quarta-feira, 29 de outubro de 2008

MILTON SANTOS: POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO - A DE TODOS





Prof. Dr. Délio Mendes

Para o mundo intelectual brasileiro entrou em encantamento um dos seus principais pensadores. E se encantou em plena produção, no seu momento mais fértil. Produzia uma crítica à globalização considerando que a mesma tem sido levada a efeito do ponto de vista do capital financeiro. Propunha uma outra globalização. Intelectual estudioso do espaço e do tempo, compreendeu, em seu tempo, o espaço como produção do homem na relação com a totalidade da natureza e a intermediação da técnica. Técnica que corresponde a um tempo determinado pela produção dos homens. Homem do seu tempo, Milton Santos se fez presente em todos os grandes embates intelectuais da última metade do século passado. O seu tempo e o seu espaço foram o tempo e o espaço da globalização. Que ele queria que fosse outra. Ou melhor, a outra, a globalização de todos os excluídos, resgatados em uma sinfonia de humanização. Milton se fez maestro da paz e da felicidade. Felicidade de todos. Buscou uma globalização que unisse todas as mulheres e todos os homens, sob égide do encontro.

Conheci Milton, no Recife, em 1978, quando estava às voltas com Pobreza urbana. Inovava ao compreender o mundo formal e informal, como duas faces de um circuito comandado desde a acumulação ampliada do capital.[1] Inovava e agitava. Milton era, sobretudo, um agitador. Agitador de idéias, no melhor sentido de um intelectual da sua estatura. Avesso aos partidarismos, falava da isenção do intelectual para exercitar a crítica. Por isso, sempre esteve radicalmente ao lado do seu povo. Em Pobreza urbana se faz crítico de um debate sobre a desigualdade que se presta, mais e muito mais, à louvação mesquinha de intelectuais vazios entre si, do que a colocação correta e crítica dos grandes problemas da exclusão. “Indubitavelmente, o tom de certos trabalhos, nos quais o jogo conhecido das referências recíprocas entre autores "freqüentemente substitui uma análise dos fatos, tem contribuído para a perpetuação do debate, que, embora pretenda atacar o problema em profundidade, perde-se numa guerrilha semântica confusa.”[2] Esta crítica direta acompanha uma análise da produção intelectual da pobreza que, segundo Milton, pouco tinha contribuído para a resolução dos problemas da pobreza. Para este jogo de vaidades não se contava com a sua participação.

A história do homem, compreendida como a história da superação, faz do autor de Pobreza urbana, um profeta da evolução. “A história do homem sobre a terra é a história de uma ruptura progressiva entre o homem e o entorno. Esse processo se acelera quando, praticamente ao mesmo tempo, o homem se descobre como indivíduo e inicia a mecanização do Planeta, armando-se de novos instrumentos para poder dominá-lo. A natureza artificializada marca uma grande mudança na história da natureza humana. Hoje, com a tecnociência, alcançamos o estágio supremo dessa evolução.”[3] A visão da técnica, do espaço e do tempo, assume, nesta compreensão, um caráter inovador, na medida em que passa a apreender a dimensão da história, da história de temporalidades técnicas que permite produzir uma sociedade determinada, empregando, de acordo com a técnica predominante, uma certa quantidade de trabalho humano. Milton abre o conceito de território, mostrando-o como o lugar do drama social “Bom, há nessa desordem a oportunidade intelectual de nos deixar ver como o território revela o drama da nação, porque ele é, eu creio, muito mais visível através do território do que por intermédio de qualquer outra instância da sociedade. A minha impressão é que o território, revela as contradições muito mais fortemente.”[4] Da relação técnica, espaço e tempo, revela-se a história, ou melhor, uma outra história, no palco iluminado expresso no território. Esta outra história aponta para as desigualdades. Faz emergir a exclusão da maioria da população concentrada em um território degradado, onde pobres de todas as naturezas lutam contra todos os carecimentos.

Milton se mostra mais crítico no livro recente Por uma outra globalização - do pensamento único à consciência universal[5], onde nos aponta para um mundo de difícil percepção por conta da confusão reinante que nos tem levado à perplexidade. Portanto, toma para análise a realidade relacional do ser humano, e a esta realidade relacional perversa atribui os males revelados pelo território. Não aceita explicações mecanicistas pelo seu caráter insuficiente. Atribuindo ao desenrolar da história, capitaneada por determinados segmentos da sociedade, os males que tornam difícil a vida da maioria das mulheres e dos homens. Coloca na base deste processo confuso a tirania do dinheiro e da informação, transcende a Marx, e o dinheiro passa a produzir dinheiro, dominando o mundo da produção de mercadorias. Especulação, financeirização. A globalização é feita menor, sob a égide dos bancos e dos banqueiros, criando uma fábrica de perversidades. “O desemprego crescente torna-se crônico. A pobreza aumenta e as classes médias perdem em qualidade de vida. O salário médio tende a baixar. A fome e o desabrigo se generalizam em todos os continentes.”[6]

Caminhando no terreno da mais valia global, Por uma outra globalização apreende o papel dos intelectuais. Todos trabalhando a ampliação desta mais valia. Trabalhando para ampliar a produtividade como se este fosse um trabalho abstrato, e não a produção de urna vantagem para o capital.[7] É preciso reconhecer este momento e a sua peculiaridade. A de ser um momento para o capital. E todas as ações movem-se na direção do reproduzir para os ricos. Entretanto, se esta é uma constatação, não é, felizmente, uma fatalidade. Milton nos aponta para um outro conhecimento. Para a possibilidade de conhecer, para a liberdade do ser humano. Para modificar o mundo. Para que o conhecimento se produza no interior da crítica, sem abstrações alienantes, sem reconhecimentos incompletos que produzem falsas compreensões e encobrem os verdadeiros dramas sociais. E assim, pode-se evitar a espera para que cresça o bolo, evitando a indigência de uma quantidade grande de seres humanos.

É o início de uma outra cognoscibilidade do planeta. Um planeta que conta com todas as possibilidades de ser desvendado. Mas, nem sempre o conhecer é possível. A informação nem sempre se propõe a informar, e sim a convencer acerca das possibilidades e das vantagens das mercadorias. "O que é transmitido à maioria da humanidade é, de fato, uma informação manipulada que, em lugar de esclarecer, confunde.”[8] A contradição se faz e se refaz na impossibilidade de se produzir, de imediato, uma informação libertadora. A alienação é a face que brota aguda da globalização financeira, da globalização do dinheiro. Encanta-se o mundo. O princípio e o fim são o discurso e a retórica. Então o que fica para o ser comum é a farsa do consumo. Não há referência à transformação do espaço e do tempo. O homem consumidor caminha no espaço do desconhecimento do mundo relacional e do falso e alardeado conhecimento do mundo das mercadorias. O fetiche, como e desde sempre, se realiza no ocultamento do valor de troca e no falso evidenciamento do valor de uso. É a utilidade que aparece, e que é proclamada em todo o universo informacional. Fala-se ao peito sangrando das mulheres e homens que não são consumidores. Para a competitividade, tem-se de chamar os consumidores, tem-se que oferecer o melhor, o mais barato, produzido desde a produtividade aumentada pelo trabalho dos intelectuais. Tudo para melhorar a competitividade.

Para Milton, a competitividade é ausência de compaixão. Tem a guerra como norma, e privilegia sempre os mais fortes em detrimento dos mais fracos. Busca fôlego na economia e despreza os que pensam mais para além. "Para tudo isso, também contribuiu a perda da influência da filosofia na formulação das ciências sociais, cuja interdisciplinaridade acaba por buscar inspiração na economia.”[9] Esta é uma das mais importantes reflexões levadas a efeito no interior de Por uma outra, na medida em que coloca um ponto focal que não é localizado costumeiramente no campo da ideologia. Cientistas sociais dos mais diferentes matizes sucumbem aos encantos da facilidade dos números e do falso realismo de uma formulação econômica ideologizada, que esquece os seres humanos e os substitui pelas equações e as tabelas estatísticas que ilusionam os dirigentes e metem medo a todos os que não querem padecer no inferno apontado pelos proclamadores da nova única. Se não aceitas as premissas e as evidências das projeções estatísticas da nova única, serás responsável pelo caos que há de vir.

Empobrece a ciência social em geral, nada para além da numerologia estatística. Investir nos setores sociais acarreta um custo que o capital não se propõe a pagar, e a ciência se curva, entra em letargia, deixa o mundo nas mãos dos economistas que vão levá-lo adiante de mãos com a lógica da relação produto capital e da competitividade. A ciência humana se faz pobre para interpretar um mundo confuso e conturbado e, desde logo, tudo a ciência econômica. Este enfoque modernoso atinge por caminhos nunca dantes navegados a maioria das falas e dos discursos. Grandes farsas são inventadas e reinventadas. O privilégio continua privilegiando o privilegiado. "Os atores mais poderosos se reservam os melhores pedaços do território.”[10] Inclusive do território do pensar para impedir o pensar. Apoderam-se das mentes e dos corações e, por conseqüência, das vidas no pleno movimento da vivência. Tudo isto no mundo da competitividade. A competitividade revela a essência do território, os lugares apontam para as lutas sociais, trazendo a tona virtudes e fraquezas dos atores da vida política e da sociedade.

A cidadania se torna menor do que sua percepção. O cidadão pretende transcender o seu espaço primitivo. Todavia, o mundo, expresso desigualmente, não tem como regular os lugares em suas diversidades e, por conseqüência, a cidadania se faz menor. A desigualdade aponta a impossibilidade da generalização da cidadania. O espaço é esquizofrênico na expressão da exclusão social. Uns homens sentem-se mais cidadãos do que outros. Mas estes homens são apenas consumidores, pois a cidadania depende de sua generalização. Não existem cidadãos num mundo apartado. Não se é cidadão em um espaço onde todos não o são. São consumidores os que expressam direitos e deveres no âmbito do mercado e não no âmbito do espaço público, onde a política é realizada e o poder distribuído. Portanto, este é um mundo de alguns consumidores e poucos, pouquíssimos cidadãos. É preciso construir a cidadania.

A transição (conclusão)

O novo nasce sem que se perceba. Quase na sombra, o mundo muda de maneira imperceptível, todavia constante. Neste início de século, temos a consciência de que estamos vivendo uma nova realidade. As transformações atuais colocam os homens em permanente estado de perplexidade. A poluição e a desertificação se alastram, a super população e as tecno-epidemias etc., tornam o mundo diverso negativamente. A pobreza e a desigualdade, são produtos desta forma da produção do modo civilizatório capitalista. Este novo apresenta diferentes faces. Tudo isto como conseqüência da desestruturação da ordem industrial. O atual período histórico não é apenas a continuação do capitalismo ocidental, é mais. Melhor, é muito mais, é a transição para uma nova civilização. Esta transição que está em curso é preocupante para determinadas sociedades, desprotegidas na guerra das nações pela primazia na história.

Milton chama atenção para esta realidade. "No caso do mundo atual, temos a consciência de viver um novo período, mas o novo que mais facilmente apreende-se diz respeito à utilização de formidáveis recursos da técnica e da ciência pelas novas formas do grande capital, apoiado por formas institucionais igualmente novas. Não se pode dizer que a globalização seja, semelhante às ondas anteriores, nem mesmo uma continuação do que havia antes, exatamente porque as condições de sua realização mudaram radicalmente. É somente agora que a humanidade está podendo contar com essa nova realidade técnica, providenciada pelo que se está chamando de técnica informacional. Chegamos a um outro século e o homem, por meio dos avanços da ciência, produz um sistema de técnicas da informação. Estas passam a exercer um papel de elo entre as demais, unindo-as e assegurando a presença planetária desse novo sistema técnico."[11]

É necessário, para compreender esse novo, o conhecimento de dois elementos fundamentais na formação social das nações: a formação técnica e a formação política. Uma permite a compreensão dos elementos tecnológicos que formam as composições necessárias à produção, e a outra indica que setores serão privilegiados com a organização possível da produção. “Na prática social, sistemas técnicos e sistemas políticos se confundem e é por meio das combinações então possíveis e da escolha dos momentos e lugares de seu uso que a história e a geografia se fazem e refazem continuamente.”[12] Desde esta compreensão, esta nova sociedade pode, inclusive, abrir uma nova época com a colocação de um novo paradigma social. Este paradigma pode ser posto como: a superação da nação ativa pela nação passiva.

Ou melhor, voltando ao velho Marx: a nação em si é superada pela nação para si. Para isto, é necessário que o velho/novo mundo periférico retome um projeto político de independência, fora dos moldes de projetos como o Mercosul, que nada mais representam do que a dependência em bloco, na medida em que este tipo de associação só serve à subserviência coletiva, levando grupos de países periféricos a deixar de submeterem-se isoladamente, para cair em bloco nos ardis do capital financeiro.

Finalmente, utilizando a dialética como referência, Milton mostra a batalha travada entre a nação passiva e a nação ativa, em uma transição política que envolve todos os espaços do viver, desde o espaço da vida cotidiana. A nação ativa, ligada aos interesses da globalização perversa, nada cria, nada contribui para a formação do mundo da felicidade, ao contrário da outra nação dita passiva que, a cada momento, cria e recria, em condições adversas, o novo jeito de produzir o espaço social, mostrando que a atual forma de globalização não é irreversível e a utopia é pertinente. ” É somente a partir dessa constatação, fundada na história real do nosso tempo, que se torna possível retomar, de maneira concreta, a idéia de utopia e de projeto.”[13] Desde esta compreensão, a globalização é um projeto irreversível da humanidade. Entretanto, não é esta a globalização desejada, e sim uma outra, a de todos.

Délio Mendes é Professor Dr. do Departamento de Sociologia da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP

Texto publicado pela Fundação Joaquim Nabuco, originalmente publicado na Revista Política Democrática, Brasília, Ano 1, n.2, p.191-197, 2001




Prof. Milton Santos: Pensamento de Combate




Cláudio Cordovil

Um momento de vida inteligente na televisão brasileira. A entrevista do geógrafo Milton Almeida dos Santos, exibida anos atrás no programa Roda Viva (uma produção da TV Cultura, retransmitida pela TVE), revelou a milhares de telespectadores o vigor do pensamento de um dos mais respeitados intelectuais brasileiros. Professor titular da USP e considerado por seus pares um dos mais conceituados geógrafos vivos do mundo, Milton Santos quase se compara ao intelectual americano Noam Chomsky, em termos de radicalidade de sua original reflexão de resistência em tempos de "pensamento único". Com 12 títulos de doutor honoris causa de respeitadas universidades estrangeiras, esse baiano afável é um escritor prolífico, com mais de 40 livros publicados. Homem que sempre cultivou mais discípulos do que parceiros, pelo grosso calibre de suas denúncias da cooptação de intelectuais que emudecem diante das tentações do mercado e dos riscos da globalização. Milton Santos foi o único estudioso fora do mundo anglo-saxão a receber o que pode ser considerado o Nobel da Geografia pelo conjunto de sua obra o prêmio Vantrin Lud. Durante a exibição de sua entrevista no Roda Viva, os telefones do programa não pararam de tocar. "Muitas pessoas ligaram emocionadas e entusiasmadas, vibrando e agradecendo a emissora pela transmissão. O teor das declarações do público se assemelhou ao verificado com a entrevista de Noam Chomsky", comenta Marco Nascimento, diretor de jornalismo da TV Cultura.

# - Em entrevista no programa Roda Viva, o senhor afirmou que observamos atualmente uma capitulação dos intelectuais brasileiros diante da situação do país. Como define essa capitulação?

* A capitulação dos intelectuais é um fenômeno internacional já antigo e que se agravou com a globalização. Isso de alguma maneira perdura com a democracia de mercado de hoje. A intelectualidade brasileira se organiza através de grupos fechados que necessitam mais de fazer pressão, para sobreviver, do que de se reunir para pesquisar. Por isso tendem a se aproximar do establishment, o que reduz a sua força de pensamento, imaginação e crítica. Isso equivale a capitular. No Brasil, há exceções, mas essa síndrome precisa de uma cura urgente.

# - Em uma de suas declarações mais contundentes no programa Roda Viva, o senhor afirmou que o pobre é neste momento o único ator social no Brasil com o qual podemos aprender algo de verdadeiro. Poderia explicar?

* Em A natureza do espaço falo um pouco sobre essa idéia. As classes médias são confortáveis de um modo geral. O conforto cria dificuldades na visão do futuro. O conforto quer estender o presente que está simpático. O conforto, como a memória, é inimigo da descoberta. No caso do Brasil isso é mais grave, porque esse conforto veio com a difusão do consumo. O consumo é ele próprio um emoliente, Ele amolece. Os pobres, sobretudo os pobres urbanos, não têm o emprego, mas têm o trabalho, que é o resultado de uma descoberta cotidiana. Esse trabalho raramente é bem pago, enquanto o mundo dos objetos se amplia.

# - O senhor fala da sabedoria da escassez...

* Exatamente. Fui buscar esse conceito em Sartre, quando ele fala da escassez que joga uma pessoa contra a outra na disputa pelo que é limitado. Essa experiência da escassez é que faz a ponte entre a necessidade e o entendimento. Como a escassez sempre vai mudando, devido a aceleração contemporânea, o pobre acaba descobrindo que não vai nunca morar na Ipanema da novela, que jamais vai alcançar aquelas coisas bonitas que vê. Ele continua vendo, mas está seguro hoje de que não as alcançará. Gostaria de dizer que a classe média já começa a conhecer a experiência da escassez. E isso pode ser bom. Como a classe média, na sua formação, tem uma capacidade de codificação maior, isso vai nos levar a uma precipitação do movimento social, da produção da consciência, ainda que seja de uma maneira incompleta.

# - Pesquisa divulgada mês passado na França revelou que 72% dos franceses oscilam entre o medo e a revolta com relação ao atual modelo econômico. Acredita que a situação francesa seja muito distinta da brasileira? Como explica a aprovação popular da política econômica brasileira?

* Essa questão pode ser desdobrada em duas. No Brasil, a expansão do consumo veio com o regime autoritário e continua com a democracia de mercado. Por conseguinte, essa expansão do consumo junto a essas duas estruturas de controle faz com que a opinião pública seja amortecida. Há muito mais espaço para o consumidor, esse espaço legitimado agora com o código do consumidor, e nada para o cidadão. Dessa forma, torna-se mais fácil aceitar um mundo onde são as coisas que comandam, e não os valores.


# - O que acontece no caso do Brasil?

* Esse apego enorme às coisas faz com que a coisa mais representativa, que atualmente é o Real, a coisa que faz adquirir coisas, interfira no resultado das pesquisas favoráveis à moeda. Mas, a mesma pessoa que gosta do Real não gosta do desemprego, não gosta da insegurança. De modo que vivemos esse paradoxo que está rebaixado na consciência das pessoas. O que aparece lá em cima é o Real, a satisfação com a moeda, mas há uma infinidade de situações, que não são latentes, mas reais, embora não apareçam como sistema na consciência. Por isso temos a impressão de que o Brasil não está reagindo, mas penso que há um vulcão adormecido.

# - Viviane Forrester, em seu best seller francês intitulado O horror econômico, afirma que vivemos no meio de uma "magnífica ilusão". "Nossos conceitos de trabalho e de desemprego, manipulados por políticos, não tem mais qualquer substância". Ela anuncia que uma nova civilização já se iniciou e nela só uma pequena parcela da população mundial encontrará trabalho. O que pensa dessa afirmação?

* Há anos eu já afirmava que a globalização, tal como era considerada, começa por ser uma fábula. Essa fábula se tornou possível exatamente pela violência da informação. Produzem-se idéias que são impostas. Nesse sentido, o que Forrester afirma a propósito da "magnífica ilusão" me parece correto. Mas é a partir dessa ilusão e dessa fábula que são impostas fórmulas que conduzem os países em sua economia, política e relações sociais. São fábulas perversas, como essa que fazem com que não discutamos a solidariedade. Toda a discussão sobre a previdência se faz em bases contábeis e não levando em conta que a nação tem que ser solidária e todos temos de estar juntos. Todos os debates são feitos naturalizando a perversidade, através da naturalização da desigualdade social. É uma tristeza que a discussão sobrfe o desemprego se limite a uma relação mensal de números falsos.

# - Como assim?

* Vivemos uma fase de politização das estatísticas. Isso se dá de forma descarada no Brasil em todos os campos da vida social e econômica. Há uma distribuição de estatísticas de forma maciça, mas que não permite análise porque não há desagregação que conduz a uma interpretação. a apresentação da estatística já é enviesada. Não se pode atribuir às pesquisas de opinião tão disseminadas hoje em dia a qualidade de fornecer o entendimento das estruturas e processos sociais. A estatística é retrato encomendado de apenas uma parcela do social, mas não é o social. Essas pesquisas têm um papel de deformação da vida política e degradação da vida partidária. Na última campanha foi curioso ver como os candidatos decidiam ir mudando em função das pesquisas.

#- Parece que vivemos um paradoxo na era da informação: a sociedade parece cada vez mais opaca, menos decifrável. Temos mais estatísticas, mas entendemos menos a sociedade. A que atribui esse fenômeno?

* A violência da informação também se deve ao fato de que a grande indústria da comunicação é extremamente concentrada. Éconcentrada nas mesmas mãos que concentram a competitividade. Esta não tem qualquer finalidade. Até hoje não se descobriu por que as grandes empresas globais competem. Todos os dias nos defrontamos com uma interpretação já feita, mas que é simplista, ilusória e produz uma fábula. Isso gera esse efeito de opacidade. Ela é menor nos países onde a figura do cidadão pôde se cristalizar ao longo dos séculos e maior nos países onde a cidadania não se concretizou, como na África e na América Latina.

#- A globalização parece haver reduzido a influência dos mercados nacionais que constituíam um dos fundamentos do poder do Estado-nação. O que é feito de noções tão caras à geografia, como Estado, nação e território?

* Prefiro dizer que o mercado nacional é o nome fantasia do mercado global. Esse mercado global trabalha com alguns pontos do território e exige que os estados nacionais aparelhem esses pontos. As empresas globais ali se instalam. É nesses pontos privilegiados que elas produzem nacionalmente uma produção global. Mas há também o território: todo o resto utilizado pelas outras empresas e pela maioria esmagadora dos homens que não vivem sem esses território. Podemos encarar de outra maneira a questão do território, do mercado e do Estado nacional. Esse mercado global travestido de mercado nacional não tem um reflexo, nem obrigatório nem imediato, sobre a maior parte da população. Ele se amplia com o desemprego, com a fome, sem que a maior parte da população seja beneficiária, enquanto o mercado territorial é o que tem a ver com a maioria da população e acaba sendo o sustentáculo do Estado.

#- No programa Roda Viva o senhor sugeriu que o prefeito Celso Pitta está sofrendo um linchamento, que o senhor parece atribuir ao racismo. E se as denúncias se provarem verdadeiras? Acredita que sua crítica foi feita em momento oportuno?

* Na sociedade da informação em que vivemos há linchados e linchados. O caso dos precatórios mostra que há linchamentos de graus variáveis. Minha colocação tem um caráter político no sentido maior. Desejo a aceitação mais tranqüila do negro na sociedade brasileira.

# - Que dificuldades lhe trazem sua condição de intelectual negro e o tom destoante de seu pensamento no establishment acadêmico?


* Pude me manter como outsider. Em que medida ser outsider no meu caso não se deve ao fato de eu ser negro? Os prêmios são um dia e vivem no círculo que sabe deles. A minha vida de todos os dias é a de negro. como tal, mantenho com a sociedade uma relação de negro. No Brasil, ela não é das mais confortáveis.

domingo, 26 de outubro de 2008

Joel Rufino - Desigualdade que dura mais de um século

Joel Rufino dos Santos
UFRJ

Joel Rufino dos Santos é referência quando o assunto é literatura infanto-juvenil.

Historiador e escritor, ele também é sempre mencionado quando os temas perpassam o universo da cultura popular, da luta social e da igualdade de direitos para os afro-descendentes, embora faça questão de não se nomear militante do movimento negro “para não ser injusto com aqueles que vestem a camisa, fazem passeata, saem em protesto”, explica.
Mas é na literatura que Joel deixa claro suas posturas políticas e filosóficas.

Doutor em comunicação e cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, na qual também é professor, ele conversou com o Magazine sobre a reedição de “Quatro Dias de Rebelião”, livro voltado para o público jovem, no qual o escritor une ficção e realidade para narrar os fatos que cercaram a Revolta da Vacina Obrigatória, como ficou conhecido o levante popular ocorrido em 1904.

Durante quatro dias de rebelião, os populares do Rio de Janeiro tomaram conta da cidade, surraram vacinadores, invadiram prédios públicos, destruíram a iluminação das ruas. A vacinação obrigatória foi o estopim para os populares esgotados com a péssima situação social e financeira na época.

Quase 30 anos após o lançamento da obra e mais de cem após a rebelião, o autor constata que a distância entre os interesses da elite e do povo continua a mesma.


O TEMPO – O que o motivou naquela época a narrar os fatos que envolveram a Revolta da Vacina?
Joel Rufino dos Santos – Esse é um livro antigo que está sendo reeditado. E, na ocasião, estava muito sensibilizado pelas manifestações populares, pelos levantes do povo, pela coragem de ir contra o que estava sendo imposto.

Estávamos no apogeu da ditadura militar e eu, como tantos outros escritores, estava sensibilizado por essas reações vindas diretamente do povo.

Esse fato na história do Brasil é muito singular, cada um dos lados tinha uma boa versão a defender. Como você avalia as razões dos higienistas e dos populares?
Eu não tomo partido como escritor e narrador. O Oswaldo Cruz e os higienistas tinham lá suas razões, assim como os populares. O importante para mim na construção dessa narrativa foi a distância entre esses dois lados, a falta de interesse comum entre as elites econômicas e o resto dos cidadãos.

Só que as razões do povo são, do meu ponto de vista, mais legítimas. Mas isso é filosofia. E o impressionante é que, mesmo anos após o fim da ditadura, esse fosso entre os desejos do povo e da elite continua o mesmo. Se é que não aumentou.

No livro, você mistura personagens reais e fictícios. Como é essa criação?
Como eu fiz em outras histórias para jovens, uso personagens reais, fatos históricos, e também personagens inventadas, dialogando com personagens reais. O “Quatro Dias de Rebelião” é um romance histórico. E, nesse gênero, o que importa é a verossimilhança, não a verdade factual.

A obra é um olhar sobre uma revolta popular. As ações oriundas do povo são um tema recorrente na sua produção?
Eu diria que há uma sensibilidade pessoal, que faz parte da minha personalidade. Sou de origem popular, levo um estilo de vida simples, sou peladeiro. O outro fato é uma visão de mundo, política, de luta social. Por isso eu me interesso naturalmente por esses temas.

Mais uma vez você se dedica à literatura infanto-juvenil. O que te motiva a escrever para esse público?
Eu comecei a escrever para esse público meio por acaso. A Ruth Rocha me chamou para escrever quando eu estava semiclandestino nos tempos da ditadura. Eu estava sem emprego e ela me conheceu através de uma ex-aluna.

Mas, desde aquela época, acredito que quem escreve para jovem ou criança imagina que está conversando com um menino, uma criança imaginária.

Para o ‘Quatro Dias de Rebelião’, pensei: ‘Está aqui diante de mim um garoto de 12 anos’. Isso me dá muito prazer: dialogar com uma pessoa que eu inventei e está apenas na minha cabeça.

Você afirma em uma entrevista mais antiga que a produção de literatura infantojuvenil no Brasil costuma esbarrar num conservadorismo moral e pedagógico. De que forma sua literatura foge dessas armadilhas?
Saio dessas armadilhas com uma convicção filosófica: o moralismo não pode ser instrumento para compreender o mundo. Outras coisas são mais importantes que a moral, por exemplo, a ética e a luta pela justiça social.

O didatismo e a pedagogia só acontecem com o escritor que não confia no poder da literatura, da ficção, da imaginação. Utiliza a fantasia para ensinar. Eu confio no poder da ficção, não preciso ensinar nada. Ela acrescenta por si só um conhecimento novo, único ao que as outras ciências oferecem.

Você é um dos mais conhecidos militantes da luta social, entre elas a causa da igualdade de direitos dos afro-descendentes. A quantas anda essa sua relação com a militância?
Sempre estive na contramão do movimento negro. E não me intitularia militante para não ser injusto com quem faz passeata, veste a camisa, se dedica plenamente a essa causa.

Agora, quanto à luta social em geral, procuro me colocar no ponto de vista dos trabalhadores. E procuro fazer da minha literatura a maior ferramenta de militância.

Quais são seus próximos projetos?
Tem sempre alguma coisa no prelo. Está para sair em breve uma história que se passa em um morro carioca, intitulada “O Judeu da Prestação e o Sargento da Motocicleta”, pela editora Moderna.

Também é voltado para adolescentes de 12 a 15 anos, e aborda a repressão, o crime, o trabalhador, o policial. Um pouco do contexto dos morros nos dias de hoje.
2/5/2007 - Soraya Belusi - Jornal O Tempo - Brasil

Antonio Nóvoa - O professor pesquisador e reflexivo



Salto Para o futuro
Antonio Nóvoa

Formação: Doutor em Educação e catedrático da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa.
Alguns livros publicados: - Vida de professores. Porto, Portugal. - Profissão professor. Porto, Portugal. - Os professores e sua formação. Lisboa, Dom Quixote, 1992. - As organizações escolares em análise. Lisboa, Publicações D. Quixote, 1992.

O paradigma do professor reflexivo, isto é, do professor que reflete sobre a sua prática, que pensa, que elabora em cima dessa prática, é o paradigma hoje em dia dominante na área de formação de professores. Por vezes é um paradigma um bocadinho retórico e eu, um pouco também, em jeito de brincadeira, mais de uma vez já disse que o que me importa mais é saber como é que os professores refletiam antes que os universitários tivessem decidido que eles deveriam ser professores reflexivos. Identificar essas práticas de reflexão – que sempre existiram na profissão docente, é impossível alguém imaginar uma profissão docente em que essas práticas reflexivas não existissem – tentar identificá-las e construir as condições para que elas possam se desenvolver .

Salto: Professor, o que é ser professor hoje? Ser professor atualmente é mais complexo do que foi no passado?

Nóvoa: É difícil dizer se ser professor, na atualidade, é mais complexo do que foi no passado, porque a profissão docente sempre foi de grande complexidade. Hoje, os professores têm que lidar não só com alguns saberes, como era no passado, mas também com a tecnologia e com a complexidade social, o que não existia no passado. Isto é, quando todos os alunos vão para a escola, de todos os grupos sociais, dos mais pobres aos mais ricos, de todas as raças e todas as etnias, quando toda essa gente está dentro da escola e quando se consegue cumprir, de algum modo, esse desígnio histórico da escola para todos, ao mesmo tempo, também, a escola atinge uma enorme complexidade que não existia no passado. Hoje em dia é, certamente, mais complexo e mais difícil ser professor do que era há 50 anos, do que era há 60 anos ou há 70 anos. Esta complexidade acentua-se, ainda, pelo fato de a própria sociedade ter, por vezes, dificuldade em saber para que ela quer a escola. A escola foi um fator de produção de uma cidadania nacional, foi um fator de promoção social durante muito tempo e agora deixou de ser. E a própria sociedade tem, por vezes, dificuldade em ter uma clareza, uma coerência sobre quais devem ser os objetivos da escola. E essa incerteza, muitas vezes, transforma o professor num profissional que vive numa situação amargurada, que vive numa situação difícil e complicada pela complexidade do seu trabalho, que é maior do que no passado. Mas isso acontece, também, por essa incerteza de fins e de objetivos que existe hoje em dia na sociedade.

Salto: Como o senhor entende a formação continuada de professores? Qual o papel da escola nessa formação?

Nóvoa – Durante muito tempo, quando nós falávamos em formação de professores, falávamos essencialmente da formação inicial do professor. Essa era a referência principal: preparavam-se os professores que, depois, iam durante 30, 40 anos exercer essa profissão. Hoje em dia, é impensável imaginar esta situação. Isto é, a formação de professores é algo, como eu costumo dizer, que se estabelece num continuum. Que começa nas escolas de formação inicial, que continua nos primeiros anos de exercício profissional. Os primeiros anos do professor – que, a meu ver, são absolutamente decisivos para o futuro de cada um dos professores e para a sua integração harmoniosa na profissão – continuam ao longo de toda a vida profissional, através de práticas de formação continuada. Estas práticas de formação continuada devem ter como pólo de referência as escolas. São as escolas e os professores organizados nas suas escolas que podem decidir quais são os melhores meios, os melhores métodos e as melhores formas de assegurar esta formação continuada. Com isto, eu não quero dizer que não seja muito importante o trabalho de especialistas, o trabalho de universitários nessa colaboração. Mas a lógica da formação continuada deve ser centrada nas escolas e deve estar centrada numa organização dos próprios professores.

Salto: Que competências são necessárias para a prática do professor?

Nóvoa – Provavelmente na literatura, nos textos, nas reflexões que têm sido feitas ao longo dos últimos anos, essa tem sido a pergunta mais freqüentemente posta e há uma imensa lista competências. Estou a me lembrar que ainda há 3 ou 4 dias estive a ver com um colega meu estrangeiro, justamente, uma lista de 10 competências para uma profissão. Podíamos listar aqui um conjunto enorme de competências do ponto de vista da ação profissional dos professores.

Resumindo, eu tenderia a valorizar duas competências: a primeira é uma competência de organização. Isto é, o professor não é, hoje em dia, um mero transmissor de conhecimento, mas também não é apenas uma pessoa que trabalha no interior de uma sala de aula. O professor é um organizador de aprendizagens, de aprendizagens via os novos meios informáticos, por via dessas novas realidades virtuais. Organizador do ponto de vista da organização da escola, do ponto de vista de uma organização mais ampla, que é a organização da turma ou da sala de aula. Há aqui, portanto, uma dimensão da organização das aprendizagens, do que eu designo, a organização do trabalho escolar e esta organização do trabalho escolar é mais do que o simples trabalho pedagógico, é mais do que o simples trabalho do ensino, é qualquer coisa que vai além destas dimensões, e estas competências de organização são absolutamente essenciais para um professor.

Há um segundo nível de competências que, a meu ver, são muito importantes também, que são as competências relacionadas com a compreensão do conhecimento. Há uma velha brincadeira, que é uma brincadeira que já tem quase um século, que parece que terá sido dita, inicialmente, por Bernard Shaw, mas há controvérsias sobre isso, que dizia que: “quem sabe faz, quem não sabe ensina”.

Hoje em dia esta brincadeira podia ser substituída por uma outra: “quem compreende o conhecimento”. Não basta deter o conhecimento para o saber transmitir a alguém, é preciso compreender o conhecimento, ser capaz de o reorganizar, ser capaz de o reelaborar e de transpô-lo em situação didática em sala de aula. Esta compreensão do conhecimento é, absolutamente, essencial nas competências práticas dos professores. Eu tenderia, portanto, a acentuar esses dois planos: o plano do professor como um organizador do trabalho escolar, nas suas diversas dimensões e o professor como alguém que compreende, que detém e compreende um determinado conhecimento e é capaz de o reelaborar no sentido da sua transposição didática, como agora se diz, no sentido da sua capacidade de ensinar a um grupo de alunos.

Salto: O que é ser professor pesquisador e reflexivo? E, essas capacidades são inerentes à profissão do docente?

Nóvoa – O paradigma do professor reflexivo, isto é, do professor que reflete sobre a sua prática, que pensa, que elabora em cima dessa prática é o paradigma hoje em dia dominante na área de formação de professores. Por vezes é um paradigma um bocadinho retórico e eu, um pouco também, em jeito de brincadeira, mais de uma vez já disse que o que me importa mais é saber como é que os professores refletiam antes que os universitários tivessem decidido que eles deveriam ser professores reflexivos. Identificar essas práticas de reflexão – que sempre existiram na profissão docente, é impossível alguém imaginar uma profissão docente em que essas práticas reflexivas não existissem – tentar identificá-las e construir as condições para que elas possam se desenvolver.

Eu diria que elas não são inerentes à profissão docente, no sentido de serem naturais, mas que elas são inerentes, no sentido em que elas são essenciais para a profissão. E, portanto, tem que se criar um conjunto de condições, um conjunto de regras, um conjunto de lógicas de trabalho e, em particular, e eu insisto neste ponto, criar lógicas de trabalho coletivos dentro das escolas, a partir das quais – através da reflexão, através da troca de experiências, através da partilha – seja possível dar origem a uma atitude reflexiva da parte dos professores. Eu disse e julgo que vale a pena insistir nesse ponto.

A experiência é muito importante, mas a experiência de cada um só se transforma em conhecimento através desta análise sistemática das práticas. Uma análise que é análise individual, mas que é também coletiva, ou seja, feita com os colegas, nas escolas e em situações de formação.

Salto: E o professor pesquisador?

Nóvoa – O professor pesquisador e o professor reflexivo, no fundo, correspondem a correntes diferentes para dizer a mesma coisa. São nomes distintos, maneiras diferentes dos teóricos da literatura pedagógica abordarem uma mesma realidade. A realidade é que o professor pesquisador é aquele que pesquisa ou que reflete sobre a sua prática. Portanto, aqui estamos dentro do paradigma do professor reflexivo. É evidente que podemos encontrar dezenas de textos para explicar a diferença entre esses conceitos, mas creio que, no fundo, no fundo, eles fazem parte de um mesmo movimento de preocupação com um professor que é um professor indagador, que é um professor que assume a sua própria realidade escolar como um objeto de pesquisa, como objeto de reflexão, com objeto de análise. Mas, insisto neste ponto, a experiência por si só não é formadora. John Dewey, pedagogo americano e sociólogo do princípio do século, dizia: “quando se afirma que o professor tem 10 anos de experiência, dá para dizer que ele tem 10 anos de experiência ou que ele tem um ano de experiência repetido 10 vezes”. E, na verdade, há muitas vezes esta idéia. Experiência, por si só, pode ser uma mera repetição, uma mera rotina, não é ela que é formadora. Formadora é a reflexão sobre essa experiência, ou a pesquisa sobre essa experiência.

Salto: A sociedade espera muito dos professores. Espera que eles gerenciem o seu percurso profissional, tematizem a própria prática, além de exercer sua prática pedagógica em sala de aula. Qual a contrapartida que o sistema deve oferecer aos professores para que isso aconteça?

Nóvoa – Certamente, nas entrelinhas da sua pergunta, há essa dimensão. Há hoje um excesso de missões dos professores, pede-se demais aos professores, pede-se demais as escolas.

As escolas, talvez, resumindo numa frase (...), as escolas valem o que vale a sociedade. Não podemos imaginar escolas extraordinárias, espantosas, onde tudo funciona bem numa sociedade onde nada funciona. Acontece que, por uma espécie de um paradoxo, as coisas que não podemos assegurar que existam na sociedade, nós temos tendência a projetá-las para dentro da escola e a sobrecarregar os professores com um excesso de missões. Os pais não são autoritários, ou não conseguem assegurar a autoridade, pois se pede ainda mais autoridade para a escola. Os pais não conseguem assegurar a disciplina, pede-se ainda mais disciplina a escola. Os pais não conseguem que os filhos leiam em casa, pede-se a escola que os filhos aprendam a ler. É legítimo eles pedirem sobre a escola, a escola está lá para cumprir uma determinada missão, mas não é legítimo que sejam uma espécie de vasos comunicantes ao contrário. Que cada vez que a sociedade tem menos capacidade para fazer certas coisas, mais sobem as exigências sobre a escola.

E isto é um paradoxo absolutamente intolerável e tem criado para os professores uma situação insustentável do ponto de vista profissional, submetendo-os a uma crítica pública, submetendo-os a uma violência simbólica nos jornais, na sociedade, etc. o que é absolutamente intolerável. Eu creio que os professores podem e devem exigir duas coisas absolutamente essenciais que são:

· Uma, é calma e tranqüilidade para o exercício do seu trabalho, eles precisam estar num ambiente, eles precisam estar rodeados de um ambiente social, precisam estar rodeados de um ambiente comunitário que lhes permita essa calma e essa tranqüilidade para o seu trabalho. Quer dizer, não é possível trabalhar pedagogicamente no meio do ruído, no meio do barulho, no meio da crítica, no meio da insinuação. É absolutamente impossível esse tipo de trabalho. As pessoas têm que assegurar essa calma e essa tranqüilidade.

· E, por outro lado, é essencial ter condições de dignidade profissional. E esta dignidade profissional passa certamente por questões materiais, por questões do salário, passa também por boas questões de formação, e passa por questões de boas carreiras profissionais. Quer dizer, não é possível imaginar que os professores tenham condições para responder a este aumento absolutamente imensurável de missões, de exigências no meio de uma crítica feroz, no meio de situações intoleráveis, de acusação aos professores e às escolas.

Eu creio que há, para além dos aspectos sociais de que eu falei a pouco – e que são aspectos extremamente importantes, porque no passado os professores não tiveram, por exemplo, os professores nunca tiveram situações materiais e econômicas muito boas, mas tinham prestígio e uma dignidade social que, em grande parte completavam algumas dessas deficiências – para além desses aspectos sociais de que eu falei a pouco e que são essenciais para o professor no novo milênio, neste milênio que estamos, eu creio que pensando internamente a profissão, há dois aspectos que me parecem essenciais. O primeiro é que os professores se organizem coletivamente – e esta organização coletiva não passa apenas, eu insisto bem, apenas pelas tradicionais práticas associativas e sindicais – passa também por novos modelos de organização, como comunidade profissional, como coletivo docente, dentro das escolas, por grupos disciplinares e conseguirem deste modo exercer um papel com profissão, que é mais ampla do que o papel que tem exercido até agora. As questões dos professorado enquanto coletivo parecem-me essenciais. Sem desvalorizar as questões sindicais tradicionais, ou associativas, creio que é preciso ir mais longe nesta organização coletiva do professorado.

O segundo ponto – e que tem muito a ver também com formação de professores – passa pelo que eu designo como conhecimento profissional. Isto é, há certamente um conhecimento disciplinar que pertence aos cientistas, que pertence às pessoas da história, das ciências, etc., e que os professores devem de ter. Há certamente um conhecimento pedagógico que pertence, às vezes, aos pedagogos, às pessoas da área da educação que os professores devem de ter também. Mas, além disso há um conhecimento profissional que não é nem um conhecimento científico, nem um conhecimento pedagógico, que é um conhecimento feito na prática, que é um conhecimento feito na experiência, como dizia há pouco, e na reflexão sobre essa experiência.

A valorização desse conhecimento profissional, a meu ver, é essencial para os professores neste novo milênio. Creio, portanto, que minha resposta passaria por estas duas questões: a organização como comunidade profissional e a organização e sistematização de um conhecimento profissional específico dos professores.

Salto: O senhor diz em um texto que a sua intenção é olhar para o presente dos professores, identificando os sentidos atuais do trabalho educativo. Em relação ao Brasil o que o senhor vê: o que já avançou na formação dos professores brasileiros e o que ainda precisa avançar?

Nóvoa – É muito difícil para mim e nem seria muito correto estar a tecer grandes considerações sobre a realidade brasileira. Primeiro porque é uma realidade que, apesar de eu cá ter vindo algumas vezes, que eu conheço ainda mal, infelizmente, espero vir a conhecer melhor e, por outro lado, porque não seria (...) da minha parte tecer grandes considerações sobre isso.

No entanto, eu julgo poder dizer duas coisas. A primeira é que os debates que há no Brasil sobre formação de professores e sobre a escola são os mesmos debates que se tem um pouco por todo mundo. Quem circula, como eu circulo, dentro dos diversos países europeus, na América do Norte e outros lugares, percebe que estas questões, as questões que nos colocam no final das palestras, as perguntas que nos fazem são, regra geral, as mesmas de alguns países para os outros. Não há, portanto, uma grande especificidade dos fatos travados no Brasil em relação a outros países do mundo e, em particular, em relação a Portugal.

Creio que houve, obviamente, avanços enormes na formação dos professores nos últimos anos, mas houve também grandes contradições. E a contradição principal que eu sinto é que se avançou muito do ponto de vista da análise teórica, se avançou muito do ponto de vista da reflexão, mas se avançou relativamente pouco das práticas da formação de professores, da criação e da consolidação de dispositivos novos e consistentes de formação de professores. E essa decalagem entre o discurso teórico e a prática concreta da formação de professores é preciso ultrapassá-la e ultrapassá-la rapidamente. Devo dizer, no entanto, também, que se os problemas são os mesmos, se as questões são as mesmas, se o nível de reflexão é o mesmo, eu creio que a comunidade científica brasileira está ao nível das comunidades científicas ou pedagógicas dos outros países do mundo. Se essas realidades são as mesmas é evidente que há um nível, que eu diria, um nível material, um nível de dificuldades materiais, de dificuldades materiais nas escolas, de dificuldades materiais relacionadas com os salários dos professores, de dificuldades materiais relacionadas com as condições das instituições de formação de professores que são, provavelmente, mais graves no Brasil do que em outros países que eu conheço.

Terão aqui, evidentemente, problemas que têm a ver com as dificuldades históricas de desenvolvimento da escola no Brasil e das escolas de formação de professores e que, portanto, é importante enfrentá-los e enfrentá-los com coragem e enfrentá-los de forma não ingênua, mas também de forma não derrotista. Creio, por isso, que devemos perceber que no Brasil, como nos outros países, as perguntas são as mesmas, as nossas empolgações são as mesmas, mas é verdade que há aqui por vezes dificuldades que eu chamaria de ordem material, maiores do que as existem em outros países e que é absolutamente essencial que com a vossa capacidade de produzir ciência, com a vossa capacidade de fazer escola e com a vossa capacidade de acreditar como educadores possam ultrapassar essas dificuldades nos próximos anos. E esses são, sinceramente, os meus desejos e na medida que meu contributo, pequeno que ele seja, possa ser dado, podem, evidentemente, contar comigo para essa tarefa.

(Entrevista concedida em 13 de setembro 2001)

Joel Birman - O impacto da TV na subjetividade

Salto para o Futuro
Joel Birman

Formação:Mestre em Filosofia pela PUC/RJ e doutor em Filosofia pela USP. Realizou seu pós-doutorado na Université Paris VII.

Obra:
- Psicanálise, ciência e cultura. Jorge Zahar, 1994.
- Freud e a filosofia. Jorge Zahar, 2003.

A televisão tanto pode agregar, como pode desagregar, ela pode agregar (...) existe um fenômeno muito comum, vamos falar aqui do Brasil (...) do Brasil das classes médias ricas, que é muito comum a gente entrar numa casa e observar. Tem uma televisão na sala, e cada membro da família tem sua televisão privada. Esse tipo de relação com a televisão certamente funciona como um desagregador da família, cada um tem o seu universo de solidão, onde cada um fica entretido no seu mundo, seja um jogo de futebol, seja um programa mais picante, seja um reality show, onde as pessoas não conversam e onde a televisão é uma maneira de fomentar isso que eu estava chamando de cultura da captura da imagem. Agora, se você tem uma televisão na casa, a televisão pode funcionar como elemento agregador.

Salto - QUAL É O IMPACTO DA PROGRAMAÇÃO DA TELEVISÃO NA SUBJETIVIDADE DAS PESSOAS?
Sem dúvida que a televisão tem um impacto na subjetividade das pessoas, até mesmo porque a televisão brasileira, no caso, ela é sobretudo uma TV de entretenimento. Quer dizer, é muito menos importante a dimensão jornalística da televisão e a dimensão de debates críticos na televisão do que a dimensão propriamente de entretenimento.

A televisão realiza o que a gente chama hoje de uma sociedade fundada na imagem e não a dimensão de um discurso fundado no conhecimento. Me parece que essa dimensão imagística da televisão, essa dimensão da imagem, ela forma um tipo de subjetividade diferente de uma subjetividade anterior, que era formada, sobretudo, a partir da discursividade. Eu acho que essa localização do impacto da TV na subjetividade, ela teria que ser pensada diante de um contexto mais amplo, que é a produção de uma sociedade, de uma cultura centrada na imagem, em que a imagem tem um poder de captura, diferentemente de um discurso falado ou escrito. Quer dizer, uma cultura centrada na escrita é muito mais crítica do que uma cultura centrada na imagem, em que qualquer um de nós é capturado pela imagem, exatamente porque a imagem é polivalente, ela pode dizer muitas coisas ao mesmo tempo. Nós temos, diante da imagem, um menor desenvolvimento da nossa capacidade crítica. Então, eu acho que essas discussões atuais em torno da relação de subjetividade e televisão passam todas por essa relação com a cultura da imagem e a consideração da imagem como sendo algo da ordem da captura.

Salto - EXISTE ALGUMA POSSIBILIDADE DE O ESPECTADOR FICAR ATENTO PARA TOMAR CUIDADO PARA QUE ESSA CAPTURA NÃO SEJA TÃO DESTINADA À SUBJETIVIDADE E POSSA AGUÇAR A ANÁLISE CRÍTICA DO QUE ESTÁ SENDO VISTO NA TELEVISÃO?

É claro que a televisão faz dispor para as pessoas uma série de universos aos quais ela não teria acesso, digamos assim. Eu vejo isso sobretudo em alguns programas jornalísticos ensaísticos, que dão acesso a um caudal em informações, digamos assim, em que a dimensão crítica pode estar disponível para o espectador. Agora em programas em que a dimensão discursiva é menos presente, proporcionalmente falando, a dimensão de captura se torna mais violenta, mais intensa, mas evidentemente que tanto numa situação como em outra, na dimensão discursiva ou na dimensão do programa de entretenimento, a subjetividade vai estar implicada de uma forma ou de outra.

Por outro lado, a gente pode esquecer que é muito mais simples, do ponto de vista da exigência do espectador, assistir à televisão, por exemplo, do que ler um livro. O livro exige uma espécie de energia mental, uma espécie de esforço que o leitor faz, que é muito menos exigido de um espectador de televisão, que pode ficar numa atitude mais passiva, saboreando as imagens que são ofertadas para ele. Então, o livro dá mais trabalho para o leitor do que a televisão, certamente.

Salto - BANALIZAÇÕES DA VIOLÊNCIA E A DA PRÓPRIA SEXUALIDADE ATRAVÉS DOS PROGRAMAS DE TV INFLUENCIAM O COMPORTAMENTO DA POPULAÇÃO?

Eu acho que a gente não pode diabolizar a televisão. Eu acho que seria uma coisa primária diabolizarmos a televisão, quando a gente vê meninos americanos que matam colegas na escola, e que eles aprenderam isso, supostamente, vendo programas violentos de televisão. Me parece que a relação entre televisão e comportamento, no caso os comportamentos violentos ou de forte apelo sexual, ela não pode ser vista de uma maneira mecânica. Até mesmo porque a gente não pode entender o comportamento, por exemplo, de jovens americanos que matam os colegas na escola apenas pela influência da televisão. Há toda uma tradição americana de faroeste e de uma sociedade em que a autorização de portar armas está presente, inclusive os pais têm armas em casa. Então, eu tenho que entender que aquilo que aparece na televisão é uma espécie de microcosmos da sociedade. Eu não posso simplesmente diabolizar a televisão como responsável por aquilo, quando ela faz parte de uma engrenagem que eu diria muito mais vasta e muito mais ampla. Considerando isso, é evidente que, ao assistir filmes com alto grau de exibição de cenas perversas, sexualmente falando, ou em que predomine a violência, a criança ou adolescente têm acesso a mundos, a personagens, a contextos... Evidentemente que a televisão pode provocar uma dimensão do que, em psicanálise, nós chamamos de identificação com os personagens que são apresentados, sobretudo nos filmes, menos do que nos programas jornalísticos onde aparecem as cenas de violência, como as que acontecem, por exemplo, hoje no Rio. Mas na dimensão da ficção, dos filmes de entretenimento, essa dimensão da identificação de quem assiste, ou seja, na relação do espectador com o filme, essa identificação pode acontecer com a criança, com os adolescentes e com os adultos, de uma certa maneira.

Então, essa dimensão da identificação, ela pode ter um efeito sobre o comportamento não de maneira imediata, mas de uma maneira mediata, mas isso sem considerar essa relação, de uma maneira mecânica, que me parece uma forma simplista... Essas novas formas de programas que se apresentam hoje, do ponto de vista da cena subjetiva, me parecem muito mais preocupantes, por exemplo: esses programas tipo reality show, esses eu acho que têm um impacto sobre a subjetividade muito mais intenso e muito mais violento, porque você está vendo na televisão personagens que são do seu cotidiano, você pode localizar alguém que pode ser parecido com seu pai, com seu irmão, com seu vizinho, com seu tio, pessoas que fazem parte de seu mundo. Nesses programas se alimenta uma espécie de ética rivalitária, competitiva, em função de um prêmio. No caso aí da TV Globo, dimensões muito perversas da rivalidade, da competição humana são alimentadas e são valorizadas, pelo fato de que são mostradas meia hora, vinte minutos, todos os dias na televisão. Isso eu acho que tem um efeito muito mais nefasto, muito mais violento sobre os espectadores, até mesmo porque aí há a abolição dessa fronteira entre o privado e o público, entre a intimidade e mesmo a privacidade, o privado começa a se apagar.

Salto – COMO ESSA QUESTÃO DO QUE É PÚBLICO E PRIVADO ESTÁ PRESENTE NA VIDA DAS PESSOAS?

Eu acho que o efeito da televisão, na vida dos artistas – as revistas tipo Caras são um exemplo paradigmático disso – estimulam a curiosidade sobre a vida dos artistas, entram na cena imaginária da subjetividade das pessoas. Não podemos perder de vista que nós vivemos numa cultura performática, aquilo que se denomina filosófica e sociologicamente como sociedade do espetáculo. Uma sociedade do espetáculo, onde eu sou aquilo que eu mostro ser (...), o que de verdade eu sou não importa, o que importa é o que eu aparento ser numa cena, sempre numa cena, onde você tem a disseminação disso, através de uma imagem, seja jornalística, televisiva ou cinematográfica, etc. E o artista, no caso, ele é o paradigma do sujeito performaticamente bem sucedido. Então, essa espécie de voyeurismo a respeito do artista, o artista que faz sucesso, de como é a vida dele, como são os hábitos dele, como são as escolhas, qual é a comida que ele come, quais são as mulheres ou os homens que escolhe, é uma imagem de sucesso dessa performance, com a qual as pessoas, de uma maneira inconsciente, querem se identificar, como se isso fosse uma fórmula de espetáculo e de sucesso. Então os artistas são particularmente figuras paradigmáticas da nossa contemporaneidade, enquanto modelos de identificação subjetiva, que é como se eles fossem os cidadãos que tivessem dado certo, isto é, são bonitos, têm sucesso, conhecem belas mulheres ou belos homens, enriquecem, enfim, todos os signos do “self made man”– da pessoa bem-sucedida, que a cultura do espetáculo promove como sendo os heróis da nossa contemporaneidade.

Salto - QUAL A IMPORTÂNCIA DA TELEVISÃO DENTRO NO SEIO DA FAMÍLIA? ELA PODE AGREGAR OU DESAGREGAR? COMO A FAMÍLIA DEVE ATUAR CRITICAMENTE NESSE ASPECTO DA RELAÇÃO COM A PRÓPRIA TELEVISÃO?

A televisão tanto pode agregar, como pode desagregar, ela pode agregar (...) existe um fenômeno muito comum, vamos falar aqui do Brasil (...) do Brasil das classes médias ricas, que é muito comum a gente entrar numa casa e observar. Tem uma televisão na sala, e cada membro da família tem sua televisão privada. Esse tipo de relação com a televisão certamente funciona como um desagregador da família, cada um tem o seu universo de solidão, onde cada um fica entretido no seu mundo, seja um jogo de futebol, seja um programa mais picante, seja um reality show, onde as pessoas não conversam e onde a televisão é uma maneira de fomentar isso que eu estava chamando de cultura da captura da imagem. Agora, se você tem uma televisão na casa, a televisão pode funcionar como elemento agregador. Certamente a grande maioria das famílias não tem renda para poder ter vários aparelhos, e assistir à TV, hoje, pode ser visto como um substitutivo daquilo que, na minha infância, era o jantar de família. O jantar era o momento em que chegávamos da rua, uns da escola, outros do trabalho, era um momento em que a família se reunia. Há uma certa ritualidade meio sagrada nessa reunião familiar, e eu tenho a impressão de que hoje em dia nas casas que têm televisão, em que a televisão ocupa, inclusive, um lugar destacado na casa, ela esta na sala de jantar, é o momento em que a família se reúne, quando os diálogos se estabelecem entre as pessoas a partir do que elas estão vendo, seja uma notícia jornalística, seja um comentário sobre um filme. Então, nesse contexto, a televisão funciona como uma dimensão de reconstituição de uma família que socialmente está fragmentada.

Salto - QUAL É O GRAU DE IMPORTÂNCIA DA TELEVISÃO NA VIDA DA SOCIEDADE BRASILEIRA HOJE, EM RELAÇÃO A OUTRAS POSSIBILIDADES DE ENTRETENIMENTO E DE INFORMAÇÃO EXISTENTES?

É claro que a televisão ocupa um espaço muito grande hoje na vida de uma criança e de um adolescente, em relação a duas ou três décadas atrás, quando a televisão estava engatinhando no Brasil. Mas a gente pode separar isso da grande transformação que a sociedade brasileira sofreu, e que é o fato de que não só o pai, como as mães trabalham, isso tem uma transformação central na família. A mãe hoje sai para o trabalho e, anteriormente, a mãe era uma figura muito importante na criação de outros tipos de laços sociais dentro da casa. Então, na ausência da mãe, na ausência do pai, a criança vai se entreter, para não se sentir solitária, diante da televisão. Ela vai ver TV para estar com alguém. E, evidentemente, esse estar com alguém protege a criança da solidão e de um certo sentimento de desamparo. E, ao mesmo tempo, a televisão pode levar a criança para universos às vezes não muito desejáveis, mas me parece que a televisão ocupa um lugar que, anteriormente, era centrado na figura materna. Eu acho que a grande transformação produzida na família com autonomização da mulher, com os direitos da mulher, é que isso transformou também a estrutura da família. O que eu quero dizer com isso é o seguinte: não é que as mulheres têm que voltar a estar em casa, largar as suas obrigações para cuidar dos seus filhos, para os filhos não serem desviados pelo vilão da televisão, absolutamente, o que eu quero dizer com isso é seguinte: os pais, tanto os pais como as mães, vão ter que ter um trabalho de entretenimento, de ligação, de educação dos filhos, e isso é uma tarefa dos dois, para dar à televisão o tamanho que ela possa ter na vida das crianças e fazer outras ofertas de entretenimento às crianças... Mas, certamente, a partir do movimento feminista, isso é uma tarefa a ser igualmente distribuída entre o pai e a mãe, não é necessariamente, segundo o modelo tradicional, uma obrigação feminina. Eu acho que isso não pode se pensado fora da grande transformação familiar que criou um outro lugar social e político para a mulher.

Salto - O OLHAR SE EDUCA?

O olhar seduz e o olhar também educa. É preciso saber que tipo de imagem você está oferecendo. Em toda a idade clássica nós fomos educados pela pintura. A pintura é uma educação pelo olhar, em que nós temos um tipo de gosto, um tipo de acesso ao mundo que a palavra escrita não nos oferece. Então, tem uma dimensão que as artes plásticas, as artes visuais oferecem, que é fundamental, e onde a dimensão da sedução é fundamental. Nós não temos que diabolizar a sedução. A sedução é ótima, agora é preciso saber que imagens a gente oferece nessa espécie de educação sentimental do olhar.

Salto - O SENHOR ASSISTE TV?

Eu assisto TV. Devo assistir TV um pouco menos que a média da sociedade brasileira. Eu freqüentemente assisto aos telejornais, isso completa a leitura que eu faço dos jornais pela manhã. Eu assisto futebol na televisão, que eu adoro. Eu assisto filmes na televisão e assisto programas de debate. Outros tipos de programas, tipo novela de televisão, eu não gosto muito. Reality show eu assisto como um antropólogo interessado em saber: o que é isso? Mas fundamentalmente é cinema, futebol, telejornais, programas de discussão de todas as ordens que me interessam.

Salto - É PRECISO INTERFERIR NO QUE A CRIANÇA VÊ NA TELEVISÃO OU A PRÓPRIA CRIANÇA, COM SUA ORGANIZAÇÃO MENTAL, VAI SE ORGANIZANDO DIANTE DO QUE VÊ?

Tudo que a criança vê vai ter um poder impactante sobre ela. Eu acho que a criança não pode ser deixada por conta dela própria, no sentido de que é preciso saber o que programa oferece ou não oferece, isso que inicialmente eu chamei aqui de uma dimensão crítica da imagem, os pais têm que observar isso. Às vezes a criança vai perguntar, a respeito do que ela viu: o que que é isso? Como é que é aquilo? Ela vai fazer perguntas, que faz parte da própria constituição psíquica da criança a questão do “por quê”? Por que isso? Por que aquilo? E os pais, independente dos porquês das crianças, eu acho que os pais e professores devem ficar preocupados, no sentido de trazerem de volta a dimensão crítica, que freqüentemente os programas de entretenimento não trazem. Os pais têm que fazer o papel de uma consciência crítica, aproveitando aquilo para transmitir certas regras de moralidade, regras éticas, digamos assim, de desenvolvimento do pensamento. E, nesse sentido, eu acho que as experiências das crianças podem ser muito enriquecidas com esse tipo de colaboração fundamental das figuras parentais e dos professores.


21 de maio de 2003

Boaventura Santos - Ciência e cidadania: um desafio para a educação

Salto Para o Futuro
Boaventura Santos

Formação: Sociólogo. É professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal). Seu pensamento tem contribuído para que possamos refletir sobre o papel da ciência e do cientista em relação à sociedade.

Obras: Um Discurso sobre as Ciências. 7ª ed, Porto: Afrontamento: 1995; Introdução a Uma Ciência Pós- Moderna. 3ª ed., Porto: Afrontamento 1993.

A sociedade tem que melhorar muito em termos de se tornar uma sociedade mais inclusiva, uma sociedade que discrimine menos, uma sociedade mais justa, mais solidária, e é exatamente ao serviço dessas tarefas que eu ponho o cientista. O cientista é, acima de tudo, alguém que contribui para a cidadania ativa e crítica, que vai levar a cabo a transformação social nesse sentido. O cientista não é um demiurgo, o cientista não é um herói, o cientista é um cidadão em que nós confiamos particularmente, pela natureza confiável do conhecimento que transporta.


Salto – Qual é o papel do cientista na sociedade moderna?

Boaventura – Bem, fundamentalmente para, responder a essa questão, eu tenho que saber que sociedade contemporânea a gente quer ter hoje e quer ter amanhã. Portanto, qual é o papel que o cientista e a ciência podem ter naqueles objetivos que nós almejamos para nossa sociedade. Eu por mim, penso que a sociedade tem que melhorar muito em termos de se tornar uma sociedade mais inclusiva, uma sociedade que discrimine menos, uma sociedade mais justa, mais solidária, e é exatamente a serviço dessas tarefas, que eu ponho o cientista. O cientista é, acima de tudo, alguém que contribui para a cidadania ativa e crítica, que vai levar a cabo a transformação social nesse sentido. O cientista não é um demiurgo, o cientista não é um herói, o cientista é um cidadão em que nós confiamos particularmente, pela natureza confiável do conhecimento que transporta. E no momento em que ele trai essa confiança, isso é, obviamente, muito mau (ou muito negativo) para a ciência, e para o papel que ela desenvolve na nossa sociedade. Portanto, o papel dela (da ciência) é exatamente esse, contribuir para as tarefas de transformação progressista da sociedade.

Salto: Em sua opinião, quando a formação do cientista deve começar?
Boaventura – Nós vivemos hoje com a idéia de que caminhamos para a sociedade do conhecimento. Essa idéia é uma idéia que ainda hoje divide muito o Norte e o Sul. Porque eu não vejo sociedades do conhecimento no Sul, vejo-as no Norte. Penso, no entanto, que é uma aspiração de todo mundo, que efetivamente o conhecimento passe a ser mais constitutivo da sociedade. Se ele passa a ser mais constitutivo da sociedade, a sociedade tem que ser mais constitutiva da ciência. Ou seja, a superação entre a ciência e a sociedade vai, de alguma maneira, diminuir, se nós quisermos fazer uma sociedade do conhecimento. E se é assim, é evidente que a ciência, ao ser constitutiva, ela tem que ser uma parte da nossa sociabilidade, desde muito cedo. Não é apenas nas escolas e no ensino formal. É também em casa, é na família, é na rua, é nos bairros, que ela tem que ter lugar. E são os cidadãos, é uma forma daquilo que nós chamamos, hoje, aprendizagem ao longo da vida. São os cidadãos hoje que exigem, cada vez mais, a participação da ciência, na resolução dos seus problemas. Não daqueles problemas que dão muitos lucros às multinacionais como, por exemplo, os de biotecnologia, mas aqueles problemas que podem resolver questões muito concretas do nosso cotidiano, que têm a ver com a nossa alimentação, que têm a ver com doenças que, ainda hoje, matam tanta gente no mundo, como a malária. Que têm a ver com o HIV, SIDA, ou AIDS, como vocês dizem no Brasil, tudo isto, penso eu, é que é a inserção, é para todas estas tarefas que nós temos que realizar.

Salto – Como é que a escola pode colaborar, ou ter um papel importante, na formação de uma postura investigativa do aluno?

Boaventura – A escola tem um papel absolutamente fundamental. A questão é que dêem condições para fazer. Nós sabemos que, em muitos países, o ensino da ciência é um ensino teórico, porque não existe nem tecnologia, nem laboratórios, nem instrumentos que possam ajudar à formação, digamos concreta, prática, experimental, do pensamento científico. Penso, aliás, que temos uma concessão nas escolas, por vezes redutora, do que é que pode ser um instrumento científico. Pode ser uma bola, pode ser um simples cronômetro, pode ser uma vara – com ela podemos definir, por exemplo, a quantidade de água num rio – e isso pode ser uma forma de reencantamento das ciências junto aos estudantes, levando para as crianças não aquelas experiências que dão sempre certo, em que o professor nunca arrisca nada. Nós precisamos é que os nossos professores, enquanto professores de ciência, se disponham a assumir riscos. “Vamos fazer uma experiência, provavelmente fora da escola. Vamos analisar isso: vai dar certo ou não vai dar certo?” Porque é assim que sucede na ciência. Normalmente nós representamos coisas que têm um sucesso garantido. E criamos aquela idéia no estudante de que a ciência é um milagre, que está muito longe deles. Ora bem, não é um prodígio, é algo que eles têm que fazer, com todas as dificuldades que os cientistas também têm.

Salto – Qual é a importância de Paulo Freire para a educação?

Boaventura – Bom, Paulo Freire continua a ser, hoje, uma referência mundial, na revolução que ele fez na pedagogia. E infelizmente, no Brasil, criou-se toda uma tecnologia nas ciências, nas faculdades de educação, que pôs de parte todo o trabalho do Paulo Freire. É um trabalho hoje, muito pouco conhecido das novas gerações de educadores no Brasil, isso é lamentável. E por vezes usam essa idéia de que Paulo Freire era bom para as questões dos analfabetos, para trabalhar com camponeses, mas não para a sociedade tecnológica que o Brasil é hoje é. Primeiro: há muito camponês ainda, no Brasil, há muita gente analfabeta, há muita gente pobre, exatamente aqueles para quem ele mostrou toda solidariedade. Há muita discriminação racial no Brasil, e Paulo Freire teve uma tecnologia que ajudava, exatamente, a trazer todas essas populações a um acesso à escolaridade. E é isso que eu lamento, que esta pedagogia não seja tão conhecida hoje no Brasil, e o meu apelo aos professores é que leiam Paulo Freire, e vejam a maravilha desse homem, que já há alguns anos teve uma visão do futuro que eu considero quase profética, em relação às nossas necessidades.

Ana Maria Mauad -

Salto Para o Futuro
Ana Maria Mauad

Atuação: Professora do Departamento de História e Pesquisadora do Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense.

Obras: Autora de livros e diversos artigos, dentre eles: Sob o signo da imagem: A produção da fotografia e o controle dos códigos de representação social, da classe dominante, na cidade do Rio de Janeiro. 1. ed. Niterói: LABHOI/UFF, 2002. v. 1. 465 p.

À medida que as sociedades se tornam mais complexas do ponto de vista da própria organização das suas atividades sociais e os grupos também se tornam mais diversificados, você vai começar a ter disputas em torno da identidade. E a memória vai ter um papel fundamental, no sentido de criar essa identidade social e de estabelecer, às vezes dentro do próprio grupo, parâmetros para gerenciar os conflitos sociais. Não há história sem memória, mas as duas coisas não são sinônimos.

Salto: O que é memória do ponto de vista histórico?

Ana Maria: Do ponto de vista histórico, a gente trabalha com a memória a partir dos referenciais históricos que são importantes. Fundamentalmente, você tem uma memória individual, que é uma memória “co-dividida”, que está cada vez mais se tornando objeto da História, na medida em que você está recuperando um pouco o papel do indivíduo nos processos sociais. Por outro lado, a gente trabalha com uma memória social, que longe de ser o somatório das memórias individuais, a memória social ela está ligada ao sentido de comunidade, à construção das identidades sociais e aos processos sociais como um todo.

Salto: Qual é a diferença entre memória social e a memória coletiva?

Ana Maria: A memória coletiva é um conceito que está ligado a uma determinada abordagem da memória social e que tem uma linha de perfil sociológico com a Sociologia do Durkheim, que pensa que as comunidades, elas são o somatório dessas memórias individuais, a partir de uma espécie de identidade coletiva. Essa abordagem foi muito criticada e a noção de memória coletiva, ela está sendo superada pela noção de memória social. Ou seja, são os atores sociais vivendo em comunidade que elaboram e processam essa memória, que tem a ver com a comunidade, com um conjunto de pessoas vivendo ao longo de um determinado tempo. Pode ser uma geração, podem ser várias gerações. Então, essa noção de memória social, ela vem dar uma complexidade à noção de coletivo, na medida em que você caracteriza melhor esse sentido do espaço aonde essa memória é gerada. Nada é gerado espontaneamente, existe um processo social através do qual essas memórias são operadas.
Fundamentalmente, a discussão sobre memória superou a noção de memória coletiva, na medida em que você dá identidade à voz dos atores sociais. Então, quando você trabalha com essa identidade múltipla, essa identidade trans-individual, você está, necessariamente, trabalhando com uma abordagem mais social. Trabalhando o grupo humano como um grupo social que envolve representações, códigos de comportamento e, também uma operação ao longo do tempo. A noção de geração é muito importante para a discussão sobre memória social.

Salto: O que significa a memória para a História?

Ana Maria: É uma discussão que vem se consolidando no Brasil, a partir dos anos 80, com o processo de redemocratização. É a necessidade que as sociedades que saem de períodos autoritários, de períodos traumáticos, têm de fazer lembrar. Então, o movimento social trouxe à tona a discussão sobre memória. No campo dos estudos históricos, a preocupação em tomar essa memória como objeto da História significa, necessariamente, criar um problematização. Ou seja, transformar essa memória plural, quer seja a partir da trajetória dos indivíduos, como as biografias sociais, quer seja através da vida em comunidade, quer seja através de conflitos ou até mesmo dos monumentos, que são os lugares de memória. Você vai tomando e problematizando essa memória como objeto da história. Ela não é mais alguma coisa que seja a própria História, ela é alguma coisa sobre a qual a História se debruça para poder estudar e para poder entender melhor.

Pergunta: Mas não há História sem memória...

Ana Maria: Não há História sem memória. E o fundamental é marcar essa diferença. Você tem um trabalho de rememoração, quando eu rememoro com os meus filhos a trajetória daquilo que gerou a nossa família. Então, isso é um trabalho de rememoração. Ele constrói identidade, cria significado e cria coesão de grupo. Quando a história toma a memória como objeto, ela cria um olhar distanciado. E faz a seguinte pergunta: por que é importante lembrar? E por que as sociedades históricas são lembradas? Em diferentes momentos da trajetória humana, os usos do passado são diferenciados. O papel da memória, por exemplo, para os gregos antigos, era muito mais importante que o papel da história científica. Porque, para os gregos, era muito mais importante a epopéia dos antepassados trazida pela poesia épica do que a história contada, que era muito mais alguma coisa ligada ao evento, ao acontecimento. À medida que as sociedades se tornam mais complexas do ponto de vista da própria organização das suas atividades sociais e os grupos também se tornam mais diversificados, você vai começar a ter disputas em torno da identidade. E a memória vai ter um papel fundamental, no sentido de criar essa identidade social e de estabelecer, às vezes dentro do próprio grupo, parâmetros para gerenciar os conflitos sociais. Não há história sem memória, mas as duas coisas não são sinônimos.

Salto: E no caso da escola, como você vê a cobrança para o aluno memorizar determinados conteúdos?

Ana Maria: No caso de ensino universitário, principalmente com o nível universitário um pouco mais alto, com um pouco mais de exigência, o que a gente cobra dos alunos é muito mais um posicionamento crítico em relação ao conhecimento que está sendo apresentado do que propriamente uma opção entre memorizar e decorar. O ato de rememorar é o ato de investir um certo sentimento em torno daquilo que você está aprendendo. As datas, elas não significam nada se elas não vêm embutidas de significados. Tem uma frase que eu gosto muito do Alfredo Bosi, em que ele diz que as datas são pontas de icebergs, ou seja, elas revelam estruturas aparentes de coisas muito maiores, de verdadeiras montanhas de significado. Então, se você assume que aquele conhecimento é o conhecimento desejado, ele é rememorado, ele faz parte do seu rol de lembranças, aquelas lembranças que valem a pena serem chamadas quando elas são demandadas.

Salto: Por que existem fatos que caem no esquecimento e outros que as pessoas têm uma capacidade maior de guardar, memorizar?

Ana Maria: Tem um pensador, no sentido mais amplo do intelectual francês, chamado Michel Polac, que discute a questão da memória. Ele fala de um trabalho coletivo de enquadramento de memória, uma espécie de formatação das memórias que devem ser lembradas. Da mesma forma que você define o que deve ser lembrado, que promove a coesão social, que cria identidade social, coisas que não podem ser lembradas, que devem ser esquecidas. Então, esse trabalho de enquadramento de memória é justamente o trabalho da valorização de datas cívicas, de valorização de determinados personagens da história, trabalhando mais com o discurso histórico propriamente dito. Mas do ponto de vista da memória espontânea, ou da memória individual, ela está ligada a situações de trauma, a situações aonde você simplesmente bloqueia situações que promovem desconforto. Não querendo fazer um paralelo automático, as sociedades históricas, elas também operam dessa forma. Os governos autoritários vão valorizar determinados padrões de lembrança que os glorifiquem. Então, você vai criando marcos de definição do discurso historiográfico e de discurso da memória social também, da memória nacional. Quer dizer, da memória social no seu modelo de memória nacional, que vai valorizar justamente esses “nós”, que vai criar o discurso dominante, de uma determinada época. E o ensino da História hoje vem discutindo bastante isso.

Salto: Qual a importância do registro da imprensa para a memória social e individual?

Ana Maria: É interessante, porque vou tentar discorrer sobre isso, com um caso, contando um caso. Eu venho trabalhando um tempo com fotografias como fonte de objeto da Historia e no meu doutorado, que eu defendi em 1990, eu passei boa parte do doutorado organizando as fotografias da minha família, da minha avó que era imigrante libanesa. A gente ia organizando as fotografias e ia fazendo entrevistas com ela. E o interessante é que, junto com as fotografias, ela guardava recortes de jornal, que são fatos históricos que ela considerava mais relevantes para entender a própria trajetória da família. Ela recuperava as fotos e, junto com as fotos, vinham esses fragmentos, esses retalhos cotidianos da imprensa, fundamentais para ela poder se inserir nessa coletividade maior. Então, eu acho que esse caso ilustra bem a forma como, de diferentes maneiras, com diferentes exigências, o sujeito individual, ele se relaciona com essa produção coletiva de memória também, porque a imprensa, eu acho que ela também exerce esse papel.

Salto: Qual é a relação imagem, memória e história?

Ana Maria: Para mim elas são entrelaçadas de modo a criar um discurso. Historicamente, quando você vai trabalhar com as mensagens sociais que se processam através do tempo, você trabalha por meio de vestígios. Então, a imagem é um vestígio, a fotografia, a imagem técnica, aquilo é um vestígio. A fotografia, o cinema, a própria televisão. E como é que você vai ter acesso a esse vestígio? E é um vestígio de quê? Ele é um vestígio de um discurso produzido por sujeitos, a partir de um investimento que também é um investimento de memória. Então, quando você recupera esse discurso, olhando e trabalhando como objeto da história, você está na verdade sistematizando e relacionando dois elementos fundamentais: que é a memória, como discurso, como objeto da história, e a imagem, como também imaginação, que alimenta essa memória. Então a relação entre esses três elementos, ela é fundamental para entender o passado e os usos que o presente faz do passado.

Joel Birman - O impacto da TV na subjetividade


Salto Para o Futuro
Joel Birman


Formação:Mestre em Filosofia pela PUC/RJ e doutor em Filosofia pela USP. Realizou seu pós-doutorado na Université Paris VII.
Obra:
- Psicanálise, ciência e cultura. Jorge Zahar, 1994.
- Freud e a filosofia. Jorge Zahar, 2003.


A televisão tanto pode agregar, como pode desagregar, ela pode agregar (...) existe um fenômeno muito comum, vamos falar aqui do Brasil (...) do Brasil das classes médias ricas, que é muito comum a gente entrar numa casa e observar. Tem uma televisão na sala, e cada membro da família tem sua televisão privada. Esse tipo de relação com a televisão certamente funciona como um desagregador da família, cada um tem o seu universo de solidão, onde cada um fica entretido no seu mundo, seja um jogo de futebol, seja um programa mais picante, seja um reality show, onde as pessoas não conversam e onde a televisão é uma maneira de fomentar isso que eu estava chamando de cultura da captura da imagem. Agora, se você tem uma televisão na casa, a televisão pode funcionar como elemento agregador.

Salto - QUAL É O IMPACTO DA PROGRAMAÇÃO DA TELEVISÃO NA SUBJETIVIDADE DAS PESSOAS?
Sem dúvida que a televisão tem um impacto na subjetividade das pessoas, até mesmo porque a televisão brasileira, no caso, ela é sobretudo uma TV de entretenimento. Quer dizer, é muito menos importante a dimensão jornalística da televisão e a dimensão de debates críticos na televisão do que a dimensão propriamente de entretenimento.

A televisão realiza o que a gente chama hoje de uma sociedade fundada na imagem e não a dimensão de um discurso fundado no conhecimento. Me parece que essa dimensão imagística da televisão, essa dimensão da imagem, ela forma um tipo de subjetividade diferente de uma subjetividade anterior, que era formada, sobretudo, a partir da discursividade. Eu acho que essa localização do impacto da TV na subjetividade, ela teria que ser pensada diante de um contexto mais amplo, que é a produção de uma sociedade, de uma cultura centrada na imagem, em que a imagem tem um poder de captura, diferentemente de um discurso falado ou escrito. Quer dizer, uma cultura centrada na escrita é muito mais crítica do que uma cultura centrada na imagem, em que qualquer um de nós é capturado pela imagem, exatamente porque a imagem é polivalente, ela pode dizer muitas coisas ao mesmo tempo. Nós temos, diante da imagem, um menor desenvolvimento da nossa capacidade crítica. Então, eu acho que essas discussões atuais em torno da relação de subjetividade e televisão passam todas por essa relação com a cultura da imagem e a consideração da imagem como sendo algo da ordem da captura.

Salto - EXISTE ALGUMA POSSIBILIDADE DE O ESPECTADOR FICAR ATENTO PARA TOMAR CUIDADO PARA QUE ESSA CAPTURA NÃO SEJA TÃO DESTINADA À SUBJETIVIDADE E POSSA AGUÇAR A ANÁLISE CRÍTICA DO QUE ESTÁ SENDO VISTO NA TELEVISÃO?

É claro que a televisão faz dispor para as pessoas uma série de universos aos quais ela não teria acesso, digamos assim. Eu vejo isso sobretudo em alguns programas jornalísticos ensaísticos, que dão acesso a um caudal em informações, digamos assim, em que a dimensão crítica pode estar disponível para o espectador. Agora em programas em que a dimensão discursiva é menos presente, proporcionalmente falando, a dimensão de captura se torna mais violenta, mais intensa, mas evidentemente que tanto numa situação como em outra, na dimensão discursiva ou na dimensão do programa de entretenimento, a subjetividade vai estar implicada de uma forma ou de outra.

Por outro lado, a gente pode esquecer que é muito mais simples, do ponto de vista da exigência do espectador, assistir à televisão, por exemplo, do que ler um livro. O livro exige uma espécie de energia mental, uma espécie de esforço que o leitor faz, que é muito menos exigido de um espectador de televisão, que pode ficar numa atitude mais passiva, saboreando as imagens que são ofertadas para ele. Então, o livro dá mais trabalho para o leitor do que a televisão, certamente.

Salto - BANALIZAÇÕES DA VIOLÊNCIA E A DA PRÓPRIA SEXUALIDADE ATRAVÉS DOS PROGRAMAS DE TV INFLUENCIAM O COMPORTAMENTO DA POPULAÇÃO?

Eu acho que a gente não pode diabolizar a televisão. Eu acho que seria uma coisa primária diabolizarmos a televisão, quando a gente vê meninos americanos que matam colegas na escola, e que eles aprenderam isso, supostamente, vendo programas violentos de televisão. Me parece que a relação entre televisão e comportamento, no caso os comportamentos violentos ou de forte apelo sexual, ela não pode ser vista de uma maneira mecânica. Até mesmo porque a gente não pode entender o comportamento, por exemplo, de jovens americanos que matam os colegas na escola apenas pela influência da televisão. Há toda uma tradição americana de faroeste e de uma sociedade em que a autorização de portar armas está presente, inclusive os pais têm armas em casa. Então, eu tenho que entender que aquilo que aparece na televisão é uma espécie de microcosmos da sociedade. Eu não posso simplesmente diabolizar a televisão como responsável por aquilo, quando ela faz parte de uma engrenagem que eu diria muito mais vasta e muito mais ampla. Considerando isso, é evidente que, ao assistir filmes com alto grau de exibição de cenas perversas, sexualmente falando, ou em que predomine a violência, a criança ou adolescente têm acesso a mundos, a personagens, a contextos... Evidentemente que a televisão pode provocar uma dimensão do que, em psicanálise, nós chamamos de identificação com os personagens que são apresentados, sobretudo nos filmes, menos do que nos programas jornalísticos onde aparecem as cenas de violência, como as que acontecem, por exemplo, hoje no Rio. Mas na dimensão da ficção, dos filmes de entretenimento, essa dimensão da identificação de quem assiste, ou seja, na relação do espectador com o filme, essa identificação pode acontecer com a criança, com os adolescentes e com os adultos, de uma certa maneira.

Então, essa dimensão da identificação, ela pode ter um efeito sobre o comportamento não de maneira imediata, mas de uma maneira mediata, mas isso sem considerar essa relação, de uma maneira mecânica, que me parece uma forma simplista... Essas novas formas de programas que se apresentam hoje, do ponto de vista da cena subjetiva, me parecem muito mais preocupantes, por exemplo: esses programas tipo reality show, esses eu acho que têm um impacto sobre a subjetividade muito mais intenso e muito mais violento, porque você está vendo na televisão personagens que são do seu cotidiano, você pode localizar alguém que pode ser parecido com seu pai, com seu irmão, com seu vizinho, com seu tio, pessoas que fazem parte de seu mundo. Nesses programas se alimenta uma espécie de ética rivalitária, competitiva, em função de um prêmio. No caso aí da TV Globo, dimensões muito perversas da rivalidade, da competição humana são alimentadas e são valorizadas, pelo fato de que são mostradas meia hora, vinte minutos, todos os dias na televisão. Isso eu acho que tem um efeito muito mais nefasto, muito mais violento sobre os espectadores, até mesmo porque aí há a abolição dessa fronteira entre o privado e o público, entre a intimidade e mesmo a privacidade, o privado começa a se apagar.

Salto – COMO ESSA QUESTÃO DO QUE É PÚBLICO E PRIVADO ESTÁ PRESENTE NA VIDA DAS PESSOAS?

Eu acho que o efeito da televisão, na vida dos artistas – as revistas tipo Caras são um exemplo paradigmático disso – estimulam a curiosidade sobre a vida dos artistas, entram na cena imaginária da subjetividade das pessoas. Não podemos perder de vista que nós vivemos numa cultura performática, aquilo que se denomina filosófica e sociologicamente como sociedade do espetáculo. Uma sociedade do espetáculo, onde eu sou aquilo que eu mostro ser (...), o que de verdade eu sou não importa, o que importa é o que eu aparento ser numa cena, sempre numa cena, onde você tem a disseminação disso, através de uma imagem, seja jornalística, televisiva ou cinematográfica, etc. E o artista, no caso, ele é o paradigma do sujeito performaticamente bem sucedido. Então, essa espécie de voyeurismo a respeito do artista, o artista que faz sucesso, de como é a vida dele, como são os hábitos dele, como são as escolhas, qual é a comida que ele come, quais são as mulheres ou os homens que escolhe, é uma imagem de sucesso dessa performance, com a qual as pessoas, de uma maneira inconsciente, querem se identificar, como se isso fosse uma fórmula de espetáculo e de sucesso. Então os artistas são particularmente figuras paradigmáticas da nossa contemporaneidade, enquanto modelos de identificação subjetiva, que é como se eles fossem os cidadãos que tivessem dado certo, isto é, são bonitos, têm sucesso, conhecem belas mulheres ou belos homens, enriquecem, enfim, todos os signos do “self made man”– da pessoa bem-sucedida, que a cultura do espetáculo promove como sendo os heróis da nossa contemporaneidade.

Salto - QUAL A IMPORTÂNCIA DA TELEVISÃO DENTRO NO SEIO DA FAMÍLIA? ELA PODE AGREGAR OU DESAGREGAR? COMO A FAMÍLIA DEVE ATUAR CRITICAMENTE NESSE ASPECTO DA RELAÇÃO COM A PRÓPRIA TELEVISÃO?

A televisão tanto pode agregar, como pode desagregar, ela pode agregar (...) existe um fenômeno muito comum, vamos falar aqui do Brasil (...) do Brasil das classes médias ricas, que é muito comum a gente entrar numa casa e observar. Tem uma televisão na sala, e cada membro da família tem sua televisão privada. Esse tipo de relação com a televisão certamente funciona como um desagregador da família, cada um tem o seu universo de solidão, onde cada um fica entretido no seu mundo, seja um jogo de futebol, seja um programa mais picante, seja um reality show, onde as pessoas não conversam e onde a televisão é uma maneira de fomentar isso que eu estava chamando de cultura da captura da imagem. Agora, se você tem uma televisão na casa, a televisão pode funcionar como elemento agregador. Certamente a grande maioria das famílias não tem renda para poder ter vários aparelhos, e assistir à TV, hoje, pode ser visto como um substitutivo daquilo que, na minha infância, era o jantar de família. O jantar era o momento em que chegávamos da rua, uns da escola, outros do trabalho, era um momento em que a família se reunia. Há uma certa ritualidade meio sagrada nessa reunião familiar, e eu tenho a impressão de que hoje em dia nas casas que têm televisão, em que a televisão ocupa, inclusive, um lugar destacado na casa, ela esta na sala de jantar, é o momento em que a família se reúne, quando os diálogos se estabelecem entre as pessoas a partir do que elas estão vendo, seja uma notícia jornalística, seja um comentário sobre um filme. Então, nesse contexto, a televisão funciona como uma dimensão de reconstituição de uma família que socialmente está fragmentada.

Salto - QUAL É O GRAU DE IMPORTÂNCIA DA TELEVISÃO NA VIDA DA SOCIEDADE BRASILEIRA HOJE, EM RELAÇÃO A OUTRAS POSSIBILIDADES DE ENTRETENIMENTO E DE INFORMAÇÃO EXISTENTES?

É claro que a televisão ocupa um espaço muito grande hoje na vida de uma criança e de um adolescente, em relação a duas ou três décadas atrás, quando a televisão estava engatinhando no Brasil. Mas a gente pode separar isso da grande transformação que a sociedade brasileira sofreu, e que é o fato de que não só o pai, como as mães trabalham, isso tem uma transformação central na família. A mãe hoje sai para o trabalho e, anteriormente, a mãe era uma figura muito importante na criação de outros tipos de laços sociais dentro da casa. Então, na ausência da mãe, na ausência do pai, a criança vai se entreter, para não se sentir solitária, diante da televisão. Ela vai ver TV para estar com alguém. E, evidentemente, esse estar com alguém protege a criança da solidão e de um certo sentimento de desamparo. E, ao mesmo tempo, a televisão pode levar a criança para universos às vezes não muito desejáveis, mas me parece que a televisão ocupa um lugar que, anteriormente, era centrado na figura materna. Eu acho que a grande transformação produzida na família com autonomização da mulher, com os direitos da mulher, é que isso transformou também a estrutura da família. O que eu quero dizer com isso é o seguinte: não é que as mulheres têm que voltar a estar em casa, largar as suas obrigações para cuidar dos seus filhos, para os filhos não serem desviados pelo vilão da televisão, absolutamente, o que eu quero dizer com isso é seguinte: os pais, tanto os pais como as mães, vão ter que ter um trabalho de entretenimento, de ligação, de educação dos filhos, e isso é uma tarefa dos dois, para dar à televisão o tamanho que ela possa ter na vida das crianças e fazer outras ofertas de entretenimento às crianças... Mas, certamente, a partir do movimento feminista, isso é uma tarefa a ser igualmente distribuída entre o pai e a mãe, não é necessariamente, segundo o modelo tradicional, uma obrigação feminina. Eu acho que isso não pode se pensado fora da grande transformação familiar que criou um outro lugar social e político para a mulher.

Salto - O OLHAR SE EDUCA?

O olhar seduz e o olhar também educa. É preciso saber que tipo de imagem você está oferecendo. Em toda a idade clássica nós fomos educados pela pintura. A pintura é uma educação pelo olhar, em que nós temos um tipo de gosto, um tipo de acesso ao mundo que a palavra escrita não nos oferece. Então, tem uma dimensão que as artes plásticas, as artes visuais oferecem, que é fundamental, e onde a dimensão da sedução é fundamental. Nós não temos que diabolizar a sedução. A sedução é ótima, agora é preciso saber que imagens a gente oferece nessa espécie de educação sentimental do olhar.

Salto - O SENHOR ASSISTE TV?

Eu assisto TV. Devo assistir TV um pouco menos que a média da sociedade brasileira. Eu freqüentemente assisto aos telejornais, isso completa a leitura que eu faço dos jornais pela manhã. Eu assisto futebol na televisão, que eu adoro. Eu assisto filmes na televisão e assisto programas de debate. Outros tipos de programas, tipo novela de televisão, eu não gosto muito. Reality show eu assisto como um antropólogo interessado em saber: o que é isso? Mas fundamentalmente é cinema, futebol, telejornais, programas de discussão de todas as ordens que me interessam.

Salto - É PRECISO INTERFERIR NO QUE A CRIANÇA VÊ NA TELEVISÃO OU A PRÓPRIA CRIANÇA, COM SUA ORGANIZAÇÃO MENTAL, VAI SE ORGANIZANDO DIANTE DO QUE VÊ?

Tudo que a criança vê vai ter um poder impactante sobre ela. Eu acho que a criança não pode ser deixada por conta dela própria, no sentido de que é preciso saber o que programa oferece ou não oferece, isso que inicialmente eu chamei aqui de uma dimensão crítica da imagem, os pais têm que observar isso. Às vezes a criança vai perguntar, a respeito do que ela viu: o que que é isso? Como é que é aquilo? Ela vai fazer perguntas, que faz parte da própria constituição psíquica da criança a questão do “por quê”? Por que isso? Por que aquilo? E os pais, independente dos porquês das crianças, eu acho que os pais e professores devem ficar preocupados, no sentido de trazerem de volta a dimensão crítica, que freqüentemente os programas de entretenimento não trazem. Os pais têm que fazer o papel de uma consciência crítica, aproveitando aquilo para transmitir certas regras de moralidade, regras éticas, digamos assim, de desenvolvimento do pensamento. E, nesse sentido, eu acho que as experiências das crianças podem ser muito enriquecidas com esse tipo de colaboração fundamental das figuras parentais e dos professores.