sábado, 8 de agosto de 2009

ALLEN GINSBERG - ARTE BEAT


Folha - O sr. acha que o cidadão ainda é capaz de influenciar a política?
Ginsberg - Acho que você pode perceber a influência de gente como Burroughs ou Gary Snider ou mesmo Kerouac, talvez minha própria, na penetração do pensamento oriental, o que teve algum importe político _consciência ecológica, crítica da guerra às drogas, fim da censura sobre os livros e, agora, da censura sobre a TV e a mídia eletrônica, que o senador Jesse Helms e a Federal Comunications Comission impuseram. Em última instância, acho que alguns indivíduos ajudaram a pôr fim à Guerra do Vietnã _Abbie Hoffman, David Dellinger, Dorothy Day e outros líderes do movimento antibélico de fato afetaram o resultado final.
Folha - Afetando a consciência do público?
Ginsberg - Bem, Ellsberg disse-me que, quando trabalhava como assistente de Kissinger durante a eleição de 1968, Nixon anunciou um plano secreto para acabar com a guerra. O plano secreto era o de lançar bombas nucleares sobre o Vietnã do Norte. E só o protesto nas ruas, o movimento antibélico, liderado por indivíduos, conseguiu detê-los. Quer dizer, eles tiveram medo de que o país se cindisse se de fato fizessem aquilo.
Folha - O que o sr. acha que de fato aconteceu a Kerouac nos anos 60? Não conseguiu se adaptar ao novo ambiente social?
Ginsberg - Ele estava bebendo, velho. Além disso, jamais teve muita disciplina. Jamais aprendeu a meditar. Jamais teve uma figura de autoridade, um guru hierárquico, com exceção de Burroughs _mas não teve um verdadeiro professor zen. Havia um problema na relação de Kerouac com sua mãe. Os ataques incessantes da mídia e da "intelligentsia...
Folha - Mas o sr. também foi atacado várias vezes e não reagiu como ele.
Ginsberg - Sim, mas eu tinha mais apoio, porque era um bom rapaz judeu. Ninguém me atacava integralmente como faziam com ele. Todos sabiam que eu me havia formado em Columbia. Perceberam que não me podiam tachar de ignorante ou delinquente juvenil. Podiam me atacar por ser inconveniente ou homossexual. Mas Kerouac eles podiam atacar como bárbaro "goyishe", e isso eles não deixaram de fazer. Ademais, ele foi traído por Kenneth Rexroth (poeta e crítico influente em San Francisco), cuja resenha do livro-poema "Mexico City Blues" era realmente maldosa, dizendo que Kerouac não sabia escrever, que ele era um fogo de palha e sua obra um palavrório incoerente.
Folha - O sr. imagina por que tantos ocidentais têm sido atraídos pelo budismo no último quarto de século?
Ginsberg - Porque estão escapando à noção unilateral, irascível e gananciosa de monoteísmo, onde há um só Deus e acabou. Só há uma noção do que seja correto, e tudo o mais é maldito, ou digno de ostracismo, ou ainda "contracultura McGovernick" _conhece a expressão? (de George McGovern, democrata liberal que concorreu com Nixon em 1972).
O deputado Newt Gingrich (líder republicano e presidente da Câmara) declarou guerra contra o que chamou de "contracultura McGovernick". Foi manchete no "The New York Times" _querer fazer do Partido Democrata em bloco um representante da contracultura. E ele disse que "por volta de um terço das pessoas na Casa Branca já usaram drogas". Não que ele próprio não tenha! Gingrich em pessoa disse ter fumado maconha _e tragado. Depois disse: "Grande erro".
Pois bem, aí está essa aposta fundamentalista, monoteísta, numa verdade absoluta, um fascismo ou uma ditadura mental no qual toda autoridade deriva do ponto de referência central. Se é essa a direção que estão tomando, e se as igrejas liberais são demasiado débeis e desinteressantes, então tudo o que os fundamentalistas estão atacando _coisas como o relativismo moral, o relativismo psicológico ou a variabilidade_ torna-se mais atraente, justamente por ser mais próximo da mente, do homem. E toda a minha poesia refere-se aos pensamentos por que passei. Ela não tem que ser tão verdadeira quanto Deus; basta ser verdade que eu pensei aquilo. Não estou certo de que alguém possa querer mais de seus pensamentos. Alguém poderia ter esse pensamento final que representaria a concepção última do universo? A exceção é a idéia de que a mudança é permanente.
Folha - Para onde o sr. acha que a poesia está indo?
Ginsberg - Acho que haverá um grande renascimento da poesia em oposição ao ataque neoconservador à arte, hoje, nos EUA. Os neoconservadores não têm quaisquer artistas, são inanes imaginativamente. Assim, depois que eles abolirem a National Public Radio, a TV educativa e o National Endowment for the Arts, todos sairão como cães raivosos latindo contra o governo.
Folha - O sr. foi influenciado pelas canções políticas que ouvia no círculo de amizades de seus pais? O sr. usou "Soviet Star" em "Kaddish".
Ginsberg - Eu conhecia Josh White e ouvia as "Dustbowl Ballads". Ouvia Burle Ives nos tempos de escola, quando ele era um jovem cantor, e também Leadbelly _"Bourgeois Blues" e "Jim Crow Blues"_ que são ambos abertamente políticos ao mesmo tempo que fazem blues. Dylan tem uma faceta apocalíptica, agora como antes _de "You Gotta Serve Somebody" até "Hard Rain".
Folha - E The Clash?
Ginsberg - O Clash é político, mas muitos grupos de rock estão envolvidos com algum tipo de questão social, mesmo U2 e Sonic Youth, fazendo o que podem. Os Stones tentaram com "Street Fighting Man". Até os Beatles tentaram. Um caso chocante com os Beatles foi, em certa ocasião, durante a Guerra do Vietnã, quando eles tinham um álbum popular mesmo, cuja capa mostrava um monte de bonecas cobertas de sangue. Livingston, presidente da Capital Records, recusou-se a aceitar a capa. Era um grande sinal social. Em vez de se eximirem, os Beatles fizeram esse gesto social, antibélico. Era uma coisa de fato terrível. Lennon acabou declarando sua independência pouco depois, em 71 ou 72. Fala-se muito que o rock foi cooptado nos anos 70, tornou-se baboseira, comércio e mercadoria. Não deixa de ser verdade, mas havia também a subversão do "glitter rock" e...
Folha - O punk.
Ginsberg - O punk, mas também rock n'roll de qualidade, a tendência satânica.
Folha - E Frank Zappa.
Ginsberg - Ou os travestis.
Folha - Isso, David Bowie estava em alta.
Ginsberg - "Diamond Dogs".
Folha - O que acha das letras dos Beatles?
Ginsberg - Eu gosto delas, acho-as ótimas. Especialmente "A Day In The Life" _é um grande poema: "Now we know how many holes it takes to fill the Albert Hall" (Agora sabemos com quantos buracos se enche o Albert Hall). É um poema moderno muito bom, que, pela construção, pelos cortes abruptos e pela modernidade, me faz pensar em "Zone" de Apollinaire, mas muito comprimido. Muitas das letras são muito engenhosas e modernas, como "Lovely Rita, Meter Maid". "She's Leaving Home" é surpreendente, também musicalmente, e a letra é muito simpática.
Estive em Londres no ano passado e fui visitar Paul McCartney. Ele trouxe uma resma de poemas. Queria que eu os examinasse e criticasse. A maior parte me pareceu vaga e algo sentimental, com alguns instantes em que se percebiam a alegria e o brilho dos Beatles, mas o ponto central da conversa foi: por que os poemas eram tão abstratos e nebulosos, quando as letras dos Beatles são por vezes tão precisas. E ele disse: "Bem, eu e John sabíamos disso. Em música, você tem mesmo que ter seus Strawberry Fields _lugares precisos, fatos reais_ mas eu achava que com poesia seria diferente". E eu disse: "Vocês estavam no caminho certo!". Você sabe quem não é nada mau como poeta? Jimmy Carter. Li uma resenha maldosa no "The New York Times" que o depreciava, mas abri o livro em algum shopping e fiquei impressionado _era concreto, detalhista, perspicaz. Não era algo de poeticamente dopado. Era uma poesia judiciosa, levemente realista, cínica, quase à maneira de Thomas Hardy.
Folha - Queria lhe perguntar sobre algo que encontrei diversas vezes em sua poesia _a combinação e a diferença entre desejo e amor. O sr. vê as duas coisas como idênticas ou cada qual ocupa uma esfera diferente em sua poesia?
Ginsberg - Sorte de quem conseguir combiná-las. Se o seu coração bate mais forte por alguém e se além disso há desejo, rapaz, isso é ótimo _ao menos se você conseguir satisfazê-lo. Tenho vários relacionamentos que não envolvem desejo genital ou qualquer coisa do gênero. E são todos satisfatórios _com mulheres e com homens. Quero dizer que há homens pelos quais sinto afeição despida de desejo.
Folha - E Neal Cassady?
Ginsberg - Com Cassady é diferente. Havia amor, mas desejo também. Gostava dele das duas maneiras. Peter Orlovsky, desejo total, mas ao mesmo tempo um amor muito forte e, agora que nenhum de nós está em forma para o sexo _já que mudamos fisicamente_, ainda ouço Peter em meu coração, sem nenhum anseio sexual, mas com certeza ainda o ouço em meu coração.
Folha - Pode-se dizer que toda a sua obra lidou com o aspecto pessoal. O manifesto de Frank O'Hara sobre o "Personism" dizia: "Percebi que usar o telefone era tão fácil quanto escrever um poema" _mas é claro que ele continuou a escrever poemas. No poema "Now and Forever", o sr. diz querer ser lembrado por sua poesia. O que é mais importante para o sr., o modo de levar a vida ou a arte que o sr. cria?
Ginsberg - As duas são uma mesma coisa. A poesia e a vida são por assim dizer idênticas. A poesia vem das coisas que penso na vida real ou das atitudes que tomo. Tal como na expressão de Whitman _"quem toca isto, toca o homem"_, gostaria que a poesia refletisse uma pessoa real, na linha do candor whitmaniano. Se você quer ser cândido em sua escrita, você tem que não se envergonhar do que faz na vida. Ou pelo menos não ser tão envergonhado a ponto de não poder escrever! Mas o veículo das palavras é a respiração, e elas são reprodutíveis pela respiração de qualquer um. As palavras e a respiração podem ser idênticas ou intercambiáveis.
Folha - O sr. se impõe tarefas em poesia? Quero dizer, o sr. alguma vez diz: "Por Deus, eu gostaria de escrever um poema sobre isto ou aquilo"?
Ginsberg - Ah, sim _noite passada estava lendo um panfleto de Todd Colby, da banda de rock Drunken Boat. Era engraçado, e quando acabei de ler aquela coisa agressiva, pensei: "Bem, eu também vou escrever um poema agressivo". Pus-me então a imitar Todd Colby. Fiquei acordado até as três da manhã e escrevi uma coisa que batizei de "It's Time I Got Mad". Aí está um conceito _ficar louco.
Folha - Isso me faz lembrar seu poema sobre Pessoa, "Salutations to Fernando Pessoa", que me interessou porque eu o li de duas maneiras diferentes. Numa das leituras, o sr. está de fato louco, com ciúmes de Pessoa; mas na outra, o sr. ama Pessoa e a raiva" é uma espécie de encenação. Lembro que o sr. disse certa vez que, se nascesse de novo, gostaria de ser Pessoa. Fui reler o poema de Pessoa, "Saudação a Walt Whitman", do heterônimo Álvaro de Campos.
Ginsberg - É um poema colossal, mas ele "hiper-whitmaniza" Whitman. Quero dizer que ele incorpora o entusiasmo de Whitman ao mesmo tempo em que o parodia; ele simultaneamente homenageia e acaba com Whitman. Você sabe: coisas como "o grande masturbador" ou "o bastardo do universal" _mas o que eu de fato gostei foi que, em vez de desatarraxar a porta, ele a derruba. E eu o estava imitando, mas outra vez indo um pouco além, como ele fizera com Whitman. É uma imitação de "Saudação a Whitman", porque eu "curto" muito Pessoa. Eu gosto muito de sua extravagância e de seu candor _seu egocentrismo impressionante, bem-humorado, expansivo e auto-consciente, que se torna quase sublime. Isso é personalidade.

VINCENT KATZ é poeta e tradutor; seu livro mais recente é "Charm", com traduções do poeta latino Sextus Propertius

Tradução de SAMUEL TITAN JR.

Folha de São Paulo

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