sábado, 20 de novembro de 2010

Theo Ribeiro Manoel Morgado


A aventura da liberdade
Depois de 20 anos no Himalaia, muitos deles como guia de montanha, Morgado decidiu escalar o Everest - e, em maio, tornou-se o mais velho brasileiro a chegar ao topo do mundo. "A descida é o momento de maior perigo. Não é um risco palpável", diz.
Por Ronaldo Ribeiro
Foto de Theo Ribeiro Manoel Morgado, o mais velho brasileiro a chegar ao topo do Himalaia.
Na manhã de 17 de maio, Manoel Morgado contemplou um raro e deslumbrante horizonte de montanhas no Himalaia, sentindo-se de fato bem perto do céu. Aos 53 anos, tornara-se o mais velho brasileiro a galgar o cimo dos 8 850 metros do monte Everest.

Mochileiro em tempo integral, Morgado não tem endereço fixo, família próxima, rotina doméstica ou contas a pagar. Depois de 20 anos admirando as arestas nevadas do Himalaia, decidiu que era hora de escalar o Everest. Chegar ao topo do mundo, para ele, não representou nenhuma vitória esportiva - foi, isso sim, mais uma etapa luminosa na jornada de um homem de espírito livre. "Não tenho inquietude sobre desafios difíceis. Busco simplesmente experiências prazerosas", diz.

Descreva a geografia do topo do mundo.
O cume do Everest é um lugar simples: uma plataforma de rocha de declive suave, com uma área de uns 100 metros quadrados. No meio dela fica um altar de pedra, repleto de bandeiras budistas de oração. Também há uma área em que os escaladores recolhem pedrinhas soltas para levar de recordação. Para quem sobe pelo Nepal, como eu, o altar é o lugar de onde começamos a avistar quem está chegando pelo Tibet. É nesse instante que fica evidente que o Everest é uma pirâmide: uma face é nepalesa; as outras duas, tibetanas. A divisa entre o Nepal e a China passa exatamente sobre o topo.

Quanto tempo você ficou lá?
Quinze minutos. Cheguei às 8 horas, em ponto, em 17 de maio de 2010. Arrependo-me de não ter ficado mais, mas havia a previsão de que, de tarde, chegaria um vento forte. Tirei fotos, fiz uma prece de agradecimento e comecei a voltar. A descida é o momento com maior número de óbitos no Everest – por isso é mais tensa que a própria ascensão. E não é um risco palpável: morre-se de exaustão, por uma tempestade súbita.

Você estava bem? Qual a sensação no cume?
Cheguei ao pico em um dia benigno, sem brisa, com a reserva de meus três cilindros de oxigênio resguardada. A despeito de uma diarreia, que me obrigou a evacuar duas vezes - uma delas sem as luvas, a 8,7 mil metros, com risco grande de congelamento dos dedos -, eu me sentia forte. Sofri apenas de sede. Para economizar peso, levei 1 litro para 15 horas de escalada no dia do cume. Na descida, sedento e inalando o oxigênio suplementar muito seco, a impressão era de que eu tinha uma bola na garganta. Não conseguia engolir nem a saliva.

Foi um preço que paguei pelo atribulado dia anterior, que deveria ter sido de hidratação e descanso no acampamento 4, a 7 950 metros. Chegamos nele às 14 horas, com plano de sair para o cume às 21. Mas nuvens pesadas envolveram as barracas, e meu grupo foi tomado por uma tremenda apatia. Ficamos deitados, incrédulos, pensando no pior: a hipótese de ter de voltar ao acampamento 3, a 7,3 mil metros, abortando o pico até uma próxima janela de bom tempo. Às 18 horas, por sorte, o clima mudou, mas então eu já estava no limite da ansiedade, e apenas pude me vestir para sair. Ou seja: nem dormi nem me hidratei. Naquele dia, tomei chá pela manhã e comi alguns cereais. Na altitude o apetite desaparece. No dia do cume eu estava há praticamente 72 horas sem uma refeição sequer.

Você subiu pela face nepalesa, na via dos pioneiros Edmund Hillary e Tenzing Norgay, ainda a mais usada. Por que a opção?
Considero-a mais bonita, e isso tem a ver com a formação do Himalaia. Há 50 milhões de anos houve o choque de placas tectônicas que moldou o relevo da cordilheira: a placa do subcontinente indiano avançou sob a da Eurásia. No ponto de colisão surgiu uma linha de montanhas que se estende desde o Mianmar até o Paquistão. O Tibet, que era um mar interno, virou um vasto e árido planalto. Já no lado meridional da cordilheira restou uma paisagem mais complexa, acidentada. É um gigantesco degrau: desde o primeiro enrugamento do Himalaia, ao sul de Katmandu, no Nepal, a altitude oscila de menos de 3 mil metros até a faixa dos picos de 8 mil metros em um intervalo de uns 60 quilômetros. A beleza cênica é incrível, mas é um terreno ruim – tanto que só se alcança o campo-base do Everest, a 5,3 mil metros, em uma caminhada de dez dias.

Depois de chegar ao Everest, qual a motivação de um alpinista?
Não tenho a pretensão de fazer as 14 montanhas com mais de 8 mil metros nem os Sete Cumes [os mais altos de cada continente]. Apenas aos 52 anos escalei o Cho Oyu, de 8 201 metros, e, aos 53, o Everest. E não se aventura em mais que uma montanha de 8 mil metros por ano. Assim, mesmo que eu quisesse fazer as 14, completaria o circuito aos 66 anos - algo muito complicado. O risco de mortalidade nos picos de 8 mil metros se mede assim: número de conquistas do cume versus número histórico de mortes. No Everest, esse percentual é de 4,5%. Já no K2, no Nanga Parbat e no Annapurna é de 24%. São montanhas fatais. Por isso divirto-me também com as escaladas técnicas. Em novembro, devo subir o Ama Dablan, de 6,8 mil metros, no sul do Nepal, considerada a montanha mais bela do planeta - disputa essa honraria com o Alpamayo, no Peru.

Catorze anos depois da tragédia de 1996, quando 15 alpinistas morreram na montanha, o que mudou no Everest?
Aquela temporada mortal, registrada no best-seller No Ar Rarefeito, fez prevalecer a noção de que, uma vez dentro de uma expedição comercial, tendo pago em média 70 000 dólares por uma vaga, você vai chegar lá em cima, pois toda a sua segurança estará a cargo de seu guia. Essa é uma ideia falsa. Paguei 40 000 dólares por uma vaga em um time de cinco escaladores experientes - o chefe da expedição, escocês, e mais três malteses. E, no dia do cume, estive com o líder só duas vezes: lá em cima e na descida. Cada pessoa tem o seu ritmo, e não se pode parar para esperar o outro, sob o risco de congelar. No Everest, seja no lado nepalês, seja no tibetano, há um único caminho para as expedições, e todos estão submetidos a ele, presos a uma corda fixa. Apesar disso, em última instância, você está sozinho.

Neste ano, um caso notório foi o da inglesa Bonita Norris, de 22 anos, que se tornou a mais jovem mulher de seu país no cume. Sem experiência, ela teve problemas na descida e empacou, exaurida, na plataforma Balcony, a 8 440 metros. O líder de seu grupo já estava no acampamento 4 quando chegou o pedido de socorro pelo rádio. Às 17 horas, os sherpas tiveram de expor a vida deles ao perigo de subir quase anoitecendo e resgatá-la, o que aconteceu apenas às 21. A sorte foi que o tempo continuou estável. Se tivesse mudado, ela estaria lá até hoje.

O Everest está, então, ainda mais congestionado?
Em 2010, mais de 300 estrangeiros estiveram no cume. Nos 57 anos desde a conquista, em 1953, foram 5 mil pessoas. Nos últimos cinco anos, subiram mais escaladores que nos primeiros 52! O governo nepalês liberou; não há mais quota de alpinistas na primavera, em maio. Quem controla isso agora são as companhias que organizam as expedições comerciais.

Essa comercialização afeta a vida do povo da montanha?
Acho que a atual geração dos sherpas está conseguindo trilhar o caminho do meio, conforme prega o budismo. Adotam o montanhismo como atividade econômica, sem abrir mão de suas tradições. Eles preservam seus festivais, sua língua. A religião é seguida da mesma maneira de seus antepassados e comanda cada acontecimento de sua vida – seja começar um negócio, seja a construção de uma casa, seja o nascimento de um filho. Então, creio, a cultura permanecerá viva. Nos trekkings que guio, sempre admirei a sinceridade deles, o espírito de grupo, a atenção que dedicam aos outros, sem ser servis. Procurar ajudar é algo inato neles. O sherpa que me acompanhou no Everest, Padawa, já esteve 14 vezes no topo.

De que maneira o budismo influenciou sua jornada?
O povo Sherpa crê que, se você não tiver conduta moral e ética na montanha, não sairá vivo de lá. Antes de subir, estive com o lama Geishe Rimpoche, no monastério de Pambuche, um dos mais altos do planeta, a 4 mil metros. Ele me recomendou: “Não julgue; não pense mal dos outros; mantenha o coração puro”. Tive um desentendimento com o líder argentino da expedição em que estava a minha namorada [a guatemalteca Andrea Cardona, primeira mulher centro-americana a chegar ao topo do mundo]. Estive com isso em mente o tempo todo, preocupado com ela. Sempre tentando não julgar. É preciso foco no Everest. Fisicamente, é um teste muito duro. O perigo ronda a todo instante. Então, emoções negativas podem tirar a sua paz.

Como é viver sem casa, nômade, sem rotina diária?
Não tenho casa desde que saí do Brasil, há 21 anos. Moro em hotéis, pousadas e albergues ou sou hospedado por amigos. Tenho sempre uma mala a tiracolo. Meu endereço mais fixo é a casa de um colega em Katmandu, onde guardo parte do meu material de escalada. É uma cidade na qual me sinto bem.

Trabalho seis meses por ano e tiro os outros seis de férias. É quando viajo, escalo, faço meus projetos – tenho treinado para, no verão de 2012, chegar ao polo Sul, com esquis que serão puxados por uma pipa de kitesurf presa à minha cintura. Guio, em média, oito grupos por ano, sendo 20 dias em cada viagem. Isso já me consome 160 dias inteiros, 18 horas por dia. Como não tenho despesas fixas - minhas únicas contas são as do contador da minha empresa e as do garoto que cuida da minha página na web -, aquilo que eu ganho nos meses de trabalho me permite viver o resto do ano. Essa é a minha matemática financeira. Nunca me ocupei em guardar dinheiro.

A liberdade tem um preço?
Não se pode fantasiar a ideia da liberdade absoluta. Por estar sempre viajando, quase nunca posso dispor da companhia de meus amigos. Se estou triste e quero ir a um bar conversar, não posso - estou longe. Outro exemplo: eu gosto de andar de moto, mas, obviamente, não posso ter uma. Então, peguei o "mau hábito" [rindo] de ir sempre a uma loja, em qualquer canto do planeta, e fazer um test drive. Minha vida é um treino constante de impermanência. Um exercício de desapego.
National Geographic Brasil

Björn Stigson

Como vencer a corrida verde

Na entrevista com Björn Stigson, presidente do World Business Council for Sustainable Development, ouvimos uma proposta de como melhor integrar as grandes empresas e as nações no que ele chama de "corrida verde".

Por Afonso Capelas Jr. e Matthew Shirts
Foto de Luciana de Francesco
Como vencer a corrida verde

Björn Stigson
































Analista financeiro com experiência em negócios internacionais, Björn Stigson começou sua caminhada na área de sustentabilidade como presidente da Fläkt, uma das principais empresas mundiais em tecnologia de controle ambiental. Desde 1995 é presidente do World Business Council for Sustainable Development (WBCSD), entidade que reúne 200 empresas de 20 países, incluindo o Brasil, em torno dos desafios ambientais do século 21. Não por acaso Stigson é hoje conselheiro dos ministérios de Desenvolvimento Sustentável dos governos chinês e indiano, do Índice Dow Jones da bolsa de Nova York e da Escola de Governo John F. Kennedy, da Universidade Harvard, entre outras instituições. Tamanha idoneidade lhe permite assegurar que é preciso rever o modelo de negociações sobre o clima iniciado há quase 20 anos no Rio de Janeiro, durante a Eco-92. Segundo ele, a COP15, em Copenhague, encerrou um ciclo histórico. Stigson quer incluir efetivamente o empresariado no debate para que a humanidade consiga vencer o que ele chama de "corrida verde".

Esse mecanismo seria criado pela iniciativa privada?

Ele deveria ser desenvolvido pelos países do G-20 e depois ficar escorado em algum órgão da ONU. A iniciativa privada precisa ser o ancoradouro do diálogo com os países-chave. Até Copenhague, não era assim. Desde outubro de 2009, temos um acordo formal com a comissão da União Europeia para discutir como a iniciativa privada deve ser integrada formalmente às negociações sobre o clima. Precisamos dar nossa sugestão ainda em 2010. Algo como "isso é o que recomendamos fazer, porque vocês, governos, não são capazes de resolver essa questão sem a participação ativa das empresas". Copenhague ilustra bem isso.

O que o senhor acha que vai acontecer na COP16, em Cancún, no México?

A questão fundamental a ser discutida lá é se haverá ou não legislação doméstica nos Estados Unidos. Seria a chamada "lei do clima", que está no Congresso americano. Se eles não conseguirem aprovar, o presidente Barack Obama ficará sem plataforma para um possível acordo no México, e o encontro não irá a lugar nenhum.

Então estamos diante de uma perspectiva pessimista, ao menos a curto prazo, para essa conferência?

Sim, mas agora é preciso distinguir as negociações internacionais sobre o clima das ações para reverter as alterações climáticas, que são uma questão nacional. O que o Brasil está fazendo para tratar da mudança no clima está baseado em ações internas na sua legislação, em medidas do governo federal, dos estados ou de metrópoles como São Paulo. Não há ainda um papel definido do país nas negociações internacionais sobre o clima. As grandes economias estão avançando com rapidez no aumento da eficiência energética, desenvolvendo novas tecnologias que vão melhorar o setor e reduzirão as emissões de gases de efeito estufa. Isso acontece independentemente das negociações sobre o clima, porque faz parte da preocupação competitiva em vencer a chamada “corrida verde”, na qual se busca ser o maior exportador de tecnologia de baixo carbono e eficiente no uso dos recursos.

O senhor considera essa a grande questão econômica atual?

É o fato positivo mais importante que ocorreu ao se enfrentar as mudanças climáticas. Encontrar soluções eficientes no consumo de recursos e que não poluam passou a ser uma questão de desenvolvimento econômico. É uma prioridade do governo chinês, é uma prioridade do governo Obama. A União Europeia avança, a Índia está começando. Mas e o Brasil? Entrou nessa corrida verde? Não vi isso acontecer até agora. E qual seria a melhor forma de o Brasil fazer isso? Acredito que o Brasil deve procurar ver onde está sua vantagem competitiva nessa corrida verde. Talvez vocês não consigam acompanhar as principais empresas americanas de tecnologia da informação e da comunicação. Mas existem outras áreas em que o Brasil tem clara vantagem competitiva. O país tem mais energia de baixo custo e de baixo carbono disponível, além de biocombustíveis. E tem várias vantagens na questão da agricultura e das florestas. Não adianta tentar algo com base em setores nos quais outras nações já estão em posição bem mais forte.

Vale a pena desmatar a Floresta Amazônica em nome do desenvolvimento?

Diria que a Amazônia vale mais em pé, como uma floresta em produção. É preciso entender que 30% de todas as emissões de carbono provêm do desmatamento para criação de gado e produção de carne. No Brasil, essa é uma questão importante. Mais tarde, esse será um problema muito grande. Estamos olhando para o mundo no futuro, quando vamos deparar com desafios relativos à oferta de alimentos para a população mundial. Se a dieta em lugares como China, Índia e outros países em desenvolvimento for modificada para o consumo de muita carne, teremos problemas. A longo prazo, prevejo uma reação global ao aumento desse consumo, porque se trata de uma ameaça ao clima e à oferta de alimentos, além de se consumir muita água.

O senhor acredita que outros países devem pagar por uma proteção efetiva da Amazônia?

Sim. As negociações envolverão um número limitado de países que representam as florestas, como Brasil, Congo, Indonésia e mais alguns. Já há dinheiro na mesa e haverá mais. Minha opinião é que será mais vantajoso do que derrubar as florestas para criar gado. É preciso examinar o cenário e perguntar como será o mundo em 2050. Vamos precisar duplicar a produção de comida nos próximos 40 anos para alimentar pessoas que desejam ter boa qualidade de vida. E isso não comporta uma dieta muito rica em carne.

O que os brasileiros devem cultivar se não criarem gado?

Como eu disse, o mundo precisará duplicar a oferta de alimentos. Vocês têm uma oportunidade enorme de participação nisso. Não é preciso eliminar a pecuária, mas não dá para continuar desmatando a Amazônia com essa finalidade. Não estou abordando o assunto de uma perspectiva moral, só digo que, a longo prazo, não será um bom negócio. Vocês podem ser parte importante da solução da necessidade de alimentos do mundo. Vocês têm um território enorme, muita água e um clima adequado.

E quanto ao etanol brasileiro? É uma solução sustentável?

Sim, o etanol é um dos poucos biocombustíveis sustentáveis. Não acredito na eficiência do etanol do milho, por exemplo. Há muito dinheiro investido em pesquisas das próximas gerações de biocombustíveis. É provável que já contenham enzimas de forma a se dissolver automaticamente para se tornar biocombustíveis, sem precisar ser processados em uma usina.

Como fazer os políticos participarem desse cenário no futuro?

Os governos e os políticos, com seus programas de curto prazo, não resolverão o problema sozinhos. A média de idade de uma empresa internacional ultrapassa em muito os mandatos de quatro anos dos governos. A sociedade civil e os principais setores da comunidade empresarial precisam entrar na discussão. Por isso desenvolvemos o Vision 2050 na WBCSD: para iniciar um diálogo sobre o que é necessário para criarmos um mundo sustentável. Temos de ser os primeiros a construir esse cenário; do contrário, não teremos onde fazer nossos negócios.

Qual é o papel da imprensa nesse processo?

A imprensa tem o papel de refletir o debate mais amplo. E, aí, a questão é - e eu não sou especialista no assunto - o quanto se consegue ser um mero canal de transmissão do que está acontecendo. Em um mundo que enfrenta vários desafios para se tornar sustentável, não consigo imaginar de que forma a imprensa poderia se manter neutra diante dessa situação.
National Geographic Brasil

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Sheila Waligora

Sheila Waligora, veterinária formada pela USP, explica como a comunicação com os animais e com outras formas de vida pode ajudar o ser humano

Por Tereza Kawall

Podemos realmente nos comunicar com outras espécies? Transmitir-lhes uma mensagem e receber uma resposta clara? Como abrir os canais para essa comunicação? Sheila Waligora, veterinária, autora do livro Eu Falo, Tu Falas... Eles Falam - Guia para Comunicação entre Espécies, recém-lançado pela Editora Irdin, responde a essas perguntas nesta entrevista a PLANETA. Sheila dedica-se a divulgar a comunicação entre espécies com o objetivo maior de expandir a consciência do ser humano em relação aos reinos mineral, vegetal e animal.

Qual é a sua Formação?

Sou veterinária formada pela Universidade de São Paulo. Sempre me interessei por veterinária. Fui morar no campo, onde começamos a criar animais. Com o tempo, passei a plantar frutas, plantas medicinais e, espontaneamente, falava com as plantas. Aflorou em mim um imenso amor pelas plantas e por toda a natureza que me envolvia e me vi conversando e me relacionando com elas como amigas. Fui fazendo uma série de experiências e acabei pesquisando sobre abelhas, macacos, plantas, terapias alternativas, homeopatia, alimentação natural para animais. Criei abelhas, produzindo mel e artigos apícolas, aprendi a adestrar cavalos com doma racional, e essa comunicação com os animais, que surgiu de uma forma muito espontânea, foi se intensificando e se aprofundando.

Seu interesse pelos animais surgiu na infância?

Eu era completamente fascinada pelos animais e tinha uma conexão natural com eles, o que na verdade acontece com muitas crianças. A sociedade e a educação acabam inibindo essas capacidades, mas agora, na Era de Aquário, elas já estão sendo encaradas com mais naturalidade.

A criançada está mais sintonizada com essas conexões mais sutis?

A nossa natureza está em união com todas as formas de vida. Todas. O homem moderno perdeu isso e agora se percebe separado dos outros seres, mas em nossa essência originariamente sempre estivemos conectados com todas as formas de vida, com todos os reinos. Agora estamos nos reconectando por intermédio de diversas áreas de conhecimento. Vejo as pessoas falando e ensinando a mesma coisa que eu digo, a partir de outros pontos de vista. Mas este será o nosso futuro: vamos nos comunicar sem precisar falar nada. Nos tornaremos mestres em telepatia.

Como você aborda a telepatia e a intuição no seu trabalho?

No livro, eu conecto a intenção com a intuição. Quando vou ensinar sobre a comunicação telepática, falo sobre a visão do biólogo inglês Rupert Sheldrake, que conseguiu mostrar que existe comunicação telepática entre seres humanos e animais, mostrando também que a intuição nada mais é que nossa capacidade de acessar os nossos cinco sentidos de uma forma expandida. Alguns dizem que a intuição é o sexto sentido. Para mim, é uma percepção mais sutil, mas que também chega pelos cinco sentidos.

Quando alinhamos o que está no nosso coração com aquilo que queremos verbalizar, conseguimos nos fazer entender muito mais facilmente. Nesse sentido, é muito importante frisar que não é só na comunicação com os animais, mas principalmente na de humanos com humanos. A comunicação verdadeira e efetiva vem de um alinhamento entre aquilo que sentimos e aquilo que pensamos. Na nossa vida moderna, na qual nos sentimos separados uns dos outros, com frequência temos dificuldade de exprimir aquilo que realmente sentimos e pensamos. Temos de "maquiar" nossas palavras, pois algumas coisas não podem ser ditas.

Com os animais, no entanto, esses problemas não acontecem. Quem tem animais e convive com eles sabe disso. Eles olham dentro dos seus olhos e se conectam com o seu coração. Eles se conectam com a sua intenção e, por isso, você não pode enganá-los com palavras. Exemplo: a pessoa entra em uma casa, vê um cachorro, exclama "que bonitinho!" e o animal rosna para ela! Ele percebeu que a pessoa está com medo e, quando a pessoa tem medo, o animal logo percebe.

Essa comunicação se processa pela via emocional?

Sim, exatamente. No livro Cães Sabem Quando Seus Donos Estão Chegando, de Rupert Sheldrake, ele descreve detalhadamente a teoria dos campos mórficos, que norteia muitos trabalhos modernos, afirmando que as pessoas que têm uma relação afetiva estão unidas por um campo que não depende do tempo e do espaço e a comunicação circula por esse campo.

Esse campo é "elástico", pois duas pessoas se comunicam por meio dele até mesmo a grande distância física. A telepatia fica mais fácil de ser compreendida dentro dessa teoria. Alguns cientistas convencionais ingleses tentaram desacreditar essa teoria, argumentando que os cães agem dessa forma só por condicionamento.

Sheldrake afirmou o contrário e desconstruiu essa crítica. Ele fez um experimento filmado, mostrando que o animal captava a intenção do dono, ou seja, quando este tomava a decisão de ir para casa, o animal, mostrado pela câmera, já se dirigia à porta da casa. Portanto, isso não é um condicionamento, e sim uma conexão pelo coração. Quem pratica essa forma de comunicação percebe claramente essa realidade.

No início, esse trabalho sempre desperta muita curiosidade, porque se relaciona com algo que já está dentro da pessoa e, conforme ela vai absorvendo o objetivo desse aprendizado, aprende também a "curar" as suas relações com o mundo animal e com os reinos da natureza como um todo.

Não seria o caso de se redimensionar o conceito de cura sob a luz dessas descobertas?

Estamos entrando numa nova era, em que existe a ideia de evoluir, progredir e crescer em várias dimensões e junto com os outros reinos naturais, não mais explorando o mundo e a Terra apenas em nosso benefício.

Na Era de Aquário, poderemos evoluir sem agredir os outros reinos da natureza, mas estando em sintonia com eles. Por exemplo, não precisaremos mais extrair recursos naturais além daqueles que nos são realmente necessários. Poderemos crescer trabalhando juntos com essas inteligências dos reinos animal, vegetal e mineral, e com os quatro elementos: fogo, ar, terra e água.

Sua visão de mundo é holística e espiritual. Como ela se concilia com os conhecimentos e as experiências da ciência moderna?

Desde 1920, vem surgindo uma leva de cientistas - Werner Heinsenberg, Niels Bohr e Fritjof Capra, entre outros - com uma outra proposta ou uma nova maneira de fazer ciência. Os parâmetros sobre o quais se baseava a ciência antiga já não são mais os mesmos. Antes, a amostragem precisava ser muito alta para ter credibilidade. Por exemplo, Rupert Sheldrake, que é um expoente na biologia, tem outras bases para seus experimentos científicos. Ele considera que se num grupo humano há meia dúzia de pessoas que possuem uma experiência semelhante, essa é uma amostragem significativa e suficiente para um estudo ou pesquisa.

Fala-se muito do encontro da ciência com a espiritualidade.

A ciência da qual eu falo não é convencional. Ela é arejada, assenta-se sobre novas bases e, como tudo o que é novo, ainda é combatida pelos antigos cientistas. É uma nova lente, uma nova visão da realidade tentando se instalar e romper resistências. Observamos isso em vários outros campos da ciência - na química, na física, na biologia, por exemplo. Isso não é novo, ocorre pelo menos desde 1920. A mudança das eras, contudo, se processa de forma muito mais lenta, assim como a mentalidade e as inovações relativas a elas.

Hoje, a espiritualida de anda de mãos dadas com outras formas de conhecimento. A tendência atual é o estudo transdisciplinar.

Sim, mas ainda estamos muito atrasados! Como falar em espiritualidade como sendo algo separado da matéria? A vida, o próprio ato de respirar, já são coisas espirituais. Sobre a Terra convivem os mais diferentes níveis e estados de consciência. Alguns são materialistas, não acreditam em nada. Outros, mais abertos, permeáveis. Existem consciências que trafegam em vários níveis, tanto nos planos mais sutis quanto nos mais densos. Existe, por fim, a vontade renovada de buscarmos saber como vai ser essa nova vida aqui no nosso planeta Terra.

Você considera urgente a integração do sagrado à natureza como um todo?

Todas essas questões são muito importantes e precisamos refletir em profundidade a respeito delas. O ser humano vem fazendo progressos maravilhosos. Entretanto, precisa aprender, a partir de agora, a progredir junto com as outras espécies, aprender a pensar na repercussão do progresso sobre o meio ambiente e sobre as outras espécies. O verdadeiro progresso é aquele que beneficia todos os seres, sem exceção. Talvez isso resulte em avançarmos mais lentamente, mas nos divertindo mais, consumindo menos e acumulando menos.

Seu trabalha preconiza então que o progresso aconteça no respeito profundo à natureza?

Sim, mas isso não é tão novo assim. Ao longo dos séculos, fomos desrespeitando todas as formas de vida como se não soubéssemos que o divino está presente em tudo e em todos. Muitas pessoas desrespeitam a natureza, mas não o fazem por maldade, e sim por falta de consciência, por carregarem uma consciência que ainda não se expandiu, não desabrochou. Tais pessoas ainda não acordaram, precisam abrir certos canais para perceber melhor o que jaz adormecido dentro delas.

Jesus falava sobre os animais, afirmando que os animais são seres divinos, tudo é divino. Estamos num momento especial para esse despertar. Por meio da comunicação com os animais e com as plantas, a pessoa pode acordar do torpor em que vive, e isso pode transformar toda a sua vida. Afirmo sempre que não existe separação entre o espiritual e o material, e que os animais e as plantas são vias de acesso para esse caminho, para essa abertura.

São Francisco de Assis seria um arquétipo dessa visão mais espiritual da vida?

Com certeza! São Francisco, Buda, Jesus são seres inspiradores para todos nós. Muitas pessoas percebem aos poucos que podem viver com menos. Percebem que, quando estão anestesiadas e se deixam influenciar por forças materiais, consomem de modo insustentável para o planeta. Mas se essas mesmas pessoas estiverem mais atentas àquilo que fazem, e menos carentes sobretudo do ponto de vista afetivo, poderão consumir menos. Especialmente nas grandes cidades, o indivíduo fica meio sedado, fica menos em contato com o seu interior e com a voz de sabedoria que emana dele.

"O reconhecimento de que nosas mentes vão além dos cérebros nos liberta. Não estamos mais presos aos limites das caixas cranianas, com mentes separadas e isoladas umas das outras. Não estamos mais alienados de nosos corpos, do noso ambiente e das outras espécies. Estamos todos interconectados com tudo o que existe" Rupert Sheldrake

Como achar o silêncio num mundo tão barulhento?

Para mim, a maior e melhor porta de entrada é o silêncio. Há todo um universo que se descortina quando você entra no espaço do silêncio e a minha comunicação com os animais flui neste espaço. Claro, outras pessoas podem alcançar o mesmo objetivo, porém de modos diferentes. No silêncio, você acessa o sutil, a sua percepção se aguça e você percebe a si mesmo de uma forma completamente diferente. Ensino aquilo que pratico: ensino as pessoas a fazer algum tipo de meditação, pode ser andando, sentado, como quiser.

O interesse crescente pelos animais espelha os anseios da nossa alma esvaziada. Eles não pedem nada em troca da nossa interação com eles. Além de grandes amigos, eles são nossos companheiros de jornada espiritual.

SERVIÇO

Eu Falo, Tu Falas... Eles Falam, Editora Irdin www.sheilawal.wordpress.com e waligora@gmail.com
Sites: www.veterinariosnodiva.com.br e http://suprememastertv.com/pt

Revista Planeta

Álvaro Atallah

O médico paulista explica como funciona um novo e poderoso método na área de saúde, a Medicina Baseada em Evidências.

Por Mônica Tarantino

Ela se baseia em evidências e seleciona e cria fontes confiáveis para serem consultadas por qualquer profissional da saúde. Em entrevista a PLANETA, o médico paulista Álvaro Atallah a apresenta como um novo paradigma da medicina

Por ano, publicam-se no mundo cerca de 2 milhões de artigos sobre medicina. A estimativa é do Centro Cochrane, organização internacional que figura entre as principais fontes de consulta para aqueles que recorrem a um sistema conhecido como Medicina Baseada em Evidências para tomar decisões na área médica. O método empreende com regularidade revisões sérias do conhecimento produzido por centros médicos, universidades e indústria farmacêutica para apontar o que há de mais eficaz na atualidade. É, portanto, uma forma de separar o joio do trigo num setor que movimenta uma enormidade de dinheiro e no qual os especialistas são bombardeados constantemente com novos medicamentos, técnicas e equipamentos. Outras fontes existentes com a mesma finalidade são os sites PubliMed, Medscape e DoctorsGuide.

É exatamente por isso que a medicina baseada em evidências vem sendo um suporte essencial para a definição de tratamentos desde o tête-à-tête do consultório até a formatação de políticas públicas globais. “Como escolher o que é melhor para o paciente? A medicina baseada em evidências tira a ênfase da prática guiada pela intuição para se concentrar na pesquisa e na sua análise estatística, com extremo rigor científico”, explica o clínico-geral e epidemiologista Álvaro Nagib Atallah, que desde 1982 dirige o Centro Cochrane do Brasil, um dos 15 que a entidade mantém espalhados pelo mundo. Nesta entrevista a PLANETA, Atallah, criador do primeiro curso de pós-graduação da área, na Universidade Federal de São Paulo, garante que as recomendações da medicina baseada em evidências são a única luz no final do túnel para guiar os médicos diante do assédio da indústria e da profusão de estudos.

O que é a medicina baseada em evidências?
Trata-se de um novo paradigma da medicina. Consiste em decidir o tratamento segundo as melhores e mais consistentes evidências científicas. Não é o que o médico acredita, mas o que está demonstrado. Nós queremos saber o que é mais seguro, eficiente, efetivo e que pode trazer mais benefício para o tomador de decisão – o médico, o sistema de saúde, o paciente, o hospital. Num congresso recente, mudamos o nome da especialidade para saúde baseada em evidências. O objetivo é mostrar que o recurso pode dar suporte não só a médicos, mas a enfermeiros, psicólogos e demais profissionais ligados à área da saúde. E claro aos pacientes, que passam a ter acesso às evidências que obtemos.


Como ela surgiu?
Surgiu a partir da percepção do epidemiologista inglês Archibald Cochrane, por volta de 1940, de que era importante fazer estudos comparativos para conhecer os resultados de diferentes tratamentos e o que eles poderiam fazer pelo doente além do que se esperava que a natureza fizesse sozinha. Ele chegou a essa conclusão observando os pacientes do campo de prisioneiros onde foi confinado, depois de ser preso lutando como voluntário na Guerra Civil Espanhola. Convivendo com o sofrimento, viu que várias pessoas com problemas graves sobreviviam mesmo sem tratamento. Isso significava que muitas vezes o tratamento não era necessariamente a melhor coisa a ser feita, pois ele não fazia nenhuma diferença.

Cochrane realizou o primeiro ensaio clínico sobre o tratamento da tuberculose, por exemplo. Em 1972, ele escreveu um livro afirmando que muitas das cirurgias executadas na Inglaterra contra a úlcera eram inúteis. Sua afirmação foi feita com base em um estudo comparativo entre pessoas operadas de úlcera e pacientes não operados. Isso mudou o tratamento padrão recomendado.

Por que só agora esse sistema começa a ter mais projeção?
Porque a área médica está sendo atropelada em seus custos por um acréscimo de mais de 20% ao ano, devido a lançamentos de remédios, equipamentos e novas técnicas. Já os países crescem 3% a 5%. Percebeu-se que haverá uma hecatombe financeira em pouco tempo se não houver capacidade de discriminar o que funciona do que não funciona.


Quais são as razões desse acréscimo?
Quando me formei, há 23 anos, a cada dez anos aparecia uma novidade no tratamento. Hoje, surgem dez por semana. E cada uma delas pode colocar em risco milhões de pacientes em qualquer sistema de saúde. Portanto, é uma questão de salve-se quem souber. Só quem tiver informação científica e souber fazer a avaliação tecnológica com competência vai ter sobrevida mais longa no sistema de economia da saúde.

Como os médicos devem se comportar diante de tantas novidades?
A indústria farmacêutica faz o seu papel. Desenvolve um produto, quer recuperar o investimento e ter lucro. É lícito. De outro lado, o limite está na capacidade de avaliação crítica de cada profissional da saúde. É aí que ele se defende de interesses que não são os do paciente. Se colocar um profissional despreparado para clinicar, ele pode cair em arapucas e levar o paciente junto. Um dos caminhos para enfrentar essa situação é formar novos profissionais com capacidade crítica suficiente para poder avaliar a informação na busca de evidências para a tomada de decisão. São profissionais conscientes de que um médico precisa estudar pelo resto da vida. É aí que nós entramos: um dos papéis da medicina baseada em evidências é selecionar e criar fontes confiáveis para serem consultadas por qualquer profissional da saúde.

Como são feitas as revisões do Centro Cochrane?
Por ano, são publicados cerca de 2 milhões de artigos científicos. A princípio, nós selecionamos cerca de mil artigos mais adequados à pergunta que dá ensejo à pesquisa. Por exemplo, dar injeções de cortisol antes do parto prematuro reduz a mortalidade dos bebês? Os estudos serão avaliados para ver se preenchem os critérios científicos exigidos. A maioria é descartada por falta de metodologia adequada. As pessoas não foram treinadas para fazer estudos comparativos ou elas têm intenção de provar algo, o que também não serve, porque é imprescindível ter isenção. No final, publicamos as revisões com base em cinco ou seis estudos bem estruturados que permitem dar sólida base científica.

Nossos estudos visam reduzir incertezas. O que funciona para a mulher branca nem sempre vale para a mulher negra e vice-versa, assim como o que faz bem para os doentes de um país em desenvolvimento é diferente do que faz bem para um país desenvolvido, tendo em vista aspectos religiosos, culturais, econômicos e genéticos, entre outros. Depois de tudo isso, os estudos ainda são mapeados e sintetizados de modo reprodutivo. Se um produto deu certo com 10 mil pessoas, dará o mesmo resultado num universo de 10 milhões de casos? Eles são avaliados pelo viés da aplicabilidade para homens e mulheres e reproduzidos para o total da população que costuma ter a doença em foco. Enfim, quanto mais rigor em relação aos aspectos e fatores de confusão, melhor é a evidência e menor o grau de incerteza.

Vocês utilizam os estudos feitos pela indústria farmacêutica?
Sim, se tiverem o padrão metodológico requerido. Porém, se existirem só estudos da indústria sobre o tema, o texto da revisão informará que o dado pode ter conflito de interesses, já que todos os dados foram gerados pelo fabricante.

Pode dar exemplos de mitos que foram esclarecidos pelas revisões?
Podemos citar a albumina humana, usada no tratamento de queimaduras ou de doenças críticas com manifestação de pressão baixa. O Ministério da Saúde constatou, após alerta feito pelo Centro Cochrane do Brasil, que, dos 59 mil casos pesquisados, o grupo que foi tratado com albumina humana registrou 7 vezes mais óbitos do que os que fizeram uso apenas de soro fisiológico. Ela custa 200 vezes mais e não é melhor do que o soro fisiológico. As revisões mostraram também que os populares “balões de oxigênio”, onde eram colocados os bebês prematuros, mais cegavam do que tratavam eficazmente esses bebês e que a vitamina C não previne a gripe.

O sr. já detectou manipulação de dados em estudos sobre medicamentos?
Existe, e é difícil de pegar. Por isso, usamos uma metodologia estatística para identificar o que chamamos de viés de publicação. Algumas vezes, a análise detalhada da distribuição dos resultados permite enxergar a falta de alguns dados. Conseguimos detectar que não foram publicados. Em geral, isso acontece porque não eram interessantes ou positivos.

Como o Cochrane age nesses casos?
Nós temos o dever de solicitar essas informações à indústria. E elas, até para mostrarem seriedade e comprometimento com a população, as têm dado. E, se há riscos para os pacientes, as indústrias deveriam divulgar e tirar os produtos do mercado.

Como os pacientes podem ser beneficiados pelas descobertas da medicina baseada em evidências?
As populações de diferentes países se beneficiam na medida em que os órgãos públicos adotem procedimentos eficazes. Isso reduz mortalidade e danos. Sem contar a economia de milhões de reais.

Há exemplos concretos disso?
Vários. Um exemplo de economia para o Brasil é o caso dos stents revestidos com as drogas paclitaxel e rapamicina, que custam cerca de R$ 15 mil cada uma, e que não são melhores do que os stents sem revestimento de drogas. Estes são igualmente indicados para reduzir as taxas de mortalidade, infarto do miocárdio e revascularização cirúrgica. Os fabricantes do produto não gostaram nem um pouco da nossa constatação.

Pode citar mudanças mundiais?
Um caso ilustrativo é o sulfato de magnésio. Era usado desde 1904 em vários países nos casos de convulsão em mulheres grávidas com pressão alta. Noventa anos depois de ser substituído por outras drogas, nossas revisões mostraram que ele nunca deveria ter deixado de ser usado, pois era o melhor e o que tinha menos efeitos indesejáveis. Até agora ainda é o remédio mais eficaz nesses casos.

O sr. já indicou um medicamento ou procedimento e teve de suspendê-lo diante de novas evidências de que causa dano à saúde?
Já. E é preciso explicar tudo ao paciente, até ele compreender. O paciente deve tomar as decisões do tratamento com o médico. Essa é mais uma mudança de paradigma da medicina baseada em evidências. Também acho que a agência norte-americana que regulamenta remédios, o FDA, deveria ser mais rigorosa. Ele permite que o medicamento seja lançado para só depois ver a sua funcionalidade na prática. Na Europa, as coisas caminham de modo mais rigoroso.

A aprovação se baseia em estudos com milhares de pessoas em diferentes países do mundo, de diferentes etnias, com realidades distintas dos pontos de vista cultural e econômico, etc. Eles devem responder ao seguinte: essa droga funciona ou não, é segura? Lida-se aqui com o mundo real, o da efetividade. E, nesse sentido, os fundamentos dos Centros Cochrane para a realização e conclusão desses estudos são mais rigorosos do que as práticas adotadas pelo FDA.

Em que medida evidências como essas são colocadas em prática?
O grande desafio da medicina baseada em evidências é levar aquilo para a prática. É um problema no mundo todo. Uma informação obtida no centro de Boston leva seis a sete anos para chegar e ser implantada na periferia. O estudo do cálcio foi publicado pela primeira vez na África do Sul, em 1998. Em 2006, uma aluna de iniciação científica verificou a proporção de mulheres em pré-natal de hospital-escola que estavam recebendo cálcio. Ela levantou um índice de 11%. Então, coisas que funcionam, são baratas e sabidas demoram muito. E coisas que as vezes não funcionam, são caras e têm muito lobby por trás chegam rápido.

Por que o sr. entrou nessa cruzada?
Porque é bom para mim, para o meu filho, para os meus amigos e para o meu planeta.

Para saber mais
Centro Cochrane: www.centrocochrane.org

Revista Planeta

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Max Justo Guedes - O mundo sem segredos


Max Justo Guedes
O mundo sem segredos


Conhecer os ventos e as correntes oceânicas é fundamental para qualquer comandante de navio, ainda mais quando se trata de um alto oficial da Marinha. Mas, no caso do almirante Max Justo Guedes, o que surpreende é a sua familiaridade não só com a tecnologia náutica moderna, mas também com mapas antigos, bússolas, astrolábios, e até com os ventos que inflavam as velas das naus portuguesas ou espanholas no Atlântico, há cinco séculos, impulsionando suas jornadas até as Américas.

Estudioso das navegações, particularmente da época do Descobrimento, o almirante dedicou boa parte de sua vida à preservação e divulgação do patrimônio histórico naval brasileiro, dirigindo o

Serviço de Documentação da Marinha e criando museus e espaços culturais.
“Me pediram para fazer as rotas dos grandes navegadores”. Com esta simplicidade explica o nascimento, mais de 40 anos atrás, de sua especialização, a pesquisa cartográfica, que gerou inúmeras publicações e o tornou conhecido no Brasil e no mundo.

Ainda nos anos 1970, depois de sobrevoar de helicóptero a costa de Porto Seguro e percorrer dezenas de vezes o trecho entre a Baia Cabrália e o Monte Pascoal, Max Justo Guedes pôde estabelecer, com grande precisão, as singraduras da esquadra de Cabral, os locais onde a frota ancorou, e o rio onde dois povos tão diferentes se viram pela primeira vez, naqueles idos de abril de 1500.

Mas terá sido este, de fato, o primeiro contato entre os índios do Brasil e o mundo ocidental? É o que Max Justo Guedes nos revela nesta entrevista.


Revista de História – Quando surgiu sua paixão pelos mapas históricos?

Max Justo Guedes – Minha paixão é pela história, não é pelos mapas, os mapas são uma conseqüência. Lembro que quando era menino, em Juiz de Fora, vi um livro lindo na livraria e pedi a meu pai para comprar. Era A história do mundo para crianças, de Monteiro Lobato. Foi assim que me interessei por História. O restante da vida foi cuidando disso. Ingressei na Escola Naval em 1946 e lá me interessei um pouco por história naval, mas não muito. Continuei meus estudos, até que, em 1963, me pediram para fazer as rotas dos grandes navegadores.

RH – Navegadores portugueses?

MJG – Todos os grandes navegadores. Foi aí que começou meu interesse por cartografia. Estudava tudo, comprei tudo quanto era livro sobre o assunto...

RH – O senhor fez também trabalhos importantes na área da restauração...

MJG – Montei o primeiro Museu Naval na rua Dom Manuel, aqui no centro do Rio. Foi inaugurado em 1972. Depois fui ampliando aos poucos. Fiz o Espaço Cultural da Marinha, restaurei aquele torpedeiro, o Bauru, e depois o submarino Riachuelo. Quando o Collor fechou a Embrafilme, o prédio da Mayrink Veiga foi entregue à Marinha, e a biblioteca foi para lá, mas antes tivemos de restaurar ele todo. Montei também a biblioteca da Marinha, num prédio que estava em ruínas. Quando as obras foram concluídas, o ministro me perguntou se eu queria ficar também com a Ilha Fiscal, palco do último baile do Império. Eu respondi: “Pergunta-se ao macaco se ele quer banana?”. Aí, fizemos a restauração da ilha também. Me davam as ordens, eu ia cumprindo.

RH – Sobre os mapas: eles variam muito, de civilização para civilização?

MJG – Ah, sim, há uns que são engraçadíssimos: umas quadriculas de bambu com umas conchinhas, das ilhas do Pacífico. Chegava-se às ilhas por meio desses mapas. Os gregos, na Antiguidade, tinham o que eles chamavam de “périplos”. Eram descrições escritas das costas que usavam para navegar. Não eram mapas nem cartas náuticas, eram uma descrição. O Mediterrâneo é muito interessante porque ele é muito aberto em longitude e muito estreito em latitude. Então, se um navegante se perder e se dirigir para o norte, vai dar na Europa. E se dirigir para o sul, vai dar na costa africana. O périplo ensinava como chegar ao porto.


RH – Quais as cartas náuticas mais antigas?

MJG – A mais antiga referência que se tem, na Europa, data dos tempos da última cruzada, no séc.XIII, quando apresentaram a São Luís, rei de França, um mapa-múndi. Depois disso, apareceu uma carta náutica, a Carta Bizana, que está hoje na biblioteca nacional da França. Aí já não usavam os périplos, mas as chamadas cartas-portulano, para chegar aos portos. Quando dos descobrimentos, o Infante Dom Henrique importou um cartógrafo maiorquino, Giácomo de Maiorca, que ensinou aos portugueses a fazerem cartas náuticas. Aí começaram a surgir as cartas portuguesas, com a costa africana e com as ilhas.

RH – Isso não causou nenhuma crise ideológica? Não conflitava com a visão do mundo que a Igreja tinha na Idade Média?


MJG – Na época dos descobrimentos essa crise já estava mais ou menos resolvida, mas na Idade Média a cartografia tinha acabado. A Igreja dividia o mundo em quatro ilhas. A única habitada seria o Ecúmeno, onde teriam nascido Adão, Eva e seus descendentes. Isso foi sendo desmentido justamente pelos descobrimentos e antes disso, por viajantes como Marco Pólo. Aí, começaram a surgir os primeiros mapas-múndi.

RH – Os portugueses utilizaram mapas para palmilhar a costa africana e chegar depois até a China ou os mapas foram feitos depois?


MJG – Eles iam fazendo os mapas na medida em que avançavam. Em Lisboa, existiam os chamados armazéns, que não eram o que hoje se entende por armazéns. Ficavam lá todo o instrumental náutico e os mapas. Cada descobridor que voltava ia ao armazém levando seu esboço e o passava ao cartógrafo. Este fazia os mapas. Os italianos, obviamente, tinham seus espiões. Um que ficou famoso se chamava Cantino. Tenho para mim que não era propriamente um espião, mas um espertalhão. Ele subornou um cartógrafo português, que fez o mapa de todo o mundo conhecido, e o vendeu para Hércules D’Este. É o Planisfério Cantino, que está hoje na Biblioteca Estense de Modena. Existe inclusive uma carta de Cantino oferecendo o mapa e negociando seu preço. Então, é assim que foi se desenvolvendo a cartografia...

RH – O que havia de peculiar nos mapas náuticos portugueses?

MJG – Era o saber de experiência feito, como dizia Camões. Eles iam navegando, experimentando, e colocando isso nos mapas. Desenhavam a partir dos processos e instrumentos que conheciam, como a bússola, ou agulha de marear, como se dizia. Com isso, tinham a direção e iam seguindo a costa e calculando alguns pontos astronomicamente. Assim é que se fazia. E foi como fizeram todos os que trabalharam nos tratados de Madri e Santo Ildefonso.


RH – Existem uns mapas belíssimos, cheios de ilustrações. Eram os cartógrafos que faziam?

MJG - O traçado da costa era obra dos cartógrafos, mas o interior eram os iluministas que faziam, a partir das descrições que recebiam. Existem cartas maravilhosas, como o Atlas do John Ross, ou Jean Rose, pois ele era francês, que pertenceu a Henrique VIII, e hoje está no Museu Britânico, com iluminuras fantásticas sobre a vida dos selvagens. Há um Atlas luso-francês, em Haia, que é também uma beleza, cheio de iluminuras belíssimas e importantes para os estudos antropológicos brasileiros. Os iluministas descrevem perfeitamente os costumes dos índios, eram artistas de primeiríssima qualidade. Mas esses mapas não serviam aos navegantes, eram “cartas de príncipes”, como se diz hoje.

RH – São quase obras de arte mesmo. Existe um mercado que comercialize esses mapas?

MJG – Claro, inclusive um mercado clandestino, é só ver o caso desse roubo no Itamaraty...

RH – Como é que o senhor se sentiu quando, lendo o jornal, soube do roubo desses mapas?

MJG – Acho um acontecimento terrível, porque deixa lacunas na história da nossa diplomacia. Não há muito tempo, houve uma questão envolvendo aquela ilha brasileira lá no Rio Uruguai, com o Uruguai reivindicando que a ilha era dele. E o Itamaraty não tinha mais os elementos para provar o contrário. Por acaso, eu tinha xerocado os mapas. A defesa brasileira foi feita toda em cima dessa documentação. Qualquer dia algum boliviano vai dizer que o Acre é deles e não conseguiremos provar nada. Toda aquela parte ocidental de Santa Catarina, já foi reivindicada pelos argentinos, e o barão do Rio Branco mostrou que os portugueses é que haviam colonizado com base na documentação do Itamaraty. Para o senhor ver como é grave essa questão dos roubos...

RH – O senhor acha que o interesse pela cartografia tem crescido entre os historiadores? MJG – Sem dúvida. Como se entender história sem saber geografia? Acho que é quase impossível se localizar um acontecimento histórico sem uma noção cartográfica. O senhor vê que a USP não tinha nada em matéria de mapas. Agora está criando, na cátedra Jaime Cortesão, um setor, que a Íris Kantor está trabalhando, de cartografia. E na Universidade de Minas Gerais está lá o Gilberto Costa, que já tem até um prédio próprio para fazer um setor de cartografia. Então o interesse pelos mapas está crescendo muito.

RH – Voltando ao caso do Cantino, era comum aquele tipo de espionagem?


MJG – Era, e por causa disso Portugal mantinha uma política de segredo quanto às suas cartas. Havia um édito condenando à morte todo cartógrafo que fizesse cartas ao sul do Manicomo. Aqueles que fossem apanhados fazendo mapas nessa região, morreriam “naturalmente” – isto é, eram jogados ao mar. Muitos cartógrafos portugueses foram subornados pelos franceses. Toda a cartografia francesa é baseada na cartografia portuguesa. Só depois é que aparecem os grandes cartógrafos franceses.


RH – Quando Portugal começou a se preocupar com a espionagem?

MJG – Depois que Fra Mauro mostrou que aquele conceito de Ptolomeu, de Oceano Índico fechado, estava errado, e que havia uma passagem. Os portugueses começaram a ir em busca dessa passagem. Diogo Cão fez duas viagens. Depois, Bartolomeu Dias dobrou o Cabo da Boa Esperança, atingiu o Índico e foi até o chamado Reino do Infante. Foi aí que começou a política de segredo portuguesa. Os italianos estavam interessadíssimos nos mapas, pois haviam perdido todo o comércio das especiarias, que era feito por eles usando os árabes como intermediários, para os portugueses, sobretudo depois da viagem de Vasco da Gama a Calicute, na Índia.

RH – Os portugueses estavam também mais avançados que os espanhóis?

MJG – Sem dúvida. Para a viagem de Magalhães, os espanhóis não tinham nem cartógrafos capazes de fazer os mapas para orientá-lo. A essa altura os portugueses já haviam percorrido a costa brasileira, já havia um mapa, que é o primeiro mapa do Brasil completo, feito por um cartógrafo português, ou dois – Pedro e Jorge Reinel. Mas de todo modo cada país, fossem a Itália ou Espanha, tinha seus grandes navegadores, seus heróis. Quando dos 500 anos da morte do Colombo, fui convidado para participar de um grande congresso realizado em Valladolid. Fiz a conferência de abertura mostrando a importância do Colombo, porque Colombo era um gênio do mar. Ele é que descobriu como se voltava das Antilhas para a Europa.

RH – Por que era difícil?

MJG – Era um problema de ventos e correntes. Por isso, aliás, os portugueses só navegavam inicialmente em caravelas ao longo da costa. Na região do Equador, era aquele trabalho medonho de ziguezague, navega para lá, navega para cá. Cabral só descobriu a Bahia, e não o Rio Grande do Norte, porque ele veio pelo largo, até avistar os sinais de terra. Está tudo na Carta do Caminha, não é? Quando ele avista os sinais de terra e vê que o vento não impediria que continuasse a viagem para a Índia, navegou diretamente para oeste, e aí descobriu o Brasil.

RH – Do ponto de vista náutico, o que o Atlântico tinha de tão terrível para os navegadores?

MJG – Os ventos e as zonas de calma equatoriais. Fora isso, era muito difícil orientar-se no mar. Até a invenção do astrolábio náutico, a navegação era feita pela estrela polar. Precisava-se de um observador fantástico para vê-la abaixo de seis graus de latitude norte...



RH – Então o problema era falta de orientação, somada aos ventos e à calmaria...

MJG – É, há vento até chegar às proximidades do Equador, depois calmaria durante toda a travessia e depois um vento contrário, que é o alísio de sudeste, que vem lá da Namíbia e vai até o Ceará. O senhor tem que contornar esse vento para poder navegar e dobrar o Cabo da Boa Esperança. Tanto que o Almir Klink, quando atravessou o Atlântico, a remo, discutiu muito comigo de onde sair. E ele é um craque, não é? Tem uma coragem fabulosa. Eu disse: “Sai da Namíbia que você vai chegar empurrado pelo vento e pelas correntes”.

RH – Até quando os portugueses dominaram a ciência cartográfica?

MJG – Até o aparecimento da cartografia holandesa (quando?). Antes disso, até o Abraão Ortelius, o grande cartógrafo flamengo, usou cartas portuguesas. Nessa época, o grande cartógrafo lusitano era o Luís Teixeira, que fez o roteiro de todos os sinais da costa brasileira. Como nos Países Baixos havia gravadores extraordinários, os holandeses progrediram rapidamente, criaram a Companhia das Índias Orientais, descobriram o estreito de Lener, fundaram a Batávia, invadiram o Brasil, e foram cartografando isso tudo...

RH – Qual era o prestígio do cartógrafo nessa época?

MJG – No começo das invasões holandesas eles não tinham grande prestígio. Mas o Nassau, que era um sujeito cinqüenta anos à frente do tempo deles, percebeu com clareza a importância da cartografia e prestigiou muito os cartógrafos. O Marcgraf foi o grande cartógrafo do Nassau, mas o Barléus também deixou trabalhos de primeiríssima qualidade.

RH – E a cartografia portuguesa foi ficando pra trás...

MJG – Não é bem assim. Uma vez o almirante Teixeira da Mota, amicíssimo meu, disse que a cartografia portuguesa tinha estacionado. E eu disse que estacionou por uma razão simples: necessidades satisfeitas. Quando a pessoa não precisa mais progredir, pára. E foi o que aconteceu.


RH – Uma pergunta que não podia faltar: o Descobrimento foi intencional ou aconteceu por acaso?

MJG – Não havia qualquer ordem do rei para descobrir nada, mas havia uma noção da existência de terras ao sul das que Colombo descobrira. Porque quando Colombo regressou das Américas, ele não foi diretamente para a Espanha. Apanhou duas tempestades pelo caminho, uma nos Açores e outra quando já estava chegando à Europa, e teve que se refugiar no Tejo. Aí foi recebido em audiência por dom João II. Por causa do Tratado de Tordesilhas, o rei de Portugal disse a ele: “Essas terras que você descobriu são minhas”, e até ofereceu para mandar levá-lo, por terra, até a Espanha. Colombo, muito esperto, recusou. Deve ter pensado: “Vocês me matam no caminho” [risos]. O fato é que foi Colombo, e não outro, quem descobriu a terra firme americana. Os outros foram nas águas dele...

RH – Os portugueses não gostam muito de ouvir isso, não é?

MJG – É, mas não posso mentir. Sou um apaixonado pelos descobrimentos portugueses, mas não posso mentir. Foi o Alonso de Hogeda que descobriu uma parte grande do Brasil, do Ceará em diante, antes de Cabral. Ele chegou no dia 23 de janeiro (de 1500?) e percorreu toda aquela costa. Hogeda estava atrás ouro, mas só encontrou índio, e índio feroz, os Tremembés, aqueles da foz do Rio Pará e do Rio Amazonas. Então ele se desinteressou. Recebeu até a “governación” da terra que descobriu, mas nunca se preocupou em vir aqui. Na realidade, Hogeda queria chegar à Índia, às terras do Gran Khan – ou Sipanbu, com as coisas maravilhosas, casas feitas de ouro etc., que Marco Pólo tinha descrito. Era o que Colombo também queria.

RH – Em relação a Cabral, ele não tinha nenhuma noção de que se tratava de um continente?

MJG – Não, nenhuma. O Caminha escreve: “Essa ilha”. A terra descoberta é chamada de Ilha de Vera Cruz, e depois Santa Cruz, não é?

RH – Antes mesmo do Descobrimento já se falava numa certa Ilha Brasil, não é?

MJG – Era uma fantasia. Se o senhor procurar nos mapas, vai ver que essa tal Ilha Brasil andou pelo Atlântico inteiro. Essa lenda vem desde a tomada da península ibérica pelos árabes, quando um bispo sai e descobre uma ilha. A história é engraçada, porque o navio do bispo pousa numa terra, numa ilha, e depois a tripulação percebe que estavam em cima de uma baleia. Quando acenderam uma fogueira, a baleia esquentou e afundou [risos] Essa Ilha Brasil andou espalhada pelo Atlântico Norte inteiro, mas era pura fantasia.


RH – O que o senhor acha da versão de que a América foi descoberta pelos chineses?

MJG – É uma mentira das mais cínicas. É gente que faz livro para ganhar dinheiro. O senhor lembra daquele livro Eram os deuses astronautas? Pois é, é a mesma coisa. Na verdade, os chineses iam até o Golfo Pérsico. Nas escavações arqueológicas encontrou-se louça chinesa em quantidade na costa leste africana.

RH – Mas eles não poderiam ter desviado, fazendo um caminho inverso ao de Bartolomeu Dias, e dar na costa africana?

MJG – Em tese, poderiam. Nauticamente era possível, porque o vento permitiria, mas não há qualquer registro histórico disso. Agora, no Atlântico, nem pensar. Os chineses não teriam a mínima condição, porque os europeus – portugueses e espanhóis, sobretudo – levaram séculos para aprender a navegar no Atlântico.

Revista de História da Biblioteca Nacional

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Paulo Arantes - O CAOS COMO REGRA

Doutor em Filosofia pela Universidade de Nanterre, na França, Arantes comenta nesta entrevista o caos sistêmico pelo qual o mundo passa e a ausência de política, que leva a guerras e ao terrorismo

POR PATRÍCIA PEREIRA
FOTOS: PAULO BRASIL

“A rigor, ninguém sabe ao certo por que Bush invadiu o Iraque. Obviamente, petróleo, Israel, establishment industrial-militar etc. pesaram, mas o que realmente se tinha em mente continua um mistério”
Paulo Arantes aposta que “dentro em pouco o caos iraquiano estará sendo vendido à comunidade internacional como um paradigma de best practice”. O filósofo marxista lançou em 2007 o livro Extinção (Boitempo Editorial), em que, entre outros temas, analisa o imperialismo norte-americano e a guerra no Iraque. Graduado pela Universidade de São Paulo (USP) – onde foi professor do Departamento de Filosofia de 1968 a 1998 – e doutor em Filosofia pela Universidade de Nanterre, na França, Arantes comenta nesta entrevista o caos sistêmico pelo qual o mundo passa e a ausência de política, que leva a guerras e ao terrorismo. Também afirma que a Era dos Extremos, que se encerrou com o breve século XX, segundo Eric Hobsbawm, parece estar de volta. Só que escalando entre extremos indiscerníveis.

FILOSOFIA - Em seu mais recente livro, Extinção, você cita a presença dos EUA no Iraque como exemplo da desordem que o mundo vive hoje. Diz que não dá mais para diferenciar quem ganha e quem perde ou onde termina a guerra e começa a paz. O cenário de caos que se alastrou no mundo é conseqüência de um somatório de decisões aleatórias, não interligadas, ou é o resultado de uma nova forma de organização social, ainda que caótica?
Paulo Arantes - É como você diz, a novidade não está no cenário de caos, mas na impossibilidade de saber onde termina o surto de insanidade social e começa a rotinização do impensável. A governança global hoje é o caos sistêmico, os opostos estão se tornando indiscerníveis. Não por acaso alguns sociólogos brasileiros já estão falando numa Era da Indistinção, em primeiro lugar porque a grande mutação cataclísmica da sociedade brasileira mostrou-lhes que não dá mais para distinguir, por exemplo, entre a ebulição participativa dos movimentos sociais e o protagonismo da sociedade civil exigido pelo grande capital privatizante – quer dizer, entre nova esquerda e nova direita. Também ficou difícil distinguir no aplicador financeiro indireto de um fundo de pensão, o assalariado do qual se extrai mais-valia, portanto o rentista, do explorado, para não falar no trânsito popular infernal pela miríade de ilegalismos alimentados por uma outra crescente indistinção entre o lícito e o ilícito. Em suma, a mesma lógica da indistinção ou da intercambiabilidade entre opostos indiscerníveis vem a ser o princípio do governo pelo caos que se alastra por um mundo que virou de vez a página da normalidade capitalista, com ou sem aspas. Por isso, a invasão e a ocupação do Iraque – uma guerra de escolha e não um último recurso – tornou-se paradigmática: caos programado ou desastre estratégico? Segundo Paul Virilio, chegamos a um ponto em que o substancial e o acidental já não se distinguem mais como nos tempos da ontologia aristotélica, isto é, desde sempre. Não só o acidente tornouse substantivo – o que em si mesmo já definiria a novidade radical de nossa atual Sociedade de Risco – como a explosão acidental de uma megaestrutura crítica tornou-se para todos os efeitos e nova direita. Também ficou difícil distinguir no aplicador financeiro indireto de um fundo de pensão, o assalariado do qual se extrai mais-valia, portanto o rentista, do explorado, para não falar no trânsito popular infernal pela miríade de ilegalismos alimentados por uma outra crescente indistinção entre o lícito e o ilícito. Em suma, a mesma lógica da indistinção ou da intercambiabilidade entre opostos indiscerníveis vem a ser o princípio do governo pelo caos que se alastra por um mundo que virou de vez a página da normalidade capitalista, com ou sem aspas. Por isso, a invasão e a ocupação do Iraque – uma guerra de escolha e não um último recurso – tornou-se paradigmática: caos programado ou desastre estratégico? Segundo Paul Virilio, chegamos a um ponto em que o substancial e o acidental já não se distinguem mais como nos tempos da ontologia aristotélica, isto é, desde sempre. Não só o acidente tornouse substantivo – o que em si mesmo já definiria a novidade radical de nossa atual Sociedade de Risco – como a explosão acidental de uma megaestrutura crítica tornou-se para todos os efeitos

1Acidente ocorrido na cidade Bhopal, centro da Índia, no dia 3 de dezembro de 1984,
quando produtos químicos foram liberados acidentalmente da fábrica de pesticidas
da Union Carbide, provocando a morte de cerca de 3 mil pessoas e milhares
de feridos. Os responsáveis ainda não foram culpados pela tragédia.

FILOSOFIA - De que maneira a Era dos Extremos estaria de volta?
Paulo Arantes – Parece estar de volta. Só que, desta vez, escalando entre extremos indiscerníveis. Trata-se de uma verdadeira ruptura de época e da correspondente obsolescência de antigas categorias, a começar pela racionalidade estratégica, por exemplo, na adequação entre meios e fins. A rigor, ninguém sabe ao certo por que Bush invadiu o Iraque. Obviamente, petróleo, Israel, establishment industrial-militar etc. pesaram, mas o que realmente se tinha em mente continua um mistério – talvez porque não haja mesmo resposta para uma pergunta formulada nos moldes antigos: por exemplo, a que política a guerra do Iraque estaria dando continuidade por outros meios? Conhecemos a resposta de Baudrillard – nada trivial: a nenhuma! Mais precisamente, tanto as atuais guerras de gestão do caos quanto a correspondente escalada terrorista nada mais são do que o prolongamento por outros meios da ausência de política. Absolutamente nada foi dito nem exigido em troca no 11 de setembro. Quanto à estranha mescla de caos e grand design atualmente em curso no Iraque e no Afeganistão, da qual, segundo os autores do livro Afflicted Powers [Iain Boal, T. J. Clark, Joseph Matthews, Michael Watts, entre outros, que fazem parte de um grupo baseado em São Francisco, Estados Unidos, antagonista do capital e império], nenhuma análise meramente econômica ou política dará mais conta, é preciso por certo convir que plantar uma presença militar americana de larga escala e longa duração no coração do Oriente Médio representa uma enorme iniciativa estratégica, destas de criar ou quebrar impérios. Quem assim se exprime é um calejado estudioso da comunidade americana de segurança, Thomas Powers, que não obstante chegou à conclusão paradoxal de que parece mesmo não ter havido nenhuma versão interna, sofisticada, profissional, dos motivos que levaram a uma guerra de dissolução do Estado e da sociedade iraquianos. Ausência de “pensamento” também. Não menos interessante, continua o argumento, é a evidente vontade da maioria parlamentar democrata de não saber quais foram os motivos que levaram Bush à guerra. Daí o desfecho revelador do novo curso do mundo, apenas enunciado como um teorema da névoa que envolve as guerras caotizantes de agora: “Não saber por que entrávamos permitiu que entrássemos; não saber por que deveríamos sair tornará impossível sair”. Tampouco Hobsbawm está entendendo muita coisa (com todo o respeito) dessa nova era de extremos indiscerníveis, neste caso, ordem e desordem. Como se pode depreender de seu último livro, o epicentro da desordem mundial se encontra no governo incontrolável e irracional que se estabeleceu em Washington, como se o princípio freudiano de realidade não funcionasse para Bush e seus milhões de eleitores milenaristas. Até mesmo Perry Anderson [intelectual e historiador marxista inglês, editor da revista New Left Review] parece derrapar no último editorial da New Left Review (novembrodezembro de 2007). A seu ver, embora seja inegável o declínio da economia americana num contexto global no qual despontam outros centros alternativos de poder capitalista, sua capacidade gerencial em termos de ativos estruturais de poder continua mais do que nunca indispensável aos sócios da assim chamada comunidade internacional de oligarquias rentistas e monopolistas. Quanto ao mundo subalternizado do trabalho, cuja população simplesmente dobrou na presente conjuntura – aproximadamente 3 bilhões de indivíduos são esfolados numa escala que nem mesmo o século XIX conheceu – no curto prazo constitui muito mais um ativo do que uma ameaça para o capital, enquanto o seu poder de veto permanecer próximo de zero. A conjuntura é, portanto, de harmonia (a Casa da Harmonia – na fórmula de Perry Anderson) num ambiente de negócios densamente interconectados: se porventura a supremacia americana vier a ser desafiada, o sistema enquanto tal ainda permanecerá fora de questão, sistema, no entanto, que esta mesma supremacia controla frouxamente, porém defende com firmeza nunca vista.

O termo caos tornou-se lugar comum, expectativa
de paz com o fim da Guerra Fria


Arqueologia dos temores
[Sobre os intelectuais] No Brasil e no mundo, todos e cada um encasulados em uma espécie de bunker particular. Como gerentes de risco de si mesmos, não mexem um dedo sem garantias contra qualquer excesso. É bem verdade que muitos experimentos anticapitalistas do passado são mesmo de meter medo, sendo aliás imprudente caluniar abstratamente a polícia. Essa a conjuntura mental que um retrato intelectual do Brasil contemporâneo deveria rastrear, uma arqueologia dos temores que paralisam faz algum tempo a inteligência do País. Quando se instalou exatamente essa estratégia de sobrevivência, que se poderia caracterizar como um estado de sítio moral? Qual a matriz desse mecanismo defensivo que se exprime por estereótipos economicistas acerca da falta de alternativas? A história social do medo intelectual no Brasil nos levaria longe.

Trecho do livro Extinção, de Paulo Arantes, da editora Boitempo

FILOSOFIA - Dentro desta perspectiva, como pode ser encarado o conflito atual no Oriente Médio?
Paulo Arantes - Nesta “sinfonia da ordem capitalista global”, o conflito no Oriente Médio só pode aparecer como uma “irracionalidade”, histórica e regionalmente circunscrita – entre as aberrações responsáveis por esta descalibragem assustadora, a defesa incondicional do poder colonial de Israel. A mencionada ausência de pensamento estratégico que teria dado forma a este episódio central do “império do caos” – como Alain Joxe designa a estratégia americana de externalização da violência – seria assim a expressão desta interrupção anômala do cálculo capitalista, confrontado com uma zona opaca de desmandos imperiais acumulados, ponto cego dos planejadores americanos ao tratar o Oriente Médio como um campo de forças qualquer.

FILOSOFIA - Que conseqüência essa “falta de pensamento” trouxe para o mundo?
Paulo Arantes - À cegueira dessas irrupções na região – região, no entanto, desde sempre fidelizada aos imperativos da acumulação - corresponde à série de efeitos bumerangue que culmina no 11 de setembro, acrescentando assim uma nova e desnecessária rodada na “espiral de irracionalidades”. Enfim, não estava provado que uma solução de mercado não fosse possível. Simples assim. Perry Anderson chega ainda a especular, com muita verossimilhança, a propósito, se não seria o caso, colocando afinal a região nos eixos, de uma histórica visita- Nixon ao Irã, onde não faltam mulás milionários, bazaari poderosos, profissionais ocidentalizados, estudantes “bloguisados”, etc. Sobressaltos irracionais à parte, a normalidade capitalista retomaria seu curso neste último bolsão de turbulências incompreendidas pelos gestores globais de segurança do sistema. No fundo, ainda uma variante do argumento blowback, algo como um contravapor ou ricochete explosivo, formulado pela esquerda liberal americana: estamos colhendo as tempestades provocadas pelos ventos semeados com nossa desmesurada projeção de poder nas regiões críticas do mundo. Um pouco como Sarkozy atiçando a “ralé” dos “bairros sensíveis” da periferia francesa. Endossando tal argumento, a teoria crítica volta a marcar passo ao procurar preservar assim uma noção de causa e efeito cujo prazo de validade venceu, além de demarcar um mundo polarizado entre a ordem do centro e a desordem da margem. A observação é de Susan Willis analisando a multiplicação dos focos de anomia na própria sociedade americana, cuja normalidade derrete ao sol da expectativa do próximo ataque, de resto uma desordem também “interior”.



FILOSOFIA - Voltando ao “caos” iraquiano...
Paulo Arantes - Na falta de melhor palavra: decididamente a raiz conservadora do termo acaba baralhando a percepção da reviravolta em curso, pois, afinal, o caos tem origem social subalterna enquanto o cosmo espelha no universo o ordenamento cívico dos civilizados. De resto, o termo caos tornou-se um lugar comum datado, exatamente do sentimento de frustração das expectativas investidas nos quiméricos dividendos da paz a serem distribuídos com o fim da Guerra Fria. Nem mesmo teóricos do World System como Giovanni Arrighi escaparam inteiramente da armadilha, batizando de caos sistêmico o interregno turbulento historicamente recorrente toda vez que se processa uma mudança da guarda nos círculos superiores da hegemonia mundial, como é o caso hoje com o declínio violento de um hegemon recalcitrante, com uma novidade geopolítica que, no entanto, faz toda a diferença no emprego do termo equívoco caos, uma inédita bifurcação entre capacidades financeiras e militares, sem precedentes nas outras transições hegemônicas: é que se uma tal bifurcação reduz a probabilidade de eclosão de uma guerra entre as unidades mais poderosas do sistema, como nos séculos anteriores, não reduz as probabilidades de que a atual crise hegemônica “degenere” num “caos sistêmico” indefi- nidamente prolongado, adiando ameaçadoramente a recondução do sistema ao seu trilho habitual de governança. Daí a inversão pela qual comecei a resposta à sua dúvida na primeira pergunta. Estava obviamente citando. Ora, o caos iraquiano – e demais “ocupações” correlatas mundo afora – é um desses laboratórios de gestão-dissolução. Será, todavia, mais convincente um argumento involuntário nascido no próprio establishment, no caso um artigo irônico do jornalista Jim Holt, afirmando que é o petróleo sim e que os Estados Unidos estão encalacrados justamente onde Bush & Cia. queriam, e que por isso mesmo não há nem pode haver estratégia de retirada. Ora, dizer que a ocupação do Iraque não foi um fiasco, mas um sucesso retumbante, que foi precisamente um serviço horrivelmente malfeito, pouco importa se de caso pensado ou não, basta agir com a desmedida de uma força da natureza, que praticamente garantiu que o Iraque venha a se transformar num protetorado americano é o mesmo que admitir então, atinando enfim com a real acepção contemporânea da palavra caos, que a desgraça social está se convertendo hoje não só numa gigantesca fronteira de acumulação, mas também na principal alavanca disciplinar de controle das populações. Tanto faz se desconectadas e em situação de risco, ou integradas, porém ameaçadas em meio à afluência, assentadas em territórios convulsionados, também tanto faz se por conflitos militares ou catástrofes naturais que no limite já são plenamente sociais. Dentro em pouco o caos iraquiano estará sendo vendido à comunidade internacional como um paradigma de best practice.

Há quem veja na virada atual de maré o início de uma terceira
onda emancipatória no continente (latino-americano)

Guerra preventiva
O sistema capitalista de exploração e controle se caracteriza pela autonomização recorrente de processos sociais que passam a funcionar como uma segunda natureza. A sensação de que a administração Bush perdeu o contato com a realidade se explica em grande parte por essa circunstância. Num certo sentido, a paranóia que a impulsiona é objetiva, pois obedece a uma tal necessidade de segundo grau. No entanto, não é menos verdadeiro que se trata de uma guerra por escolha, e não por necessidade. A analogia com o etos guerreiro do cowboy tem sua razão de ser: numa guerra preventiva, em princípio também vence quem saca primeiro, porém na segunda ou terceira guerra não se poderá mais ignorar o aberrante automatismo do gesto.


Trecho do livro Extinção, de Paulo Arantes, da editora Boitempo

FILOSOFIA - Partindo dessa perspectiva, caos viraria a norma?
Paulo Arantes - Se Naomi Klein tem razão, a indistinção entre boa governança e caos sistêmico (as aspas agora ficam subentendidas) assinala a irresistível ascensão do “capitalismo de desastre”, algo como a privatização final da guerra e dos “acidentes”, de preferência em escala mega: assim como as guerras hoje são, sobretudo, de escolha ou preventivas, bem como também podem eclodir ou “estourar” como o rompimento de um dique, os acidentes também podem ser induzidos ou simplesmente “acontecer”. O princípio do disaster capitalism complex, que englobou e expandiu seu precursor industrial-militar dos tempos de Eisenhower, é o da tábula rasa social, a constelação de traumas e destruições que limpam o terreno para os negócios privados, dos socorros humanitários às reconstruções, passando obviamente pelos da segurança, qualquer que seja a natureza do sinistro, maremoto, quebra financeira ou atentado terrorista, qualquer ambiente caótico em suma que configure um estado de necessidade demandando medidas de urgência. Chegamos assim a uma derradeira indistinção entre forças produtivas e forças destrutivas. Daí o outro tipo de estado de guerra permanente: segundo a lógica do capitalismo de desastre, a do caos sistêmico como força produtiva, não é mais preciso aguardar o fim da guerra para abrir os novos mercados da paz. A guerra inteiramente privatizada segundo o modelo do for-profit warfare já é ela mesma o novo mercado a todo vapor. Vale para as novas guerras de produção e gestão do caos o que vale para a indústria cultural: o meio é a mensagem, no achado de Naomi Klein: mas guerras assim politicamente vazias só se autonomizam como assunto privativo de Estados em simbiose com as Corporações, nada mais distingue Big Government e Big Business, os oligarcas são indistintamente russos, americanos ou chineses. Governa-se gerando e gerindo traumas de toda ordem, o capitalismo hoje só acumula empurrado por ondas de choque: não por acaso a tortura está de volta com uma base social ampliada em escala global. O desastre governável e rentável não pode prescindir destes estados de choque intermitentes, cuja sinistra trivialização qualquer brasileiro conhece muito bem.


“O princípio do disaster capitalism complex, que englobou e expandiu seu precursor industrialmilitar dos tempos de Eisenhower, é o da tábula rasa social, a constelação de traumas e destruições que limpam o terreno para os negócios privados, dos socorros humanitários às reconstruções, passando obviamente pelos da segurança”
FILOSOFIA - O nome do livro, Extinção, remete a um fim certo, sem possibilidade de salvação para o mundo. Você enxerga algum caminho político para reverter esse processo?
Paulo Arantes - Colhido por assim dizer em estado de dicionário, só o título, e olhe lá. Quanto ao autor, quando muito limita-se a seguir o velho preceito de esquerda, pessimismo da inteligência e otimismo da vontade. Dito isto, talvez ajude uma digressão contra-intuitiva. É que parece estar se dando na presente conjuntura um tremendo disparate intelectual: tudo indica que está desabrochando na esquerda um paradoxal otimismo da inteligência. Pelo menos é nesta chave que Perry Anderson, no editorial citado há pouco, encara algumas leituras alternativas da atual convivência, digamos ultra-imperialista à maneira de Kautsky, entre Harmonia capitalista e Guerra idem. Quatro posições críticas, porém, positivadoras do novo curso do mundo são brevemente resenhadas: o esquema do Império de Toni Negri, a Nação global de Tom Nairn, as visões chinesas do Giovanni Arrighi de Adam Smith em Pequim e a menos conhecida elaboração do filósofo Malcolm Bull acerca de uma reconstituição da Sociedade Civil em bases pós-mercado graças à entropia dos Estados imperiais (Europa, União Soviética, Estados Unidos). Está claro que não vem ao caso resumi-las, apenas chamar atenção para a bizarria desta evocação, à qual se deveria acrescentar sua contraparte: num ensaio anterior, o mesmo Perry Anderson mostrava como filósofos tão construtivos como Habermas, Bobbio e Rawls haviam se tornado não obstante, ou por isso mesmo, os mais consistentes advogados das novas guerras justas, claro, e sempre em nome da humanidade contra o seu inimigo de turno. Como disse, todos saúdam a entrada em cena da globalização como um sinal precursor da superação do capitalismo enfim encaminhada. Mas essas positivações - mais ou menos na mesma linha do progressismo oitocentista - não deixam por sua vez de pagar o seu tributo ao senso comum do nosso tempo: tudo se passa como se um choque aberrante entre fundamentalismos simétricos empurrasse o mundo para a beira do abismo. Vimos que não é bem assim como querem: algo como a constituição em processo de uma economia mundial senão igualitária, pelo menos em condições de reverter a polarização do período inicial da globalização, agora atalhada pela metamorfose militarista do poder americano: até então Estado hegemônico criador de ordem, os Estados Unidos se tornaram agentes do caos - a implosão iminente do Paquistão que o diga, muito embora na gramática superficial do mero convite ao bom senso, para variar, o confronto de sempre entre normalidade e exceção.

FILOSOFIA - Contra o neoliberalismo, há uma reviravolta iniciada por alguns países da América Latina, onde esquerdistas governam. É uma luz que se abre?
Paulo Arantes - De fato a nova paisagem latino-americana im pres siona, sobretudo se comparada ao relativo bloqueio dos movimentos sociais europeus, nele incluído os mais recentes combates franceses de retaguarda. Há quem veja na virada atual de maré o início de uma terceira onda emancipatória no continente, que por aqui sempre foi ambiguamente bifronte, a um tempo ruptura moderada das classes proprietárias com os centros cíclicos metropolitanos, e insurgência radical dos povos subalternizados desde a Conquista. A primeira onda assistiu à formação dos Estados Nacionais. A segunda, foi deflagrada com a crise dos anos 30 e se espraiou pelas várias frentes mais ou menos heterodoxas de luta contra o subdesenvolvimento. Foi precisamente no pico deste ciclo que a Revolução Cubana avançou o sinal. No interregno neoliberal que se seguiu ao colapso da modernização, a reconversão colonial voltou a ameaçar, mas algumas economias haviam logrado, no entanto, completar a sua matriz industrial. Ora, cada uma destas esquinas históricas foi dobrada num período propício de crise global das hegemonias mundiais, mudança da guarda no centro, liberdade de manobra na periferia. Além do mais, foram momentos por assim dizer ascensionais da expansão capitalista, bem ou mal incorporando sujeitos e direitos novos. Não poderia ser maior o contraste com a fase destrutiva de agora, a começar pela turbulência global que acompanha a geopolítica errática do alto comando capitalista. Neste vácuo, a América Latina começou a se mexer, empurrada pelo fracasso retumbante das políticas impostas pelo Consenso de Washington e a nova corrida mundial aos recursos naturais, o que acarretou uma relativa folga na escolha de rotas nacionais de adaptação ao novo mundo dos negócios globais. Mas estamos falando de sociedades detonadas e elites cronicamente predadoras. Por isso as “refundações” nacionais envolvem programas sociais de emergência, como as “missões” venezuelanas indicam no próprio nome. Não se trata de trilhar o caminho certo ou errado, foi o único que se abriu na presente circunstância de ... “caos sistêmico”. Aliás, todos pularam sobre a mesma janela de oportunidades, resguardadas as diferenças locais de calibragem. Até o famigerado Consenso de Washington não é mais o mesmo e se encontra em sua terceira geração – é só aplauso para as bem- sucedidas políticas latino-americanas de gestão da pobreza e desenvolvimento humano.

PATRÍCIA PEREIRA é jornalista e escreve para esta publicação

Revista Filosofia