [AIE] diz que serão necessários investimentos de US$ 15 trilhões em 15 anos em novas fontes de energia para chegar à emissão zero, mas que isso custará menos do que enfrentar as consequências. Convém lembrar que a AIE não é uma instituição de ambientalistas nem de pessoas que encaram a questão por esse ângulo, mas de técnicos em energia.

Há cenários para o Brasil, construídos pelo Inpe, que mostram o seguinte: no ritmo atual, a temperatura na Amazônia poderá subir até 6 graus e no centro-oeste até 4 graus até 2070. No semiárido poderá haver uma perda de até 20% dos recursos hídricos e os prejuízos para a agricultura serão progressivos. Eles já estão presentes, aliás, com as secas, inundações etc. Um dos exemplos mais mencionados – no sul-sudeste – é o deslocamento da cultura do café do estado de São Paulo e do norte do Paraná exatamente por causa do aumento médio da temperatura nessas áreas, que leva a uma queda precoce das flores e gera redução grave de produtividade. Por isso o café migrou quase todo para regiões mais altas de Minas Gerais e algumas outras, onde também se começam a enfrentar problemas de temperatura.

Há muita coisa ainda que poderia ser dita sobre o clima, principalmente o agravamento dos chamados eventos extremos, que temos visto recentemente em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul, São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo. A Amazônia e uma grande parte do nordeste estão sofrendo com o excesso de chuvas. Há poucos dias em Uauá, no sertão da Bahia, considerada uma espécie de capital da seca, choveu 250 milímetros em uma noite. São 250 litros de água por metro quadrado de solo. Segundo os cientistas, há uma mudança evidente no formato das chuvas. Verificam-se cada vez menos aquelas chuvas miúdas e continuadas na estação das águas e temos os chamados eventos extremos, uma grande quantidade de água que cai num curto espaço de tempo, gerando problemas imensos. Recentemente em Blumenau (SC) em um dia choveu 819 milímetros, quase um metro cúbico de água por metro quadrado de solo em 24 horas, uma barbaridade. Esses acontecimentos são cada vez mais frequentes, o que vai exigir inclusive, embora pouco se fale disso, mudança de métodos construtivos em rodovias, pontes, aterros e inclusive áreas urbanas, porque esses sistemas foram calculados para outros tempos e não para os impactos que estamos sofrendo hoje.

Ecossistemas em colapso

A segunda questão mencionada por Kofi Annan são os padrões de produção e consumo. Segundo os relatórios do Pnuma [Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente], do WWF e de outros, já estamos consumindo mais de 25% além da capacidade de reposição da biosfera planetária. É um déficit que está aumentando de ano para ano. As previsões do Pnuma são de que em meio século a exigência humana sobre a natureza será duas vezes superior à capacidade de reposição da biosfera e é provável a exaustão dos ativos ecológicos, assim como o colapso dos ecossistemas em larga escala. Na verdade estamos nos comportando como uma família que consome mais do que seu orçamento permite – ela não tem essa disponibilidade e caminha para situações muito graves.

Essa pressão cada vez maior intensifica a desertificação no mundo, hoje já de cerca de 60 mil quilômetros quadrados a cada ano, agravando a crise da água e várias outras. A chamada pegada ecológica média é de 2,2 hectares por pessoa, quando a disponibilidade média é de 1,8 hectare. Não há essa disponibilidade. O Brasil tem uma situação relativamente privilegiada por causa de seu território e recursos, mas a pegada média brasileira é de 2,1 hectares por pessoa/ano, superior à disponibilidade média mundial. Algumas das consequências desse uso excessivo são a perda de espécies tropicais e a degradação dos manguezais, em ritmo duas vezes superior ao das florestas. Continuamos a perder no mundo 12 mil quilômetros quadrados de florestas por ano. Na América do Sul a perda dos manguezais, que são o berço da vida no oceano, é mais grave que no restante do mundo e seu principal fator é a conversão de áreas para agricultura. Outro é a pesca excessiva, que já exauriu um quarto dos estoques pesqueiros mundiais.

Essa pressão leva também a problemas na área dos recursos hídricos, em que há uma alteração e retenção forte do fluxo fluvial para vários usos, industrial, para energia ou abastecimento humano. Mais de metade dos maiores sistemas fluviais no mundo já se fragmentaram e a quantidade de água armazenada em reservatórios é pelo menos três vezes maior do que a do fluxo fluvial superficial. Um estudo da Comissão Mundial de Barragens informa que só de barragens com mais de 15 metros de altura temos 45 mil no mundo e já há muitos grandes rios que não conseguem chegar ao final de seu curso primitivo, que seria o mar. Exemplo disso é o rio Amarelo, na China, e vários outros, como os que correm para o mar de Aral, na Ásia, e rios nos Estados Unidos também.

Isso se torna mais dramático ainda se observarmos que os países industrializados, com menos de 20% da população mundial, respondem por quase 80% do consumo dos recursos. Dizem os relatórios do PNUD [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento] que se todas as pessoas consumissem como americanos, japoneses e europeus, teríamos necessidade de mais dois ou três planetas Terra para suprir os recursos. Então não é exagero dizer que estamos vivendo uma crise do padrão civilizatório. Nossos modos de viver são incompatíveis com os recursos do planeta, mesmo com quase 1 bilhão de pessoas passando fome e 2,5 bilhões vivendo abaixo da linha da pobreza. Com o agravante de que até meados deste século, segundo os demógrafos da ONU, a população passará dos atuais 6,7 bilhões para 8,5 ou 9 bilhões de pessoas, embora a taxa de natalidade no mundo tenha baixado muito. O Brasil já tem uma taxa de nascimentos inferior ao que seria a chamada taxa de reposição, a substituição das pessoas que morrem.

Crescimento insustentável

O que se vai fazer diante desse quadro? Muitos dizem que a solução é crescimento econômico, é desenvolvimento. O biólogo americano Edward Wilson, que é considerado o maior especialista em biodiversidade no mundo, admite que o caminho seja esse. Vamos supor então que o crescimento do produto mundial seja de 3,5% ao ano. Seria modesto, mas não há recursos e serviços capazes de sustentá-lo. Será indispensável então praticar padrões de consumo que poupem recursos e não os desperdicem. Teremos de reformular as matrizes energéticas, de transportes, os métodos na agropecuária, os padrões de construção. E os fatores de custos ambientais terão de estar no centro e no início de todas as políticas públicas e planejamentos privados.

O Brasil terá de adotar uma estratégia que leve em conta mudanças climáticas e sustentabilidade na produção e no consumo. Temos uma posição privilegiada em matéria de recursos naturais, fator escasso de que o mundo mais precisa. Temos território continental, sol o ano todo para plantar, temos de 15% a 20% da biodiversidade global. Isso é um privilégio, porque daí é que virão os novos alimentos, medicamentos, materiais para substituir os que se esgotarem ou se inviabilizarem. O biólogo Thomas Lovejoy calcula que só de medicamentos com base na biodiversidade das plantas se comercializam hoje no mundo mais de US$ 200 bilhões por ano. Temos de 12% a 13% do fluxo hídrico superficial num mundo carente desses recursos. Temos grandes aquíferos subterrâneos e a possibilidade de utilizar uma matriz energética limpa e renovável, com hidreletricidade, energia eólica, solar, energia das marés e os biocombustíveis.

Em 2006, a Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], junto com o WWF, publicou um estudo sobre a matriz energética brasileira, com estes dados: o país, se quiser, pode ganhar 30% da energia que consome hoje com programas de eficiência e conservação, como ocorreu em 2001 no apagão. Pode ganhar 10% com repotenciação de antigas usinas que estão com equipamentos ultrapassados, a um custo muito menor do que construir uma nova usina. E pode ganhar 10% reduzindo as perdas nas linhas de transmissão. Perdemos hoje de 15% a 17% de energia nessas linhas, enquanto no Japão esse índice é de apenas 1%.

As hidrelétricas produzem hoje 20% da energia mundial, mas há muita pressão da agropecuária em relação aos recursos hídricos. Um quilo de trigo requer entre 400 e 2 mil litros para ser produzido, um quilo de carne entre mil e 20 mil litros – carne bovina são 15 mil litros e de aves 4 mil litros. Se uma pessoa come um bife de 200 gramas de carne de boi no almoço e outro no jantar, consome perto de 3 mil litros de água por dia. Somando-se isso aos outros usos em casa – chuveiro, cozinha, descarga sanitária – e àqueles fora de casa, não será exagero dizer que uma pessoa consome 4 mil litros de água por dia.

Isso alimenta o debate com os vegetarianos, que rejeitam o consumo de carne pelo ser humano. Mas há outros complicadores: produzir 1 litro de combustível verde exige 2,5 litros de água. Isso também começa a ser discutido, bem como outros problemas, como a contribuição do etanol para a chuva ácida, para a disseminação de nitrogênio. Um relatório recente da ONU diz o seguinte: chegam por ano aos oceanos cerca de 100 milhões de toneladas de nitrogênio, levadas pelos rios e recebidas das lavouras. Esse nitrogênio é a principal causa de eutrofização [aumento da quantidade de nutrientes, levando ao acúmulo de matéria orgânica em decomposição] da água, que forma algas e vegetação, prejudicando a biodiversidade. Os oceanos já têm hoje várias áreas mortas, algumas com até 70 mil quilômetros quadrados, como no Pacífico e no golfo do México.

Também começa a ser discutida a questão do metano na pecuária, já mencionada, e na produção de arroz irrigado por inundação, outra fonte de emissão desse gás. Há poucos dias surgiu uma notícia interessante: cientistas alemães conseguiram reduzir em 25% a produção de metano pelo gado bovino adicionando óleo de peixe na ração. Se isso se confirmar e for viável em larga escala, pode ser extremamente importante.

Água e saneamento

Esse é o quadro final. Segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, um ser humano precisa de 3 litros diários para beber e 3 mil litros para seus alimentos. Doenças veiculadas pela água são a segunda causa de morte de crianças com menos de 5 anos no mundo. São 4,2 mil por dia e 125 milhões de crianças vivem em casas sem água potável de boa qualidade. O problema do saneamento é dramático, 23% da população mundial não tem sequer instalações sanitárias e defeca ao ar livre. Se o saneamento fosse universalizado, as doenças diarreicas poderiam se reduzir em 32%. No Brasil, 80% das internações e das consultas pediátricas na rede pública se devem a doenças veiculadas pela água, principalmente infecções intestinais. Nos países em desenvolvimento esses males matam 1,7 milhão de pessoas por ano.

As propostas no Fórum Mundial da Água precisariam de votação unânime, como ocorre em todos os fóruns da ONU. Uma seria impedir a comercialização e a privatização da água, porque em muitos países onde isso acontece as populações mais pobres ficam sem água, e há nações na África onde esse problema é dramático, Mali, por exemplo. Outras: regras mais exigentes para a construção de barragens e água como direito constitucional. Houve uma discussão também sobre instituir a água como direito humano, o que não foi aprovado (o Brasil foi contra). A delegação brasileira levou algumas propostas para Istambul: cobrar mais pelo uso dos que poluem mais, promover maior participação da sociedade na gestão e remunerar produtores agrícolas por serviços ambientais. Este último ponto tem como exemplo a cidade de Nova York, que estava com a capacidade de abastecimento de água esgotada e já em déficit. Fez um acordo com os produtores das margens dos mananciais para que deixassem de usar tanta água na irrigação e passou a pagá-los pela conservação das áreas para que ali se pudesse aumentar a captação. O acordo foi feito e deu muito resultado. No Brasil, o município mineiro de Extrema começou a fazer isso, remunerando os produtores por serviços ambientais.

Há um problema muito grave, do qual se fala pouco, que é o derretimento do gelo das montanhas, inclusive na América do Sul. Na Ásia certamente o efeito será dramático, isso já está acontecendo e são centenas de milhões de pessoas que dependem dessa fonte de água. Na América do Sul também já está ocorrendo nos Andes, e determinará menor acúmulo nas montanhas e um fluxo menor de água, inclusive para a bacia amazônica, que depende bastante dele.

Privilégio brasileiro

Vejamos o panorama brasileiro, com seus 12% a 13% da água superficial total do planeta, 182 mil metros cúbicos por segundo, fora os aquíferos subterrâneos. Mas a distribuição desse precioso líquido é muito desigual: 72% estão na Amazônia, o sudeste tem 6%, a bacia do São Francisco 1,7% e a do Paraíba do Sul 1,8%. O único estado brasileiro em situação crítica é Pernambuco, que utiliza para o abastecimento humano mais de 20% da disponibilidade, índice que é considerado como limite. O nordeste apresenta problemas muito peculiares, tem 70 mil açudes com 36 bilhões de metros cúbicos, mas essa água não é distribuída e tem altíssimo índice de evaporação, que pode chegar até a 70%.

Quanto ao saneamento, o IPEA [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] divulgou em fevereiro de 2009 estes números: 34,5 milhões não contam com rede de esgotos nas áreas urbanas. Se acrescentarmos a isso as pessoas que têm apenas fossas sépticas, vamos chegar perto de 50% da população brasileira, e quase 10% não dispõem de abastecimento doméstico de água. Há lugares onde a situação é dramática, como Belém, em que só 8% dos esgotos são coletados e 3% tratados. No país todo, quase 80% dos esgotos coletados não são tratados, e eles constituem o fator mais grave de poluição. Temos de lembrar também que mesmo nos pouco mais de 20% dos esgotos que são tratados no Brasil, a quase totalidade passa apenas por tratamento primário, que remove somente 50% da carga orgânica, sendo o restante despejado de volta nos rios e no mar. Assim, os esgotos são a principal causa de poluição da água no Brasil, e nossos programas de saneamento estão muito atrasados. Prevê-se a universalização em 20 anos, a um custo de quase R$ 200 bilhões, se forem liberados de R$ 8 bilhões a R$ 9 bilhões por ano, o que não está acontecendo. E o governo federal acaba de devolver ao BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento] US$ 202 milhões destinados a financiamento nessa área, porque não foi capaz de apresentar projetos a tempo.

Outro problema grave é a perda média de água nas grandes cidades brasileiras. Furos e vazamentos nas redes são responsáveis pela perda de 45% do total. Em São Paulo, onde já se cuidou bastante disso, esse número foi reduzido para 28%, mas ainda é muita água, são quase 2 bilhões de litros que se esvaem a cada dia nos vazamentos. Recentemente "O Estado de S. Paulo" publicou que a Sabesp começa a testar equipamentos japoneses que permitem detectar furos e vazamentos na rede sem fazer escavações, que são caras e demoradas. Se isso se viabilizar, será um progresso enorme. Outro avanço que houve em São Paulo foi a instalação de hidrômetros por unidade em edifícios. Quando a conta é coletiva, a pessoa não se sente estimulada a economizar água, porque o gasto se distribui por todos os apartamentos e não se reflete na conta individual. A separação estimula a economia. Outro avanço seria uma maior diferenciação das faixas de cobrança. Atualmente, salvo engano, há uma taxa para quem consome até 10 mil litros por mês, e a faixa seguinte já é de 30 mil litros. O consumidor que economiza 8 mil litros não ganha nenhum incentivo, continua com a mesma tarifa.

É preciso também avançar na questão da gestão por bacias hidrográficas, que é a solução mais recomendável. Até agora, porém, somente as bacias do Piracicaba, Capivari e Jundiaí, assim como a do Paraíba do Sul, cobram pelo uso. Um problema adicional é que o Tesouro Nacional contingencia uma grande parte dos recursos arrecadados com o pagamento pelo uso. Um diretor da Agência Nacional de Águas [ANA] me informou que o Tesouro retém, por esse caminho, mais do que todos os recursos que o governo federal coloca na ANA.

Outro problema é que, segundo a lei da política nacional de recursos hídricos, não se cobra das hidrelétricas pelo uso da água. Foi permitido que considerassem pagamento pelo uso da água o ressarcimento que fazem aos municípios pela inundação, que é outra coisa. Isso é dano ambiental, não é pagamento pelo uso.

Há necessidade urgente de disciplinar o uso de água pelos pivôs centrais de irrigação, que em média desperdiçam mais de 50% do líquido que retiram dos aquíferos, além de outros problemas. Como a água cai de grande altura, há um nível de evaporação muito alto e a queda produz impacto no solo que leva à compactação e também à erosão, carreando para os rios sedimentos e agrotóxicos. Também seria importante uma expansão das redes de coleta de esgotos, com sistema de ramais condominiais, que são muito mais baratos. Ao contrário do que ocorre no sistema tradicional, em que a empresa coloca aquelas manilhas gigantescas em volta de toda a quadra para implantar o esgoto, no sistema condominial faz-se apenas um ramal no meio da quadra e ligam-se as casas por ali. A economia – de 50% a 30% – é muito alta. Brasília é a cidade que mais fez isso e é provavelmente a de melhores condições sanitárias do país. Coleta e trata todos os esgotos que recebe, e a maior parte por ramais condominiais.

Mudanças velozes

Outras possibilidades seriam reciclagem e reúso de água, principalmente nas indústrias, e a retenção de água de chuva para certos usos, que deveria ser obrigatória em todos os imóveis. Essa água serve para descarga sanitária, lavagem de quintais e jardins, rega de plantas, todas essas coisas. Mesmo que não seja usada, a retenção nas zonas urbanas diminuiria o volume de água na hora das chuvas fortes, reduzindo as inundações. Há muitas cidades onde já existe legislação a respeito, mas não se cumpre.

São necessários também equipamentos sanitários mais eficientes. Ainda temos dispositivos que gastam 20 litros por descarga, o que pode ser feito com 3 litros ou 4, ou até a vácuo, sem usar água nenhuma, como o Japão faz.

Precisamos cuidar dessas coisas porque temos obrigações com as futuras gerações. Cabe-nos legar a elas um mundo sustentável e a água é um dos primeiros fatores. Na Cúpula Mundial do Desenvolvimento Sustentável, em 2002, em Johannesburgo, Jacques Chirac, presidente da França na época, fez um levantamento de grande parte dos problemas mencionados aqui e terminou em tom dramático, afirmando o seguinte: "As futuras gerações vão nos cobrar. Elas vão dizer: ‘Vocês sabiam de tudo e não fizeram nada’". Acrescento que é preciso lembrar que vivemos em tempos de mudanças muito velozes. O que antes levava um século para acontecer hoje ocorre em uma década, o que demorava uma década leva um ano. Quem não correr será atropelado pelos tempos, porque a velocidade da informação é cada vez maior.

É esse o quadro que está diante de nós. Ao me perguntarem, quando falo sobre isso, se sou otimista ou pessimista, digo que não faz a menor diferença. Temos obrigação de ser realistas e de trabalhar para que tudo mude para melhor. Essa é nossa função como seres humanos.

Debate

Nota do Editor: As colocações dirigidas ao palestrante foram algumas vezes reunidas em blocos, para ser respondidas de forma concentrada.

MOACYR VAZ GUIMARÃES – Washington Novaes pintou um quadro de gravidade preocupante. Estamos seguindo um caminho cujo fim se anuncia trágico. Mas também deixou claro que há soluções. Então pergunto: seria correto concluir que a saída depende fundamentalmente de uma decisiva vontade política global?

ROBERT APPY – Geralmente o economista tem um inimigo, que é o ecologista. Isso porque o economista pensa só em crescimento, que aumenta os problemas ecológicos, criando um paradoxo. Seria possível reduzir o tempo para obter autorizações ambientais em projetos de investimento, já que os atrasos custam muito caro? Quanto à fome na África, pergunto se essa carência alimentar é resultado mais de políticas regionais falhas do que de condições climáticas adversas.

SAMUEL PFROMM NETTO – Quero referir-me particularmente a algo que está de certo modo embutido em sua exposição, que é o analfabetismo científico e tecnológico da imensa maioria da população brasileira. E o mais grave, um analfabetismo que grassa entre as crianças e jovens, ignorantes de quase tudo em matéria de química, física, ciência da terra, biologia, e jejunos em tecnologia. Não poderia ser diferente, se considerarmos que seus professores, na grande maioria, são igualmente analfabetos em ciência e tecnologia. Refiro-me, é claro, não aos mestres do ensino privado, mas aos modestos e despreparados professores do ensino público básico pelo Brasil afora. Um despreparo que aparentemente não abala nossas autoridades de ensino, nem as leva a tomar medidas a fim de superar esse estado de coisas. Não estaria na efetiva melhoria da qualidade do ensino público a saída para a superação paulatina desse sombrio panorama de um mundo que se encaminha a passos largos para um desastre apocalíptico?
Quanto às catástrofes globais que nos esperam nesse amanhã sombrio, peço licença para sublinhar que me refiro aqui não a uma ciência e uma tecnologia para crianças e adolescentes de conversa fiada, mas alicerçadas em problemas reais, em práticas de laboratório e oficinas, em conhecimentos que nos ajudem a preservar a espaçonave Terra, em que todos os cidadãos, sem exceção, são tripulantes e responsáveis.

WASHINGTON NOVAES – Começando pela primeira intervenção, se a solução não depende de vontade política global. Essa é exatamente a questão, pois ela tem de ser universal. O grande resultado dependerá de uma mudança mundial e não temos órgãos nem regras para fazer isso. O melhor que temos são as convenções da ONU, mas elas, para adotar qualquer resolução, dependem de consenso, que é praticamente impossível diante da diversidade de situações, opiniões e reivindicações. Então é difícil avançar. Um caso em que se caminhou foi a questão da camada de ozônio, pois se conseguiu chegar ao Protocolo de Montreal em 1987 para eliminar o uso do CFC [clorofluorcarboneto, gás utilizado em refrigeração]. Porém, isso não foi completado, ainda está sendo feito e mesmo assim com um resultado muito lento. O buraco na camada de ozônio não diminuiu, está praticamente a mesma coisa.
Há quem opine que seria preciso criar uma organização mundial do meio ambiente para substituir a ONU nessas questões, mas as pessoas que discutem isso acreditam que o resultado será o mesmo. Não vai haver unanimidade e não se avançará. Esses temas são extremamente inquietantes para todo mundo e por isso é muito difícil conseguir consenso. São ameaçadores, por exemplo, para governantes e políticos, porque se eles levarem essas questões a sério terão de mudar sua forma de atuação. Desafiam também os empresários, que precisam assimilar novos custos. Num mundo em recessão, eles não podem perder competitividade, mercado. A própria publicidade, os meios de comunicação, se tratarem mais sistematicamente desses assuntos, vão enfrentar conflitos com governos, empresas, com todo mundo. Isso só mudará quando conseguirmos levar a sociedade a discutir esses tópicos, a tomar posições, a formular propostas políticas, a votar corretamente.
No que respeita às observações de Robert Appy sobre ecologia e desenvolvimento, tudo deve ser analisado caso a caso. A resolução nº 1 do Conselho Nacional do Meio Ambiente, de 1986, diz que a obrigação primeira de qualquer estudo de impacto ambiental é examinar se é conveniente ou não o investimento e se há ou não alternativas para que não haja impacto. Isso devia ser a primeira regra, mas não é seguido. Então é preciso estudar cada caso. Por exemplo, Santa Catarina acaba de fazer uma opção dramática, reduziu a margem de proteção dos rios, permitiu plantação em encostas e topos de morros. Esqueceu as lições que sofreu no final do ano passado, as inundações como consequência da ocupação desordenada e do desmatamento de encostas. O preço é muito alto e os próprios agricultores sofrerão com menos vegetação.
Quanto à fome na África, certamente essa é uma questão política, antes de tudo. Esse continente foi massacrado pelo colonialismo. A África era dividida em mais de 10 mil etnias e o processo de colonização foi separando e juntando as pessoas, provocando guerras terríveis. Hoje, por exemplo, há guerra civil na região do Congo, Ruanda, Uganda e Burundi, um conflito que já matou 4,5 milhões de pessoas e que nem sequer notícia é. As etnias foram expulsas do lugar em que viviam e no espaço em que foram colocadas não têm como sobreviver, porque falta água, não têm como plantar, não têm nada. A África é uma calamidade, um cotidiano de horrores. Sobre esse tema há dois livros, da Companhia das Letras, Ébano e A Guerra do Futebol, ambos de um jornalista polonês falecido em 2007, Ryszard Kapuscinski, um documento dramático.
A questão que Samuel Pfromm Netto levantou sobre o ensino de ciência e tecnologia realmente é séria. Já vi um estudo mostrando que mais de 70% das pessoas que concluem os dois primeiros ciclos da educação no Brasil são analfabetas funcionais, isto é, não são capazes de ler uma instrução de três ou quatro linhas e transformá-la em norma, em regra de trabalho. O corpo docente é também despreparado. Recentemente tive uma assistente que já era professora de história, fazia mestrado e não sabia escrever português, precisei pagar um curso para ela.
Na Agenda 21 propus e foi aprovado que se aperfeiçoasse o capítulo sobre ciência e tecnologia, inclusive por causa da ausência de uma parte sobre clima. Há cerca de quatro anos, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência [SBPC], numa reunião na Amazônia, propôs que o governo criasse um programa para o aproveitamento de centenas de milhares de quilômetros quadrados daquela região já desmatados e sem utilização econômica, com forte investimento na formação de cientistas voltados para a biodiversidade. Levou isso ao governo federal e nunca aconteceu nada. Recentemente o Ministério de Ciência e Tecnologia sofreu um corte de 40% em suas verbas. A questão da ciência e da tecnologia é vital. Se o Brasil mantiver a postura que tem hoje vai perder mais terreno ainda, seja internamente, seja diante da competição mundial.

HUGO NAPOLEÃO – Soube que nos Estados Unidos a emissão de gás metano é muito grave, porque lá o gado se alimenta de ração animal, enquanto no Brasil seria vegetal. O número citado pelo conferencista é de 58 quilos de gás metano por boi ao ano. Pergunto se o gado brasileiro também emite esse volume.

EDUARDO SILVA – Na prática, vejo que muitos engenheiros se empenham, mas não conseguem fazer projetos com uma ação mais global. Ninguém é capaz de aceitar a tese de que o futuro é amanhã mesmo. Isso em transporte, energia e até na aquisição de bens materiais. Gostaria de solicitar que, além da tese, se pudessem mencionar ações práticas.

ÁLVARO MORTARI – O degelo que o senhor mencionou pode criar grandes problemas, com o aumento do nível dos oceanos? Isso leva um longo tempo ou pode acontecer em alguns anos? E será que a dessalinização do mar poderá ser futuramente uma maneira de conseguir água para consumo?

WASHINGTON NOVAES – Quanto à questão do metano produzido pelo gado, que aliás não é somente bovino, mas inclui ovelhas, cabras e outros, a medição foi feita pela Embrapa Meio Ambiente em Jaguariúna, no interior de São Paulo. Estive há uns três anos acompanhando esse trabalho. Coloca-se uma espécie de receptor no focinho do animal, preso a uma canga, e as emissões de metano que passam pelo caminho dos arrotos são captadas, sem incluir as que ocorrem por flatulências e derivadas do esterco. O número não é muito diferente do de outros países em função do tipo de alimentação, o problema existe lá como aqui. A Embrapa está tentando desenvolver variedades de capim que emitam menos metano no processo digestivo. A Alemanha está seguindo o caminho de aditivos químicos na ração, saiu há poucos dias a notícia. Tenho pouca informação ainda a respeito, mas a ideia de que seria possível reduzir as emissões em 25% por meio da adição de óleo de peixe à ração é algo extraordinário. A Nova Zelândia já está discutindo e provavelmente vai chegar à decisão de criar uma taxa de emissões por animal. Nos Estados Unidos isso está em estudo também, existe uma proposta da Agência de Proteção Ambiental. E aqui há um novo inventário das emissões brasileiras prometido para este ano.
Eduardo Silva falou de uma ação mais global. Realmente a lógica financeira é muito complicada. Argumentar com alguém que deve assumir custos em função de questões ambientais é muito difícil, pois reduzem-se a competitividade e o lucro. Isso somente terá solução quando houver uma discussão pela sociedade e se chegar ao terreno legal, onde se comece a atribuir os custos a quem os gera, sem repassá-los para a sociedade, como ocorre hoje. Por exemplo, quem paga os custos ambientais do transporte? O estudo de Adriano Murgel registra que a preferência pelo transporte individual, em quatro décadas, significa um custo de US$ 1 trilhão, valor mais do que suficiente para implantar uma rede de metrô na cidade de São Paulo inteira.
A Associação Nacional de Transportes Públicos faz uma argumentação mostrando o seguinte: na Grande São Paulo, se somarmos o sistema viário, praças, estacionamentos e garagens, o transporte já ocupa mais de 50% do espaço urbano. A entidade conclui que isso é um absurdo, pois o meio não pode se transformar num fim, a cidade não pode viver em função do transporte, este é que deve servir a ela. Quanto às ações práticas, tenho escrito e falado muitas coisas, mas precisamos de políticas públicas e que a sociedade pressione por isso.
Quanto ao degelo, estudos mais recentes são muito alarmantes. De acordo com eles, em 20 a 30 anos não haverá mais gelo no Ártico, e isso vai causar mudanças na temperatura do mar, elevar o nível dos oceanos e aumentar a absorção de radiação pela Terra, porque a área gelada reflete uma grande parte dela. Segundo o Painel do Clima, a continuar a atual tendência, poderemos ter entre 39 e 58 centímetros de elevação no nível do mar ao longo deste século. Ultimamente os estudos falam mesmo em 1 metro. Isso significará a inundação de uma grande parte das regiões costeiras do mundo, e temos de lembrar que 40% da população mundial vive nessas áreas.
A dessalinização da água do mar é possível, tecnicamente está demonstrado, inclusive há países que já usam isso em grande escala, como Israel e Dubai. A questão é o custo, que é alto.

JANICE THEODORO – O senhor falou em crise civilizacional, e essa me pareceu uma excelente palavra para caracterizar o momento por que estamos passando. Atualmente vivemos uma série de crises e a ONU não consegue coordenar as atividades em torno de um mesmo objetivo. É extremamente difícil mudar a atitude em âmbito mundial. A crise ambiental não seria o elemento que deflagraria a crise civilizacional? Se os gregos estão certos, o homem só toma consciência dos grandes movimentos políticos quando uma parte expressiva dos cidadãos sente na pele o significado da tragédia. Quando ela ocorrerá?

ADIB JATENE – Quando pedem minha opinião sobre a situação, digo que não está boa, mas, se tivermos paciência, com o tempo vai piorar. Sua exposição me faz perguntar o seguinte: como o consenso nos organismos internacionais não tem sido possível, será que nosso planeta tem futuro?

ZEVI GHIVELDER – Quanto à questão de conciliar desenvolvimento com meio ambiente, vemos no Brasil coisas espantosas. Lembro-me de que a licença ambiental para a hidrelétrica do rio Madeira foi uma novela dividida em 300 capítulos. Agora parece que já se editou ou vai se editar uma medida provisória dispensando a construção de rodovias de licença ambiental. E o Ministério do Meio Ambiente, que é governo, reclama contra uma decisão de seu próprio governo. Há uma incompatibilidade tão grande nisso que pergunto onde vamos parar.

WASHINGTON NOVAES – Janice, as crises que estão aí, ou grande parte delas, têm base exatamente no desligamento das coisas concretas. Vejamos, por exemplo, a crise econômico-financeira que vivemos. O produto bruto mundial hoje é de US$ 60 trilhões. Vi recentemente um estudo segundo o qual os ativos financeiros mundiais alcançam hoje US$ 860 trilhões – um valor que está na estratosfera, não tem nada que o garanta, que lhe dê solidez. Temos de nos reaproximar das coisas concretas, reais, estamos no terreno das abstrações, enquanto o solo se mostra cada vez mais precário. Quanto a sua pergunta sobre a tragédia, acho que já a estamos vivendo. Já vivemos o desastre, pois, como mencionei, 1 bilhão de pessoas passam fome no mundo, 2,5 bilhões estão abaixo da linha da pobreza, o mesmo número de pessoas que não dispõem de redes de esgoto ou de abastecimento de água em casa. Os desastres ambientais são cada vez maiores, afetando milhões de pessoas a cada ano. No Brasil já ultrapassamos a casa de centenas de milhares por ano, como em Santa Catarina. A tragédia já está aí.
A comunicação precisa mudar. No mundo e no Brasil segue-se um modelo hollywoodiano de informação, só se fala dessas questões nos momentos de tragédia, de grandes emoções e comoções. Passados esses períodos, tudo é esquecido, não se discute o assunto sistematicamente com a população. Voltemos a Santa Catarina: seria uma ilusão pensar que o que aconteceu lá no final do ano passado ocorreu da noite para o dia. A ocupação do topo de morros e o desmatamento das encostas aconteceram ao longo de décadas e ninguém falou nada sobre isso. A ocupação das planícies naturais de inundação ocorreu ao longo de séculos. A impermeabilização do solo das cidades, impedindo a infiltração, está acontecendo também há muitas dezenas de anos. Quando cai uma chuva mais intensa é que se revela a vulnerabilidade.
A Alemanha, por exemplo, está fazendo um programa admirável, chamado renaturalização do curso dos rios. O objetivo é desocupar todas as antigas planícies de inundação natural e devolver aos rios seu caminho primitivo. Está retirando as barragens, eliminando as retificações, tirando tudo o que entrou no caminho dos rios, porque sofreu inundações terríveis há alguns anos, morreu muita gente. Mais: proibiu quem estava nas planícies de ocupar o primeiro pavimento e agora está retirando todo mundo. O secretário do Meio Ambiente da cidade de São Paulo até já anunciou isso aqui, mas não sei se consegue avançar.
Doutor Jatene, será que não há futuro? Não sei. A resposta depende do ser humano, ele tem de tomar consciência disso. Afirmei e repito que estamos vivendo uma crise de padrão civilizatório. Nossos modos de viver não são compatíveis com as possibilidades do planeta. É preciso então mudá-los. Não temos alternativa.
Quanto à questão que Zevi colocou, por que precisamos construir uma hidrelétrica no rio Madeira? Para a Amazônia consumir? Não existe esse consumo na região. A produção de mais energia elétrica na Amazônia se destina a suprir a indústria de eletrointensivos, principalmente alumínio. Os eletrointensivos consomem cerca de 30% da produção total de energia no Brasil e são subsidiados. Tucuruí, por exemplo, fez um contrato de 20 anos com as indústrias de eletrointensivos com subsídio de quase 60% no custo da energia. Ao final da obra havia um prejuízo de US$ 4 bilhões, que alguém tinha de pagar. Foi tudo repassado à sociedade, pagamos em nossa conta de luz, nada é de graça. E somente para exportar alumínio, não é consumo interno.
Países como o Brasil e alguns outros se dedicam à exportação intensiva de bens que os países industrializados não querem produzir exatamente por causa do custo ambiental ou social. Fazem isso arcando com todos os custos, sem nenhuma remuneração adicional. Mencionei o estudo da Unicamp sobre a matriz energética brasileira, não precisamos construir hidrelétrica nenhuma, muito menos termelétricas poluidoras. O ministro Edison Lobão chegou a anunciar 60 usinas nucleares, que são muito mais caras, muito mais inseguras, e não há solução, nem aqui, nem em lugar nenhum, para os resíduos nucleares. O Ministério do Meio Ambiente acaba de autorizar o início da construção e também o depósito. O ministro do Meio Ambiente, que lutou a vida inteira contra a energia nuclear e se elegeu deputado com base nisso, teve como primeiro ato como titular da pasta o licenciamento de uma usina nuclear. É difícil essa questão política.

Revista Problemas Brasileiros