quinta-feira, 20 de maio de 2010

Max Justo Guedes - O mundo sem segredos


Max Justo Guedes
O mundo sem segredos


Conhecer os ventos e as correntes oceânicas é fundamental para qualquer comandante de navio, ainda mais quando se trata de um alto oficial da Marinha. Mas, no caso do almirante Max Justo Guedes, o que surpreende é a sua familiaridade não só com a tecnologia náutica moderna, mas também com mapas antigos, bússolas, astrolábios, e até com os ventos que inflavam as velas das naus portuguesas ou espanholas no Atlântico, há cinco séculos, impulsionando suas jornadas até as Américas.

Estudioso das navegações, particularmente da época do Descobrimento, o almirante dedicou boa parte de sua vida à preservação e divulgação do patrimônio histórico naval brasileiro, dirigindo o

Serviço de Documentação da Marinha e criando museus e espaços culturais.
“Me pediram para fazer as rotas dos grandes navegadores”. Com esta simplicidade explica o nascimento, mais de 40 anos atrás, de sua especialização, a pesquisa cartográfica, que gerou inúmeras publicações e o tornou conhecido no Brasil e no mundo.

Ainda nos anos 1970, depois de sobrevoar de helicóptero a costa de Porto Seguro e percorrer dezenas de vezes o trecho entre a Baia Cabrália e o Monte Pascoal, Max Justo Guedes pôde estabelecer, com grande precisão, as singraduras da esquadra de Cabral, os locais onde a frota ancorou, e o rio onde dois povos tão diferentes se viram pela primeira vez, naqueles idos de abril de 1500.

Mas terá sido este, de fato, o primeiro contato entre os índios do Brasil e o mundo ocidental? É o que Max Justo Guedes nos revela nesta entrevista.


Revista de História – Quando surgiu sua paixão pelos mapas históricos?

Max Justo Guedes – Minha paixão é pela história, não é pelos mapas, os mapas são uma conseqüência. Lembro que quando era menino, em Juiz de Fora, vi um livro lindo na livraria e pedi a meu pai para comprar. Era A história do mundo para crianças, de Monteiro Lobato. Foi assim que me interessei por História. O restante da vida foi cuidando disso. Ingressei na Escola Naval em 1946 e lá me interessei um pouco por história naval, mas não muito. Continuei meus estudos, até que, em 1963, me pediram para fazer as rotas dos grandes navegadores.

RH – Navegadores portugueses?

MJG – Todos os grandes navegadores. Foi aí que começou meu interesse por cartografia. Estudava tudo, comprei tudo quanto era livro sobre o assunto...

RH – O senhor fez também trabalhos importantes na área da restauração...

MJG – Montei o primeiro Museu Naval na rua Dom Manuel, aqui no centro do Rio. Foi inaugurado em 1972. Depois fui ampliando aos poucos. Fiz o Espaço Cultural da Marinha, restaurei aquele torpedeiro, o Bauru, e depois o submarino Riachuelo. Quando o Collor fechou a Embrafilme, o prédio da Mayrink Veiga foi entregue à Marinha, e a biblioteca foi para lá, mas antes tivemos de restaurar ele todo. Montei também a biblioteca da Marinha, num prédio que estava em ruínas. Quando as obras foram concluídas, o ministro me perguntou se eu queria ficar também com a Ilha Fiscal, palco do último baile do Império. Eu respondi: “Pergunta-se ao macaco se ele quer banana?”. Aí, fizemos a restauração da ilha também. Me davam as ordens, eu ia cumprindo.

RH – Sobre os mapas: eles variam muito, de civilização para civilização?

MJG – Ah, sim, há uns que são engraçadíssimos: umas quadriculas de bambu com umas conchinhas, das ilhas do Pacífico. Chegava-se às ilhas por meio desses mapas. Os gregos, na Antiguidade, tinham o que eles chamavam de “périplos”. Eram descrições escritas das costas que usavam para navegar. Não eram mapas nem cartas náuticas, eram uma descrição. O Mediterrâneo é muito interessante porque ele é muito aberto em longitude e muito estreito em latitude. Então, se um navegante se perder e se dirigir para o norte, vai dar na Europa. E se dirigir para o sul, vai dar na costa africana. O périplo ensinava como chegar ao porto.


RH – Quais as cartas náuticas mais antigas?

MJG – A mais antiga referência que se tem, na Europa, data dos tempos da última cruzada, no séc.XIII, quando apresentaram a São Luís, rei de França, um mapa-múndi. Depois disso, apareceu uma carta náutica, a Carta Bizana, que está hoje na biblioteca nacional da França. Aí já não usavam os périplos, mas as chamadas cartas-portulano, para chegar aos portos. Quando dos descobrimentos, o Infante Dom Henrique importou um cartógrafo maiorquino, Giácomo de Maiorca, que ensinou aos portugueses a fazerem cartas náuticas. Aí começaram a surgir as cartas portuguesas, com a costa africana e com as ilhas.

RH – Isso não causou nenhuma crise ideológica? Não conflitava com a visão do mundo que a Igreja tinha na Idade Média?


MJG – Na época dos descobrimentos essa crise já estava mais ou menos resolvida, mas na Idade Média a cartografia tinha acabado. A Igreja dividia o mundo em quatro ilhas. A única habitada seria o Ecúmeno, onde teriam nascido Adão, Eva e seus descendentes. Isso foi sendo desmentido justamente pelos descobrimentos e antes disso, por viajantes como Marco Pólo. Aí, começaram a surgir os primeiros mapas-múndi.

RH – Os portugueses utilizaram mapas para palmilhar a costa africana e chegar depois até a China ou os mapas foram feitos depois?


MJG – Eles iam fazendo os mapas na medida em que avançavam. Em Lisboa, existiam os chamados armazéns, que não eram o que hoje se entende por armazéns. Ficavam lá todo o instrumental náutico e os mapas. Cada descobridor que voltava ia ao armazém levando seu esboço e o passava ao cartógrafo. Este fazia os mapas. Os italianos, obviamente, tinham seus espiões. Um que ficou famoso se chamava Cantino. Tenho para mim que não era propriamente um espião, mas um espertalhão. Ele subornou um cartógrafo português, que fez o mapa de todo o mundo conhecido, e o vendeu para Hércules D’Este. É o Planisfério Cantino, que está hoje na Biblioteca Estense de Modena. Existe inclusive uma carta de Cantino oferecendo o mapa e negociando seu preço. Então, é assim que foi se desenvolvendo a cartografia...

RH – O que havia de peculiar nos mapas náuticos portugueses?

MJG – Era o saber de experiência feito, como dizia Camões. Eles iam navegando, experimentando, e colocando isso nos mapas. Desenhavam a partir dos processos e instrumentos que conheciam, como a bússola, ou agulha de marear, como se dizia. Com isso, tinham a direção e iam seguindo a costa e calculando alguns pontos astronomicamente. Assim é que se fazia. E foi como fizeram todos os que trabalharam nos tratados de Madri e Santo Ildefonso.


RH – Existem uns mapas belíssimos, cheios de ilustrações. Eram os cartógrafos que faziam?

MJG - O traçado da costa era obra dos cartógrafos, mas o interior eram os iluministas que faziam, a partir das descrições que recebiam. Existem cartas maravilhosas, como o Atlas do John Ross, ou Jean Rose, pois ele era francês, que pertenceu a Henrique VIII, e hoje está no Museu Britânico, com iluminuras fantásticas sobre a vida dos selvagens. Há um Atlas luso-francês, em Haia, que é também uma beleza, cheio de iluminuras belíssimas e importantes para os estudos antropológicos brasileiros. Os iluministas descrevem perfeitamente os costumes dos índios, eram artistas de primeiríssima qualidade. Mas esses mapas não serviam aos navegantes, eram “cartas de príncipes”, como se diz hoje.

RH – São quase obras de arte mesmo. Existe um mercado que comercialize esses mapas?

MJG – Claro, inclusive um mercado clandestino, é só ver o caso desse roubo no Itamaraty...

RH – Como é que o senhor se sentiu quando, lendo o jornal, soube do roubo desses mapas?

MJG – Acho um acontecimento terrível, porque deixa lacunas na história da nossa diplomacia. Não há muito tempo, houve uma questão envolvendo aquela ilha brasileira lá no Rio Uruguai, com o Uruguai reivindicando que a ilha era dele. E o Itamaraty não tinha mais os elementos para provar o contrário. Por acaso, eu tinha xerocado os mapas. A defesa brasileira foi feita toda em cima dessa documentação. Qualquer dia algum boliviano vai dizer que o Acre é deles e não conseguiremos provar nada. Toda aquela parte ocidental de Santa Catarina, já foi reivindicada pelos argentinos, e o barão do Rio Branco mostrou que os portugueses é que haviam colonizado com base na documentação do Itamaraty. Para o senhor ver como é grave essa questão dos roubos...

RH – O senhor acha que o interesse pela cartografia tem crescido entre os historiadores? MJG – Sem dúvida. Como se entender história sem saber geografia? Acho que é quase impossível se localizar um acontecimento histórico sem uma noção cartográfica. O senhor vê que a USP não tinha nada em matéria de mapas. Agora está criando, na cátedra Jaime Cortesão, um setor, que a Íris Kantor está trabalhando, de cartografia. E na Universidade de Minas Gerais está lá o Gilberto Costa, que já tem até um prédio próprio para fazer um setor de cartografia. Então o interesse pelos mapas está crescendo muito.

RH – Voltando ao caso do Cantino, era comum aquele tipo de espionagem?


MJG – Era, e por causa disso Portugal mantinha uma política de segredo quanto às suas cartas. Havia um édito condenando à morte todo cartógrafo que fizesse cartas ao sul do Manicomo. Aqueles que fossem apanhados fazendo mapas nessa região, morreriam “naturalmente” – isto é, eram jogados ao mar. Muitos cartógrafos portugueses foram subornados pelos franceses. Toda a cartografia francesa é baseada na cartografia portuguesa. Só depois é que aparecem os grandes cartógrafos franceses.


RH – Quando Portugal começou a se preocupar com a espionagem?

MJG – Depois que Fra Mauro mostrou que aquele conceito de Ptolomeu, de Oceano Índico fechado, estava errado, e que havia uma passagem. Os portugueses começaram a ir em busca dessa passagem. Diogo Cão fez duas viagens. Depois, Bartolomeu Dias dobrou o Cabo da Boa Esperança, atingiu o Índico e foi até o chamado Reino do Infante. Foi aí que começou a política de segredo portuguesa. Os italianos estavam interessadíssimos nos mapas, pois haviam perdido todo o comércio das especiarias, que era feito por eles usando os árabes como intermediários, para os portugueses, sobretudo depois da viagem de Vasco da Gama a Calicute, na Índia.

RH – Os portugueses estavam também mais avançados que os espanhóis?

MJG – Sem dúvida. Para a viagem de Magalhães, os espanhóis não tinham nem cartógrafos capazes de fazer os mapas para orientá-lo. A essa altura os portugueses já haviam percorrido a costa brasileira, já havia um mapa, que é o primeiro mapa do Brasil completo, feito por um cartógrafo português, ou dois – Pedro e Jorge Reinel. Mas de todo modo cada país, fossem a Itália ou Espanha, tinha seus grandes navegadores, seus heróis. Quando dos 500 anos da morte do Colombo, fui convidado para participar de um grande congresso realizado em Valladolid. Fiz a conferência de abertura mostrando a importância do Colombo, porque Colombo era um gênio do mar. Ele é que descobriu como se voltava das Antilhas para a Europa.

RH – Por que era difícil?

MJG – Era um problema de ventos e correntes. Por isso, aliás, os portugueses só navegavam inicialmente em caravelas ao longo da costa. Na região do Equador, era aquele trabalho medonho de ziguezague, navega para lá, navega para cá. Cabral só descobriu a Bahia, e não o Rio Grande do Norte, porque ele veio pelo largo, até avistar os sinais de terra. Está tudo na Carta do Caminha, não é? Quando ele avista os sinais de terra e vê que o vento não impediria que continuasse a viagem para a Índia, navegou diretamente para oeste, e aí descobriu o Brasil.

RH – Do ponto de vista náutico, o que o Atlântico tinha de tão terrível para os navegadores?

MJG – Os ventos e as zonas de calma equatoriais. Fora isso, era muito difícil orientar-se no mar. Até a invenção do astrolábio náutico, a navegação era feita pela estrela polar. Precisava-se de um observador fantástico para vê-la abaixo de seis graus de latitude norte...



RH – Então o problema era falta de orientação, somada aos ventos e à calmaria...

MJG – É, há vento até chegar às proximidades do Equador, depois calmaria durante toda a travessia e depois um vento contrário, que é o alísio de sudeste, que vem lá da Namíbia e vai até o Ceará. O senhor tem que contornar esse vento para poder navegar e dobrar o Cabo da Boa Esperança. Tanto que o Almir Klink, quando atravessou o Atlântico, a remo, discutiu muito comigo de onde sair. E ele é um craque, não é? Tem uma coragem fabulosa. Eu disse: “Sai da Namíbia que você vai chegar empurrado pelo vento e pelas correntes”.

RH – Até quando os portugueses dominaram a ciência cartográfica?

MJG – Até o aparecimento da cartografia holandesa (quando?). Antes disso, até o Abraão Ortelius, o grande cartógrafo flamengo, usou cartas portuguesas. Nessa época, o grande cartógrafo lusitano era o Luís Teixeira, que fez o roteiro de todos os sinais da costa brasileira. Como nos Países Baixos havia gravadores extraordinários, os holandeses progrediram rapidamente, criaram a Companhia das Índias Orientais, descobriram o estreito de Lener, fundaram a Batávia, invadiram o Brasil, e foram cartografando isso tudo...

RH – Qual era o prestígio do cartógrafo nessa época?

MJG – No começo das invasões holandesas eles não tinham grande prestígio. Mas o Nassau, que era um sujeito cinqüenta anos à frente do tempo deles, percebeu com clareza a importância da cartografia e prestigiou muito os cartógrafos. O Marcgraf foi o grande cartógrafo do Nassau, mas o Barléus também deixou trabalhos de primeiríssima qualidade.

RH – E a cartografia portuguesa foi ficando pra trás...

MJG – Não é bem assim. Uma vez o almirante Teixeira da Mota, amicíssimo meu, disse que a cartografia portuguesa tinha estacionado. E eu disse que estacionou por uma razão simples: necessidades satisfeitas. Quando a pessoa não precisa mais progredir, pára. E foi o que aconteceu.


RH – Uma pergunta que não podia faltar: o Descobrimento foi intencional ou aconteceu por acaso?

MJG – Não havia qualquer ordem do rei para descobrir nada, mas havia uma noção da existência de terras ao sul das que Colombo descobrira. Porque quando Colombo regressou das Américas, ele não foi diretamente para a Espanha. Apanhou duas tempestades pelo caminho, uma nos Açores e outra quando já estava chegando à Europa, e teve que se refugiar no Tejo. Aí foi recebido em audiência por dom João II. Por causa do Tratado de Tordesilhas, o rei de Portugal disse a ele: “Essas terras que você descobriu são minhas”, e até ofereceu para mandar levá-lo, por terra, até a Espanha. Colombo, muito esperto, recusou. Deve ter pensado: “Vocês me matam no caminho” [risos]. O fato é que foi Colombo, e não outro, quem descobriu a terra firme americana. Os outros foram nas águas dele...

RH – Os portugueses não gostam muito de ouvir isso, não é?

MJG – É, mas não posso mentir. Sou um apaixonado pelos descobrimentos portugueses, mas não posso mentir. Foi o Alonso de Hogeda que descobriu uma parte grande do Brasil, do Ceará em diante, antes de Cabral. Ele chegou no dia 23 de janeiro (de 1500?) e percorreu toda aquela costa. Hogeda estava atrás ouro, mas só encontrou índio, e índio feroz, os Tremembés, aqueles da foz do Rio Pará e do Rio Amazonas. Então ele se desinteressou. Recebeu até a “governación” da terra que descobriu, mas nunca se preocupou em vir aqui. Na realidade, Hogeda queria chegar à Índia, às terras do Gran Khan – ou Sipanbu, com as coisas maravilhosas, casas feitas de ouro etc., que Marco Pólo tinha descrito. Era o que Colombo também queria.

RH – Em relação a Cabral, ele não tinha nenhuma noção de que se tratava de um continente?

MJG – Não, nenhuma. O Caminha escreve: “Essa ilha”. A terra descoberta é chamada de Ilha de Vera Cruz, e depois Santa Cruz, não é?

RH – Antes mesmo do Descobrimento já se falava numa certa Ilha Brasil, não é?

MJG – Era uma fantasia. Se o senhor procurar nos mapas, vai ver que essa tal Ilha Brasil andou pelo Atlântico inteiro. Essa lenda vem desde a tomada da península ibérica pelos árabes, quando um bispo sai e descobre uma ilha. A história é engraçada, porque o navio do bispo pousa numa terra, numa ilha, e depois a tripulação percebe que estavam em cima de uma baleia. Quando acenderam uma fogueira, a baleia esquentou e afundou [risos] Essa Ilha Brasil andou espalhada pelo Atlântico Norte inteiro, mas era pura fantasia.


RH – O que o senhor acha da versão de que a América foi descoberta pelos chineses?

MJG – É uma mentira das mais cínicas. É gente que faz livro para ganhar dinheiro. O senhor lembra daquele livro Eram os deuses astronautas? Pois é, é a mesma coisa. Na verdade, os chineses iam até o Golfo Pérsico. Nas escavações arqueológicas encontrou-se louça chinesa em quantidade na costa leste africana.

RH – Mas eles não poderiam ter desviado, fazendo um caminho inverso ao de Bartolomeu Dias, e dar na costa africana?

MJG – Em tese, poderiam. Nauticamente era possível, porque o vento permitiria, mas não há qualquer registro histórico disso. Agora, no Atlântico, nem pensar. Os chineses não teriam a mínima condição, porque os europeus – portugueses e espanhóis, sobretudo – levaram séculos para aprender a navegar no Atlântico.

Revista de História da Biblioteca Nacional