quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Maria Odila da Silva Dias


Maria Odila da Silva Dias
“O historiador precisa de surpresas”

Aspectos da Ilustração no Brasil e A Interiorização da Metrópole. Que historiador brasileiro nunca leu esses artigos? Sua autora, Maria Odila da Silva Dias, trata em ambos os textos de um problema comum: a continuidade das elites coloniais após a Independência, que teriam implementado seu projeto de nacionalidade através da consolidação da hegemonia do Rio de Janeiro sobre as demais províncias do Brasil, retomando o processo colonizador, as relações de nepotismo e a confusão entre o público e o privado. “Nós nos colonizamos a nós mesmos, como país. Então, a exploração não veio do outro, do imperialismo, da metrópole, não veio de fora. Nós nos oprimimos entre nós”. Análise perspicaz de uma historiadora que se tornou referência para a historiografia em temas que vão do inglês Robert Southey à luta das mulheres por seus direitos na cidade de São Paulo.

Entre samambaias e seus três cachorros Daschund (Bibi, Nina e Popoldo), Maria Odila recebeu a Revista de História em seu apartamento no bairro de Higienópolis, em São Paulo. Na estante, uma foto de Sérgio Buarque de Holanda, professor e amigo que levou Maria Odila a lecionar na USP quando tinha apenas 21 anos. “Era uma presença privilegiada, mas que também me intimidava muito”. Professora militante, retornou recentemente às salas de aula, ensinando e encantando uma nova geração de estudantes com suas idéias sobre o trabalho do historiador: “Eu acho que tem razão esses hermeneutas que dizem que a história é muito afim à arte, à poesia, à pintura”.

Revista de História: A senhora muito nova começou a lecionar História na USP, junto com o professor Sérgio Buarque de Holanda. Como foi essa experiência?

Maria Odila: Eu tinha 21 anos e as pessoas, em geral, naquela época, faziam curso mais tarde. Então, tinha alunos de 30, 40 anos que não me levavam muito a sério. Eu ficava absolutamente séria para poder me impor. Fazia os seminários do curso do professor Sérgio de História do Brasil. Ele me chamava em casa, despencava uns livros da parede e me dizia qual o texto ia ser trabalhado. Ele não apenas me indicava bibliografia, me dava os livros na mão. Como professor, Sérgio falava baixo, “pra” dentro, muito enrolado. Mas tive com ele uma convivência realmente privilegiada, convivência que também me intimidava muito. Hoje nem sei como consegui escrever os meus primeiros trabalhos, porque levar para ele ler era sempre um drama.


RH: O professor Sérgio dizia que o historiador é uma espécie de taumaturgo e um exorcista. E para a senhora, o que é o historiador?

MO: Eu tenho a impressão que durante muito tempo o historiador tinha que ver de novo as mesmas coisas. Parecia que a gente tinha que redescobrir os temas. Acredito que exorcista a gente sempre tem que ser, porque senão fica fazendo aquela história apologética, lá do Instituto Histórico. Isso, ninguém quer fazer. O professor Sérgio tinha uma militância contra o Instituto Histórico, contra os memorialistas, contra aquele amor do passado pelo passado. Acho que o historiador precisa de surpresas, do novo. Foi essa a idéia que tive quando escrevi Cotidiano e poder. Tive que largar quase tudo que eu tinha aprendido, uma erudição excessiva, e seguir um caminho que me parecia novo.

RH: Qual é o lugar da intuição no trabalho do historiador?

MO: O historiador não pode interpretar com conceitos racionais, intelectualísticos. Isso, de certa forma, limita e faz com que ele deixe de traduzir as temporalidades. Essa relação, esse diálogo entre o presente e o passado deixa de existir se você se prende a conceitos muito racionais e permanentes. Acho que o trabalho do historiador deve ser descobrir entre os pormenores, o sentido que eles fazem. Não é seguir um planejamento. Se você parte muito do geral para o particular é alguma coisa que não é História, porque não está interpretando o movimento do tempo, os personagens no tempo. Eu acho que tem razão esses hermeneutas que dizem que a História é muito afim à arte, à poesia, à pintura. Não é um trabalho muito intelectual.

RH: Como foi para a senhora voltar a dar aula para graduação?

MO: Voltei há dois anos. Hoje vejo os estudantes muito restritos. Você não pode indicar um livro em francês, inglês, que há reclamações. É um pouco frustrante. Se bem que sempre existem os quatro ou cinco futuros historiadores. Esses estão sempre lá e podemos identificar de cara, são aqueles que têm interesses específicos, questões já formuladas.


RH: E o que a senhora recomendaria, hoje, aos jovens orientadores?

MO: Que pergunta mais difícil! Eu sempre me pergunto o que é orientar. Sobretudo, quando eu tenho problemas. Eu já cheguei, agora na PUC, a escrever um breviário [risos] das relações orientando-orientador. Antes acho que isso não precisava ser escrito, mas, agora, precisa. E eu acho que essa relação é alguma coisa dessas que não se define. O professor Sérgio citava Nietzche, dizendo que tudo o que é História não se define. Essa é uma relação de afinidade que ocorre mesmo por acaso.

RH: Essa afinidade existiu entre a senhora e Caio Prado Júnior?

MO: A relação com Caio foi muito importante para mim. Ficamos juntos por quatro anos. Mas havia uma diferença grande de idade, trinta anos. Tenho páginas e páginas de conselhos dele, dizendo como eu devia fazer minha tese, como é que eu devia escrever. Não pude aplicar nenhum. Porque interpretação é uma coisa muito pessoal, não é? Nem o orientador tem esse papel. Mas o Caio era uma personalidade fascinante. Vivemos momentos muito difíceis. Ele foi preso e eu tinha que levar o almoço todo dia para ele na prisão e, com isso, fiquei em contato direto com os torturados, que via chegando na Tiradentes sem conseguir andar porque o pé estava completamente escangalhado. Então, iam arrastando as pernas. Era muita gente conhecida, Frei Beto, um aluno meu dominicano, boa parte da faculdade de filosofia estava lá. Caio ficou quase um ano preso. Era uma rotina de pesadelo e um clima muito pesado. Enquanto eu conversava com o Caio, os soldados ficavam apontando a baioneta para nós dois. Eu era esquentada e dizia: “o senhor abaixa isso. Não tem motivo para estar apontando uma arma”. E os soldados foram fazer queixa com o coronel.


RH: E como que o Caio reagia diante disso?

MO: Acho que ele estava acostumado a ser preso. Eu não estava acostumada com aquela perseguição dentro da sala de aula, uma porção de gente da Polícia Militar ouvindo a aula. Dentro da prisão, Caio foi procurado para dar um curso de marxismo para seis sargentos. Eram oficiais que estavam interessados em saber o que era o marxismo, saber exatamente contra o que estavam lutando. Acompanhei boa parte desse período ao lado dele, até que às tantas tive que ir embora do país, porque não agüentava mais aquilo, o contato com a tortura. Entrei numa crise imensa e fui terminar o meu doutorado lá fora, nos Estados Unidos, onde o Caio não podia ir.


RH: A relação de afinidade foi mantida?

MO: Ah, sim. Quando eu terminei Cotidiano e poder, fui visitá-lo com o livro. Mas ele já tinha sofrido um aneurisma. Lia e não entendia o que estava lendo. Foi o começo de um fim muito triste que ele teve.

RH: Apesar da senhora, obviamente, ter um posicionamento político, nunca se filiou a nenhum partido. Por que?

MO: Tenho a impressão que a pessoa que está na universidade, estuda e produz, tem que militar através do próprio ofício. Então você escreve de uma forma militante, dá aulas de uma forma militante, tem de fazer a sua política no dia-a-dia. E essa é uma convicção que eu sempre tive. A vida política é outra esfera de atuação, porque você deixa de ser você mesmo para obedecer ou entrar nos cânones do partido ao qual está ligado. Aí, deixa de ser uma militância criativa, que é a que o professor universitário deve ter.

RH: Uma contribuição importante da senhora para a historiografia brasileira foi a análise do liberalismo. De que maneira ele marcou a trajetória do país até os dias de hoje?

MO: Esse liberalismo não passa de verniz. É na verdade um suposto liberalismo que veio sobreposto às relações que eram tudo, menos liberais. As relações com os escravos, com os forros. O liberalismo ficou marcado, portanto, como uma capa que encobre o autoritarismo, que encobre a falta de uma verdadeira democracia.


RH: Estamos falando de idéias fora do lugar?

MO: Bom, eu nunca achei que fosse fora do lugar, elas tinham o seu papel. Na Inglaterra, por exemplo, o liberalismo, se visto pela perspectiva dos operários, também era fora do lugar. Quer dizer, essa metáfora do nosso colega das Letras [Roberto Schwarz] nunca fez muito sentido. É fora do lugar dependendo do ponto de vista e da classe social a que você se refere. Era fácil ver no Brasil que as elites podiam ter apenas um jargão liberal, numa sociedade de escravos, excludente. Até hoje essa ideologia liberal se mantém como um verniz, dentro dessa política das elites, que não tem a ver com o país todo, mas que marcou a formação do estado brasileiro de uma forma um pouco perversa. [idéia repetida]

RH: E o historiador inglês Robert Southey, como foi a descoberta desse tema?

MO: Esse homem me perseguiu uns oito anos da minha vida. [risos]. Southey era muito interessante, um grande poeta romântico. Me interessei, sobretudo, pelo olhar do viajante, antes dessa moda dos estudos culturais, da crítica da cultura eurocêntrica de hoje. Eu tinha a necessidade de entender por que aquele inglês, que nunca tinha vindo ao país, quis escrever uma história do Brasil. Foi interessante, porque o tio dele morava em Lisboa e colecionava documentos. Era uma espécie de espião do governo britânico. E essa biblioteca do tio dele veio parar nas mãos dele e, assim, ele resolveu escrever sobre o Brasil no contexto das guerras napoleônicas. O primeiro volume da obra é de 1810 e, o último, de 1822. Então, ele já estava discutindo a independência e a inconfidência mineira. Southey tinha aquela idéia da missão civilizadora dos ingleses em nome de uma redenção de todo o passado católico. Southey era muito preconceituoso com os portugueses e com o catolicismo.


RH: A interiorização da metrópole é um trabalho da década de 60 e que ainda hoje suscita uma discussão muito interessante. Qual a importância desse tema para o debate sobre a História do Brasil?

MO: Eu tenho impressão de que essa consciência de que somos nós mesmos os colonizadores é fundamental. Nós nos colonizamos a nós mesmos, como país. Então, a exploração não veio do outro, do imperialismo, da metrópole, não veio de fora. Nós nos oprimimos entre nós. Acho que a questão fica mais interessante para nós se imaginamos que a metrópole era, muitas vezes, comerciantes ou autoridades da coroa que viviam aqui e que, de certa forma, se enraizavam aqui. Na época do meu estudo, existiu muito essa discussão. O Caio, na Revolução Brasileira, fala muito nisso, que o colonialismo partiu de dentro e não de fora. O título do meu artigo eu arrumei bem depois que já tinha escrito, quando me dei conta da importância da atuação dos comerciantes portugueses no Rio de Janeiro, na Bahia, em Pernambuco, o que me fez pensar nessa idéia de que as elites no Brasil não eram tanto as elites rurais, mas os comerciantes, os que realmente tinham fortunas, uma elite de comerciantes já casada com setores rurais e que foi assim desenvolvendo raízes. Essa idéia da metrópole e da colônia serve muito à fase de construção do Estado, em que é necessário ter uma referência externa para criar uma identidade própria.


RH: Isso poderia ser associado, hoje, à idéia de identidade nacional?

MO: Eu luto muito com esse termo identidade porque todo processo de construção do Estado é um processo muito elitista, marcado por essa idéia de construir e impor uma identidade nacional. Acredito que todo o autoritarismo entranhado na gente vem muito dessa vontade de forjar uma identidade nacional, onde se apagam as diferenças regionais, as diferenças locais. E a gente assiste a isso muito claramente no Estado Novo. Então, estou com Deleuze, que fala em processos de identificação, múltiplos, plurais, fugindo de ranços autoritários e elitistas.


RH: Quais os temas que interessam a senhora atualmente?

MO: A temática feminina ainda é muito carente de bons estudos. Acredito que especialmente a política de casamentos da elite é um assunto pouco abordado apesar de muitíssimo rico. Eu tenho me dedicado a um estudo das mulheres no comecinho do século XX aqui em São Paulo. A urbanização de São Paulo, os imigrantes, as mulheres forras, as mulheres de elite, as fazendeiras de café morando na cidade. Uma história social da urbanização, tendo como personagens as mulheres das diferentes classes sociais.

RH: E o que a senhora tem encontrado?

MO: Muitas mulheres que formavam fortunas enormes, apesar de fortunas sempre instáveis. São mulheres que produziram muitas memórias, em diários e cartas, onde ficam registrados os momentos em que perdem a fortuna, o status e quando têm que aprender a sobreviver em outro cenário. Então, encontramos essa figura sempre recorrente da mulher que tem que improvisar modos de vida para os quais ela não foi preparada, para fazer face à falência, por exemplo, da família. Aí, quando em geral os homens iam beber, as mulheres iam trabalhar escondidas, ou fazer trabalhos sociais. Daí vão sair as primeiras médicas, as primeiras advogadas e professoras, sobretudo, professoras. Esse é um tema que me fascina porque nós temos um tipo de instabilidade quase crônica e essas mulheres expressam esse modo perpétuo de transformar o comportamento, os modos de vida.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Alberto da Costa e Silva


Alberto da Costa e Silva
Sem a África o Brasil não existiria
Revista de História

Em 1963, Alberto da Costa e Silva ouviu de um professor de Oxford, Hugh Trevor-Hopper, que não existia uma História da África subsaariana, mas somente a História dos europeus no continente, “porque o resto era escuridão, e a escuridão não é matéria da História”. Foi nessa época que o historiador, poeta e diplomata brasileiro começou a pesquisar com afinco a História do continente africano, matéria de incontáveis artigos e ensaios – e também dos monumentais A enxada e a lança e A manilha e o libambo, dois primeiros volumes de uma ambiciosa História do continente negro, aos quais logo se juntará um terceiro, que tratará do tema até o fim da Primeira Guerra, como ele revela nesta entrevista à Revista de História.

Filho do poeta Da Costa e Silva, Alberto nasceu em São Paulo, em 1931. Formado pelo Instituto Rio Branco, no ano de 1957, serviu como diplomata em Lisboa, Caracas, Washington, Madri e Roma, antes de ser embaixador na Nigéria e no Benim, em Portugal, na Colômbia e no Paraguai. Foi chefe do Departamento Cultural, Subsecretário-Geral e Inspetor-Geral do Ministério das Relações Exteriores. Membro da Academia Brasileira de Letras, é o mais importante estudioso brasileiro das relações entre o Brasil e a África negra. Para essa entrevista, Alberto abriu o seu apartamento no Rio, cercado de máscaras, estátuas, tapetes e toda sorte de objetos que recolheu ao longo da vida: um pedaço da África no coração do bairro de Laranjeiras.

REVISTA de HISTÓRIA Vamos falar um pouco da sua história.

ALBERTO DA COSTA E SILVA Nasci numa biblioteca. Sou como Baudelaire, meu berço ficava na biblioteca. Sou um homem de letras, um poeta, cresci entre livros. Meu avô materno era um comerciante de borracha na Amazônia, mas tinha uma enorme biblioteca jurídica e filosófica. O hobby dele era estudar Direito. De certa maneira, o mundo sempre me chegou pelos livros. Desde menino tive essas duas paixões: a poesia e a História. E tenho a impressão de que o poeta ajuda o historiador – o poeta intui esse muito de imaginação de que você necessita para tentar restaurar um tempo que já passou – e que, de certa forma, você jamais pode dissociar a História das artes literárias, pois a História surge como um gênero literário e é um gênero literário até hoje. Não importa muito se você aceita inteiramente o que está em Gibbons, Michelet, Burckhardt ou Huizinga. O fato é que você continua a lê-los porque eles apresentam o retrato pessoal do que eles achavam que era o passado, e esta visão pessoal é o poeta quem a dá. Num certo sentido, eles eram poetas. Nasci em São Paulo, criei-me em Fortaleza, e, aos 13 anos, vim para o Rio de Janeiro. Meu pai era do Piauí, mas se encontrava em São Paulo como alto funcionário do Governo Federal quando houve a Revolução de 32, e precisou abandonar a cidade. Pouco depois ele teve um problema neurológico e perdeu o uso da razão. Tinha 42 ou 43 anos. Passou o resto da vida sentado, lendo seus livrinhos. Às vezes ele lia em voz alta para mim, foi o meu grande companheiro de infância. Lia Walt Whitman em inglês. Eu não sabia inglês, mas sabia que aquilo era bonito, tinha a noção de que as palavras possuem valor musical próprio, independente do significado. Então me criei com um homem enfermo, mas que me abriu muitos horizontes. Vim para o Rio de Janeiro aos 13, 14 anos. Estudei no Colégio São José e no Instituto Lafayette. Quando, mais tarde, entrei para a Faculdade de Direito, fui trabalhar na Biblioteca Nacional, na seção de Manuscritos, com José Honório Rodrigues. Trabalhei na catalogação e identificação da coleção de Alexandre Rodrigues Ferreira, e também na coleção do Visconde do Rio Branco. Aí, como era normal entre os adolescentes, eu tive a minha tuberculose e fui para Campos do Jordão, onde fiquei três anos. Lá, tive um companheiro de quarto, um alemão chamado Rolf, que era filho de Waldemar Wreszinski, professor de História Antiga na Universidade de Königsberg e autor de três volumes monumentais sobre a medicina no Antigo Egito. O Professor Wreszinski morreu no início do nazismo, desgostoso com a evolução dos acontecimentos na Alemanha, e o filho imigrou para o Brasil. Rolf me abriu muitos horizontes, porque era um homem de uma amplidão cultural como existem poucos no Brasil.


RH O senhor já pensava em seguir a carreira diplomática?

ACS De volta ao Rio de Janeiro, resolvi fazer concurso para o Itamaraty. Na realidade, o que eu queria era ser antropólogo, mas com a doença a antropologia foi descartada. Resolvi ser diplomata para tirar a desforra do Barão do Rio Branco, que selecionava os diplomatas num almoço no Itamaraty. Ele chamava os jovens para almoçar e depois decidia se o sujeito entrava ou não. Ao que parece, ele era bom examinador, pois na época o nível da diplomacia brasileira era muito alto. Mas acho que com o meu pai ele foi injusto, porque, depois do almoço com meu pai, disse-lhe: “Da Costa – era como meu pai era conhecido –, você é muito inteligente, fala francês muito bem, conhece inglês, alemão, espanhol, mas você é muito feio.” Meu pai não era bonito, mas também não era tão feio assim, era um nordestino franzino, e era estrábico. O Barão continuou: “Já dizem que o Brasil é o país dos macaquinhos, e se você for lá para fora vão verificar que isso é verdade.” O Pedro Nava narra essa impiedade do Barão do Rio Branco em O Balão Cativo, mas eu já conhecia o episódio por tradição familiar. Então pensei: eu sou menos feio que meu pai, e o Itamaraty não tem mais esses critérios, então vou fazer o exame para o Instituto Rio Branco. E deu certo.

RH Que lembranças o senhor tem do tempo em que morou na África?

ACS A primeira impressão que tive foi a de entrar num mundo culturalmente rico. O colonialismo na África tinha sido de superfície, pelo menos foi essa a impressão quando nela estive pela primeira vez. A cultura africana continuava viva e bem de saúde. Foi uma impressão que já tinha tido, curiosamente, anos antes, durante negociações com os japoneses, no Itamaraty. Tudo que era ocidentalizado neles era de superfície, a cultura era diferente da nossa, embora sempre participando da cultura humana que é a mais geral de todas. Há duas coisas na África Ocidental que são muito marcantes: os valores familiares e o respeito à idade. Ninguém se aproxima de uma pessoa mais velha sem uma postura de respeito, a olhar o mais velho na mesma altura dos olhos, mas sempre de joelhos ou de cócoras. São marcas da maneira de viver, assim como o respeito imenso que se tem pelas crianças, que são tratadas de igual para igual. Na verdade, a África, como unidade, não existe, é uma invenção nossa. O que existe são numerosos povos de culturas diferentes, que, da mesma maneira que os europeus, possuem alguns elementos culturais básicos comuns. Não há nada mais diferente culturalmente que um espanhol e um escandinavo, ou um inglês e um russo.


RH Fale sobre o seu apego à África.

ACS Foi a partir dos meus 15, 16 anos, que comecei a me interessar pela África. Li Casa Grande e Senzala e foi um deslumbramento. Logo ficou muito claro para mim que não se podia entender o Brasil e não se podia escrever sobre o Brasil sem conhecer a África. E nós tínhamos uma História que era uma transposição lusa para o continente americano. Nós nos víamos como portugueses exilados nos trópicos. E não éramos exatamente aquilo, éramos muito mais do que portugueses exilados nos trópicos. Tínhamos um componente africano que era nítido, e mais tarde eu pude compreender isso quando vivi na Nigéria. Notei que os movimentos brasileiros são, em grande parte, movimentos africanos. A maneira de sentar dos brasileiros não é portuguesa, eu vivi em Portugal oito anos, conheço muito Portugal. Você só vê gente deitada em cima do muro em dois lugares do mundo, no Brasil e na África, em qualquer outro lugar o sujeito cai. E eu vi isso em países africanos: na Nigéria, no Benim, no Congo, o sujeito deitadinho em cima do muro e dormindo sem cair. No Itamaraty, entre 1958 e 1960, li tudo o que me chegava sobre a África das Embaixadas em Londres, Paris, Bruxelas, Lisboa e Nações Unidas. E me embrenhei na biblioteca do Itamaraty, onde havia muita coisa sobre o continente. Lá encontrei o Valentim Fernandes, o Ramusio (Giovan Battista) na primeira edição, que era do Barão. Li Leão Africano, o Relato do Piloto Anônimo, o Esmeraldo de situ orbis, do Duarte Pacheco Pereira, João de Barros... Comecei a procurar a África nos antigos autores portugueses e descobri uma riqueza espantosa, até mesmo em Camões, no Canto V dos Lusíadas, que é uma visão extraordinariamente poética e real da costa africana. Ele mostra um espanto semelhante ao que tive ao chegar à Nigéria em 1960, o espanto que tomou Vasco da Gama ao chegar a Moçambique, Quiloa, Mombaça, Zanzibar, quando topou com aquele mundo de barcos, aquele comércio enorme que a África Oriental tinha com a Índia, com a China e com a Indonésia. Então fui para Portugal e meu chefe, que era Negrão de Lima, me pôs a cuidar dos assuntos africanos e a acompanhar o que se passava na África Portuguesa. Os anos 60 marcam o início da renovação dos estudos africanos, que vinham numa perspectiva diferente, mais antropológica, mais etnográfica do que histórica. Nos anos 60 os estudos históricos foram impulsionados pelo processo de descolonização da África, e foi nessa época que o Itamaraty começou a me mandar para lá: Nigéria, Etiópia, Daomé, Togo, Gana, Camarões, Angola, Serra Leoa, Libéria e Senegal. Conheci esses países todos à custa do erário público. Estou devolvendo um pouco do que investiram em mim.

RH E quando o senhor decidiu escrever sobre a História africana?

ACS Um dia, numa discussão com Carlos Lacerda a respeito da guerra civil angolana, mencionei coisas históricas relativas ao passado de Angola e Carlos me disse: “Alberto, você sabe tudo isso sobre a África e guarda para si? Você tem a obrigação intelectual de pôr isso no papel, de publicar, de transmitir o que sabe!”. Fui para casa e decidi escrever sobre a África. Foi quando comecei a trabalhar no livro A enxada e a lança, em 1975 ou 1976. Eu tinha pouco tempo para escrever, estava em Madri e comecei a juntar minhas notas. Depois de Madri eu fui para Roma, na época do seqüestro de Aldo Moro, das Brigadas Vermelhas, da crise da democracia cristã, um momento complicado. Depois fui para a Nigéria, continuei escrevendo, e vim para o Brasil para ser chefe do departamento cultural do Itamaraty e subsecretário geral do Ministério. Eu escrevia todos os dias de manhã, das seis às oito. Passei dez anos escrevendo A enxada e a lança. Curiosamente, o livro teve uma boa aceitação. Foi praticamente o primeiro livro sobre História africana que se publicou no país. Imediatamente comecei a escrever a continuação, A manilha e o libambo, e agora quero dedicar-me ao terceiro volume.


RH Como será esse livro?

ACS Será sobre os séculos XVIII e XIX na África, quando ocorre o verdadeiro impacto europeu. Até 1700, o comércio de escravos foi bastante reduzido e estava localizado em determinadas áreas da África, pouco extensas. No século XVIII começaram a ser trazidas para a América grandes massas de escravos, na maior migração forçada da história da humanidade. Foi então que a Europa começou a entrar de verdade na África. A história do colonialismo, no entanto, só começa no fim do século XIX, quando a Europa consegue romper a casca da África. A África era como uma laranja, e os europeus foram picando a casca. Só a partir do século XVIII eles começaram a entrar na polpa branca da laranja. E foi somente no fim do século XIX que eles entraram nos gomos da fruta. Eu quero mostrar como os reinos africanos, como as estruturas políticas africanas, desde as mais elaboradas até as mais simples, de aldeias-estados e de microestados, reagiram à entrada dos europeus, como se opuseram aos europeus, como se organizaram e como surgiram, em resposta ao desafio europeu, novas estruturas políticas. Este é o aspecto mais fascinante da História da África, aquele que sempre mais me seduziu, mas eu não podia tratar dele sem tratar antes dos outros. Eu tinha que começar pela pré-história da África, para dar sentido ao que eu estava fazendo. Eu mostro como os europeus chegaram lá como hóspedes e como foram tratados como tal. Antes do século XIX, não havia impérios nem inglês, nem francês, nem português. Os portugueses tinham pequenos enclaves ao redor de Luanda, ao redor de Benguela, da ilha de Moçambique, na Zambézia, em Cachéu e em Bissau. Os ingleses possuíam um enclave na Serra Leoa. E ingleses e descendentes de holandeses e franceses dominavam espaços na África do Sul, a partir da colônia no Cabo. Fora disso, todo o domínio do continente era africano e, mesmo em alguns desses enclaves, pagavam-se tributos aos reis locais. Até que começou o lento processo de intromissão dos europeus, de desarticulação dos reinos africanos, embora alguns deles ainda sobrevivam até hoje. É um pouco a história de tudo isso, até 1918. Não pretendo entrar no processo de descolonização, que já é outra história. Eu só espero viver tempo suficiente, pois passei dez anos para escrever um livro e cinco anos para escrever o outro.

RH O senhor também escreveu Francisco Félix de Souza, Mercador de Escravos...

ACS Era um pesadelo que me acompanhava há muito tempo, desde a juventude, esse meu interesse por Francisco Félix de Souza, o Chachá. Eu tinha de escrever a biografia dele, e esta teve um destino ótimo para um livro de História: vendeu seis mil exemplares.

RH Como é possível comparar a relação com o sagrado na cultura africana e no Brasil?

ACS A relação com o sagrado está em todas as culturas. Não há cultura que não se ampare no sagrado, quer seja ele religioso ou não. Mesmo os laicos do Ocidente europeu estão na realidade ligados ao sagrado: o sagrado da igualdade, da liberdade e da fraternidade. Em povos com tradição monárquica, a força do sagrado também é muito forte. Entre os antigos estados africanos, a presença do divino era permanente. Era o divino que explicava o presente.

RH Que outras trocas ocorreram entre esses dois lados, Brasil e África?

ACS Desde o século XVI, existiu um movimento de fluxo e refluxo. De trocas de vegetais, por exemplo. Os africanos trouxeram o inhame, a malagueta, o dendê e a maconha. Para a África foram a mandioca, a batata-doce, o caju, o abacaxi.

RH A maconha não é nativa da América?

ACS Não. A maconha vem do Oriente, passa pelo Egito, desce até Angola e vem para o Brasil. Na época colonial era usada para fumar, exatamente como hoje. Em Angola era fumada normalmente. Não sou um expert no assunto, mas o que se sabe é que a maconha veio de Angola para o Brasil, talvez já no século XVI ou XVII. Os escravos a conheciam e a trouxeram como tantas outras coisas.


RH Fale sobre a importância da diplomacia em sua vida.

ACS A diplomacia, se me tirou muito das minhas ambições intelectuais, que retomei praticamente às vésperas de me aposentar, me abriu horizontes que eu não teria conhecido se tivesse ficado permanentemente no Brasil. Servi em Portugal, por duas vezes, na Venezuela, nos Estados Unidos, na Espanha, na Itália, na Nigéria, no Benim, na Colômbia e no Paraguai, viajei por quase todo o continente africano, por boa parte das Américas e pelo Oriente Médio. O ofício de diplomata ampliou a minha visão do mundo e me fez perceber que é impossível entender os países isoladamente. Você não pode escrever História do Brasil sem ter uma perspectiva de fora, uma perspectiva portuguesa, uma perspectiva africana, uma perspectiva espanhola, e italiana, e alemã. A diplomacia me deu essa abertura. Além disso, como diplomata presenciei muitos fatos históricos: no 25 de abril, eu estava em Portugal, saí às ruas às 5h da manhã para ver a Revolução [dos Cravos]. Eu estava em Roma, na Itália, durante o seqüestro de Aldo Moro, estive em Luanda em 1961, início da rebelião, e fui à frente de batalha. Nos Estados Unidos, assisti ao movimento contra a Guerra do Vietnã, e estava em Madri durante a morte de Franco e início da monarquia constitucional. Ser testemunha da História, ver a História com meus próprios olhos, ver a História se produzindo, foi a diplomacia que me permitiu isso.

RH E o papel da memória?

ACS Quando, na mocidade, fazia entrevistas para a revista A Cigarra, não havia gravador. Tinha de prestar atenção e guardar na memória, para depois escrever. Todo mundo tinha que ter memória ou não conseguia fazer entrevista. A memória é muito importante na vida das pessoas, não há aprendizado sem memória. Se não guardar, não adianta entender. Antes, tudo dependia da memória, você tinha que guardar tudo o que via e o que ouvia, e isso era extraordinário nos viajantes dos séculos XVIII e XIX. Lendo os livros deles, você tem a impressão exata de estar vendo o que eles viam. Eles não estavam escrevendo naquele momento. Eles viam, iam para casa e faziam seus diários, seus textos, mas conseguiam guardar na retina, conseguiam guardar o que eles realmente tinham observado com muita precisão, pois não tinham máquinas fotográficas nem gravador. Eram obrigados a observar com acuidade, com cuidado e atenção os pormenores. Os viajantes eram preconceituosos, eram cheios das más noções do seu tempo, mas sabiam ver. Eram fantasiosos, mas a fantasia ajuda. Coleridge fez aquela distinção entre fantasia e imaginação: a fantasia pode ser prejudicial, mas a imaginação é a fantasia organizada.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional