domingo, 30 de novembro de 2008

Maria Cláudia Cardoso Ferreira

A políticia de cotas como uma ação afirmativa


Nome: Maria Cláudia Cardoso Ferreira

Formação: Pesquisadora do PROAFRO, professora de História da rede municipal de ensino, militante do Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC) e aluna do curso de mestrado em História da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


IBGE há pouco fez uma pesquisa e perguntou — “Existe racismo no Brasil?” A maioria das pessoas disse que sim, que existe racismo no Brasil Aí, para a pergunta: “Você é racista?”, elas respondem: ¾ “Não.” Então, quem é racista? Essa é a grande hipocrisia do país. Sabe por quê? As pessoas entendem que existe racismo no Brasil? Eu acho que a pergunta tinha que ser essa — “Isso te incomoda? O que você tem feito pra mudar isso?


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Entrevista com Maria Cláudia Cardoso Ferreira

Salto – Qual a importância das cotas para negros e para estudantes vindos do ensino público na nossa sociedade, atualmente?

Maria Claudia – A questão das cotas, ela insere uma discussão no Brasil hoje que tem a ver com a questão da distribuição da renda. Isso é uma coisa, porque educação é ascensão social, é um dos caminhos para a ascensão social. Ela insere uma outra discussão, que tem a ver com o convívio de pessoas de diferentes realidades, com diferentes histórias. Esse convívio, entendia-se antigamente, numa outra perspectiva teórica e de nação, entendia-se que esse convívio tinha que ser homogêneo, pasteurizado, e hoje não. As perspectivas, a partir dos anos 60, dentro da teoria e do projeto de nação, para o mundo e para o país, principalmente, são de que a gente tem que trabalhar com essa pluralidade, com a diversidade. Essa divergência não é só étnica, ela também é econômica. Porque os grupos, as classes populares, eles têm contribuições que são trocadas nesse espaço que é a universidade. Universal no sentido de que é de todos e não só de um modelo de pensamento e de educação.

Salto – Por que uma parcela tão grande da sociedade reage tanto a essa política de cotas?

Maria Claudia – Voltando para a questão do poder, se a gente entende educação como um espaço de ascensão social, você tem uma estrutura que está montada, que está arrumadinha... E quando você faz uma política pública, no caso uma política de ação afirmativa, ainda que não seja uma política de alcance, de contingência nacional, encontra reações. Existe um grupo que tem condições para estar chegando a esse lugar, que tem determinado Ensino Médio, que tem que fazer uma prova, um vestibular, que tem que ser aprovado nesse vestibular para poder entrar nessa universidade. Mas é uma parcela, que antes não chegava a isso porque, no país, nunca se pensou em educação para todos, numa educação em massa, numa educação superior. Sempre se pensou numa educação para um grupo. Então, o que vai acontecer? Esse grupo, que está na base, ele vai empurrar quem sempre esteve nesse lugar e aí vai começar a confusão, porque as pessoas não querem abrir mão dos seus lugares. Então, eu costumo dizer que eu não sei se um filho de médico queria ser médico, mas muitos filhos de médicos acabam se tornando médicos. Por que isso aconteceu? Porque as pessoas querem manter o poder, querem manter os seus lugares, assim como os filhos dos advogados tornam-se advogados. E tem uma coisa bem interessante, que eu fico vendo as pessoas dizerem. Depois que houve essa discussão de cotas, é que começou a se dizer que tem que melhorar o ensino técnico. Por que todo mundo tem que fazer faculdade? Eu também acho isso, eu acredito que se a classe média, a classe média alta, todas as pessoas que estão ali, os jovens de hoje, eles querem fazer faculdade, mas eles são empurrados a fazer faculdade, porque isso é status no País hoje. Então, é por isso que eu acredito que as pessoas têm batido tão de frente com essa situação, porque elas não querem perder esse privilégio. E a educação no Brasil ainda é encarada como um privilégio para alguns, doutor não é para todo mundo. Por isso é que as pessoas questionam tanto.

Uma outra coisa em eu que acredito, em relação à questão de cotas para negros, tem toda uma discussão que é desse racismo velado, de uma falsa idéia de que está tudo bem e que isso não incomoda os negros. Porque, se eles correm atrás, eles vão chegar naquele lugar... Isso é mentira. A gente viu, há pouco tempo, aquele dentista, lá em São Paulo que foi assassinado num carro, tinha uma semana que tinha se formado dentista, filho de um coronel da PM, uma pessoa de classe média, que por não ter mostrado primeiro o documento, ele foi assassinado. Então é assim, a cor é um marcador de inferioridade, o corpo negro, ele informa o lugar social. Isso a gente não pode esquecer. As pessoas dizem que não, mas isso com certeza. Se eu chego num espaço e não digo o que eu sou, as pessoas vão ter uma idéia de mim. Depois que elas sabem quem eu sou, dependendo da importância que isso tem para elas ou não, me dão um pouquinho mais de valor. Acho que é hipocrisia achar que isso não acontece no Brasil.

Salto – Você compartilha a idéia de que existe um racismo velado?
Maria Claudia – Isso é um lugar comum no Brasil, dizer que o racismo é velado. E aí faz o quê? Continua com o racismo velado? Porque o IBGE há pouco fez uma pesquisa e perguntou — “Existe racismo no Brasil?” A maioria das pessoas disse que sim, que existe racismo no Brasil Aí, para a pergunta: “Você é racista?”, elas respondem: ¾ “Não.” Então, quem é racista? Essa é a grande hipocrisia do país. Sabe por quê? As pessoas entendem que existe racismo no Brasil? Eu acho que a pergunta tinha que ser essa — “Isso te incomoda? O que você tem feito pra mudar isso? Isso prejudica o crescimento do país?” Porque uma população enorme que não tem educação, não tem acesso a emprego pleno, isso prejudica o crescimento do país. Tem uma população que está na indigência. E essa população, em sua maioria, é negra ou muitos não se consideram negros, mas são negros. Essa perspectiva de que são descendentes dos africanos. Se você for pegar lá, numa perspectiva cultural e biológica, são os descendentes dos africanos. Nesse sentido, eu acho que tem que fazer política pública para essa população, senão o país não vai crescer. Essa história de crescimento econômico não vai funcionar.

Salto - Quem não seria negro no Brasil? E quem é branco no Brasil?

Maria Claudia – Eu tenho uma tataravó italiana. Agora, se eu for procurar emprego no shopping, alguém vai me dar emprego porque eu tenho tataravó italiana? Eu tenho bisavós da outra parte da minha família indígena – a minha avó, mãe de meu pai, é uma mulher negra de pele muito clara e cabelo cacheado. Tem uma presença indígena negra muito forte na minha família branca. A minha bisavó é filha de uma mulher italiana com um homem negro, fugido, e ela fugiu de casa e se casou com ele. Então, o que acontece? Só que, quando eu for procurar um emprego hoje, quando eu chegar em um espaço, e fizer um concurso público e tiver um chefe discriminador racista, ele não vai me dar ascensão social. Ele não vai me promover, vai promover o outro. Por quê? Eu tenho na minha árvore genealógica presença indígena, africana e européia. O que marca o meu corpo hoje? A idéia de raça, ela não está fundada na biologia. A idéia de raça está fundada no que diz o Antônio Sérgio Guimarães, que é um sociólogo de São Paulo, da USP, e outros teóricos estrangeiros que trabalham com a idéia de raça social. As pessoas escolheram características biológicas que não devem definir a vida das pessoas, mas as pessoas escolhem essas características biológicas para definir o lugar para essas pessoas. Então, o fato de ter pele escura, de ter cabelo crespo, de ter fenótipos, marcadores no meu corpo de uma história, de uma biologia que está na África, faz com que eu tenha espaços em que eu possa ir e espaços em que eu não possa ir. Eu costumo dizer isso, se eu for procurar emprego no shopping hoje e disser que eu tenho uma ancestralidade européia, alguém vai acreditar nisso? Isso vai fazer com que um cliente me veja como uma pessoa idônea? É isso que a gente tem que pensar. Isso funciona ao contrário, quem tem um corpo com mais presença européia, o fenótipo vai possibilitar o acesso, as portas vão se abrir mais rápido para essas pessoas, porque se entende que quem tem o fenótipo europeu é mais decente, é mais inteligente é mais preparado e mais bonito, é assim que se construiu a idéia de racismo nesse país. Isso é verdade? Isso é o que a gente tem que questionar. Eu não acredito na biologia, mas a sociedade brasileira hoje ainda acredita em biologia e faz essas diferenças e essas divisões sociais. É estar mais longe do africano possível, mais longe do negro possível! Então, ter boa aparência é estar mais longe desse fenótipo do negro. Isso é que é ter boa aparência. É claro que a gente tem que levantar uma ou outra questão, a gente tem que conjugar isso com o capitalismo que tem maneiras de excluir. E ele escolheu algumas combinações. Na verdade, tem uma combinação que é pobre, negro e nordestino. Essas coisas se combinam para poder estabelecer a massa que vai ser excluída. Então, se você combina essas coisas, você fica cada vez mais longe. Se você é negro, se é mulher, se é empobrecido e oriundo da periferia ou do Nordeste, você agrega fatores de exclusão, cada vez mais. Você vai ter mais dificuldade de acessar os bens de cidadania, do direito de cidadania.

Salto – Qual o papel da escola nessa luta anti-racista e antipreconceitos?

Maria Claudia – Eu acho que a primeira coisa que a gente tem que fazer enquanto educador é desconstruir essa idéia de hierarquia, de que existem melhores e piores. É claro que é muito difícil fazer isso, muito difícil problematizar isso com crianças. A gente tem que trabalhar isso. Eu me lembro de que, ano retrasado, na escola, eu perguntava para eles, para os meus alunos: Quais os grupos que formaram a sociedade brasileira? Eu estava começando a trabalhar com ocupação do Brasil, a questão do “descobrimento” e eles falavam dos portugueses – dos brancos. Alguns falaram dos indígenas, mas nenhum aluno falou dos negros, alunos negros! Então, não sei de onde eles surgiram, porque eles não conseguiam se ver originados dessa população. Aí, eu comecei a problematizar com as crianças. Perguntei para elas, por que, numa escola com vários alunos negros, vocês não falaram do negro enquanto povo, africano, enquanto povo que veio para cá e que colonizou o país também? Aí eles falaram — “Porque eles foram escravos, professora”.

Porque o livro didático, ele se esforçou durante esse tempo todo, em colocar o negro como escravo. Esse lugar do escravo é o lugar do inferior, que aceitou ser escravizado e que foi trazido como mão-de-obra. Isso é uma mentira. Os estudos de relações sociais e de escravidão, eles comprovam: a primeira coisa é que você traz uma população que já está preparada para esse tipo de trabalho, que é um trabalho hiperdiversificado. A colônia não foi “plantation” a vida toda. A colônia foi transformando e crescendo e diversificou as atividades. Você tem histórias de cativos, de escravos, de negros escravizados que já podiam comprar sua alforria e que o senhor não dá alforria. Mas ele também tem uma vida até melhor em relação aos bens, às condições de vida, até melhor do que a de outros libertos, porque ele tem uma profissão, ele é um dentista. Chamava de dentista, aquela pessoa que extraía dente. Ele tinha uma profissão específica e essa profissão lhe dava condições de ter uma vida melhor, mas ele era propriedade de alguém ainda. Então o período de escravidão no Brasil é amplo, diversificado, mas o livro didático, durante muito tempo disse o quê? Que você era escravo, propriedade de alguém, que apanhava, que era inferior, que aceitava a escravidão. Ou, no máximo, aquela história do negro que é um herói, que rompeu com tudo, como são alguns símbolos. O que acontece com a sala de aula? Eu acho que o professor, ele tem que colocar os dois lados, ele tem que colocar as contribuições de cada povo, essas imbricações, como que essas coisas se misturaram, colocar o que foi positivo nisso, o que foi negativo nisso. A gente não pode fingir que isso foi pacífico, a chegada do colonizador não foi pacífica. O indígena resistiu, mas também foi assimilado, e o português também se assimilou à cultura indígena. Porque isso faz parte da constituição dos encontros e dos momentos em que grupos culturais se encontram. Isso faz parte de qualquer ocupação. Na Península Ibérica já foi mesma coisa, você tem toda uma história de Portugal e Espanha que está fundada no Oriente. Por quê? Foram 700 anos de ocupação Árabe. Então, como não ter na cultura portuguesa e espanhola coisas da cultura oriental? A mesma coisa aconteceu no Brasil! Só que a gente quis a vida toda passar uma idéia de um Brasil branco, mais próximo da Europa, porque isso era progresso. Eu acho que é nesse sentido que acontece.

O professor ainda tem pouco subsídio, ele foi formado nessa escola, nessa universidade com a matriz branca, matriz européia, então ele não consegue ainda trabalhar com essas outras contribuições. Quando ele trabalha com a contribuição, ele trabalha muito na perspectiva culturalista. E de uma cultura reduzida, que é da manifestação cultural. A definição de cultura não é essa. Acho que manifestação cultural é uma parte da definição de cultura. Então, aí o negro entra como batuqueiro, com a comida, com a emoção. O índio com a questão do corpo, de pintar o corpo com as danças, com a cultura da roça. Eu acho isso muito pouco, muito reduzido. Mas tem a ver com formação, por isso é que eu acho que é interessante essa questão da lei que Lula assinou, de ensinar a história da África e a história do negro no Brasil! Isso é importante, no sentido de que a gente tem que rever a história do Brasil, Praieira, Cabanagem, Balaiada, tudo isso tem que ser recontado, e com a participação negra e indígena.

Salto – Você acredita que racismo, discriminação e preconceito também estão presentes dentro da escola? De que forma?
Maria Claudia – Todo dia. E, às vezes, de uma maneira muito simbólica. É claro que têm umas situações que são mais gritantes, outras que são situações mais simbólicas. Um exemplo: uma das escolas em que eu trabalho, no Dia Internacional da Mulher, fizeram um cartaz bonito sobre a questão da mulher. É uma escola de periferia, perto de algumas favelas daqui do Rio de Janeiro. A coordenadora pedagógica mostrou umas imagens muito bonitas, só que é assim, não tem uma mulher negra na imagem do cartaz que ela fez, não tem uma mulher com os fenótipos de uma nordestina, não tem uma mulher indígena... Então, que cartaz é esse? Essas coisas não são necessariamente uma forma de racismo, porque racismo seria essa ideologia da superioridade de uma raça e a valorização dessa raça em detrimento das outras. Não seria um racismo declarado. Mas a ideologia que está permeando a escolha do cartaz dela está fundada nisso. Não que a pessoa que fez o cartaz acredite nisso de pronto. Mas porque é o que está nas revistas que ela escolheu. Eu perguntei depois porque ela tinha feito aquilo, e ela disse: “eu não encontrei imagens de mulheres.” Na outra semana, passou um outro evento, ela fez outro cartaz, aí sim ela se preocupou com isso. Tem um estudo até de uma professora de São Paulo, da Elaine Cavalheiros, que é “Do silêncio do lar ao silêncio escolar.” Então o que acontece? A criança negra, ela é menos escolhida para apresentar trabalhinhos lá na frente, numa atividade escolar, do que uma criança branca. Na hora de andar de mão dada com a professora, a professora escolhe a criança branca. Mulheres que estão bem, que estudaram, mulheres que já têm uma reflexão dessa situação se voltam para o passado e identificam esse tipo de coisa. O fato de a professora, em conversas informais, tratar melhor um aluno com um fenótipo mais próximo do europeu e não tratar bem um aluno negro, um aluno que ela identifica como negro. Entendeu? O mais difícil é falar disso para o professor. Eu acho que é muito complicado você chegar, na sala de aula, e falar disso com um colega, você vê um colega ter uma atitude dessa e chegar para o colega e lhe falar que ele teve uma postura racista, que ele tem que mudar sua postura, porque isso influencia no rendimento dessa criança. Por que os índices de reprovação e de fracasso escolar são maiores nas crianças negras? Mesmo em crianças com a mesma classe social, você pega crianças negras de classe média que têm família estruturada, material didático bonitinho, tudo direitinho... Aí há estudos que comprovaram isso, que ainda assim, elas têm um rendimento abaixo da média das crianças brancas. O que que é isso? A única explicação é o cotidiano escolar, porque isso influencia. Uma outra coisa que eu acho que influencia também – claro que se for um professor consciente, reflexivo – seria a presença de mais professores negros na escola, o que hoje está aumentando. Porque a criança tem um exemplo. Isso é muito interessante. Também é claro que você tem que ser exemplo para os brancos, eu acho isso importante. Você vê os alunos negros se identificarem com você, verem você como uma pessoa bonita, que dá certo, isso é uma coisa importante. Por que o negro, ele se vê aonde? Na capa do Jornal O povo. Como é que ele se vê na capa do Jornal O povo? Como saem as reportagens sobre os negros no Brasil? Muitas vezes, na reportagem, o negro é mostrado como o excluído, nas rebeliões dos presídios, assaltos, etc. Ou como jogador de futebol, cantor de pagode. Por isso é que as ações afirmativas, eu acho que também vão mudar essa perspectiva, porque a criança vai ver um médico negro atendendo no posto de saúde, vai ver aumentar esse número, vai ver uma assistente social negra atendendo, uma fonoaudióloga, uma enfermeira, um diplomata.

Salto – Qual a importância da mídia nestes casos?

Maria Claudia - A mídia, eu acho que seria a principal frente, fora a educação, eu acho que uma das frentes mais importantes é a mídia. A gente vive numa sociedade que vive de imagem, a imagem é tudo no mundo moderno, nesse mundo pós-moderno até, e a mídia no Brasil ela tem funcionado como um grande entrave nessa mudança de perspectiva, para uma visão positiva, nesse imaginário da população negra no Brasil. Ainda hoje, nesse sentido, eu acho que isso prejudica tanto o negro quanto o branco. E a questão indígena também, você pega as reportagens sobre os indígenas, o que que você vê? São povos que ainda estão lá na floresta, vivendo de uma maneira muito rudimentar. É sempre colocado assim, você pega um Globo Repórter, mostra o índio vivendo da caça, da coleta e da pesca, coisas assim. E não é só isso. Está muito para além disso. Ou então, quando se coloca a população indígena ou os povos indígenas, os vemos encontrando a cultura da cidade, a cultura do branco e eles se promiscuindo, se corrompendo como nas últimas reportagens que passaram sobre a questão dos garimpeiros. Então, eu acho que essa mídia, ela seria uma das grandes frentes, mas eu acho que a mídia não está muito preocupada com isso. Eu acho que, em relação à população negra, que é uma coisa que eu me preocupo mais, a gente teria que produzir mídia. Eu acho que a TV Estatal, ela teria que investir mais nisso, em programas independentes, para que essa população pudesse se colocar. Nesse sentido, falar sobre cotas nos meios de comunicação é fundamental. Tem que ter a propaganda, tem que cobrar a presença do corpo negro ali, tem que ter a presença do indígena, a questão do oriental mesmo, você tem a população japonesa e chinesa no Brasil, são brasileiros também. Não são vistos. Eu tenho uma miopia de 6º grau e eu sempre troco de óculos. Quando eu vou comprar meus óculos, eu vejo sempre as propagandas das lojas de óculos. E como se os negros não comprassem óculos, os orientais não comprassem óculos, é um absurdo. Como você quer ver a estética daqueles óculos com uma cor mais diferente no seu corpo, como que fica a cor em você, você não pode fazer isso. Porque você não tem essa imagem. E isso é muito importante. E a gente pensa que não, mas tem um simbólico muito interessante. Tinha uma propaganda do Banco do Brasil há uns 2 anos, que era uma família de negros, acessando a internet. Então, era um casal de negros, mais duas crianças acessando a internet. Saiu nos jornais, os meus amigos comentavam: “Que propaganda linda, as pessoas estão bem naquela propaganda, estão bonitas...”. A gente pensa que não, mas são coisas simples, que as pessoas podem passar a se ver de uma maneira mais positiva. Só que eu acho que essa mídia que está aí não está interessada em fazer isso.

Salto - Por que você acredita que o conceito de Pluralidade Cultural ganha tanta importância em todo mundo hoje em dia?

Maria Claudia – Eu acho que é a questão do paradigma, mudou o paradigma. O paradigma do Ocidente como modelo que deu certo, do progresso. Esse era um paradigma. Eu acho que, a partir da 2ª Guerra Mundial, com toda a questão do nazismo, eu acho que foi uma coisa que marcou o mundo todo Não foi só o nazismo, foi o que ficou mais gritante. Mas tinha também a questão do Aphartheid na África do Sul, a questão do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos e as independências dos países africanos, que eram colônias dos países da Europa. Essas coisas todas aconteceram, basicamente, a partir da 2ª guerra Mundial. E a 2ª guerra Mundial foi uma grande lição para o mundo e para o Ocidente, principalmente. Primeira coisa, existia uma mentira que era essa hegemonização do mundo em cima de um padrão, que era a Europa. Por quê? Esse progresso, ele traz benefício, mas ele também traz vários malefícios. Um dos mais maléficos foram as bombas em Hiroshima e Nagasaki, a discriminação em massa dos judeus, que foi o mais gritante, mas o de outras populações também. Então, a partir desse momento, eu vejo e os estudos comprovam, é que a perspectiva do multiculturalismo e da pluralidade cultural, ela começa a tomar força. Porque se você repara, o que aconteceu era uma imposição da unidade pela força, era o Estado-nação com o aparato do exército, da força, ele fazia que os outros grupos se silenciassem. No máximo, o que acontecia é que você poderia se manifestar no campo dessas manifestações culturais que, no caso do Brasil, era o samba. O samba dos anos 20, dos anos 30, ele é considerado como algo marginal, de exclusão. Quando se quer trazer essa população, cooptar com esse Estado nacional, o que se faz? Tira isso do popular e traz como símbolo do Estado. E aí essa população se sente contemplada e, mais do isso, isso é absorvido pelo Estado-nação. As elites começam a praticar isso, que foi o que aconteceu. E o samba, se bobear, não é nem mais da cultura negra, é uma cultura nacional, é uma coisa que foi feita. Isso aconteceu até, eu acho, os anos 60, mais especificamente, o movimento dos direitos civis nos Estados Unidos. O movimento de mulheres, o movimento de mulheres tem uma grande questão para colocar: que mulher é diferente de homem. Isso não quer dizer que ela tenha que ser “desigual” ao homem, mas diferente ela é. Então, esses movimentos todos trouxeram esses temas para a discussão, para a academia, para a universidade. Esses outros lugares, que são lugares do diferente, mas não do desigual. Então hoje, eu entendo assim, que é impossível pensar o mundo sem essa questão do plural, porque se você pensa, você acaba criando um silenciamento que é pela força. Mas que, por baixo, está efervescendo todo um conjunto de questões que é próprio das culturas, que constroem conforme as suas realidades e suas maneiras de ver o mundo. Então, hoje, o Estado tem assumido isso como uma coisa que é dele, tem que contemplar a diversidade. Nesse sentido é que eu acho que as políticas para o pluralismo cultural devem, sim, ser realizadas.
http://www.redebrasil.tv.br/salto/

Nei Lopes

Na pluralidade do samba


Nome: Nei Lopes

Formação: Autor e intérprete de música popular. Pesquisador do samba e do choro, escritor, militante desde a juventude no movimento negro brasileiro.

Obra: Em seu legado para a cultura brasileira incluem-se as composições como Gostoso Veneno, Coisa da Antiga, Senhora Liberdade, Goiabada Cascão e Samba de Irajá. Atualmente, além do seu trabalho com o Samba, trabalha na elaboração da Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, sobre verbetes do universo do Samba e do Choro.


Olha, eu tenho todo um campo de reflexão sobre a participação do elemento africano e afro-descendente na cultura brasileira. Então, evidentemente, que eu teria que passar pelo samba, que é o segmento mais visível em termos da musicalidade brasileira, é o segmento mais visível dessa participação. Então, eu tenho estudado, ao longo dos anos, a questão do samba, a questão das escolas de samba. Só que, em relação às escolas de samba, como é um fenômeno, no meu entender, já absolutamente comprometido com a indústria cultural, já extrapolou os limites da criação popular, então, eu já abandono um pouco as minhas reflexões sobre a escola de samba. Prefiro me centrar hoje no samba enquanto gênero de música popular brasileira, enquanto matriz da grande música que se faz nesse país.


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Entrevista com Nei Lopes

Salto – Há quanto tempo você tem se dedicado à música, como cantor e compositor?

Nei Lopes – Olha, eu tenho uma carreira profissional iniciada em 1972, já se vão 32 anos. Então, eu acho que são três décadas dedicadas à cultura popular brasileira em duas vertentes: na vertente do compositor, de criador e na vertente de crítico, pessoa que procura refletir sobre a realidade da música brasileira. Vou falar sobre a primeira: refletir sobre a realidade da música brasileira. A primeira gravação minha como compositor profissional foi em 1972 e a primeira reflexão publicada foi em 1981, num livro em que eu, exatamente, procurava analisar questões envolvendo basicamente as escolas de samba do Rio de Janeiro e fazendo até um certo exercício de futurologia com relação às coisas que estão acontecendo hoje, isso em 1981. É uma caminhada.

Salto – E essas coisas estão acontecendo?

Nei Lopes – Estão acontecendo, a minha reflexão primeira foi em cima da questão das escolas de samba que sofreram uma transformação muito grande, a partir de meados da década de 70. E as transformações se refletiram, exatamente, num privilégio do espetáculo em detrimento do fazer cultural, propriamente dito. Quero dizer, a questão do mercado, a questão da indústria sobrepujou a questão da criação coletiva, no meu modesto julgamento. Isso em termos de escola de samba, que é uma coisa, o samba é outra coisa diferente, são duas instituições que, em certo momento histórico, se cruzam, mas são duas coisas diferentes e eu procuro enfatizar a diferença entre uma coisa e outra. Quando a escola de samba foi criada no Rio de Janeiro, a Instituição Escola de Samba, na década de 20, o samba já existia há muitas décadas antes. Muito antes.

Salto – Como tem sido pesquisar a origem do samba?

Nei Lopes – Olha, eu tenho todo um campo de reflexão sobre a participação do elemento africano e afro-descendente na cultura brasileira. Então, evidentemente, que eu teria que passar pelo samba, que é o segmento mais visível em termos da musicalidade brasileira, é o segmento mais visível dessa participação. Então, eu tenho estudado, ao longo dos anos, a questão do samba, a questão das escolas de samba. Só que, em relação às escolas de samba, como é um fenômeno, no meu entender, já absolutamente comprometido com a indústria cultural, já extrapolou os limites da criação popular, então, eu já abandono um pouco as minhas reflexões sobre a escola de samba. Prefiro me centrar hoje no samba enquanto gênero de música popular brasileira, enquanto matriz da grande música que se faz nesse país.

Salto – Essa pesquisa tem contribuído para o Nei Lopes artista, que canta, que compõe?

Nei Lopes – Esse trabalho, esse estudo tem me embasado no sentido de me fortalecer cada vez mais nas minhas convicções. Eu tenho uma percepção clara de que existe toda uma estratégia internacional hoje, da indústria cultural, no sentido de pasteurizar, no sentido de nivelar, no sentido de desnacionalizar a música em nível planetário. Criou-se um padrão musical que interessa ao mercado, esse padrão é imposto em todos os países, em todos os quadrantes do planeta Terra. Então, esse conhecimento, essa consciência me embasa para procurar fazer um samba, uma música popular brasileira que seja, cada vez mais, resistente a essa estratégia, e é isso que eu tenho feito ao longo dos anos. Quer dizer, há todo um contexto que é contrário a essa afirmação da nacionalidade, da música popular brasileira contra o qual eu me insurjo. E como é que eu me insurjo? Me insurjo fazendo uma música que procure ser, cada vez mais brasileira, cada vez mais peculiar e, cada vez mais múltipla, é isso que eu procuro fazer.

Salto – O senhor acredita que o samba ainda é visto de maneira preconceituosa?

Nei Lopes – Absolutamente, completamente preconceituosa. O samba é sempre associado, primeiro por suas origens negras, o samba é sempre associado à escravidão, associado à pobreza, é associado à favelização, associado à criminalidade, e essa é a grande estratégia que é usada pela indústria cultural globalizante, no sentido de colocar o samba numa condição subalterna sempre. E é também uma estratégia que compõe todo esse complexo de dominação e de colonização cultural. Uma das estratégias também é taxar o samba como uma coisa imóvel, como uma coisa velha, como uma coisa que não se renova. Eu escrevi um livro, há uns dois anos, chamado Samba b – a – ba, o samba que não se aprende na escola. Esse livro mereceu oito páginas de uma revista elegante, uma revista finíssima que é editada em São Paulo, editada, inclusive com muito patrocínio do Governo. Então, é uma revista muito bonita, de altíssimo nível, ela tem papel couchê, custa caríssimo nas bancas... Essa revista se ocupou do meu livro, num artigo altamente tendencioso, usou 8 páginas para falar do meu livro, acusando o livro de coisas: que o livro era passadista, era reacionário. O título da chamada de capa dessa crítica, veja bem, dizia assim: “Nei Lopes – O samba em formol”. Eu absolutamente não advogo que o samba tenha que ficar “museificado”, tenha que ficou imóvel, nada disso, eu sou uma das pessoas que mais propugnam pela visibilidade, pela diversidade, pela multiplicidade do samba. Agora mesmo, estamos aqui no estúdio, estou concluindo mais uma produção, mais um disco meu, um disco em que eu procuro evidenciar essa diversidade, por exemplo. É um disco de samba com algumas informações afro-cubanas, porque eu acho que os universos do samba são irmãos. São muito semelhantes, são duas coisas que se cruzam a todo momento, o que não acontece, por exemplo, com a música afro norte-americana, em relação à brasileira. Os negros americanos não usaram tambor, foram historicamente despossuídos do tambor pela colonização, pela evangelização dos protestantes. Enquanto que os negros da América-hispânica, da América portuguesa, como, nós, usaram sempre o tambor. Então, você pega a música de Cuba, a música de Porto Rico, a música da República Dominicana, a música do Haiti, até o próprio Prata, do Uruguai até a Argentina, há uma similitude entre essas músicas, porque elas têm origens comuns, a origem na grande civilização Banto, lá do Congo, Angola e adjacências, o que não ocorre com a música dos Estados Unidos. Então, você pega um samba e o associa com a música afro-hispânico, a música centro-americana, é absolutamente coerente, não é colonização, nem coisa nenhuma. Você está promovendo o encontro entre parentes que foram, de uma certa forma, dispersos pela escravidão e etc. e tal. Então, eu procuro no meu trabalho, sempre que posso, chamar o samba para essas associações e exatamente por isso. Para mostrar que o samba é plurifacetado, o samba é um gênero musical altamente rico, não é velho, porque ele se renova a cada momento, desde o primeiro samba, registrado como samba, que foi “Pelo telefone”, a gente observa que, a cada década, há uma renovação da expressão dessa pluralidade do samba, que também está vivo até hoje por causa disso. E, às vezes, até é meio difícil perceber essa diversidade, inclusive em sub-gêneros, que às vezes são mostrados como gênero, como por exemplo, a Bossa Nova, é um samba, é uma forma de fazer samba. O choro como forma instrumental de se tocar o samba, o chamado sambop, o samba jazz surgido aqui no Rio de Janeiro no contexto da Bossa Nova, o samba de piano, baixo e bateria. Aí está um dos poucos momentos em que a tradição norte-americana e a tradição brasileira se encontram. Mas se encontram por via do jazz primeiro, mas o jazz tocado com um acento de samba e por aí vai. Então, o samba é essa diversidade, inclusive essas formas mais modernas, supostamente mais modernas, que emanam da Bahia com muita sensualidade, com muita, o chamado samba-axé, ou samba de quebradeira, são tradições também bastante arcaicas do Recôncavo Bahiano, das quais indústria cultural se apropriou. Então, o que eu procuro fazer sempre, é mostrar essa diversidade, essa pluralidade e mostrar que o samba está vivo aí, não está velho e não está no formol.

Salto – Por que o senhor acredita que o conceito de pluralidade cultural ganha tanta importância no mundo hoje?

Nei Lopes – Eu acho que há uma dualidade de pensamento aí, eu acho que os intelectuais, os intelectuais “do bem” (risos), procuram enfatizar a questão da pluralidade e procuram valorizar essa questão. Ao passo que outras expressões intelectuais que não são tão “do bem” assim, que estão visando muito mais o capital, são expressão de um capitalismo bastante perverso, bastante massacrante, já não valorizam a pluralidade do jeito que a intelectualidade do bem valoriza. Porque não interessa... o mundo hoje é comandado por corporações, cada vez menos corporações. Digamos que hoje você tem conglomerados, uns 4 ou 5 conglomerados comandando a cultura no mundo inteiro. Então, evidente, que quanto mais se concentra o poder nas mãos desses conglomerados, menos a pluralidade interessa. Você tem, para dominar o mercado, você tem que ter um mercado homogêneo. Então, essa homogeneidade é contra todo tipo de pluralidade. Eu acho que quem valoriza a pluralidade somos nós, eu, você (apontando para a equipe do Salto), os espectadores aí que estão assistindo ao nosso programa, mas o grande, o Big Brother que manda nessa história toda, eu acho que ele não gosta de pluralidade não.

Salto – O senhor acredita que a música popular brasileira retrata a pluralidade cultural do país?

Nei Lopes – Olha, existem duas músicas populares brasileiras, dois escaninhos de música popular brasileira. Existe a música popular brasileira que é espontânea, de criação popular mesmo e essa você vai encontrar onde? Nas produções independentes, nos centros mais afastados. E existe outra música imposta por essa indústria de que nós estamos falando, cujos porta-vozes são os meios de comunicação atrelados a essa indústria. A gente teve, dias atrás, a entrega de um prêmio, que é supostamente o prêmio mais importante da música popular brasileira, em que não houve nenhuma premiação para o gênero samba, houve para o hip hop, para o universo pop, mas no entanto, numa estratégia, aquela coisa do álibi, numa espécie de álibi, o que os organizadores do prêmio fizeram? Pegaram o Jamelão, o nosso grande José Bispo Clementino dos Santos, nosso grande mangueirense, botaram lá e fizeram um grande final da premiação com Jamelão, mais a Escola de Samba da mangueira. É sempre assim! Efetivamente o samba não tem nada a ver, não participa do mercado, isso na visão deles, mas aí como álibi, para não dizer que são anti-samba, ou antinacionais, o que que fazem? Pegam alguém que representa alguma coisa do samba e bota num “gran finale”, num oba-oba e etc e tal. Quer dizer, então o que a gente vê é isso. Apesar disso tudo, existe hoje uma produção musical independente muito forte, no Brasil inteiro. Existe uma rede natural e espontânea de troca de informações, a internet inclusive veio facilitar muito isso. Os artistas do samba estão trabalhando e muito bem, eu inclusive, em todo país, sempre sendo prestigiado, sempre sendo chamados, independente de qualquer coisa, Evidentemente que ninguém do samba, pelo menos o que eu conheça, à exceção de uns dois ou três, que merecidamente está lá no pódio, à exceção de um ou dois que a indústria cultural admitiu. Nenhum sambista está andando de BMW, tendo jatinhos, etc e tal... Mas, pelo menos, os que estão trabalhando estão conseguindo, como trabalhadores, ter uma remuneração condizente dentro dos padrões nacionais. Isso é importante, nós somos trabalhadores da música, não somos? Ninguém nasceu para ser “superstar”, ser “popstar”. Então, a gente tendo a remuneração condigna, tendo a possibilidade de cuidar direitinho da saúde, tendo a possibilidade de aos 62 anos ter essa aparência bonita, modéstia à parte, então tudo bem, está tudo certo, está tudo legal.

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Osmar Favero

A história da alfabetização de adultos em questão


Nome: Osmar Favero

Formação: Professor titular da faculdade de educação da universidade federal fluminense, na área de política da educação.

Alguns livros publicados:
- Educação nas Constituintes Brasileiras: 1823 – 1998. Editora: autores associados;
- Democracia e construção do público no pensamento educacional brasileiro. Autor(es): (org.), (org.). Editora: vozes.

A primeira campanha oficial chama-se Campanha Nacional de Alfabetização de Adolescentes e Adultos. Não se usava a terminologia jovem, a terminologia jovem é muito recente, em geral, se falava de adolescentes e adultos. É preciso lembrar que, nesse período, o ensino obrigatório era até 10 anos, era só o ensino primário de 7 a 10 anos. Então, é normal que se fale em adolescente, que é de 10 anos para cima. Essa foi uma grande campanha organizada, coordenada pelo Lourenço Filho, ela vai de 1947 até meados dos anos 50. Ela nasce primeiro porque o Governo Federal arrecada verba no fundo do ensino primário e passa a encarar a alfabetização de adolescentes e adultos não atendidos na idade normal da escolarização, de 7 a 10 anos, passa a estender uma ação educativa.


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Entrevista com Osmar Favero

Salto – Professor, como tem sido a história, a trajetória da história da educação de jovens e adultos aqui no Brasil?

Osmar Favero – Pela história oficial, pelo menos há 50 anos se discute a questão do analfabetismo no Brasil. Desde os anos 20, dos anos 30, mas na verdade, só a partir de1946-1947 é que foi oficializada essa discussão, com a 1ª Campanha Nacional de Alfabetização de Adultos, pelo Ministério da Educação. Esse é um momento de pós-guerra, um momento de redemocratização do país, depois da queda do Getúlio, é um momento da criação da UNESCO. A UNESCO influi na criação desses movimentos no mundo inteiro. A primeira campanha oficial chama-se Campanha Nacional de Alfabetização de Adolescentes e Adultos. Não se usava a terminologia jovem, a terminologia jovem é muito recente, em geral, se falava de adolescentes e adultos. É preciso lembrar que, nesse período, o ensino obrigatório era até 10 anos, era só o ensino primário de 7 a 10 anos. Então, é normal que se fale em adolescente, que é de 10 anos para cima. Essa foi uma grande campanha organizada, coordenada pelo Lourenço Filho, ela vai de 1947 até meados dos anos 50. Ela nasce primeiro porque o Governo Federal arrecada verba no fundo do ensino primário e passa a encarar a alfabetização de adolescentes e adultos não atendidos na idade normal da escolarização, de 7 a 10 anos, passa a estender uma ação educativa. Não se propõe só uma restrição de alfabetização, o mote é a chamada educação de base. A educação de base, como é definida pela UNESCO, ela é uma reposição de todo o conteúdo da escola primária, até mais sofisticada que a nossa escola primária, porque é integralizada e pautada pela experiência dos países ricos desenvolvidos. Ela é proposta para adolescentes e para crianças que não foram escolarizados em idade normal, considerada normal, de 7 a 10 anos. Ela tem alfabetização como leitura, como escrita, iniciação ao cálculo. Ela tem higiene, moral e civismo, uma série de coisas. Claro, até um pouco de extensão agrícola, que está começando no período. A grande crítica que se faz é que ela se restringe à alfabetização. Ela até é acusada como fábrica de leitores, por conta de que, no período de democratização, você, na verdade, estava refazendo a base eleitoral. Essa crítica é um pouco injusta, pelo segundo motivo, ela estende a escolarização para além das grandes cidades, ela tem uma característica de uma penetração grande, não no meio rural ¾ que é hoje meio urbano como Santa Cruz, etc. As cidades periféricas de Salvador, de Pernambuco ¾ e ela entra pelos municípios, então, na verdade, ela é um esforço muito grande de expansão de educação para aqueles que não tiveram a escolarização, claro que muitas crianças de menos de 10 anos aparecem nessas classes. Ela tem esse lado, que mais ou menos propriamente, é chamado de ruralização. É muito mais um movimento de a escola chegar até os municípios, o que é importante em 1945, o índice de analfabetismo desse período era mais de 50%, na ordem de 60%. As grandes lições dessa campanha são: primeiro, que ela é uma forma de você entender a escolaridade obrigatória como ensino supletivo, quem cunha essa expressão de ensino supletivo é o Celso Beisiegel no 1º livro dele, que é muito bom, chama Estado e Educação Popular, já esgotado, mas é importante como referência. Ele vai dizer que nesse momento é que o Estado vai se antecipar à demanda da população. A outra lição dessa campanha, embora se critique que ela tenha restringido esse grande elenco de conteúdo educativo para alfabetização, a grande lição dela é que ela já mostra, no final dos anos 50, que só ação de alfabetização não resolve, tem que ter uma ação mais ampla junto às comunidades. Dentro dela, vai se gerar uma segunda campanha, um pouquinho mais tarde, no final dos anos 40, meados dos anos 50. Essa campanha é curiosa, pouco estudada, ela também está no Ministério de Saúde, no Ministério da Agricultura. Aí ela vai trabalhar diretamente a partir de saúde, a partir de higiene com as populações, vai conseguir formar quadros médios, técnicos... Chamava, na época, o Departamento Nacional da Crianças. Todo esse grupo que trabalha com a extinção da malária, controle de endemias rurais e tal, como tem o controle ao dengue hoje. Na verdade, você tinha quadros muito bem preparados. Essa campanha fica com Artur Rios, ela praticamente tem um cunho mais sociológico; o forte dela, volto a dizer, está no grupo de sanitaristas, grupo médico, e um pouco com a introdução de algumas técnicas rurais, falando em cooperativismo. Há muito poucos dados dessas campanhas, assim concretamente, de estatísticas. Agora se acredita, se descreve que, na verdade, ela alfabetizou pouca gente. Se a gente confiar um pouco em algumas coisas que são ditas, em dez anos não chegou a diminuir 18% do analfabetismo. Só que isso é difícil de comprovar, é das coisas que eu ainda estou procurando saber direito. Depois dessas campanhas, há um momento muito importante: Juscelino, no governo dele de 1955 a 1960, ele não endossa essas campanhas. Já está um pouco na fase de, digamos, “as campanhas já deram o que tinham que dar”. As campanhas todas são assim, elas nasceram muito fortes, têm momentos de boa realização e depois elas começam a entrar na rotina, a enfraquecer. O Juscelino convoca, em 1958, um grande Congresso de Educação de Adultos, aqui no Quitandinha. É engraçado que esse congresso, na verdade, vai falar muito mais de ensino primário do que de educação de adultos. Todos esses congressos se chamavam regionais, mas eram estaduais. Todos os estados traziam relatório dos congressos estaduais ou regionais e traziam teses para ser discutidas, o que é típico desse momento, teses que os professores apresentavam. Em 1958, aparece um relatório esplendoroso do grupo de Pernambuco, relatado por Paulo Freire, dizendo que o problema não era o analfabetismo e que alfabetizar não era a solução. O problema era a miséria do Nordeste. Ou se enfrentava a miséria do Nordeste, ou então alfabetização era a mesma coisa que tentar enxergar o fim do mar. Esse momento, é o momento de virada, porque você tem dentro da discussão de educação o fato de ela estar voltada para o desenvolvimento, aquele forte desenvolvimento do Juscelino, e está voltada muito para uma formação da consciência do povo brasileiro, particularmente da população mais pobre, de participar do esforço do desenvolvimento. Isso é bem estudado por Vanilda Paiva nos dois livros dela: o primeiro longo, História de Educação de Adultos desde a colônia, e particularmente no livro de Paulo Freire. É o nacionalismo desenvolvimentista, que ela vai pegar esse período Celso Beisiegel, que chama agora de Política de Educação Popular, que é seguramente o melhor livro que a gente tem sobre esse período. Celso é um sociólogo e vai fundo nessa mudança. Bom, o que acontece aí, há uma certa parada, o Ministério da Educação questionava um pouco o grupo mais ligado a Anísio Teixeira, a Roberto Moreira, questionava um pouco essa linha de alfabetização de massa. Eles criam uma Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo, que vai criar uma expressão muito curiosa que vale até hoje “secar as fontes do analfabetismo. Pegam um município importante, por ser um município de transição para cidade grande, como Leopoldina, no Pará. Pegam alguma cidade dessas, tentam reestruturar inteiramente o sistema de ensino elementar, hoje de ensino fundamental, totalmente. Pegar as crianças, efetivamente de 7 a 10 anos, e botar na escola regular, as crianças adolescentes, até 14 anos, botar numa classe de emergência, os adultos numa classe noturna, para isso eles vão fazer construção escolar, treinamento de professores, material didático todo novo. Essa campanha ficou nisso praticamente, na experiência de Leopoldina, que está muito bem relatada pelo João Alberto Moreira, e algumas expressões nessas outras cidades: Feira de Santana, Santarém e uma outra cidade em Pernambuco, que eu não me lembro o nome. Fica por aí, essa é a grande fase das propostas do Estado através do Ministério da Educação. No momento da 2ª campanha, também com o Ministério da Agricultura e o Ministério da Saúde, é a grande intervenção do Estado nesse período dos anos 50.

Aí, há um corte pela LDB de 1961, pela primeira Lei de Diretrizes e Bases, de 1961, e pelo Plano Nacional de Educação, que vem em seguida, na época em que o Darcy Ribeiro estava na Chefia da Casa Civil e, depois, no Ministério da Educação. Começa-se a transferir para os estados e para os municípios algumas responsabilidades de educação, basicamente da educação fundamental, basicamente do ensino fundamental.

Começam algumas experiências dentro de prefeituras, particularmente da Prefeitura de Recife, com Miguel Arraes, depois com a Prefeitura de Natal, com Djalma Maranhão. A União Nacional dos Estudantes — UNE, que era muito forte naquele momento, e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, ambas também vão participar com propostas novas de alfabetização.

Esse é um período absolutamente diferente em termos de experiência, em termos de produção, em termos de perspectiva, e aí é que vai aparecer Paulo Freire, com o Sistema de Alfabetização de Adultos, que ele começa fazer em Recife, no MCP de Recife. Depois ele sistematiza, vai aplicar em Angicos, em convênio com o Estado do Rio Grande do Norte e com financiamento da Aliança para o Progresso no Brasil.

Salto– O que diferencia essa proposta de Paulo Freire das campanhas anteriores, que eram mais responsabilidades do Ministério da Educação?

Osmar Favero – Deixa eu dizer logo, Paulo Freire vai emergir de um conjunto de propostas. A grande virtude dele é ser o que melhor sistematizou e melhor fundamentou essas propostas. Se você pega até 1966, o sistema Paulo Freire é um dos sistemas, é uma das experiências, mas ele torna melhor as experiências, primeiro porque ele sistematiza um processo novo de alfabetização, de 1963 – 1964, que durou só alguns meses, porque o golpe militar cortou. Mas as campanhas são qualitativamente diferentes, elas não entram pela educação pura, elas entram pela cultura, entram pela cultura popular, isso se dá totalmente diferente. Você vai partir do que o povo conhece, do que ele sabe e vai tentar fazer um instrumental de alfabetização, que na verdade é mais do que isso, é um instrumental de educação popular que vai mexer com a cabeça das pessoas. Você vai fazer uma ação educativa que tem um movimento que parte da cultura, de como homens e mulheres vivem, na cidade e no campo, como é eles vêem essa realidade, como você pode criticar essa realidade para instrumentalizá-la para uma mudança de base estrutural no país.

Esse é um grande movimento do começo dos anos 60. Hoje, a gente fala que foi um pouco ingênuo, entende, mas na verdade nós nos jogamos de corpo e alma nisso. Quais são esses movimentos? O primeiro deles, eu já disse, é o de Recife, chama-se Movimento de Cultura Popular, quando Arraes assume a prefeitura. É curioso porque se fala muito no Movimento de Cultura Popular (MCP), hoje, como Movimento de Cultura só, mas ele tem uma base de movimento de educação muito forte, na educação dos jovens e adultos. Forte porque Recife está inchando, nesse período, com a população migrante, e você tem muita criança sem escola na periferia. Então a Secretaria de Educação propõe uma ampliação das escolas. Essas escolas são feitas com a própria Secretaria de Educação, “retreinada” com uma nova perspectiva.

Não tem escola, não tem problema, faz-se escola em salão paroquial, em clube, em Rotary da vida. Os bancos escolares são feitos, a Prefeitura dá a madeira, mas a Secretaria de Educação garante uma perspectiva nova e diferente de educação para as crianças. A grande pessoa disso, hoje com 80 e tantos anos, mas que não conseguiu escrever essa história, chama-se Anita Paes Barreto, uma das pessoas assim que merecem um quadro na parede. Isso se expande também para o lado de educação de jovens e adultos, com uma das unidades do movimento de cultura popular. E vai ter aí a grande saída que é, pela primeira vez, fazer um material didático diferente para jovens e adultos. E volto a isso daqui a pouco. Claro que o MCP tem também um lado de cultura, um lado de cultura popular, do folclore, ele mexe com a cidade de Recife toda, Recife é rica em artesanato, em festas populares. Essas festas populares são trazidas para o teatro popular, que é muito rico. Paulo Freire, nesse período, trabalha numa divisão de pesquisa com Paulo Rosas e Abelardo da Hora e já está começando a ensaiar um método de alfabetização que parta da realidade dos iletrados. A gente demorou muito para acreditar que Paulo não fez isso sozinho, desculpe a intimidade de tratá-lo de Paulo, mas fui contemporâneo dele. A Elza, primeira mulher dele, ela era uma boa professora alfabetizadora numa classe experimental. Naquele período era normal ter as classes experimentais, no sistema de ensino em que se Elza tentava sair do método “a – e – i – o – u” para o método da palavração, da sentenciação. E Paulo trabalhava no SENAI, pegando pequenos textos tirados do jornal sobre salário, sobre condições de trabalho, condições de saúde, com os operários semialfabetizados no SESI, ele era diretor do SESI. Primeira notícia que eu tenho de Paulo Freire, deve ter sido 1961, ele era um professor curioso, ele usava o epidiascópio, um aparelho enorme, hoje a gente tem o retroprojetor, mas tem também e epidiascópio, que você põe o texto debaixo, num jogo de espelhos, e projeta na parede e discute as condições de vida dos operários e tal, faz um processo educativo diferente. Ele traz isso para o processo de alfabetização, dentro do MCP.

Salto– Como é que tem sido a sua participação nos movimentos de alfabetização popular?

Osmar Favero – Eu estava falando dessa segunda fase dos movimentos de educação popular. Nesse período se cunha a expressão educação popular, no começo dos anos 60. Eu tinha falado do MCP, tinha falado do Paulo Freire no MCP, queria falar dos outros movimentos que aparecem. Normalmente ponho, nesse período, quatro movimentos o MCP, que vai puxar “De pé no chão também se aprende a ler”, com Moacyr de Góes (secretário de Educação em Natal) e com Djalma Marinho (prefeito); tem outros MCPs, em Belo Horizonte, umas coisas assim.... O segundo movimento matriz muito forte, é o movimento de Cultura Popular da UNE, chamado CPC – Centro de Cultura Popular da UNE, que se expande pelo Brasil todo, que não é um movimento de alfabetização, é um movimento de cultura e de cultura popular, sobretudo através de expressões artísticas. O grande trunfo do CPC é se apropriar de algumas linguagens populares, por exemplo o teatro, trabalhar isso para a formação de consciência, num conceito de cultura bastante diferente do que o Paulo Freire usa, de raiz marxista. A grande experiência do CPC é o teatro de onde vão surgir depois o Vianinha, Paulo Pontes, o cinema novo do Leon, do Eduardo Coutinho, toda essa turma, estão todos eles por aí. Mais tarde, ele vai ter uma expressão que será a raiz do Plano Nacional de Alfabetização.

O terceiro foi o Movimento de Educação de Base, no qual eu trabalhei. O Movimento de Educação de Base é curioso. Esse eu preciso me deter um pouquinho nele, porque ele vai dar em uma outra vertente. A igreja sempre foi aliada, parceira e aliada do Estado em várias ações, mesmo depois que ela deixa de ser religião oficial, depois da República, quando houve separação da Igreja e do Estado. A Igreja continua sendo uma boa aliada, a Igreja é muito sensível, nesse começo dos anos 60, ao problema da... não vou dizer da reforma agrária, por causa da construção de Brasília. Os bispos vêem o pessoal sair do Nordeste para construir Brasília e não voltar, desfazer família e tal e ficam preocupados com isso, numa perspectiva correta. E são sobretudo medrosos com a invasão, que eles chamam invasão, não é tão forte assim, mas com a presença do comunismo no campo, particularmente do PC, do “pecezão”, que está montando uma base que vai ser depois uma base muito forte para os sindicatos rurais. Um dos bispos mais atuantes junto à Conferência dos Bispos é Dom Helder Câmara. E Dom Távora, que é amigo, colega, eles trabalham muito juntos, em Aracaju, propõem retomar uma experiência do Ministério da Educação chamada SIRENA – Sistema Rádio Educativa Nacional, que tinha começado na Leopoldina, naquela experiência de erradicação do analfabetismo, também já em convênio com emissora católica. A Igreja está interessada nesse movimento, além do programa rural, além do medo do comunismo e aí é o rádio, não é televisão por enquanto, é rádio, nos anos 50, as suas emissoras e esse convênio, era simultaneamente um reforço para montar as emissoras católicas no Brasil inteiro, e a grande proposta é fazer uma ação de educação de base. Não se fala de alfabetização embora se reduza aí, no primeiro momento, alfabetização e catequese, com 15 mil escolas radiofônicas para o Brasil inteiro, o que depois se reduz ao Nordeste. E é feito um grande convênio. Eu estava acabando de me formar, entro para ser um dos coordenadores desse movimento, isso em comecinho de 1961, março de 1961. Assinaram o convênio, eu já estava dentro do movimento. A minha grande experiência é no movimento de educação de base dentro dessa proposta da Igreja. Na verdade, essa proposta vai retomar a perspectiva dos anos 50, ela é outra vez educação de base é outra vez escola radiofônica, claro que a escola radiofônica do MEC é muito engraçada, ela se faz com uns discos daqueles de acetado enormes, gravados em 12 polegadas, com o melhor das vozes “brodcasting” da Rádio Nacional daquele tempo. Mas não chegava, não era inteligível, para a população rural, porque eram médicos dando aula sobre micróbios, aquelas coisas todas. O material didático era muito pobre, era o material ainda da época dos anos 50, feito na campanha de educação de adultos e adolescentes e a SIRENE acaba é fazendo uma cartilha, chamada Rádio Cartilha, que na verdade é uma piada. É a cartilha mais bonita que a gente tem, colorida, mas ridícula, porque usa o “a – e – i – o – u”. O a de ave o e de ema o u de uva e tal. E tem umas lições que vão só pela fonética, que não tem nada a ver nem com a lógica e nada de educação de adultos, era uma total alienação. Claro que isso é usado pelo projeto no começo, tanto o material pobre dos anos 50 quanto esse material, do começo dos anos 60, mas é rejeitado. Então, esse processo de revisão do primeiro ano do movimento vai dar uma guinada de 180º e vai mudar — no final de 1962 para 1963, o MEB se redefine como Movimento de Educação de Base, na linha da Educação Popular. Aí se aproxima de Paulo Freire, assume a categoria de formação de consciência como conscientização, aí há um movimento que é mais ou menos simultâneo a todos os movimentos, de chegar num modo de tratar politicamente a questão da alfabetização e tratar como um instrumental para você entender a realidade, repito, mudar a realidade. Aí foi que apareceu o Paulo Freire, é muito importante. Paulo Freire conseguiu, em primeiro lugar, praticamente sistematizar, eu não falo criar não, porque o método existia, existia já nas escolas primárias, sistematizar o método de alfabetização para adultos em que ele parte da realidade do adulto. Como é que ele faz isso? Num primeiro lugar, com as famosas fichas de cultura, ele sistematiza dez situações de aprendizagem, como a gente fala tecnicamente, em que vai mostrar o homem como criador de cultura, a partir de um conceito antropológico de cultura, tudo que existe na natureza é cultura. É cultura, mas o homem modifica isso e faz cultura. Então, você fazer sapato tem o mesmo valor de fazer um livro. Essa fichas são fenomenais. Carlos Brandão, que é um dos grandes autores que a gente tem aí, trabalhou conosco no MEB, desse período, e disse: — Olha se o Paulo só tivesse inventado essas “fichas de cultura” já teria inventado o ovo de Colombo, que na verdade elas são fabulosas. E ele começa pelo processo de alfabetização. Logo em seguida dessa discussão das fichas, que coloca o jovem, o adulto, o adolescente, também, numa posição de querer ser alfabetizado. Começa com as chamadas palavras geradoras. Pega palavras, faz um levantamento do universo vocabular, basicamente um levantamento das frases que a população fala, escolhe dentro disso quinze, dezesseis, acaba ficando em dezesseis palavras, que são palavras fortes do tipo “tijolo”, porque puxa toda a questão da moradia, da construção da casa, salário... Ou bicicleta, se é um meio de transporte. Faz um conjunto de dezesseis palavras que geram um sistema de alfabetização. A partir da palavra geradora, você constrói outras palavras, a partir da palavra você forma frases, num processo não escolar. É um processo de um círculo de cultura, onde você não tem um professor, tem um animador. Essa é a grande virtude do Paulo, conseguir criar esse método, que se espalha para todos os movimentos, nesse período se espalha para todos os movimentos. Quer dizer, mesmo que não se use, por exemplo, na escola radiofônica esse processo dele ¾ não deu tempo de se adaptar isso para escola radiofônica ¾ ele é usado em todos os treinamentos. A grande massa de manobra desses movimentos era o grupo estudantil, universitário, na geração da experiência, na coordenação, e estudantes secundaristas na execução dessa experiência, junto com universitários. O Brasil, inteiro, isso é um “rastilho” de pólvora, Brasil inteiro faz isso. O Ministro da Educação era Paulo de Tarso, que convida Paulo Freire. Não sei se vocês sabem, esse sistema um Plano Nacional de Alfabetização, a partir desse sistema, ficou famoso por conta de algumas reportagens de Antonio Cândido, Antonio Cândido era articulista do Jornal do Brasil, fazia reportagens nesse período. Ele foi a Angicos e fez uma reportagem de página inteira no Caderno B do Jornal do Brasil, dizendo “em Angicos se alfabetiza em 48 horas”. Isso aí pegou. Isso pegou, pegou foi um negócio assim que explodiu no Brasil inteiro. A militância estudantil era um negócio assim esplendoroso, não precisava dizer “fecha a escola para alfabetizar não, fazia a escola e fazia a alfabetização direto, com o jeito que podia. Tudo cidade, só o MEB entrava na zona rural, esses outros movimentos entravam próximo da zona rural. Angicos hoje é relativamente perto, naquele tempo eram 2 ou 3 horas na área rural; era longe, mas era um rural de passagem para Natal. O MEB vai muito longe, o MEB vai pros confins.

Salto – O senhor teria outra campanha para destacar além dessas?

Osmar Favero – Nesse final de 1962, 1963, o Ministério de Educação propõe também uma articulação nos movimentos de cultura popular, onde a alfabetização estava dentro. Então, são dois movimentos. Nessa articulação, que é feita em nível de Ministério, onde estão algumas pessoas muito importantes, a coordenação fica na mão do Betinho, que todo mundo conhece, do Ferreira Gullar que também todo mundo conhece, um dos maiores poetas nossos vivos, e do Luiz Alberto Gomes de Souza, uma pessoa importante que hoje está trabalhando ainda, ligada à Igreja Católica no CERES – Centro de Investigação Sociológica da Igreja, e que é um dos melhores intelectuais católicos que a gente tem, então, na verdade, a gente se junta nessas campanhas e trabalha junto, troca junto, troca bastante. A fase famosa da Frente Única de Católicos e comunistas e tal, a gente vai pagar caro por isso depois em 1964, mas o mais importante aí eu acho que é a síntese que o Paulo Freire faz. Eu tinha deixado para dizer para você de onde vem a campanha da UNE. Embora nessas campanhas, quase todas do MCP, do MEB, no próprio Paulo Freire, a liderança seja quase da juventude católica ou cristã, mais ampla, que tem protestantes também, a CPC está muito mais hegemoneizada pelo pessoal marxista, não obrigatoriamente comunista, do Partido Comunista, mas marxista. Na verdade, a UNE lança uma campanha de alfabetização, que não tem muita expressão, mas que vai ser a base estratégica para o Plano Nacional de Alfabetização do Paulo Freire. Ela seria para alfabetizar, se eu não me engano, 5 milhões de pessoas, qualquer coisa assim, em 1 ano, 2 anos e tal através do método. O curioso é que o método era audiovisual, o material didático era audiovisual, o material didático era criado de acordo com as necessidades dos grupos que você alfabetizava. A única experiência que existe é no Estado do Rio, o estado do Rio de Janeiro antigo, de Niterói para lá, o treinamento era no Caio Martins e na Baixada Fluminense. Na Guanabara não, porque era Lacerda, que não permita de jeito nenhum fazer isso aqui, embora Ministério da Educação fosse aqui, e a articulação fosse toda feita no Ministério da Educação. Essa é uma história específica do Plano Nacional de Alfabetização. E depois tudo é rompido, nos primeiros dias de abril, e se perde tudo, se perde tudo. Mesmo material didático, mesmo os projetores. Paulo Freire tinha encontrado uns projetores poloneses pequenininhos, que custavam 2 dólares, que podia usar com pilha, com bateria de carro e tal, porque no interior você não tinha eletricidade. Tudo isso some, se perde a experiência, se perde a coordenação. Eu tenho trabalhado muitos anos para tentar recuperar essa história toda. O que que vai ser importante, como lições desse 50 anos? Você me perguntou sobre o MOBRAL, desculpe, deixa eu falar um pouco rapidinho sobre o MOBRAL. Depois de 1964, vai aparecer, com proteção do Estado, mas sobretudo com dinheiro dos americanos, da Aliança para o Progresso, a Cruzada ABC no Nordeste, ela volta aos anos 50, o material didático que ela vai usar ainda é o mesmo material da primeira campanha. Ela vai ser muito forte na Paraíba e vai ser definir contra o método Paulo Freire e contra os outros movimentos que vinham na linha do próprio MEB, do Paulo Freire. Nesse período, você tem algum remanescente de algum trabalho de MEB até 1966, forte ainda, já saindo um pouco da escola radiofônica para pegar um contato direto com as comunidades, chamava Animação Popular. Você ainda tem uma experiência na Paraíba de Escola Radiofônica, da SIRENA antiga, um pouco renovada, com material didático próprio, mas a cruzada ABC invade e praticamente essas coisas vão ficando residuais. E ela reina durante uns 2 ou 3 anos com muito dinheiro, mais muito dinheiro da Aliança para o Progresso. O grande chamariz dela não é alfabetização, é a distribuição de alimentos. Ela segura os alfabetizados porque distribui arroz, feijão, leite, óleo, umas coisas assim que vem daquelas doações dos americanos. Na verdade, eles fazem isso porque descarrega para a América Latina todo o excesso de produção, para garantir os preços no mercado interno deles. O Nordeste, nesse período, era tudo feito pelos americanos, como se fosse para evitar a possibilidade de uma outra Cuba, no Brasil. Lembre-se de que a Revolução Cubana foi em 1959, então havia esse medo. O MOBRAL nasce no final dos anos 60, um pouco como uma instância articuladora dos movimentos existentes. Na verdade, praticamente existem resíduos e existe a Cruzada ABC, ele sufoca a Cruzada ABC e dá uma entrada muito grande, a partir de 1970 como um grande movimento do Estado, não mais no Ministério da Educação. Aí, vai se fazer como uma fundação com o Simonsen na presidência, o Arlindo Correa na secretaria, com muito dinheiro, porque ela tem a possibilidade de 1% de desconto do Imposto de Renda das empresas para aplicar como desconto. Então, vai ser o maior movimento, ou se você quiser, a maior campanha de alfabetização que a gente vai ter durante todos os anos 70. No final dos anos 80, a campanha tenta sistematizar o MOBRAL infantil, que era praticamente estender a escolarização para as crianças de até 10 anos, no lugar do Ministério da Educação. Isso cria uma enorme crise, e a partir de 80 o MOBRAL vai se esvaziando. Em 1985/1986, com o Collor ele .... não antes do Collor, antes do Collor, eu acho que ainda no período do Sarney, ele é fechado vira Fundação Educar. A Fundação Educar só apóia transferência de verbas de governo, verbas para os municípios, apóia poucos municípios e é extinta no Collor. O MOBRAL é uma história específica, a gente teria que parar um pouco nela, eu acho que a gente vai ter que voltar a isso mais tarde Depois, eu quero tirar as lições que a gente pode tirar desse período.

Salto– Dentre essas campanhas que o senhor citou, a gente pode enumerar uma ou mais que tenham sido as maiores campanhas já realizadas no Brasil e as mais bem-sucedidas?

Osmar Favero – A maior, certamente, o MOBRAL, a maior e não sei, aí depende de a gente usar outros critérios. Aí, eu volto ao que eu estava dizendo no começo. A campanha dos anos 50, a Campanha de Educação de Adultos e Adolescentes, no período, a gente pode dizer que ela teve sucesso. Eu já destaquei a extensão da escolarização, vindo das capitais para o meio rural. O MOBRAL foi uma grande campanha de adequação, nos anos 70, da mão-de- obra que estava vindo para a cidade, particularmente para a construção civil. Ela é poderosa, porque ela entrou em quase todos os municípios do Brasil, entrou com muito dinheiro, ela criou muito material de alfabetização, a meu ver pobre, ficou na mão das editoras praticamente a Abril, a Bloch, fizeram uma transposição da pedagogia de criança para adulto. Não criou nada de novo, mas criou MOBRAL cultural, que foi bem menor, coisas muito interessantes. Por exemplo, tinha livros de história em quadrinhos da Bíblia, tinha livros de receitas usando chás e remédios populares e tal, que eram material de pós-alfabetização que a gente não chegou a fazer muito no Brasil, é uma das coisas que valeria a pena discutir com cuidado. Certamente o MOBRAL, a mais rica a mais ampla. Agora Vanilda Paiva, que se dedicou a estudar seriamente o MOBRAL, imediatamente antes da extinção dele, consegue provar que ele só conseguiu diminuir 7% da taxa de analfabetismo no Brasil, durante 10 anos de atuação maciça e massiva, se você quer usar um termo que é mais dos espanhóis. Que é mais ou menos o que a campanha também deve ter conseguido: de 7% a 10%. O MOBRAL fala em 12%. O MOBRAL teria dito que teria reduzido o índice de analfabetismo, da ordem de 30 a 40%, para até 10 ou 12%.

Na verdade, não é bem assim, a coisa é meio complicada, provavelmente na alfabetização de jovens e adultos, não alcançou mais que 7%. E essa é uma das críticas que a gente faz a campanha hoje.

Este analfabetismo não é o problema principal e alfabetizar não vai ser a solução. Quer dizer, ou se enfrenta o problema da miséria, o problema da renda, o problema do emprego ou então analfabetismo é analfabetismo a vida inteira.

Salto – Essa visão do Paulo Freire pode servir para explicar porque, mesmo depois de tantas campanhas, ou tantos movimentos, o país ainda tem índices tão grandes de analfabetismo?

Osmar Favero – Pode, claro que pode, porque a proposta do Paulo Freire é basicamente uma proposta de mudança da realidade, de mudança da estrutura social. Se você mantém estrutura social de exploração, se radicaliza essa exploração, como está acontecendo agora na fase neoliberal de 90 para cá, você vai ter a escola ruim, você tem analfabetos jovens e adultos, porque a escola não atendeu, ou porque não existia escola, ou porque quem vai à escola não se alfabetiza. Então, muita gente que é da escola rural, por exemplo, hoje é até pior, passa 8 anos na escola e sai sem saber ler. Isso é o Ministério que está dizendo nas pesquisas, a UNESCO está dizendo, então esse é que é o problema, quer dizer, só tem sentido a alfabetização de adultos como conseqüência de uma não escolarização ou de uma escolarização malfeita. É em cima disso que Paulo Freire foi. Claro que o governo está fazendo um movimento que é, até certo ponto bom, de botar todas as crianças na escola, mas em que escola ele está colocando? Há a tal defasagem da série-idade, inventaram a promoção automática e as crianças não estão aprendendo a ler. Então, você põe para fora da escola criança que não sabe ler.

Salto– Essa escola ainda está produzindo analfabetos...

Osmar – É, está produzindo analfabetos. Aí entra um conceito que está posto desde os anos 40, mas foi muito, muito badalado nos anos 60, que é a tal da alfabetização funcional. Alfabetização não é uma mera técnica de você saber ler algumas palavras e assinar o seu nome para ter um título de eleitor, “ferrar” o nome, como Paulo Freire dizia, basicamente é isso, “ferrar nome”, você substitui o polegar de tinta por uma cópia. O analfabeto funcional, ele lê coisas, entende essas coisas, traz essas coisas para sua vida, é um instrumental que permite viver numa sociedade que é letrada. Por isso ele é muito mais um iletrado do que um analfabeto. Ele sabe coisas, ele sabe identificar o veneno do remédio, linhas de ônibus. São leituras parciais, você não pode dizer que ele seja letrado, mas ele não é totalmente analfabeto. Você tem que trabalhar a partir daí para o letramento, que é uma grande perspectiva de agora. Então, na verdade, não adianta você dizer que a maioria da população hoje é analfabeta funcional, claro a escola formou analfabetos funcionais, é isso que a escola está fazendo, a escola pobre está fazendo isso, analfabetos funcionais. E aí precisaria um outro tipo de ação, você vai dizer não se alfabetiza em 4 meses, não se alfabetiza nem em 6 meses. Você tem que alfabetizar em 4 anos, essa é a primeira grande lição das campanhas: o analfabeto é produzido pela omissão da escola, pela escola ruim. A segunda lição é que não se alfabetiza em meses. Nenhuma das campanhas conseguiu alfabetizar em meses. Uma ação escolar deve ser ação muito mais profunda, uma ação de transformação da realidade. Se você alfabetiza a pessoa e ela não usa o que ela aprendeu lendo e aplicando no seu trabalho, aplicando no seu emprego, o que ela aprendeu em 4 meses, ela vai perder em 2 meses, sem dúvida nenhuma, essa é a grande crítica que a gente faz. Outra coisa: a gente perdeu a grande chance de fazer um material didático novo para jovens e adultos com o golpe de 64. A gente tinha entrado num modo de trabalhar o adulto com material novo, muito interessante, com livros de leitura, com um processo audiovisual do Paulo Freire. O MOBRAL retoma isso perifericamente, nos exemplos que eu dei. Claro que na cartilha do MCP, as primeiras lições eram sobre povo, voto, pão. O MEB fez um livro de leitura para o pós-alfabetizado, lindíssimo, chamado Viver a luta, que foi apreendido pela polícia do Lacerda, que nunca mais se retomou. Voltou-se às cartilhas feitas por professores primários, voltou-se às cartilhas paupérrimas, da Cruzada ABC pro Nordeste, nos anos 60. A gente perdeu isso e eu não vejo capacidade de hoje, a não ser nas universidades, de a gente produzir esse material. Universidade ou algumas ONGs que têm material interessante, um almanaque, que é uma das coisas que se usa. Nos anos 60 a gente produzira cartilha de cordel, textos de cordel para adulto, discutindo cooperativismo, sindicalismo, direitos da legislação trabalhista, isso aí foi tudo perdido. Devia ser recuperado. Não acho que se deva recuperar pegando romances tradicionais, por melhores que eles sejam, reduzindo para o analfabeto ler.

(Entrevista concedida em 18 de julho 2003)
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Maria Tereza Esteban

A dimensão reflexiva da avaliação


Nome: Maria Tereza Esteban

Formação: Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense e participante do Grupo de Pesquisa Alfabetização dos Alunos das Classes Populares.

Alguns livros publicados:
- ESTEBAN, M.T. (org.). Avaliação: uma prática em busca de novos sentidos. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
“No meu ponto de vista, o principal movimento da avaliação da escola, como um todo, deveria ser estabelecer práticas dialógicas por meio das quais as diversas esferas escolares pudessem estar dialogando entre elas e dentro delas, e que essa prática dialógica se torne uma prática que vá alimentando a reflexão sobre o processo educacional que se realiza ali, naquele espaço”.


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Entrevista com Maria Tereza Esteban

Salto – Qual é a relação entre avaliação e educação?

Maria Teresa – A avaliação é um dos processos fundamentais de todo o processo educativo, então, se nós considerarmos, mesmo nas práticas cotidianas, de educação informal, nós vamos ter um conjunto de procedimentos de avaliação dessas práticas, desses processos, dos seus efeitos.

Nas práticas mais formais, também, a avaliação vai acompanhando e vai produzindo alguns procedimentos, alguns instrumentos, alguns processos mais formais, sempre no sentido de estar acompanhando o processo educativo e poder verificar os seus efeitos, sobretudo nos educandos e no processo educativo como um todo. Assim a avaliação é, pelo menos do meu ponto de vista, um dos eixos centrais da educação, porque através dela é que a gente pode ir equilibrando esse processo, tendo algumas contribuições durante o próprio processo e não apenas após o seu efeito já estabelecido, já visualizado, enfim, a gente pode ir regulando as nossas próprias práticas.

Salto – Quais são os diferentes tipos de avaliação e os seus significados na escola?

Maria Teresa – Parece-me que na nossa escola nós temos, fundamentalmente, uma avaliação classificatória, que vai se realizar através de instrumentos diversos e de procedimentos diferenciados, muitas vezes em modalidades diferentes, mas que têm como eixo fundamental a produção de uma hierarquia dos estudantes, a partir de determinados padrões previamente estabelecidos. Então, essa avaliação, ela vai estar muito articulada a uma pedagogia, que alguns chamam da “pedagogia do exame”, em que todos os procedimentos pedagógicos vão estar atravessados por práticas que visam ao controle e à classificação. Dessa forma, nós vamos ter uma avaliação que, a partir de um padrão predefinido, vai criando mecanismos de verificação do ponto em que cada estudante ou que cada grupo e cada setor se encontram, de acordo com aquele padrão que é tomado como referência. Quais os efeitos disso para o processo educacional? É que nós vamos criando todo um conjunto de procedimentos, não só de avaliação, mas todo um conjunto de procedimentos pedagógicos que vão estar alimentando essa idéia da hierarquia — e que estão também sendo alimentados por essa hierarquia — e aí nós vamos estabelecendo algumas pautas que são, por princípio, excludentes. Então, parece-me que a avaliação classificatória vai estar bastante vinculada aos processos de produção da exclusão escolar, como parte dos processos de exclusão social.

Salto – Como é possível avaliar a escola como um todo?

Maria Teresa – Acho que é fundamental que se coloque a escola, como um todo, num processo dialógico. É claro que as práticas classificatórias, elas muitas vezes propõem a avaliação da escola como um todo. As práticas classificatórias não se limitam à classificação dos estudantes, elas são práticas que têm modalidades diferenciadas que vão atingindo essa instituição na sua totalidade. Há formas classificatórias de se avaliar a escola como um todo mas, no meu ponto de vista, o principal movimento da avaliação da escola, como um todo, deveria ser estabelecer práticas dialógicas por meio das quais as diversas esferas escolares pudessem estar dialogando entre elas e dentro delas, e que essa prática dialógica se torne uma prática que vá alimentando a reflexão sobre o processo educacional que se realiza ali, naquele espaço. Nós podemos ir criando mecanismos cotidianos e mecanismos mais pontuais que possam favorecer esse movimento de reflexão sobre o trabalho que nós estamos realizando, porque aí nós só podemos fazer essa reflexão considerando todos os sujeitos que estão envolvidos nesse processo, considerando as condições de trabalho, as circunstâncias em que esse trabalho é realizado. Enfim, nós vamos abrindo um pouco mais esse leque e podendo perceber o conjunto de relações que vai sendo constituído nessa prática pedagógica e também que formas nós temos para favorecer esse trabalho pedagógico, criando mecanismos para potencializar o que esse processo tem de melhor e para poder estar solucionando os seus problemas.

Salto – Como é que é possível construir uma avaliação que ultrapasse os limites técnicos?

Maria Teresa - Essa questão da perspectiva técnica da avaliação vem sendo bastante criticada porque, tradicionalmente, o que nós temos em torno da discussão da avaliação são os instrumentos e os procedimentos.

Quais são os melhores instrumentos de avaliação? Em que circunstâncias, como é que eu procedo numa situação ou noutra? Então, nós ficamos na questão técnica. Como fazer? Mas nós não temos tão consolidada, na discussão sobre avaliação, o próprio sentido da avaliação e o sentido do processo educacional que está sendo implementado, que está sendo proposto. Nesse sentido, parece-me que é fundamental recuperarmos a idéia de que avaliar vem de atribuir valor, portanto, é preciso uma reflexão não só sobre os procedimentos utilizados, sobre os instrumentos que estão sendo trabalhados mas, sobretudo, que valores estão orientando a proposição desse processo pedagógico, que vai se relacionar nos diversos contextos educacionais. Que valores são esses? Para que nós estamos educando? Quais são as nossas finalidades fundamentais no processo educativo? Parece-me que também é muito importante que a gente vá pensando quais são as conseqüências do resultado que essa avaliação vai revelando e trazendo essa discussão não apenas para o contexto mais limitado, do que a gente pode chamar de ensino-aprendizagem no sentido de domínio de conteúdos ou desenvolvimento de competências, mas que a gente possa estar pensando esse processo educacional como parte da produção da vida dos sujeitos, como parte da produção da vida social e, portanto, que valores estão encaminhando essa prática pedagógica como uma prática humana e como uma prática social.

Salto – Agora, gostaríamos de que você falasse um pouco mais sobre o papel da avaliação no processo de ensino-aprendizagem

Maria Teresa – Acho que, sobretudo, a avaliação tem um papel reflexivo, na medida em que, nos procedimentos de avaliação e no processo de avaliação amplamente considerado, nós temos a possibilidade de estar retornando ao que vem sendo realizado. Nós temos, também, a possibilidade de estar projetando novas possibilidades, novos caminhos, novas questões, então a avaliação traz em si uma dimensão reflexiva bastante forte e eu entendo que essa deva ser a dimensão a ser ressaltada na avaliação porque, como eu dizia, o que temos ressaltado, sobretudo, nas práticas classificatórias, é o controle e a seleção. É claro que até para realizar controle e seleção é preciso uma dimensão de reflexão. Eu entendo que seja necessário inverter. A prioridade está no processo reflexivo. Para que eu realize a reflexão, uma reflexão que me ajude a compreender melhor esse processo ensino-aprendizagem, essa dinâmica estabelecida, os resultados alcançados, os múltiplos processos que a dinâmica pedagógica vai instaurando na própria sala de aula. Para que eu possa estabelecer essa dinâmica reflexiva, preciso de alguns mecanismos de controle, sim. Mas aí o controle está subordinado à reflexão e não a reflexão subordinada ao controle, o que me parece que é o movimento mais freqüente que nós temos. Essa avaliação marcada pela idéia da reflexão, que alguns de nós temos chamado de avaliação como uma prática de investigação, ela é parte do processo ensino-aprendizagem, principalmente como um processo que vai tentar compreender melhor esse processo ensino-aprendizagem, compreender melhor a multiplicidade que atravessa uma sala de aula, multiplicidade de culturas, de conhecimentos, de formas de aprender, de processos de aprendizagem, de resultados. Como é que as práticas pedagógicas vão sendo mais favoráveis a determinados modelos de aprendizagem? Freqüentemente, elas são menos favoráveis a outros modelos, então para isso é preciso que a gente compreenda essa diferença, para poder proporcionar atividades pedagógicas, dinâmicas de ensino, proposições que sejam favoráveis à aprendizagem de todos e não só à aprendizagem daqueles que se encaixam nos modelos previamente selecionados. Essa dimensão reflexiva ou investigativa da avaliação potencializa o processo educacional, numa projeção de futuro. Nós realizamos uma reflexão até aqui, nós fizemos assim, chegamos assim, temos essas questões, solucionamos desse modo, não solucionamos de outro e, para que a gente possa continuar, mostra-se mais favorável esse tipo de intervenção, ou aquele outro tipo, ou tipos diferenciados, na medida em que toda turma é heterogênea e demanda processos diferenciados.

Salto – Como é que a gente pode relacionar fracasso e sucesso escolar com inclusão e exclusão social, nessa perspectiva da avaliação?

Maria Teresa – A avaliação não é responsável nem pelo fracasso escolar, nem pela exclusão social e, portanto, não é apenas mudando os procedimentos de avaliação que nós vamos produzir sucesso escolar e inclusão social. No entanto, as práticas de avaliação, como as demais práticas pedagógicas, ao direcionarmos a questão para a avaliação, as práticas de avaliação estão marcadas por essa dinâmica social de inclusão e exclusão e por esta tensão social, que é uma tensão de inclusão/exclusão dos sujeitos na própria dinâmica social. Estão marcadas também por essa tensão escolar, que vai se dando nesse diálogo entre o sucesso e o fracasso. Dessa forma, volto lá na avaliação classificatória, quando nós produzimos uma avaliação que tem por princípio a produção de uma hierarquia que classifica e seleciona. Se eu classifico e eu seleciono, para que que eu classifico e seleciono? Para incluir os melhores classificados e excluir os piores classificados? Se nós estamos preocupados efetivamente com uma educação de qualidade para todos, o princípio não pode ser esse. Então, nós precisamos produzir outras modalidades de avaliação, que tenham como ponto de partida a certeza de que todos aprendem, todos têm direito a uma escola de qualidade, cabe a nós, enquanto escola e sociedade, criar condições para uma escola de qualidade para todos. Aí a avaliação é um procedimento importantíssimo pela sua dimensão reflexiva, como eu falei anteriormente, pela sua possibilidade de projetar possibilidades e reflexões, e por esta perspectiva que ela traz, de poder regular os processos pedagógicos, mas não no sentido de promover a seleção, mas regular os processos pedagógicos no sentido de proporcionar, favorecer a inclusão de todos. A avaliação não resolve, mas sem dúvida é necessário que sejam construídos procedimentos mais democráticos de avaliação, que possam sintonizar com o movimento de democratização da escola e da sociedade.

Salto – Como é possível pensar o processo de avaliação na perspectiva da complexidade?

Maria Teresa – Acho que é fundamental, porque se nós pensarmos no processo ensino-aprendizagem, na dinâmica da sala de aula, na dinâmica da escola ou das diversas instituições que promovem, que realizam o processo educacional, nós vamos ver que uma das marcas centrais é a complexidade. A aprendizagem não é um efeito linear do ensino ou, pelo menos segundo determinadas concepções, não é assim que a aprendizagem se apresenta. A sala de aula é um espaço extremamente marcado pela diferença, se nós pensamos qualquer coletivo, qualquer grupo é marcado pela diferença. E a diferença, no processo educacional, ela é freqüentemente compreendida como algo a ser evitado, há uma série de procedimentos no sentido de produzir turmas homogêneas, de criar mecanismos para reduzir essa diferença, isso me parece o inverso do movimento mais produtivo. A heterogeneidade, ela potencializa, quanto mais diferentes nós formos, mais nós temos a ensinar e a aprender uns com os outros. Se todos sabemos a mesma coisa, a nossa possibilidade de troca é muito reduzida. Então, a sala de aula, que é constituída por pessoas diferentes, com histórias de vidas diferentes, com culturas diferentes, com modos de viver diferentes, com problemas diferentes, com possibilidades de solução também diferentes, vai sendo um espaço marcado por formas diferentes de aprender, processos diferenciados e também resultados diferenciados. A avaliação, nessa perspectiva, não pode trabalhar a partir de um padrão preestabelecido, porque esse padrão preestabelecido, por princípio, ele já está eliminando alguns, se nós trabalharmos com a idéia de que a diferença é uma das marcas desse processo. Portanto, é preciso que o processo de avaliação se abra para essa heterogeneidade e é nesse sentido que nós temos defendido a idéia da avaliação como uma prática de investigação. Na medida em que eu não posso definir, num primeiro momento, como será o processo e quais serão os seus resultados, mas eu posso atravessar todo esse processo por uma prática investigativa que vá me mostrando como é que ele está se realizando, que múltiplos resultados ele está proporcionando e como é que nós vamos criando mecanismos pedagógicos para potencializar essa diferença que vai emergindo a cada dia na sala de aula, então me parece que compreender esse proceso, na perspectiva da complexidade, leva-nos a considerar a heterogeneidade como uma questão fundamental no processo pedagógico. E surge a necessidade de criar instrumentos e procedimentos de avaliação que possam potencializar a heterogeneidade naquilo que ela tem de mais rico e não reduzir a potencionalidade da heterogeneidade, que é o que nós fazemos quando nós queremos que todos entrem no mesmo padrão.

Salto – Como é que você imagina que os projetos político-pedagógicos devem encarar ou devem abordar essa questão da avaliação?

Maria Teresa – Acho que a avaliação é um dos procedimentos necessários à realização do projeto político-pedagógico. Para que nós possamos organizar na escola um projeto político-pedagógico, é preciso conhecer essa escola e aí nós temos uma dimensão de avaliação, avaliar o que essa escola tem feito, como ela tem se proposto, que questões, que problemas, que possibilidades, que soluções, então demanda todo um processo de avaliação. A sua proposição, se é um projeto político-pedagógico, parece-me que é fundamental que seja um projeto democraticamente constituído pelos sujeitos que estão ali interagindo. Então, é preciso que esse projeto também vá prevendo mecanismos de avaliação que possam favorecer o diálogo, a reflexão e a interação entre esses diversos sujeitos, é preciso que haja a interação entre os diversos pontos de vista que eles podem ir trazendo sobre essa escola e sobre a sua dinâmica.

Salto – Maria Teresa, você estava dizendo que o projeto político- pedagógico não pode, não deve sair de uma via que não seja uma escolha democrática entre todos os atores envolvidos ali, no cotidiano da escola.

Maria Teresa – Pois é, é fundamental que os diversos sujeitos e não só os diversos setores — porque aí, me parece que tem uma questão da representação, da representatividade que nem sempre é garantida — então, é preciso que esses diversos pontos de vista, as diversas vozes, esses diversos saberes e culturas que constituem a escola possam dialogar na produção desse projeto político-pedagógico e, ainda, que seja proposto um processo de avaliação compatível com essa dinâmica, compatível com essa diversidade, compatível com essa idéia de que a escola é para todos e que deve ser e que tem que ser de qualidade para todos. Então, essa idéia da avaliação que vai estar sendo um instrumento pensado pelo próprio projeto político-pedagógico, como um instrumento de avaliação do próprio projeto que está sendo proposto. Então a avaliação perpassa toda a elaboração, toda a realização desse projeto e não apenas, como muitas vezes se coloca, acontece ao final de uma determinada etapa ou ao final de um determinado processo. Para que a gente possa ter informações, elementos, questões, ao final, é preciso que a gente vá realizando essa prática, coletando informações, tendo dados durante toda a realização do processo. E aí eu queria só fazer uma pequena observação, porque o diálogo é uma palavra muito bonita, mas o diálogo nem sempre é facíl, sobretudo quando a gente pressupõe a diferença. O diálogo freqüentemente traz consigo o conflito, e essa é uma marca que eu entendo que nós temos que considerar, nesse processo de avaliação reflexivo e diálogico: a existência do conflito, sendo que conflito é algo que, ao ser trabalhado, pode nos ajudar a avançar em alguns elementos do processo que estavam, de certa forma, truncados ou mal elaborados, incorporando efetivamente a diferença, inclusive, aqueles aspectos que num primeiro momento nos parecem negativos, mas que são parte do processo e que devem ser considerados.

Salto – Então, tudo já deve começar de uma avaliação? Num projeto pedagógico, como você disse?

Maria Teresa – Eu acho que a avaliação é parte deste princípio, não só a avaliação, mas o começo do trabalho tem que constar também de processos de avaliação.

(Entrevista concedida em 12 de fevereiri 2004)

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Olga Maria de Almeida Câmara

Quem cala consente! O desafio de todos nós no combate à violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil


Nome: Olga Maria de Almeida Câmara

Formação: Delegada de Polícia, com mais de 15 anos atuando, especificamente, na área de combate à violência a crianças e adolescentes.
Nós não podemos esquecer nunca a grande caminhada desse país. Saíram pessoas de todos os estados rumo ao Planalto, em busca de que nós pudéssemos construir uma lei, porque o Estatuto da Criança e do Adolescente é a melhor e a maior lei desse país, embora nós tenhamos a norma constitucional. Eu digo que é a maior porque foi a única lei que foi construída por mais de dez mil mãos. Eram pessoas de todos os segmentos sociais: da dona-de-casa ao parlamentar, buscando um novo caminho. E nós começamos a discutir o Estatuto da Criança e do Adolescente.
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Entrevista com Olga Câmara
Salto - Os anos 90 ficaram conhecidos como uma década de grande mobilização da sociedade civil. Quais foram as principais conquistas dessa época?

Olga Câmara – Eu diria que a maior conquista foi exatamente a questão do reconhecimento de que nós não poderíamos olhar só para nós mesmos, que nós não poderíamos nos ver só enquanto profissionais, enquanto donas-de-casa, enquanto professores, delegados, juízes, promotores, operadores do direito. Nós nos víamos apenas como cidadãos comuns e, de repente, com o advento do Estatuto, que já vinha numa mobilização da Constituição Federal de 1988, nós começamos a nos olhar, a nos entender e a falar uma mesma linguagem. Porque, antes da década de 90, eu diria antes do advento do Estatuto, propriamente dito, nós víamos a sociedade civil como inimiga do Estado, ou seja, inimiga do governo. E o governo nos via como inimigos da sociedade civil. E, às vezes, nós queríamos a mesma coisa, nós queríamos melhorar a qualidade de vida do cidadão, principalmente do cidadão criança. Mas, por questões até de formação mesmo, nós não conseguimos falar a mesma linguagem, embora quiséssemos ou tivéssemos o mesmo objetivo. E daí começou a surgir o diálogo. Não foi fácil. A princípio foi assim... até um pouco angustiante. Eu, principalmente, tinha uma certa dificuldade, porque enquanto polícia eu via toda uma história de repressão e eu não me sentia uma policial igual a alguns outros policiais. E quando chegava aos fóruns, porque não existiam ainda os Conselhos de Direito — Pernambuco teve o primeiro Conselho de Direito no país — então nós nos reuníamos em fóruns e, quando chegávamos nos fóruns, a sociedade civil entendia que era polícia, Ministério Público, Poder Judiciário de um lado e eles do outro. E foi necessário que alguns profissionais da área não-governamental, principalmente os professores, tivessem assim um papel fundamental. Começou-se a dizer: “Nós temos que conversar para podermos começar a nos entender”. E aí começou essa grande mobilização. A coisa de ouvir um ao outro, porque nós não nos escutávamos, falávamos todos ao mesmo tempo e não conseguíamos nos ouvir.

Salto - O que mudou a partir da década de 90 com relação à questão da violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil?

Olga Câmara – A consciência. A consciência coletiva. A partir da década de 90, com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, nós, brasileiros, começamos a perceber que tínhamos uma grande missão institucional. Cada um na sua área de atuação entendeu que não poderia continuar calado, não poderia continuar sem se indignar, e houve uma grande mobilização, uma mobilização de organizações governamentais e não-governamentais. Evidentemente que as organizações não-governamentais é que nos empurraram para que nós pudéssemos nos perceber enquanto agentes sociais e buscássemos, dentro de nossas instituições, aquela questão do convencimento aos nossos superiores, aos nossos colegas, para que eles também se percebessem enquanto cidadãos.

Salto – Qual a importância da sociedade civil para a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente?

Olga Câmara – A atuação da sociedade civil foi fundamental. Nós não podemos esquecer nunca a grande caminhada desse país. Saíram pessoas de todos os estados rumo ao Planalto, em busca de que nós pudéssemos construir uma lei, porque o Estatuto da Criança e do Adolescente é a melhor e a maior lei desse país, embora nós tenhamos a norma constitucional. Eu digo que é a maior porque foi a única lei que foi construída por mais de dez mil mãos. Eram pessoas de todos os segmentos sociais: da dona-de-casa ao parlamentar, buscando um novo caminho. E nós começamos a discutir o Estatuto da Criança e do Adolescente. E nós começamos a perceber que tínhamos um caminho, porque nós falávamos nesse caminho e o que precisava era só normatizar. Então, nós começamos a pôr no papel. E daí eu lembro bem que, no que dizia respeito à questão do abuso e da exploração sexual, eu, enquanto delegada de polícia, eu me sentia como todos os delegados de polícia, como todos os policiais militares, nós nos sentíamos como inoperantes e incompetentes, porque nós não conseguíamos ver aquele abusador sexual punido adequadamente. Tínhamos também uma grande preocupação, porque o profissional de polícia que não era bem preparado, ele muitas vezes pendia para a violência, ele partia para a violência porque ele entendia que aquele abusador, que aquele infrator, não ia ser punido. Então, nós precisávamos, urgentemente, buscar uma lei e, com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, nós começamos a perceber o caminho, nós começamos a “pôr nos eixos”... Todas as polícias começaram a estudar o Estatuto da Criança e do Adolescente. Eu inclusive tive um papel que me gratifica muito, eu visitei cada estado desse país junto com alguns policiais militares, capacitando as polícias. Discutimos com promotores, com juízes, com educadores, para que nós pudéssemos divulgar a lei e pudéssemos operacionalizá-la.

Salto - Como é que a senhora avalia a situação atual no Brasil no que se refere à violência sexual, ao abuso e à exploração de crianças e adolescentes?

Olga Câmara – Ainda com uma certa gravidade. Mas nós não podemos dizer que não tivemos um grande avanço. Eu entendo que o Brasil, hoje, é o país que mais avançou no mundo, e digo isso baseada inclusive na minha experiência no Ministério da Justiça. Como diretora do Departamento Nacional da Criança e do Adolescente, tive a oportunidade de participar de reuniões internacionais, de participar de conselhos mundiais e a questão é que, no Brasil, a mobilização da sociedade civil com instituições como Defensoria Pública, Ministério Público, Poder Judiciário, as polícias, os parlamentares que participam ativamente dessa questão, tudo isso faz com que haja uma mobilização em todos os níveis, estadual, federal, municipal. Agora, ainda falta muito para que nós tenhamos condições de dizer “conseguimos”.

Salto - O que tem sido feito para combater o abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes?

Olga Câmara – Eu diria que, mais uma vez, eu tenho que falar, o principal é o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, do Plano Nacional de Direitos Humanos, do Plano Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes... Todos nós, brasileiros, fizemos uma mobilização nacional e eu tive a honra e o orgulho de participar desse plano nacional que foi lançado no Rio Grande do Norte, mas estavam lá representadas mais de 180 organizações governamentais e não-governamentais. Eu diria que as organizações não-governamentais emprestam o seu nome, emprestam a sua competência, a sua qualidade de serviço à Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça. As comissões parlamentares são movimentos que surgiram pela necessidade e pela compreensão da gravidade do problema e que têm, na realidade, sido um eixo norteador para nossas ações, mas ainda falta muita coisa, ainda falta que todos os cidadãos brasileiros compreendam que nós não podemos perder a capacidade de indignação, que nós não podemos entender que, porque existem os Conselhos Estaduais e os Conselhos Municipais, nós não devemos estar presentes, nós precisamos voltar talvez um pouco no tempo. Naquele tempo em que não existia o Estatuto da Criança e do Adolescente, nós partíamos para uma luta. Aquela boa luta, aquela luta em que não tinha hora, não tinha dia que não íamos às ruas; nós buscávamos os parlamentares e cobrávamos de todos os cidadãos que eles cumprissem com o seu papel. Porque, hoje, eu inclusive afirmo que ainda há um compromisso de pessoas nas instituições e o que tem que existir é o compromisso das instituições que envolvam pessoas.

Salto – Nesse contexto, em que as diferentes instituições são “chamadas” a dar suas diferentes contribuições, qual é a seu ver o papel da escola?

Olga Câmara – É nessa visão que nós temos de que as pessoas precisam estar envolvidas, mas as instituições é que devem envolver as pessoas. Eu vejo assim o papel fundamental do educador, o professor está em sala de aula, o professor está no convívio diário com a criança e com o adolescente. Ele faz parte da nossa vida. Qual de nós não se lembra com carinho de um professor que nós tivemos na primeira infância ou na adolescência? Então, o professor, ele está formando a criança e ali ele consegue detectar, inclusive, uma criança que foi abusada sexualmente, porque ela começa a mudar o comportamento, ela começa a ter baixo rendimento escolar, ela passa a agredir mais os colegas ou ela se cala, ela silencia. Então, é fundamental que o professor comece a observar melhor a criança, que todos os professores deste país tenham também o Estatuto da Criança e do Adolescente como Bíblia, para que a criança tenha condições de compreender qual é o seu direito, mas também quais são os seus deveres. Porque uma criança que tenha sido abusada sexualmente, ela é um abusador em potencial, mas o professor pode evitar que isso aconteça.

Como é que hoje o professor pode estar se organizando na sua escola? Como é que pode ser assim... pensar o Plano Nacional, estudar o Estatuto? O que se pode fazer no espaço da escola, para que se possa trabalhar em função dessa denúncia, desse registro, que a gente ouviu alguns casos assim de que, às vezes, é muito difícil ainda a escola se manifestar, a escola denunciar, fazer registro....

Salto – O que é o Plano de Enfrentamento ao Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes?

Olga Câmara – O Plano Nacional é... eu diria que nós colocamos num documento tudo aquilo que nós pensávamos que seria importante, que todos os segmentos da sociedade percebessem. Percebessem e que começassem a pôr em prática. Então nós unimos todas as experiências, de jornalistas, de educadores, das organizações não governamentais que têm um papel fundamental, eu não posso deixar de dizer isso. Porque a sociedade civil, além de ter o papel do controle social, ela também teve e tem um papel de mobilização social. E o Plano de Enfrentamento ao Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes traz, digamos teoricamente, marcos que nos dão um horizonte, que nos permitem seguir o caminho, o eixo dentro do nosso estado e nos municípios. Então, além de traçar metas esperando resultados, faz com que a gente em nosso estado lance o próprio plano estadual, ou seja, ele, basicamente, embora não seja uma lei, ele tem essa força porque foi construído também por várias organizações e por todos os estados e lá nós traçamos exatamente metas e estamos cumprindo essas metas. Não com a aceleração que deveríamos cumprir. Existem, por exemplo, o CECRIA — Centro de Estudos e Pesquisas de Referência da Criança e do Adolescente — tem um papel fundamental, é que o próprio Ministério da Justiça, algumas Organizações não-governamentais têm cobrado dos governos esse papel, para lançarmos o Plano Estadual, e para que tenhamos condições de envolver todos os segmentos da sociedade e de monitorar as ações das organizações governamentais e também cobrar das organizações não-governamentais. E que, numa parceria, nós tenhamos condições de ir a todos os municípios, para que os municípios tenham conhecimento, porque, digamos, na cidade grande as coisas acontecem, há a televisão, o jornal, a rádio... Mas é importante ter também a rádio comunitária, é fundamental que lá naquele município aonde chega a tevê e aonde chega a rádio, nós tenhamos programas direcionados, para que as pessoas possam ver e ouvir a mensagem que nós temos para elas, que o Plano Nacional, com muito carinho, com muito cuidado, com muita seriedade, traçou para essas pessoas. E o educador, ele precisa estar sempre em dia com esse assunto, para que ele possa levar essas informações até as escolas.

Salto - Quem participou da elaboração desse Plano? (Plano de Enfrentamento ao Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes)?

Olga Câmara – Eu diria que homens e mulheres comprometidos com o destino das crianças e dos adolescentes deste país — todos os profissionais envolvidos — eles tiveram um caminho que nos foi aberto, mais uma vez eu diria, pela sociedade civil. Existiam alguns projetos e programas que nos fizeram acordar para a necessidade de termos um marco teórico, quebrando velhos paradigmas, rompendo com velhos paradigmas e partindo para novos rumos. E o CONANDA aprovou o plano nacional que foi levado pela sociedade civil e pelo governo. À época eu estava à frente do Departamento Nacional da Criança e do Adolescente e tive a honra de coordenar o plano nacional, junto, principalmente, com o CECRIA, com o projeto POMAR, enfim, com várias organizações não-governamentais, mas quem participou foi o Brasil todo.

Salto – Qual a importância do Estatuto da Criança e do Adolescente para o Plano?

Olga Câmara – Ah, o Estatuto da Criança e do Adolescente é um marco referencial, eu diria que sem o Estatuto o plano não existiria, porque foi o Estatuto que nos ensinou o exercício da mobilização. O Estatuto foi que, inclusive, nos deu normas, ou seja, é uma norma que alguns juízes chamam de norma extravagante, até porque ela tem — é a lei que tem — o poder de fazer com que a sociedade discuta. É a única Lei nesse país que é discutida, que é estudada, que é discutida nas escolas, nos fóruns, que é discutida em todos os segmentos. Os médicos quiseram aprender o que era o Estatuto da Criança e do Adolescente, até porque eles não compreendiam a legislação. Então, o Estatuto da Criança e do Adolescente ele teve, tem e eu entendo que ainda terá, por muitos e muitos anos, uma importância fundamental até que surja uma lei mais aperfeiçoada. Mas, o Estatuto da Criança e do Adolescente é o marco referencial para o Plano Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e de Adolescentes.

Salto – O que é o CONANDA?

Olga Câmara - O CONANDA é o Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente, é o conselho que se reúne em todos os estados. Onde houver uma demanda, o CONANDA vai estar presente. Ele traça a política nacional de atendimento à criança e ao adolescente. Ele tem poder fiscalizador. Se existe uma criança, ou várias crianças, num estado com problemas de omissão do Estado, daquele Estado membro, o CONANDA se faz presente. Se profissionais que trabalham na garantia de direitos de crianças e adolescentes se vêem ameaçados, porque isto também acontece, o CONANDA se faz presente. Eu passei algum tempo como presidente e vice-presidente do CONANDA, e nós fizemos várias incursões em alguns estados brasileiros que, do educador ao juiz, todos tiveram problemas porque ousaram defender o direito da criança e do adolescente, ousaram denunciar abusadores sexuais, porque, infelizmente, esse abusador ele pode estar dentro de uma casa, pode estar na favela, ou ele também pode estar nos bairros onde moram aqueles de classe social alta. E para nós, operadores do Direito, e para o CONANDA, não importa a classe social, o que importa é que a criança tenha o seu direito garantido.

Salto – Qual a importância do CONANDA?

Olga Câmara – Inicialmente, o CONANDA está acima de todos os Ministérios, de todas as Secretaria, é suprapartidário, não tem cor, não tem um estado ao qual ele pertença, porque o presidente pode ser carioca, pode ser pernambucano, pode ser norte-rio-grandense, pode ser paulista, os membros do CONANDA são governamentais e não-governamentais. Ele é paritário. Ele tem representatividade nacional e institucional, porque o Ministério da Justiça, o Ministério da Saúde, o Congresso, todos os Ministérios estão presentes, principalmente o do Planejamento, porque nós temos uma grande preocupação com o orçamento destinado também para as causas da questão da criança e do adolescente. Então, é importante que ele seja um órgão que não tenha alguém que o domine, porque essa é a grande preocupação. Muitas vezes, num estado, o Conselho Estadual pode ser abafado, porque não há condições de funcionamento daquele conselho. Um Conselho Municipal também pode ser esquecido por total falta de condições de funcionamento. E os Conselhos Tutelares? Que nós sabemos que ainda não existem em todos os municípios brasileiros? Então o CONANDA, ao ser chamado pelo estado, ele vai em socorro dos cidadãos daquele estado e não vai, digamos assim, interferir na política daquele estado, mas ele vai dizer àquele estado, digamos, qual é o seu papel, ele vai dizer àquele estado que o caminho que ele está seguindo nas políticas públicas de atendimento às crianças e aos adolescentes não é o caminho correto. Então, ele traça normas nacionais e que são seguidas e aplicadas pelos Conselhos Estaduais.

Salto – Como foi a sua participação na construção dessa proposta?

Olga Câmara – Ela foi uma participação além do meu conhecimento, pois é uma participação de consciência de cidadã brasileira. É... eu sou mãe, eu sou avó, eu sou professora e eu entendo que não poderia deixar de participar de um processo de construção de um novo Brasil, porque existe o Brasil que todos conhecem e o Brasil que as pessoas, muitas vezes, não querem conhecer. E é exatamente nesse Brasil que as pessoas não querem conhecer que acontece, na calada da noite, quando ninguém ouve, o choro, o grito de dor de uma criança... E é desse Brasil que eu participo. Então, eu não poderia, como profissional de polícia, como educadora, como operadora de direito, deixar de participar dessa grande cruzada nacional, onde nós poderíamos tirar as crianças e os adolescentes do silêncio. Porque as organizações não-governamentais gritavam há muito tempo, mas elas não eram ouvidas. Muitas vezes, eu tive a infelicidade de ver a própria polícia chamada não para dar o apoio a um operador de direito de uma organização não-governamental, e sim para fazer com que ele se calasse, porque a voz daquela pessoa incomodava. Falar sobre prostituição, falar sobre abuso sexual, sobre exploração comercial de crianças e adolescentes, era dizer que o Estado não estava se preocupando com suas crianças, então, aquela voz tinha que ser calada. E foi aí que eu entendi que precisava participar também. E nós começamos a participar como voluntários e, depois, conseguimos envolver a nossa instituição. E é exatamente esta grande preocupação que nós temos hoje. Que todos aqueles que participam, que têm vontade de participar desse Plano Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, que envolvam a sua Instituição, que façam com que o seu Diretor, o seu Delegado-Chefe, o Corregedor de Justiça, o Procurador do Ministério Público, o Defensor Público geral, quem quer que seja, que ele nos ouça, que ele sente com a gente e que compreenda qual é o papel institucional, que nós queremos que tenhamos menos abusadores sexuais. Se nós queremos oferecer uma melhor qualidade de vida às nossas crianças e aos adolescentes e, conseqüentemente, aos adultos num futuro bem próximo, precisamos cuidar melhor deles.

Nós percebemos que as instituições ainda não apreenderam qual é o seu real papel, embora exista o Estatuto, embora anterior ao Estatuto exista a Constituição Federal que faz o chamamento a todas as Instituições para que elas participem ativamente dessa — eu diria — desconstrução de uma sociedade que não se preocupava com a vida de nossas crianças e a construção de uma nova sociedade, onde as crianças possam ter voz, onde as crianças possam ser vistas como elas são e aí, mais uma vez, eu compreendo que ainda falta nas políticas públicas a preocupação de difusão do Estatuto da Criança e do Adolescente. A exemplo da Sociedade Brasileira de Pediatria, nós precisamos fazer com que todos os conselhos, partindo do Conselho Nacional de Educação, e que todos os conselhos estaduais tenham professores, para que eles tenham a real compreensão do que é, no seu município, o Conselho Municipal, que o professor participe do Conselho Municipal, construindo Políticas Públicas de Atendimento à criança e ao adolescente. Que o professor participe do Conselho Tutelar, que é o atendimento direto à criança e ao adolescente. Que o professor tenha condições de ter conhecimento total dos encaminhamentos que devem ser dados a uma criança que tenha qualquer tipo de vestígio de uma violência sofrida. Porque ela pode, aparentemente, ter sofrido maus-tratos, mas atrás dos maus-tratos pode estar um abuso sexual. E o professor só pode ter esse entendimento se ele começar a se mobilizar, porque muitas vezes os diretores das escolas não têm essa visão. Nós participamos de encontros nos municípios onde ainda há professores que não conhecem o Estatuto da Criança e do Adolescente. Então, nós precisamos fazer com que a TV Escola chegue a cada município. Que o professor daqueles municípios pequenos, que ainda vai de barco lá no Norte, que ele tenha condições de fazer com que seu aluno saiba qual é o seu direito e que ele, professor, saiba qual é o seu dever em fazer com que aquela criança, ao sofrer qualquer tipo de violência, quando tiver o seu direito ameaçado, possa conversar com o professor e possa dizer para ele a violência sofrida ou a ameaça de violência, e que o professor busque o Conselho Municipal, se não tiver Conselho Tutelar, que ele busque o Conselho Municipal, se não tiver Conselho Municipal procure o Promotor de Justiça. Procure o juiz, procure o Delegado do seu município, mas não cale, porque quem cala consente.

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