quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Maria Odila da Silva Dias


Maria Odila da Silva Dias
“O historiador precisa de surpresas”

Aspectos da Ilustração no Brasil e A Interiorização da Metrópole. Que historiador brasileiro nunca leu esses artigos? Sua autora, Maria Odila da Silva Dias, trata em ambos os textos de um problema comum: a continuidade das elites coloniais após a Independência, que teriam implementado seu projeto de nacionalidade através da consolidação da hegemonia do Rio de Janeiro sobre as demais províncias do Brasil, retomando o processo colonizador, as relações de nepotismo e a confusão entre o público e o privado. “Nós nos colonizamos a nós mesmos, como país. Então, a exploração não veio do outro, do imperialismo, da metrópole, não veio de fora. Nós nos oprimimos entre nós”. Análise perspicaz de uma historiadora que se tornou referência para a historiografia em temas que vão do inglês Robert Southey à luta das mulheres por seus direitos na cidade de São Paulo.

Entre samambaias e seus três cachorros Daschund (Bibi, Nina e Popoldo), Maria Odila recebeu a Revista de História em seu apartamento no bairro de Higienópolis, em São Paulo. Na estante, uma foto de Sérgio Buarque de Holanda, professor e amigo que levou Maria Odila a lecionar na USP quando tinha apenas 21 anos. “Era uma presença privilegiada, mas que também me intimidava muito”. Professora militante, retornou recentemente às salas de aula, ensinando e encantando uma nova geração de estudantes com suas idéias sobre o trabalho do historiador: “Eu acho que tem razão esses hermeneutas que dizem que a história é muito afim à arte, à poesia, à pintura”.

Revista de História: A senhora muito nova começou a lecionar História na USP, junto com o professor Sérgio Buarque de Holanda. Como foi essa experiência?

Maria Odila: Eu tinha 21 anos e as pessoas, em geral, naquela época, faziam curso mais tarde. Então, tinha alunos de 30, 40 anos que não me levavam muito a sério. Eu ficava absolutamente séria para poder me impor. Fazia os seminários do curso do professor Sérgio de História do Brasil. Ele me chamava em casa, despencava uns livros da parede e me dizia qual o texto ia ser trabalhado. Ele não apenas me indicava bibliografia, me dava os livros na mão. Como professor, Sérgio falava baixo, “pra” dentro, muito enrolado. Mas tive com ele uma convivência realmente privilegiada, convivência que também me intimidava muito. Hoje nem sei como consegui escrever os meus primeiros trabalhos, porque levar para ele ler era sempre um drama.


RH: O professor Sérgio dizia que o historiador é uma espécie de taumaturgo e um exorcista. E para a senhora, o que é o historiador?

MO: Eu tenho a impressão que durante muito tempo o historiador tinha que ver de novo as mesmas coisas. Parecia que a gente tinha que redescobrir os temas. Acredito que exorcista a gente sempre tem que ser, porque senão fica fazendo aquela história apologética, lá do Instituto Histórico. Isso, ninguém quer fazer. O professor Sérgio tinha uma militância contra o Instituto Histórico, contra os memorialistas, contra aquele amor do passado pelo passado. Acho que o historiador precisa de surpresas, do novo. Foi essa a idéia que tive quando escrevi Cotidiano e poder. Tive que largar quase tudo que eu tinha aprendido, uma erudição excessiva, e seguir um caminho que me parecia novo.

RH: Qual é o lugar da intuição no trabalho do historiador?

MO: O historiador não pode interpretar com conceitos racionais, intelectualísticos. Isso, de certa forma, limita e faz com que ele deixe de traduzir as temporalidades. Essa relação, esse diálogo entre o presente e o passado deixa de existir se você se prende a conceitos muito racionais e permanentes. Acho que o trabalho do historiador deve ser descobrir entre os pormenores, o sentido que eles fazem. Não é seguir um planejamento. Se você parte muito do geral para o particular é alguma coisa que não é História, porque não está interpretando o movimento do tempo, os personagens no tempo. Eu acho que tem razão esses hermeneutas que dizem que a História é muito afim à arte, à poesia, à pintura. Não é um trabalho muito intelectual.

RH: Como foi para a senhora voltar a dar aula para graduação?

MO: Voltei há dois anos. Hoje vejo os estudantes muito restritos. Você não pode indicar um livro em francês, inglês, que há reclamações. É um pouco frustrante. Se bem que sempre existem os quatro ou cinco futuros historiadores. Esses estão sempre lá e podemos identificar de cara, são aqueles que têm interesses específicos, questões já formuladas.


RH: E o que a senhora recomendaria, hoje, aos jovens orientadores?

MO: Que pergunta mais difícil! Eu sempre me pergunto o que é orientar. Sobretudo, quando eu tenho problemas. Eu já cheguei, agora na PUC, a escrever um breviário [risos] das relações orientando-orientador. Antes acho que isso não precisava ser escrito, mas, agora, precisa. E eu acho que essa relação é alguma coisa dessas que não se define. O professor Sérgio citava Nietzche, dizendo que tudo o que é História não se define. Essa é uma relação de afinidade que ocorre mesmo por acaso.

RH: Essa afinidade existiu entre a senhora e Caio Prado Júnior?

MO: A relação com Caio foi muito importante para mim. Ficamos juntos por quatro anos. Mas havia uma diferença grande de idade, trinta anos. Tenho páginas e páginas de conselhos dele, dizendo como eu devia fazer minha tese, como é que eu devia escrever. Não pude aplicar nenhum. Porque interpretação é uma coisa muito pessoal, não é? Nem o orientador tem esse papel. Mas o Caio era uma personalidade fascinante. Vivemos momentos muito difíceis. Ele foi preso e eu tinha que levar o almoço todo dia para ele na prisão e, com isso, fiquei em contato direto com os torturados, que via chegando na Tiradentes sem conseguir andar porque o pé estava completamente escangalhado. Então, iam arrastando as pernas. Era muita gente conhecida, Frei Beto, um aluno meu dominicano, boa parte da faculdade de filosofia estava lá. Caio ficou quase um ano preso. Era uma rotina de pesadelo e um clima muito pesado. Enquanto eu conversava com o Caio, os soldados ficavam apontando a baioneta para nós dois. Eu era esquentada e dizia: “o senhor abaixa isso. Não tem motivo para estar apontando uma arma”. E os soldados foram fazer queixa com o coronel.


RH: E como que o Caio reagia diante disso?

MO: Acho que ele estava acostumado a ser preso. Eu não estava acostumada com aquela perseguição dentro da sala de aula, uma porção de gente da Polícia Militar ouvindo a aula. Dentro da prisão, Caio foi procurado para dar um curso de marxismo para seis sargentos. Eram oficiais que estavam interessados em saber o que era o marxismo, saber exatamente contra o que estavam lutando. Acompanhei boa parte desse período ao lado dele, até que às tantas tive que ir embora do país, porque não agüentava mais aquilo, o contato com a tortura. Entrei numa crise imensa e fui terminar o meu doutorado lá fora, nos Estados Unidos, onde o Caio não podia ir.


RH: A relação de afinidade foi mantida?

MO: Ah, sim. Quando eu terminei Cotidiano e poder, fui visitá-lo com o livro. Mas ele já tinha sofrido um aneurisma. Lia e não entendia o que estava lendo. Foi o começo de um fim muito triste que ele teve.

RH: Apesar da senhora, obviamente, ter um posicionamento político, nunca se filiou a nenhum partido. Por que?

MO: Tenho a impressão que a pessoa que está na universidade, estuda e produz, tem que militar através do próprio ofício. Então você escreve de uma forma militante, dá aulas de uma forma militante, tem de fazer a sua política no dia-a-dia. E essa é uma convicção que eu sempre tive. A vida política é outra esfera de atuação, porque você deixa de ser você mesmo para obedecer ou entrar nos cânones do partido ao qual está ligado. Aí, deixa de ser uma militância criativa, que é a que o professor universitário deve ter.

RH: Uma contribuição importante da senhora para a historiografia brasileira foi a análise do liberalismo. De que maneira ele marcou a trajetória do país até os dias de hoje?

MO: Esse liberalismo não passa de verniz. É na verdade um suposto liberalismo que veio sobreposto às relações que eram tudo, menos liberais. As relações com os escravos, com os forros. O liberalismo ficou marcado, portanto, como uma capa que encobre o autoritarismo, que encobre a falta de uma verdadeira democracia.


RH: Estamos falando de idéias fora do lugar?

MO: Bom, eu nunca achei que fosse fora do lugar, elas tinham o seu papel. Na Inglaterra, por exemplo, o liberalismo, se visto pela perspectiva dos operários, também era fora do lugar. Quer dizer, essa metáfora do nosso colega das Letras [Roberto Schwarz] nunca fez muito sentido. É fora do lugar dependendo do ponto de vista e da classe social a que você se refere. Era fácil ver no Brasil que as elites podiam ter apenas um jargão liberal, numa sociedade de escravos, excludente. Até hoje essa ideologia liberal se mantém como um verniz, dentro dessa política das elites, que não tem a ver com o país todo, mas que marcou a formação do estado brasileiro de uma forma um pouco perversa. [idéia repetida]

RH: E o historiador inglês Robert Southey, como foi a descoberta desse tema?

MO: Esse homem me perseguiu uns oito anos da minha vida. [risos]. Southey era muito interessante, um grande poeta romântico. Me interessei, sobretudo, pelo olhar do viajante, antes dessa moda dos estudos culturais, da crítica da cultura eurocêntrica de hoje. Eu tinha a necessidade de entender por que aquele inglês, que nunca tinha vindo ao país, quis escrever uma história do Brasil. Foi interessante, porque o tio dele morava em Lisboa e colecionava documentos. Era uma espécie de espião do governo britânico. E essa biblioteca do tio dele veio parar nas mãos dele e, assim, ele resolveu escrever sobre o Brasil no contexto das guerras napoleônicas. O primeiro volume da obra é de 1810 e, o último, de 1822. Então, ele já estava discutindo a independência e a inconfidência mineira. Southey tinha aquela idéia da missão civilizadora dos ingleses em nome de uma redenção de todo o passado católico. Southey era muito preconceituoso com os portugueses e com o catolicismo.


RH: A interiorização da metrópole é um trabalho da década de 60 e que ainda hoje suscita uma discussão muito interessante. Qual a importância desse tema para o debate sobre a História do Brasil?

MO: Eu tenho impressão de que essa consciência de que somos nós mesmos os colonizadores é fundamental. Nós nos colonizamos a nós mesmos, como país. Então, a exploração não veio do outro, do imperialismo, da metrópole, não veio de fora. Nós nos oprimimos entre nós. Acho que a questão fica mais interessante para nós se imaginamos que a metrópole era, muitas vezes, comerciantes ou autoridades da coroa que viviam aqui e que, de certa forma, se enraizavam aqui. Na época do meu estudo, existiu muito essa discussão. O Caio, na Revolução Brasileira, fala muito nisso, que o colonialismo partiu de dentro e não de fora. O título do meu artigo eu arrumei bem depois que já tinha escrito, quando me dei conta da importância da atuação dos comerciantes portugueses no Rio de Janeiro, na Bahia, em Pernambuco, o que me fez pensar nessa idéia de que as elites no Brasil não eram tanto as elites rurais, mas os comerciantes, os que realmente tinham fortunas, uma elite de comerciantes já casada com setores rurais e que foi assim desenvolvendo raízes. Essa idéia da metrópole e da colônia serve muito à fase de construção do Estado, em que é necessário ter uma referência externa para criar uma identidade própria.


RH: Isso poderia ser associado, hoje, à idéia de identidade nacional?

MO: Eu luto muito com esse termo identidade porque todo processo de construção do Estado é um processo muito elitista, marcado por essa idéia de construir e impor uma identidade nacional. Acredito que todo o autoritarismo entranhado na gente vem muito dessa vontade de forjar uma identidade nacional, onde se apagam as diferenças regionais, as diferenças locais. E a gente assiste a isso muito claramente no Estado Novo. Então, estou com Deleuze, que fala em processos de identificação, múltiplos, plurais, fugindo de ranços autoritários e elitistas.


RH: Quais os temas que interessam a senhora atualmente?

MO: A temática feminina ainda é muito carente de bons estudos. Acredito que especialmente a política de casamentos da elite é um assunto pouco abordado apesar de muitíssimo rico. Eu tenho me dedicado a um estudo das mulheres no comecinho do século XX aqui em São Paulo. A urbanização de São Paulo, os imigrantes, as mulheres forras, as mulheres de elite, as fazendeiras de café morando na cidade. Uma história social da urbanização, tendo como personagens as mulheres das diferentes classes sociais.

RH: E o que a senhora tem encontrado?

MO: Muitas mulheres que formavam fortunas enormes, apesar de fortunas sempre instáveis. São mulheres que produziram muitas memórias, em diários e cartas, onde ficam registrados os momentos em que perdem a fortuna, o status e quando têm que aprender a sobreviver em outro cenário. Então, encontramos essa figura sempre recorrente da mulher que tem que improvisar modos de vida para os quais ela não foi preparada, para fazer face à falência, por exemplo, da família. Aí, quando em geral os homens iam beber, as mulheres iam trabalhar escondidas, ou fazer trabalhos sociais. Daí vão sair as primeiras médicas, as primeiras advogadas e professoras, sobretudo, professoras. Esse é um tema que me fascina porque nós temos um tipo de instabilidade quase crônica e essas mulheres expressam esse modo perpétuo de transformar o comportamento, os modos de vida.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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