sábado, 25 de julho de 2009

Experiências internacionais de um cientista inquieto - Ignacy Sachs


IGNACY SACHS é uma personalidade singular no panorama das ciências sociais no mundo e no Brasil. Acima de tudo porque reza pela cartilha dos que consideram a Economia Política uma disciplina que analisa a evolução e os fatos econômicos, relacionando-os com outras áreas das ciências humanas e no plano mais geral da cultura. Sua trajetória o levou a um conhecimento direto do Terceiro Mundo, especialmente porque passou muitos anos imerso na vida de países como o Brasil e a Índia. Seu conhecimento aprofundado do quadro mundial decorre ainda de outros fatos. Em primeiro lugar, ter vivido a realidade de uma nação que, durante quase meio século, tentou, sem êxito, abrir caminhos para construir uma sociedade socialista, exatamente seu país natal, a Polônia. Em segundo lugar, porque, nas últimas décadas, Ignacy Sachs colocou-se no centro de um observatório privilegiado do cenário internacional, na qualidade de professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris.

No dia nove de junho, durante duas horas o entrevistamos, recolhendo suas valiosas lições e experiências, porque duas características destacam esse famoso scholar: ele acompanha há muitos anos o que sucede no Brasil, inclusive percorrendo o interior de nosso país, e sempre procura "soluções positivas" para os problemas. Assim, nunca foi e nunca será o magister que se limita a afirmações generalizadas e abstratas sobre as questões.

Em resumo, essa foi a sua entrevista a ESTUDOS AVANÇADOS.

* * *

ESTUDOS AVANÇADOS - O termo desenvolvimento foi e continua sendo essencial na sua reflexão social, econômica e ambiental. Como esse tema se formou ao longo da sua trajetória intelectual?

Ignacy Sachs - A partir de um acidente biográfico. Cheguei ao Brasil no dia 6 de janeiro de 1941, pelo último navio português que aportou ao Rio de Janeiro, como refugiado de guerra. Então, descobri o Brasil com um espelho da Polônia da minha infância. Naturalmente, então não raciocinava daquela maneira, mas é evidente que alguém que se interessasse pelo Brasil na década de 1940 não podia deixar de pensar no que hoje chamamos de desenvolvimento, de tanto ouvir isso.

Fiquei no Brasil durante catorze anos, até 1954. Fiz o curso de Economia na Faculdade de Ciências Políticas e Econômicas do Rio de Janeiro, hoje Cândido Mendes. Ao mesmo tempo, trabalhava na Embaixada da Polônia, nos serviços culturais, e me preparava para voltar à Polônia. Completei minha formação no Brasil em cursos da SBPC. Tive o grande prazer e o privilégio de ter Giorgio Mortara como professor de Estatística. Fui orientado por correspondência por Oskar Lange - um dos grandes economistas poloneses e que, na época, era reitor da Escola de Planejamento em Varsóvia. Como o país necessitava de estatísticos matemáticos, especializei-me nessa disciplina. Mas meu trabalho cotidiano, vivido no Rio, me fez imergir na problemática do desenvolvimento.

Meu projeto intelectual, pessoal, se formou claramente ao voltar à Polônia - queria trabalhar que dissesse respeito ao Brasil. Fui muito bem recebido no Instituto das Relações Internacionais, em 1954. Mas me foi dito que a Polônia era um país pobre demais para pagar um salário de jovem pesquisador dedicado ao estudo de um só país. Assim, tornei-me um dos primeiros pesquisadores na Polônia a trabalhar com o tema do desenvolvimento e do subdesenvolvimento.

Portanto, o que foi, numa primeira fase, uma imersão na problemática por razões pessoais, passou a ser minha razão de ser profissional. Um dos trabalhos iniciais que me foi encomendado foi acompanhar a primeira Conferência de Solidariedade Afro-asiática, em Bandung. Em 1955, fiz a edição de um volume de documentos dessa conferência. Logo depois foi anunciada a visita de Jawaharlal Nehru à Polônia, primeiro-ministro da Índia. Trabalhei na tradução da Constituição da Índia e, na ocasião, fiz várias resenhas de livros sobre esse país, a começar pela Descoberta da Índia, de autoria desse grande estadista, e um livro de entrevistas realizadas por um jornalista francês de origem húngara, Tibor Mende (Conversation avec Nehru).

Voltei à Polônia com oito caixotes de documentação para continuar a trabalhar sobre o Brasil. Em seguida, escrevi uma brochura sobre como viviam os camponeses na América Latina e, com um colega, logo depois, lancei um livrinho que se chamava No país das plantações de café. Esses livros, todavia, eram exercícios encomendados e sem importância.

Era para mim óbvio que meu doutorado devesse girar sobre problemas do desenvolvimento e, em vez de fazer uma monografia sobre o Brasil, comecei a trabalhar sobre o papel do Estado no desenvolvimento, muito influenciado pelo debate que, naquele momento, ocorria no Partido Comunista Italiano, que contestava as teses simplórias do capitalismo monopolista de Estado e tentava mostrar que o papel do Estado, mesmo no capitalismo, podia variar, dependendo das políticas seguidas.

Na mesma época, havia um outro debate que não era de economistas e sim de historiadores, mas muito importante para os economistas: sobre a passagem do feudalismo para o capitalismo. Desde aquele tempo comecei, sem me dar conta, a "trair" a economia. Por quê? Porque quem diz desenvolvimento diz que existe a necessidade de se liberar do reducionismo economicista.
A estada na Índia

Em 1956 ocorreram grandes transformações políticas. A Polônia apareceu como um dos países candidatos a construir um socialismo com rosto humano. Foi para nós todos uma grande mudança. Nessa situação, o diretor do instituto com quem eu trabalhava (porque eu fazia parte do que chamávamos de "bombeiros", pois cada vez que havia necessidade de buscar uma documentação sobre um tema urgente, apareciam duas ou três pessoas que eram chamadas porque tinham um certo conhecimento de línguas), foi nomeado embaixador da Polônia na Índia. Ele se propôs a me levar com ele, como segundo secretário na Embaixada, a fim de cuidar de assuntos relacionados com o intercâmbio científico entre a Polônia e a Índia.

Coloquei três condições. Primeiro, que não iria entrar na carreira diplomática; segundo, que isso não deveria durar mais de três anos; e terceiro, que permitiria minha inscrição para o doutorado na Delhi School of Economics. O que eu já tinha lido, da literatura sobre desenvolvimento, era o suficiente para saber que a Delhi School of Economics era um dos lugares onde se elaborava o pensamento endógeno indiano sobre o desenvolvimento. As três condições foram aceitas. Em 1957, seguimos - eu, minha esposa e meus filhos - para Delhi, onde passamos três anos. Saímos de lá tendo completado, ambos, nossos doutorados na Universidade de Delhi. Ela, em literatura e eu com uma tese sobre os modelos do setor público nos países subdesenvolvidos, que foi publicada na Índia e republicada no Brasil pela Editora Vozes, numa edição da qual não tive conhecimento, com o título mudado para Capitalismo de Estado e desenvolvimento.

A partir daí minha trajetória ficou absolutamente clara. Como já disse, descobri, ainda sem nenhuma bagagem teórica, o Brasil no espelho da Polônia da minha infância. A minha ida à Índia já era um passo consciente. Munido do espelho brasileiro, parti para a descoberta da Índia. Esse processo foi de uma riqueza intelectual extraordinária. Isso explica como o desenvolvimento entrou na minha vida pessoal e como estudos comparativos pluridisciplinares de desenvolvimento passaram a ser o eixo da minha reflexão. Olhando para trás, posso dizer que deram unidade ao que realizei no decorrer desse meio século.

ESTUDOS AVANÇADOS - A estada na Índia influenciou sua concepção de desenvolvimento? Em que sentido?

Ignacy Sachs - É difícil sobrestimar a importância dessa estada e sobretudo a importância de que ela se seguiu aos catorze anos no Brasil. Primeiro, porque a comparação se impunha de manhã à noite, no cotidiano, nas formas, no modo de vida etc. Segundo, porque com o estatuto de alguém que tratava de assuntos de cooperação científica na Embaixada e, ao mesmo tempo, era doutorando na Universidade, onde fui muito bem recebido, desliguei-me totalmente da vida diplomática. Funcionamos, aliás, ambos, eu e minha esposa, no meio de jovens pesquisadores e intelectuais indianos que passaram, ou estavam por passar, pelas grandes universidades inglesas. Foi naquela época que conhecemos Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia. Ele é bem mais jovem do que eu, mas já lecionava na Delhi School of Economics, um verdadeiro gênio, o professor mais jovem na história das universidades indianas. Somente depois é que fez o doutorado em Cambridge.

Realizei contatos extremamente ricos naquele país, embora seja muito difícil entrar em sua cultura. No começo, pensamos que faríamos isso com um bom método que aprendemos na França. Começamos por estudar sânscrito e hindi, mas depois de três meses entendemos que, ou iríamos virar especialistas em cultura indiana (porque o investimento é enorme), ou teríamos que nos contentar com aquilo que se lê em inglês, que continua a ser a língua da universidade na Índia. Mas o contato com os intelectuais indianos, com aquela mistura de uma educação de tipo britânico com a bagagem da cultura tradicional, é muito enriquecedor.

As teses de Mahatma Gandhi

Aqui introduziria mais um fator, a importância que teve na minha vida o contato com o pensamento de Gandhi. Isso começou por um acidente de história, outra vez. Gandhi foi assassinado em 1948. Na época, eu vivia no Rio de Janeiro, lendo filósofos orientais, porque tinha que esperar um ano para ingressar na faculdade a fim de homologar meu baccalauréat, do Liceu Pasteur no Colégio Pedro II. Trabalhava com o professor Hignette, que ensinava filosofia nesse Liceu. Esse tomista me fez sofrer muito no baccalauréat. Conhecendo minhas conexões com a esquerda, na argüição oral de filosofia, onde apresentei como matéria preferencial os filósofos pré-socráticos, ele formulou uma pergunta sobre Heródoto como filósofo do imobilismo. Briguei durante 45 minutos, mas o resultado foi uma proposta dele de aprofundar, sob a sua direção, um tema que não era exatamente o mais pertinente para o estudo do Brasil, ou seja Pascal lecteur de Montaigne. Estava trabalhando nos serviços culturais da Legação da Polônia, estudando Pascal nas horas vagas e vivia maravilhado com os filósofos orientais.

Numa tarde, as rádios anunciaram o assassinato de Gandhi. Entrei na primeira cabine telefônica e telefonei para o jornal Correio da Manhã, a fim de perguntar se aceitariam um artigo meu sobre Gandhi. Disseram: "se você trouxer até às 9h da noite, tudo bem". Foi o primeiro artigo que publiquei na minha vida, no Correio da Manhã. Chamava-se "O nosso santo de lá".

ESTUDOS AVANÇADOS - Professor, do ponto de vista político, não há dúvida que a pregação de Gandhi teve como conseqüência a Independência da Índia. Do ponto de vista econômico, ele defendia determinadas teses voltadas para sabotar o império britânico, mas também refletia uma volta atrás na evolução econômica. O senhor não acha, porém, que, do ponto de vista da economia, Gandhi continua tendo razão em diversas de suas teses?

Ignacy Sachs - Essa pergunta é muito pertinente. Ao chegar à Índia, dei-me conta de que existia um círculo razoavelmente extenso de gandhianos que tinham a mesma relação com o pensamento de Gandhi como os marxistas dogmáticos em relação a Marx. Ou seja, que ficavam fazendo exegese dos textos. As obras completas de Gandhi estão reunidas em 110 ou 120 volumes, porque ele escrevia diariamente dois artigos de jornal. Encontram-se na obra de Gandhi opiniões sobre tudo, inclusive teses que contrariavam pontos de vista anteriormente explicitados por ele mesmo. Pode-se, então, fazer uma leitura da obra do Mahatma como um dos grandes pensadores progressistas da história da humanidade e também pode-se ridicularizá-lo pinçando alguns artigos. Ele pedia o boicote dos produtos e do estilo de vida britânicos, mas escreveu que a escova de dentes é supérflua porque se pode limpar os dentes com um raminho de árvore.

Contudo, não havia na Índia um só discurso político que não se referisse a Gandhi da maneira mais respeitosa, adicionando ao seu nome o sufixo ji, (Gandhiji). Havia, pois uma analogia com a maneira como eram citados na Europa Oriental os clássicos do marxismo, numa veneração puramente formal, verbal. De outro lado, encontrei três scholars indianos, com doutorados ocidentais, que estavam fazendo trabalhos sobre Gandhi. Estabeleci com eles um excelente contato. Interessei-me muito e pensei até em mudar o tema do meu doutorado para estudar o pensamento econômico de Gandhi. Mas houve um empecilho, porque tinha meus afazeres profissionais e, na época, as obras completas de Gandhi não estavam reunidas. Assim, trabalhar comesse tema teria demandado um enorme esforço para encontrar os textos. Para isso eu não tinha absolutamente condições, porque escrevia meu doutorado nas noites e aos domingos. Nunca deixei, porém, de acompanhar as teses de Gandhi.

Gandhi e a economia

Posso dizer o seguinte: a independência da Índia e a maneira como ela aconteceu, assim como a influência de Gandhi, deveriam ser objeto de estudo em todas escolas do mundo, porque é um caso sem precedentes. Isto é, como um país colonizado consegue se livrar da dominação do maior império colonial do mundo quase sem derramamento de sangue? A mensagem é absolutamente extraordinária. Infelizmente, é um caso isolado na história. Assim mesmo, vale a pena lembrá-lo. Diria que essas lições deveriam ser dadas certamente já na escola secundária, e quem sabe na primária, como exemplo de que a humanidade é capaz de coisas bem diversas e isso se contrapõe evidentemente ao holocausto.

Mas essa não era a minha problemática com o gandhismo. Gandhi para mim era e continua a ser o precursor das boas teorias de desenvolvimento, pela maneira como considerava a massa camponesa como o ator central do processo de desenvolvimento. Ademais, ele teve uma grande sensibilidade para aquilo que depois se chamou no debate de tecnologias intermediárias. Isto é, o que se pode fazer com tecnologias simples. Há uma semelhança extraordinária entre o pensamento de Gandhi e o de Franklin, um pragmático. Por exemplo, os dois dizem que se deve varrer as ruas do vilarejo para reduzir o pó e diminuir os casos de doenças pulmonares. E por assim adiante. De qualquer maneira, uma sensibilidade para o homem. Simultaneamente, uma total incompreensão do que significa produtividade econômica. Isto foi objeto de várias discussões minhas com Oskar Lange, que era um erudito em várias áreas. Ele dizia que Gandhi não entendia a produtividade do trabalho, porque a ética ocupava um espaço exclusivo na sua visão das relações inter-humanas.

Outro aspecto do pensamento de Gandhi que continua mais vivo do que nunca diz respeito ao autocontrole dos seres humanos, sua capacidade de limitar suas necessidades. Penso que esse é um desafio fundamental para a cultura dos países industrializados. Voltamos à pergunta "o quanto é bastante?" em 1975, num relatório da Fundação sueca Dag Hammarskiöld, preparado por ocasião da sessão especial da Assembléia das Nações Unidas, convocada para debater a Nova Ordem Econômica Internacional. Houve um debate acirrado naquela oportunidade a partir de provocações como as seguintes: é possível autolimitar o consumo da carne, o número de metros quadrados do apartamento? Vale a pena ter um carro particular na cidade? Não seria suficiente ter apenas agências de aluguel de carros para viajar fora da cidade? Portanto, o quanto é bastante? Essa é uma questão gandhiana.

Gostaria de terminar com um outro ponto ligado a Gandhi. A Índia tem uma geração de intelectuais que fizeram uma síntese extremamente interessante entre as teses de Nehru e as de Gandhi. O primeiro era um homem voltado para a modernidade, na trilha do socialismo fabiano. Falava muito do scientific temper, o espírito científico. Houve uma época, logo depois da independência, em que o legado de Gandhi ficou de lado e passou a dominar esse espírito científico, a fé na ciência e na tecnologia. Todavia, com o tempo, houve uma síntese do legado gandhiano com o de Nehru. Resumindo, Gandhi foi e é para mim um dos precursores das teorias modernas de desenvolvimento e a Índia deve a ele não só a maneira extraordinário pela qual se deu a independência, mas também uma formação intelectual singular.


A pobreza e a poluição
ESTUDOS AVANÇADOS - Os relatórios do programa das Nações Unidas para o meio ambiente dizem que os atuais padrões de consumo no mundo estão além da capacidade de reposição da biosfera. O senhor concorda? É possível mudar esse quadro?

Ignacy Sachs - Certamente, concordo. Diria que, por ter participado da preparação da conferência de Estocolmo em 1972, que foi a primeira reunião das Nações Unidas sobre o meio ambiente, e, vinte anos mais tarde, da Cúpula da Terra no Rio de Janeiro, este é um tema absolutamente central. Para compatibilizar os objetivos sociais, econômicos e ambientais, temos de nos dedicar ao que chamaria de um jogo de harmonização. Nesse jogo temos que mudar, por um lado, os padrões da demanda e, por outro lado, os padrões da oferta. Estes últimos são os mais fáceis de manejar e vão nos remeter ao problema dos recursos naturais, aos tipos de energia, às tecnologias e à localização espacial das produções, porque as mesmas produções têm impactos ambientais diferenciados, segundo o lugar onde elas acontecem.

A mudança do padrão da demanda é logicamente a variável mais importante nesse jogo de harmonização, porém, ela passa pela modificação dos estilos de vida e dos padrões de consumo, assim é uma variável extremante difícil de se manipular e exige, antes de mais nada, um enorme esforço de educação. As margens de manobra seriam muito maiores se estivéssemos vivendo num mundo mais igualitário. Porque é muito difícil pregar a simplicidade voluntária quando se tem uma massa de excluídos, de pobres, que não vivem numa simplicidade voluntária. Vivem numa miséria imposta, um "castelo sem ponte levadiça", no dizer de Albert Camus.

Essa discussão sobre a mudança dos padrões de consumo e dos estilos de vida deve levar em conta que o desenvolvimento é a construção de uma civilização do ser na partilha equalitária do ter, na definição lapidar do padre Lebret e, portanto, é impossível apostar numa mudança da civilização do ser antes que essa partilha aconteça na realidade. Este é o impasse atual. A parte mais importante da revolução ambiental no pensamento que ocorreu nos anos de 1970 foi a percepção de que não se pode dissociar a problemática ambiental da social. Em Estocolmo, a então primeira-ministra da Índia, Indira Gandhi, fez um discurso memorável no qual disse que a pobreza é a pior das poluições.

As micro e as pequenas empresas

ESTUDOS AVANÇADOS - Por que seu livro Desenvolvimento humano e trabalho decente dá ênfase sobretudo aos empregadores de pequeno e médio porte?

Ignacy Sachs - Porque esse era o tema do livro, um informe preparado conjuntamente pelo Sebrae e pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. O livro reivindica de uma ótica do desenvolvimento a partir da geração de oportunidades de trabalho decente, no sentido da Organização Internacional do Trabalho, ou seja, razoável em termos de remuneração, de condições e de relações de trabalho. O importante é dar-se conta de que as abordagens de desenvolvimento que se concentram no problema do crescimento do PIB e tratam a geração de emprego como uma mera resultante, que pode ser boa ou ruim, acabam por aceitar, na prática, que a exclusão social é um mal necessário, é o preço inelutável do progresso. Enfim, o mínimo que se pode dizer é que são incompletas. Não vamos ter geração de empregos sem crescimento, mas podemos ter crescimento econômico sem geração de emprego (jobless growth). Para evitar isso necessitamos de um conjunto de políticas explícitas que corrijam o viés do crescimento moderno, que se caracteriza por uma alta intensidade de capital e uma baixa densidade em emprego.

Dentro dessa problemática aparece, como uma das frentes de batalha importantes, o problema dos empreendimentos de pequeno porte. O micro-empreendedor é, em grande parte, informal, trabalhando por conta própria ou trabalhando em pequenos negócios. É lá que está a maior parte dos empregos. As estratégias de desenvolvimento precisam prever o que fazer com que esta gente que mal se mantém com o nariz acima da água, recorrendo àquilo que Fernando Fajnzylber (um economista chileno destacado que, infelizmente, morreu muito jovem) chamou de competitividade espúria. A competitividade deles passa por salários ou rendimentos muito baixos, jornadas de trabalhos longas, ausência da proteção social etc. O que fazer com essas pessoas? Como criar condições para que elas saiam da informalidade? Como criar condições para que a competitividade delas não seja unicamente uma competitividade espúria e sim transformada em competitividade real? Esse é um dos desafios da política do desenvolvimento e passa por um feixe de políticas públicas. Várias políticas públicas ao mesmo tempo, aquilo que o presidente do Sebrae, Silvano Gianni, chama de lei áurea do pequeno empreendimento.

Posso especificar o que é necessário. Primeiro, desburocratizar o processo da entrada na economia formal. Teoricamente, existe no Brasil um mecanismo que se chama Fácil, mas ele não é tão fácil com indica o nome e nem tão barato como deveria ser. Portanto, precisamos de um Fácil mais fácil. Por outro lado, sempre se pautando pelo principio de que, dadas as desigualdades e a heterogeneidade da sociedade brasileira, temos de aplicar um tratamento desigual aos desiguais, um tratamento preferencial para os mais carentes e fracos, o que significa uma fiscalidade diferente, com alíquotas mais baixas. Precisamos no Brasil de um Simples Fiscal, mas tem de ser mais abrangente do que ele é hoje, porque ele não abrange, por exemplo, os impostos municipais, que são os que mais incidem sobre os serviços.

Por analogia, um Simples Previdenciário que pague menos e que entre no sistema da Previdência, quando atualmente fica de fora. Depois, acesso à tecnologia. Da mesma maneira que o progresso das zonas rurais (da agricultura familiar e da reforma agrária) vai depender muito da construção de um sistema de extensão agrária eficiente, deveríamos pensar num sistema de extensão para os pequenos produtores urbanos, extensão para prestar assistência técnica. Depois vem o acesso ao crédito. A discussão gira ao redor do que se chama micro-crédito. Prefiro dizer crédito para micro-empreendedores em vez de micro-crédito, que é apenas uma forma, e talvez não a mais pertinente.

Em seguida vem o problema do acesso ao mercado que, entre outras coisas, demandaria uma política que permitisse aos pequenos abocanharem uma parcela maior de contas públicas. Nos EUA, há uma lei que obriga todos os organismos públicos a gastarem mais de 20% com os pequenos empresários.

As cooperativas e a informalidade

Finalmente, para que esses pequenos queiram e possam sair da informalidade, pois hoje eles não estão convencidos disso, é preciso dar ênfase muito maior ao empreendedorismo coletivo - cooperativas, associações, consórcios. O empreendedorismo coletivo não é uma antítese do individual. A união faz a força, como se diz. É lindo um livro de Kropotkine sobre a ajuda mútua ao dizer que a seleção natural pode ser feita de duas maneiras: pela luta ou pela ajuda mútua. Cinqüenta padeiros que passam a comprar farinha em conjunto vão ter preços melhores. Por incrível que pareça, as chamadas cooperativas de táxis na cidade de São Paulo não compram os automóveis para os cooperados, nem fazem coletivamente o seguro dos veículos. Imagino que, ao entrar numa loja de automóveis, se um representante de uma cooperativa manifestar que pretende comprar trezentos automóveis, certamente ele conseguiria um preço muito mais em conta. Mas devemos lembrar que o país tem uma tradição de pseudocooperativas de trabalho que são formas de burlar a legislação trabalhista. Essas devem ser eliminadas na medida do possível. Mas não há razão para que cooperativas genuínas de trabalho, devidamente enquadradas nas leis trabalhistas e previdenciárias, não sejam um parceiro privilegiado de obras públicas - municipais, estaduais e federais. Só quando tudo isso funcionar desse modo, é que estaremos criando um ambiente para que esses pequenos empreendimentos prosperem.

No Brasil, o conceito de cooperativas funciona, na realidade, em dois níveis. Há os catadores de lixos, badalados na imprensa, para dizer que se está fazendo alguma coisa para os excluídos. Por outro lado, há cooperativas agrícolas no Estado do Paraná que são de uma eficiência indiscutível, constituem um elemento importante do agro-negócio brasileiro. Entre os dois há um enorme espaço, por exemplo, para criar cooperativas de poupança e crédito.

Houve uma mudança legislativa recente que é importante - a de criar cooperativas que não são unicamente de pessoas que trabalham no mesmo ramo. Por exemplo, uma cooperativa de lojistas de uma rua. Estamos, na realidade, falando de formas do que no Brasil se chamou de economia solidária. Na Europa, denomina-se economia social, pois economia solidária é um conceito mais estreito, é uma parte da economia social. Fizemos o relatório já mencionado para o Sebrae e o PNUD essencialmente para mostrar que os pequenos são também heterogêneos. Porque não dá para ter a mesma política para o catador de lixo e para o fornecedor de software. Existem pequenas empresas de alta tecnologia e há, nas universidades, incubadoras de empresas de alta tecnologia. Mas para cada segmento dessa população heterogênea é preciso ter políticas diferentes. Uma pesquisa recente sobre a informalidade, preparada pela consultura McKinsey, está sendo muito badalada pela imprensa aqui no Brasil. Todavia, a meu ver, passa ao lado da verdadeira problemática, porque coloca todas as informalidades no mesmo saco. Na realidade, existem pelo menos dois tipos de informais: de um lado estão os informais por necessidade (ou por desespero), ou seja, os trabalhadores por conta própria e os empregados dos micro-negócios buscando estratégias de sobrevivência, e de outro lado estão os informais por decisão - malandros, sonegadores, contrabandistas, aproximando-se da fronteira tênue entre as atividades informais porém lícitas e as atividades ilícitas.

Um estudo publicado pelo Valor mostrou que, durante vários anos, a Souza Cruz, uma das maiores empresas de produção de cigarros no mundo, estava exportando quantidades fabulosas de cigarros para o Paraguai, sabendo perfeitamente que esses cigarros voltam como contrabando para o Brasil. Do ponto de vista jurídico, a exportação era legal. Contudo é estranho que a empresa não tenha se dado conta de que estava fomentando o contrabando. Essa história de que a principal razão da informalidade são os impostos altos está longe de oferecer uma explicação convincente da informalidade.

A recuperação do mercado interno

ESTUDOS AVANÇADOS - Que alternativas a curto e médio prazo podem ser propostas para a recuperação do mercado interno e do emprego no Brasil?

Ignacy Sachs - A política com relação aos micro e pequenos empresários é uma parte da questão, mas há outras possibilidades. Primeiro, a produção do que os economistas chamam de bens e serviços não-comerciáveis (ou seja, que não estão sujeitos à competição internacional), cria um maior espaço para a seleção de tecnologias. As obras públicas, de que já falamos, a construção civil, a produção de serviços, podem ser feitas com técnicas mais densas em empregos, sem cair no exagero das frentes de trabalho "só com uma pá na mão". Mas entre essas frentes de trabalho "só com a pá na mão" e os equipamentos mais modernos, importados para a construção de estradas, temos um largo espaço para diversas escolhas

Em segundo lugar, continuo convencido de que o maior trunfo deste país é a possibilidade de entrarmos num novo ciclo de desenvolvimento rural. Há ainda um potencial de empregos a serem criados ao redor do que se pode chamar de aumento da produtividade dos recursos naturais, ou seja, tudo aquilo que leva à conservação da energia e da água, à reciclagem, à reutilização de materiais etc. Em outras palavras, pode-se tirar mais do aparelho de produção existente, contribuindo para o desenvolvimento sem necessidade de grandes investimentos. Por analogia, tudo que diz respeito a uma manutenção mais cuidadosa do patrimônio existente de infra-estrutura, equipamentos, parque imobiliário, parque viário etc., prorroga a vida útil desse patrimônio. Portanto, reduz a demanda por capital de reposição e libera mais capital para novos investimentos. Diria que nestas três vertentes há muito o que fazer.

E agregaria outra. A economia brasileira não poderá prescindir de investir muito no núcleo modernizador constituído por empresas de alta tecnologia que não vão gerar empregos diretos. Creio que há, no entanto, um campo para uma negociação entre as grandes empresas e os empreendimentos de pequeno porte ao seu montante e juzante para gerar empregos indiretos em quantidade maior do que está acontecendo. O Brasil poderia retomar a experiência abandonada de câmaras setoriais, só que precisamos de uma negociação quadripartite com os seguintes participantes: trabalhadores, empresários, o Estado como mediador e a sociedade civil organizada. De uma maneira geral, o futuro das políticas de desenvolvimento passa pelo conceito de desenvolvimento negociado e pactuado pelos parceiros do processo, pela definição clara do que cada um faz e como cada um contribui.

Uma nova civilização no trópico

ESTUDOS AVANÇADOS - Quanto à questão do trabalho no mundo rural, que iniciativas podem ser tomadas? No nível da reforma agrária, no da agricultura familiar, em face do agro-negócio e da agricultura transgênica?

Ignacy Sachs - O Brasil possui a maior biodiversidade do mundo, uma reserva confortável de solos agrícolas (mesmo que não se toque em uma só árvore da flo-resta amazônica), climas amenos, vantagens naturais do trópico na produção de biomassa etc. O sol é nosso e assim ficará quaisquer que sejam as vicissitudes do regime político. Há uma massa de gente que está reclamando terra e que criaria um problema muito mais grave ao desfilar pelas ruas de São Paulo pedindo emprego no asfalto. Por fim, o Brasil tem uma pesquisa agronômica e biológica de classe internacional.

Ao juntar todas essas coisas pode-se partir para um objetivo extremamente ambicioso, o da construção de uma nova civilização do trópico, baseada no trinômio biodiversidade, biomassas e biotecnologias, estas últimas utilizadas para, por um lado, aumentar a produtividade das biomassas e, por outro lado, abrir o leque dos produtos delas derivados: alimentos, ração, energia, fertilizantes, materiais de construção, matérias-primas industriais, fármacos e cosméticos. É todo um mundo que se pode construir a partir da biomassa, caminhando dessa maneira para um desenvolvimento ecologicamente sustentável.

Os adjetivos utilizados para se qualificar o desenvolvimento têm variado. Hoje, trabalho com três: includente do ponto de vista social, sustentável do ponto de vista ecológico e sustentado do ponto de vista econômico. Esse é o tripé. Dentro dessa visão, podemos almejar uma civilização moderna do vegetal, por analogia com as grandes civilizações do vegetal do passado, tão bem descritas pelo geógrafo tropicalista Pierre Gourou, autor de Terras de boa esperança. Uma civilização moderna é perfeitamente possível com o pró-cana e o pró-diesel como carros-chefe.

O que é preciso para isso? Primeiro, evidentemente, acelerar e completar a re-forma agrária. A revista Estudos Avançados publicou um documento importante sobre o assunto. A reforma agrária não se limita à distribuição de terra. A analogia é perfeita com o que eu disse a respeito dos empreendedores de pequeno porte. Os assentados da reforma agrária necessitam não só do acesso à terra, mas também aos conhecimentos, ao crédito, aos mercados. É indispensável uma política de apoio à agricultura familiar, tanto a resultante da reforma agrária como aquela que já existe. Isso leva a um conceito de agro-negócio que é diferente do grande agro-negócio atual. Este, baseado essencialmente na produção de grãos e de carne, gera divisas, riqueza, mas poucos empregos.

A chance histórica do Brasil é que ele pode se dar ao luxo de manter por algum tempo ambas as formas. Há espaço para uma, há espaço para outra. Não é preciso proceder a arbitragens dolorosas, mas é essencial que haja um feixe de políticas públicas voltadas para essa questão. E dentro dela vai haver certamente espaço para a articulação dos pequenos produtores com empresas industriais de porte maior, buscando sinergias positivas em vez de relações adversariais. Se não fizermos desse problema de articulação uma política, onde deve haver mais transparência e espaço para a negociação, onde haja regras que fortaleçam o pequeno frente ao grande, corremos o risco de não realizar os objetivos sociais do desenvolvimento.

Confesso que não tenho sobre os transgênicos uma opinião firme. A não ser o seguinte: não façamos disso um caso de religião. A analogia com a energia nuclear é bastante forte. Não nos privemos do acompanhamento dos progressos científicos nesse domínio. Ao mesmo tempo, tentemos introduzir os conceitos de prudência e de bioética. A partir daí, examinemos os casos um por um. Só acrescentaria que, ao lado do mega-agro-negócio, pode existir um agro-negócio democrático, baseado nas cooperativas e em outras modalidades de economia solidária.

A ampliação do número de empregos

ESTUDOS AVANÇADOS - De que modo as obras públicas podem induzir o crescimento do número de postos de trabalho na infra-estrutura, na área de habitação e em outras?

Ignacy Sachs - Podem e devem criar um número grande de empregos, mas na realidade isso nos remete a uma das grandes controvérsias do pensamento econômico. Ou seja, como fazer com que o crescimento não seja inflacionário? Há duas doutrinas. Existe a doutrina monetarista, que engessa o país alegando a vulnera-bilidade externa, o problema da dívida externa, e não permite avançar nesse caminho. E existe a teoria estruturalista da inflação, na qual se destacaram vários economistas latino-americanos. É possível avançar na direção de mais obras públicas sempre que a economia tenha capacidade de produzir os bens de consumo para enxugar a demanda adicional proveniente dos salários distribuídos nas obras públicas. Na realidade, existem só dois limites, o primeiro é a capacidade de incrementar a produção de bens de consumo e o outro são problemas relacionados com a capacidade de importar.

No caso do Brasil, é possível imaginar obras públicas que não requerem um dólar de importação e é óbvio que a economia brasileira possui hoje capacidades ociosas na produção de alimentos, de havaianas, de jeans e de camisas, que são os bens que esta gente vai comprar. Portanto, os estruturalistas deveriam pleitear, a meu ver, pelo menos um maior afrouxamento do crédito, já que a relação crédito/PIB no Brasil é uma das menores do mundo e que uma parcela diminuta desse crédito vai para o tipo de obras de que estou falando.

Creio, portanto, que há possibilidades de avançar mais rapidamente, mas isso requer a superaração da herança maldita de 25 anos da contra-reforma neoliberal que continua a fazer a cabeça de muitos economistas.

Moradia é um outro caso que me parece sub-aproveitado. Creio que esse país tem tudo para realizar um grande programa de autoconstrução de moradias populares. Não se deve deixar a construção unicamente na mão do futuro morador. É preciso que haja planejamento, assistência técnica, que o processo seja conduzido numa parceria público-privada, mas na qual os futuros moradores contribuam com uma parcela substancial do custo através de uma poupança não monetária. Ao trabalharem na sua futura casa, na realidade eles estão poupando, mas não poupando em termos monetários. Isso é um elemento adicional para financiar o crescimento econômico.

Em geral, o investimento não monetário tem também uma grande importância na agricultura familiar. A família que constrói sua casa, que faz as cercas, está na realidade investindo, sem investir um real. É um investimento não-monetário subes-timado nas estatísticas.

A influência dos mercados financeiros

ESTUDOS AVANÇADOS - Os mercados financeiros estão afetando a governa-bilidade dos países "em desenvolvimento"?

Ignacy Sachs - Sua pergunta me lembra aquela do menino que pergunta ao pai se cobra tem rabo, o pai responde: a cobra é só o rabo. Ou seja, a resposta é óbvia, porque são um empecilho enorme. Primeiro, devido à flutuação, à incerteza permanente que reina. Da manhã à noite os noticiários falam do risco Brasil, que é algo não totalmente arbitrário mas manipulável. Segundo, eles (os mercados financeiros) têm uma influência enorme sobre o comportamento das pessoas. Terceiro, existem os acordos internacionais que impõem toda uma série de regras desfavoráveis aos países do Sul. Portanto, os mercados financeiros criam para os países como o Brasil um ambiente externo desfavorável, para não dizer hostil.

Estudos Avançados - Há exemplos de países que foram capazes de contornar os constrangimentos impostos pelo Fundo Monetário Internacional? A moratória parcial seria realmente catastrófica?

Ignacy Sachs - Evidentemente, há exemplos. Existem trabalhos de J. Stiglitz e de outros economistas que apontam para a diferença entre o que está acontecendo na América Latina e o comportamento que tiveram certos países asiáticos - China, Índia, Malásia etc. O próprio Chile teve por muitos anos uma política que controlava as entradas e saídas de capital especulativo através do regime fiscal. Portanto, métodos existem. Dão resultados? Sim, mas temos de ser prudentes.

A China e a Índia, que estão sendo hoje apontados como países que têm altas taxas de crescimento, estão num crescimento rápido, numa modernização fortíssima, numa industrialização acelerada. No caso da Índia, há uma entrada espetacular no mercado internacional de serviços informáticos. Contudo, trata-se de um modelo que o Brasil já teve sob os generais, ou seja, crescimento rápido, porém socialmente perverso, excludente e concentrador da renda. Resultado, o governo indiano, contra todas as expectativas, perdeu as eleições, apesar dos seus sucessos internacionais e da sua propaganda sobre a "shining Índia", a Índia que brilha. Por que este paradigma funcionou no passado no Brasil e está funcionando hoje na China, porém sofreu o repúdio por parte da população indiana? Qual a diferença? É a democracia.

É importante ter uma política que proteja o país contra as pressões do mercado financeiro. O embaixador Rubens Ricupero insiste sempre sobre as diferenças entre a globalização comercial e a financeira. A globalização comercial oferece oportunidades, enquanto a financeira gera obstáculos. Devemos ambicionar não só um crescimento forte, mas um crescimento que seja socialmente includente e ambiental-mente sustentável. O caso da China, do ponto de vista ambiental, se posso me ex-pressar assim, é uma tragédia grega.

Examinemos a questão da moratória e o caso da Argentina. É muito importante porque, para pensarmos o desenvolvimento no século XXI, temos de partir de uma visão histórica do que aconteceu com os diferentes paradigmas de desenvolvimento nesse último meio século. Tivemos, depois da Segunda Guerra Mundial, uma fase de trinta anos que eu chamaria de capitalismo reformado, baseado na idéia de pleno emprego, do Estado protetor e do planejamento. Funcionou trinta anos porque os capitalistas tinham de enfrentar a competição do socialismo real, que, no após guerra, afigurava-se como uma alternativa crível; veja-se a votação que obtinham os partidos comunistas da França e da Itália.

Estávamos, portanto, com dois modelos - o capitalismo reformado e o socialismo real. Por razões que seriam longas demais para explicitar, podemos dizer que o poder atrativo do socialismo real foi diminuindo e entrou em agonia com a invasão da Tchecoslováquia, em 1968, acabando por morrer com a queda do muro de Berlim em 1989. Assim que a credibilidade do socialismo real começou a baixar, o capitalismo voltou à sua arrogância de antes, anterior a 1930, e tivemos a contra-re-forma, pela mão da Margaret Thatcher e do falecido presidente Ronald Reagan. No bojo dessa contra-reforma surgiu o consenso de Washington.

As lições da Argentina

Há um belíssimo texto de Marshall Berman (aquele sociólogo norte-americano autor do livro Tudo que é sólido se desmancha no ar) que apresenta a segunda parte do Fausto, de Goethe, como a primeira tragédia do desenvolvimento. Podemos dizer que este episódio de Fausto foi uma tragédia vitual. A descida da Argentina ao inferno foi uma tragédia verdadeira, que representou, para o consenso de Washington, o que a invasão da Tchecoslováquia e a queda do muro de Berlim foram para o socialismo real. Em sendo assim, é difícil pensar que o consenso de Washington sobreviva por muitos anos à tragédia da Argentina, um dos países mais avançados do mundo após a Primeira Guerra Mundial, mas que agora acabou nesse "buraco negro".

Os argentinos não tinham outra solução além da moratória. E podemos dizer que até agora nenhuma das ameaças proferidas contra eles se cumpriram. O caso não está encerrado. Penso que uma renegociação séria das dívidas deve partir da avaliação do quanto o devedor pode pagar sem asfixiar a sua economia. Ou seja, em vez de matar a galinha dos ovos de ouro, os credores deveriam contentar-se com ovos de prata, fornecidos por um período de tempo mais extenso. A capacidade de pagar é o ponto de partida e o que deve ficar em aberto é o número de anos necessário para saldar a dívida, desde que se afete uma porcentagem fixa das exportações ao serviço da dívida. Assim, o país credor passa a estar interessado no aumento das exportações do país devedor, porque quanto maior for o valor das exportações tanto menor será o período em que esse país pagará a dívida. Isso na hipótese de que os países credores queiram realmente o pagamento da dívida. Normalmente, o banqueiro não deseja que a dívida seja quitada, o que interessa são os juros.

Não foi feita até hoje uma tentativa suficientemente séria de renegociação das dívidas dos países pobres e não a teremos enquanto não houver uma coordenação e maior solidariedade entre os países devedores. Daí para mim a importância do que o governo brasileiro atual está fazendo para consolidar o G3 - Brasil, Índia e África do Sul e, na medida do possível, reconstruir o bloco dos não-alinhados! Hoje, não são mais os não-alinhados porque não estamos mais num mundo bipolar, no qual se enfrentavam o bloco ocidental e o bloco soviético (com a China correndo por seu lado), procurando atrair para si os países do Terceiro Mundo. Agora, estamos cada vez mais nos aproximando de uma nova configuração bipolar com os países industrializados por um lado e os demais por outro.

Os países industrializados conversam entre si e possuem organizações que permitem a articulação de suas políticas. Não em tudo, é óbvio, porque existem contradições sérias entre os Estados Unidos, o Japão e a Europa. A Europa está longe de ter uma posição comum, mas existe uma Comunidade Européia. Porém, até hoje não há uma comunidade dos países pobres. Aliás, esta foi uma das propostas que formulamos em 1975 no informe Que fazer, já mencionado.

É essencial o planejamento

ESTUDOS AVANÇADOS - Atualmente, a idéia de planejamento parece ter perdido muito de sua importância. No entanto, o desenvolvimento sustentado demandaria o restabelecimento dessa idéia, ainda que em moldes distintos. Como o senhor vê essa questão, especialmente no que diz respeito aos papéis que podem desempenhar o Estado e a sociedade civil?

Ignacy Sachs - Estou totalmente de acordo. Diria que esta é uma das minhas preocupações principais. O fato de que o planejamento de tipo soviético tenha mor-rido na praia não significa que devamos nos desfazer do conceito de planejamento. Não conheço nenhuma grande empresa de porte mundial que não esteja planejando. Como é que os Estados-nação poderiam prescindir de planejamento?

Alguns ideólogos da globalização (aliás, a globalização é também uma ideologia) dizem que o Estado-nação perdeu a sua importância na época atual. Isso é uma balela. Mais do que nunca, para se proteger contra os efeitos negativos da globalização e para aproveitar, na medida do possível, as oportunidades que surgem, precisamos de estratégias nacionais. Esta foi umas das tônicas da mensagem de Rubens Ricupero na última UNCTAD.

Se assim é, essas estratégias requerem, como Celso Furtado não se cansa de repetir, um projeto nacional discutido, negociado, que surja de um grande debate social. Um projeto nacional que resulte de um planejamento estratégico, flexível, onde não são os objetivos quantitativos que dominam. Planejamento contextual, onde não se atua diretamente sobre o objetivo, e sim cria-se condições que empurram os atores para determinadas direções. Planejamento negociado, onde o Estado, os empresários, os trabalhadores e a sociedade civil sentam à mesa. Planejamento pactuado, onde se chega à contratualização dos objetivos e das obrigações dos diferentes parceiros. O aprimoramento dos métodos de planejamento do desenvolvimento é uma das grandes tarefas das ciências sociais. Em vez de tratá-lo como um apêndice do planejamento econômico, devemos inverter esta relação: o econômico é apenas uma das dimensões, por importante que seja, do desenvolvimento.


Desenvolvimento e cultura

Estamos vivendo uma série de confusões semânticas que, na realidade, são confusões epistemológicas. Por exemplo, em quase todos países do mundo, o desenvolvimento ambientalmente sustentável é atrelado ao Ministério do Meio Ambien-te. Um absurdo. O desenvolvimento socialmente includente e ambientalmente sustentável requer a coordenação de todos os ministérios. Ele deve informar a estratégia global do país. E não é um sub-secretário de um Ministério do Meio Ambiente, como ocorre hoje, por exemplo, na França, que está em condições de coordenar os pesos-pesados representados pelos ministros das Finanças, da Indústria, da Agricultura etc.

Como já foi dito, queremos planejar o desenvolvimento, que evidentemente depende do crescimento econômico, mas não é uma resultante automática deste. O desenvolvimento é, por definição, um conceito pluridimensional com um forte componente cultural. Celso Furtado sempre insiste que o desenvolvimento requer a invenção do futuro. Não uma invenção resultando de voluntarismo desenfreado e sim baseada no exercício de um voluntarismo balizado pelo princípio da responsabilidade de Hans Jonas, e inspirado pelo princípio da esperança de Ernest Bloch. Portanto, uma invenção que exige uma dupla imersão, na cultura e na ecologia.

A cultura é um conceito polissêmico. Numa nota de trabalho que entreguei ao ministro Gilberto Gil usei uma definição do professor Bosi, colocada na Dialética da colonização. A cultura do antropólogo é uma coisa, a cultura como conjunto de atividades culturais, artísticas, é outra coisa. Existe ainda a cultura representada pelo conhecimento da sociedade sobre o seu meio.

É a partir dessas três culturas que podemos definir as metas, os objetivos do desenvolvimento. Aí vai aflorar fortemente a problemática dos estilos de vida, dos modos de consumo. Por isso deveríamos dedicar mais atenção à análise dos modelos culturais do uso do tempo. Ou seja, quanto tempo alocado às atividades do homo faber, do homo civis, do homo ludens, quanto tempo do homo faber no mercado e em atividades econômicas fora do mercado etc. Devemos reabilitar a distinção entre o trabalho heterônomo e o trabalho autônomo e analisar a diversidade dos estilos de desenvolvimento, a partir desse ponto de entrada que é a articulação dos diferentes modos de uso do tempo.

É óbvio que sendo um conceito pluridimensional, o desenvolvimento requer abordagens pluridisciplinares e não a prepotência do economista. Com essas ressalvas, considero que se deve voltar simultaneamente ao ensino do planejamento e da teoria do desenvolvimento, disciplinas que estão desaparecendo em muitas universidades, pois a vulgata reformista liberal considera esses dois conceitos como redundantes.

Se se acredita numa economia atópica e atemporal, aplicável da mesma maneira em qualquer lugar do mundo, para que perder o tempo com o desenvolvimento?

Para complicar ainda mais a situação, surgiu um ataque organizado de certos pós-modernistas contra o conceito de desenvolvimento. Eles acham que o desenvolvimento foi uma armadilha ideológica para enganar os países do Sul. Deveríamos, portanto, deixar de lado o palavrório do desenvolvimento e partir para um pós-desenvolvimento. Estou, porém, à espera de um texto que explique o que isso vai significar e demonstre que não se trata de uma mera brincadeira semântica.

Uma vertente do pós-desenvolvimentismo consiste na volta à ecologia profunda, à deep-ecology e a uma exortação para parar de crescer de uma vez para não prejudicar ainda mais os desequilíbrios ecológicos. Contra eles digo: enquanto houver diferenças abismais entre os pobres e os ricos, dentro dos países e entre os países, não temos o direito de parar. Precisamos resgatar a dívida social e fazer isso com urgência, porque de todos os desperdícios que caracterizam nossa civilização o mais terrível é o das vidas humanas causado pelo desemprego, subemprego e exclusão social. As vidas humanas fluem, não é possível estocá-las, por isso é absurdo falar de capital humano. O capital a gente coloca no banco e ainda ganha os juros. Uma pessoa que não tem condições de se realizar é um desperdício irreparável, irreversível, um insulto à ética.

Mais do que nunca temos urgência na problemática do desenvolvimento, conceito duplamente central. Primeiro, porque permite analisar o passado não para encontrar modelos a serem replicados, mas para construir muletas para a imaginação social, para encontrar exemplos que devem ser superados na medida do possível; a ambição deve ser sempre de se dar um passo à frente.

Segundo, porque oferece um arcabouço intelectual para a invenção do projeto nacional. O desenvolvimento é pluridimensional, plurisciplinar, subordinado ao duplo imperativo ético de solidariedade sincrônica com a geração presente e de solidariedade diacrônica com as gerações futuras. Portanto, requer um paradigma oposto ao excludente e concentrador que conhecemos no passado, o essencial é criar um desenvolvimento includente e, ao mesmo tempo, superar os modos predatórios de utilização da natureza. Não se trata de não usar a natureza. Não se trata tampouco de propor o não- desenvolvimento em nome do ambientalismo. Trata-se de definir o bom uso da natureza. Du bon usage de la nature é o título de um livro de um casal francês, os Larrere. Ela ensina filosofia em Bordeaux e ele é agrônomo.

E, finalmente para acontecer, o projeto de desenvolvimento tem de ser economicamente viável.



O papel do Estado

Agora a pergunta - qual o papel do Estado? Não acredito que voltemos, num futuro próximo, à idéia de um Estado onipotente, mas acredito e faço votos que superemos o mais cedo possível a idéia de um Estado mínimo, que permeia a teologia neoliberal. Portanto, se não queremos o Estado mínimo nem o Estado onipotente, o que desejamos? Queremos um Estado enxuto, não aquele monstro super dimensionado. Queremos um Estado limpo, não corrupto. Queremos um Estado atuante e pró-ativo. Um Estado que organize e conduza o processo de negociação entre todos os atores do processo de desenvolvimento. Este é um dos desafios maio-res que o futuro nos coloca.



Lições de uma pesquisa no Brasil

O que a teoria oferece? As ciências sociais são essencialmente heurísticas, permitem formular perguntas que não são óbvias, que não estão na superfície dos acontecimentos. As respostas vêm sempre a partir da práxis. O diagnóstico aprofundado exige também uma visão aprofundada da realidade social. Portanto, há anos aceito, sempre que posso, os convites para andanças que permitem visitar os mais diversos lugares. Tive várias experiências no Brasil muito bem-sucedidas, do que poderia se chamar de seminários peripatéticos. Ou seja, partir com um grupo e discutir durante a viagem. Fiz um seminário desses, memorável, com o pessoal do Instituto de Tecnologia de Minas Gerais, com o então secretário adjunto de Ciência e Tecnologia daquele Estado, Otávio Elísio Alves de Brito, na região do lago de Três Marias.

Era nossa primeira tentativa de definir um projeto de eco-desenvolvimento, que deu depois com os burros n'água, numa cidadezinha que se chama Juramento. Estávamos lá, numa paisagem que faria jus a um conto de Guimarães Rosa. Fiquei absolutamente abismado com a quantidade de espaço livre. E, por outro lado, de ter encontrado num povoado uma mulher grávida, vivendo numa choupana, embaixo dos fios elétricos, mas sem acesso à rede. Era um casebre de dez metros quadrados. Ela cozinhava num fogareiro, na frente da casa, porque não havia lugar lá dentro. Tinha dois filhos. O marido estava trabalhando na produção de carvão vegetal, longe dali. Dois filhos tinham morrido e dois outros estavam com os sogros. Todos numa miséria absoluta, no meio de todo este chão, que não podiam cultivar. Uma horta instalada ao longo da estrada vicinal já seria uma mão na roda. Essa foi uma primeira coisa que discutimos no seminário.

A razão de irmos até aquele lugar decorreu do fato de que, na época, Antunes (um dos grandes industriais brasileiros), acabava de comprar uma imensa gleba porque pensava em produzir álcool a partir da mandioca. Eu estava defendendo a idéia de que a mandioca pode ser produzida por cooperativas de pequenos agricultures familiares e que as ramas da mandioca poderiam ser utilizadas para criar porcos. E como estávamos à beira do lago, o esterco dos porcos poderia ser aproveitado para criar peixes, se fosse possível se proteger contra as piranhas que infestavam o lago. Portanto, seria extremamente interessante obter uma gleba ao lado para criar uma cooperativa de cem famílias com vinte hectares cada uma. A propriedade do Antunes tinha duzentos mil hectares. Eu queria muito menos e estava pleiteando ao mesmo tempo duas ilhas no meio do lago. Uma, para criar um observatório das transformações da ecologia do lago e a outra para criar uma fazenda-modelo-escola para ensinar aos membros da futura cooperativa como se implanta e administra um sistema integrado de produção de alimentos e energia (álcool) a partir da mandioca. O projeto acabou em nada porque a Codevasf nos informou que não tinha mais hectare de terra algum disponível naquela área.

Mas nesta viagem aconteceu um episódio que sempre conto em aulas. Subimos numa balsa para atravessar um braço do lago. Ao nosso lado havia um caminhão. O caminhoneiro informou que ia para Feira de Santana, distante de mais de novecentos quilômetros e próxima do litoral. Perguntei o que ele levava para lá? Respondeu: "peixe". "Que peixe?" A pergunta ficou três vezes sem resposta. Finalmente o homem disse: "Vejam lá". Ele estava transportando uma tonelada de piranhas no gelo. Levei um certo tempo para resolver o caso, porque não sabia que a sopa de piranha era um afrodisíaco muito estimado na Bahia e por isso valia a pena transportá-la por 960 quilômetros de asfalto.

Sempre uso esse episódio para dizer que não dá para discutir o desenvolvimento sem um forte embasamento na antropologia cultural. Nenhum modelo matemático de economia vai resolver um assunto como este. Precisamos desses conhecimentos. Ciências sociais são ciências de campo e não devem erigir barreiras entre as diferentes disciplinas. Isto aprendi com a École des Annales. Os historiadores dessa escola praticam uma história global e não se questionam se estão no âmbito da história, da antropologia, da economia ou da sociologia.

O ofício do planejador do desenvolvimento assemelha-se muito ao ofício do historiador, com a diferença de que este trabalha sobre o que já aconteceu, e nós temos a arrogância, a pretensão, a ambição ou talvez a insensatez de pensar que é possível dar uma inflexão à trajetória futura. A respeito deste paralelo entre os ofícios do planejador e do historiador, escrevi um pequeno ensaio para o Festschrifit oferecido a Paul Bairoch.



Inesquecíveis experiências em Varsóvia

ESTUDOS AVANÇADOS - Como foi sua passagem pela Escola Superior de Planejamento e Estatística, em Varsóvia, na década de 1960 (a famosa SGPIS)? Essa escola não teve inegável importância na formação de planejadores de países do Terceiro Mundo? O senhor não gostaria de contar aos nossos leitores algo de sua experiência como professor nessa escola?

Ignacy Sachs - Foi uma das experiências que mais me enriqueceram. Ao voltar da Índia, em 1960, fui encarregado da criação do primeiro centro de pesquisas sobre economias de países subdesenvolvidos, em Varsóvia. Era na Escola de Planejamento e Estatística, na qual lecionei de 1961 a 1968. Michal Kalecki era o presidente do Conselho desse Centro, um presidente atuante. Durante oito anos nos víamos diariamente. Assim, tive o privilégio de conviver e colaborar com um dos maiores economistas do século e um homem admirável, pela sua modéstia e pelo seu caráter. Começamos a realizar diversos trabalhos, inclusive seminários sobre o desenvolvimento dos países do Terceiro Mundo. Neles participavam Kalecki, Lange e Bobroswski, os três principais economistas da Polônia, além dos pesquisadores poloneses encarregados de missões de assistência técnica nos países africanos e asiáticos. Além disso, vinham convidados para o Seminário renomados economistas estrangeiros, atraídos pelos nomes de Kalecki e Lange.

Daí surgiu a idéia de se criar um curso de planejamento para economistas do Terceiro Mundo, com um forte apoio das Nações Unidas, o que nos permitiu dar bolsas e custear a vinda de professores, notadamente da Ásia e da América Latina. Esse curso começou em 1963 e tivemos um grupo de brasileiros: Jorge Miglioli, Lenina Pomeranz, Ivan Ribeiro Filho e Artur Candal. Na época, éramos conhecidos como a Cambridge do Leste. Um relatório de uma subcomissão do Senado norte-americano chegou a dizer que o curso era uma arma extremamente forte na luta pela alma do terceiro mundo, pelo fato de que não tentava fazer doutrinação ideológica alguma.

Nosso trabalho estava baseado na seguinte idéia: venham compreender como funciona na realidade (sem esconder os seus defeitos) uma economia socialista, mas não transponham diretamente essa experiência para seus países, porque há diferenças fundamentais entre países capitalistas desenvolvidos, países socialistas e países do Terceiro Mundo. Kalecki, com aquela sua capacidade de fórmulas extremamente compactas, resumiu essas direrenças da maneira seguinte: os países desenvolvidos têm problemas de demanda efetiva e devem administrá-la para evitar as crises. Os países subdesenvolvidos e os países socialistas têm em comum o fato de que são limitados pela oferta, pela insuficiência do aparelho de produção. Os países socialistas, em comparação com os países do Sul, têm um grau de controle muito maior sobre a economia. Estes últimos juntam o pior dos dois mundos.

Toda a tônica do ensino era mostrar como funcionava a economia polonesa, com uma crítica objetiva das insuficiências do sistema, apontando ao mesmo tempo as diferenças, com o caso dos países subdesenvolvidos.

Dávamos grande importância a uma singularidade do caso polonês, o único país do leste que não implantou a coletivização completa no campo. Fez uma coletivização que mal abrangeu 10% a 15% das terras e em 1956 permitiu que as cooperativas se dissolvessem. Portanto, era um país com uma agricultura camponesa, individual e com minifúndios. Nesse contexto, vale a pena mencionar Jerzy Tepicht. Ele tem um livro em francês com um título péssimo, Le marxisme et le paysan polonais. Depois de ter sido responsável pela coletivização, cargo a que renunciou depois de um ano, ele foi para o Instituto de Pesquisas sobre o Desenvolvimento Rural, onde passou quinze anos a refletir porque a coletivização não podia resolver o caso polonês. Chegou, então, a uma teoria extremamente original, na qual afirmava que a coletivização das terras deveria ser a última etapa da socialização do campo, quando o que pregava a ortodoxia era que fosse realizada em primeiro lugar. Essa reflexão se inspirava, entre outras coisas, em teses de Chayanov, o teórico russo do cooperativismo e apontava para o potencial das reservas da mão-de-obra na agricultura familiar para alavancar o desenvolvimento. Ivan Ribeiro estudou com afinco o pensamento de Tepicht. Era evidente o enorme interesse despertado pelo curso em vários países do Terceiro Mundo. Vivi essa experiência seis anos, e passaram pela nossa mão mais de duzentos economistas do Terceiro Mundo. Fizemos, num dado momento, um curso à parte, em francês, para os argelinos. Quando saiu aquele relatório da subcomissão do Senado norte-americano, fomos chamados pelo ministro da Educação, que nos perguntou: "o que vocês precisam a mais?" Respondemos: não precisamos de grande coisa a mais, queríamos apenas integrar o Seminário de Kalecki, o nosso centro de pesquisas e o curso de planejamento num Instituto.

Mas veio o ano de 1968 e fomos alvos de uma campanha feroz. Não era ainda a demissão do Gomulka, era a preparação da invasão da Tchecoslováquia. Houve uma provocação em que fomos acusados de sermos uma quinta-coluna sionista e revisionista. Depois de um ano ou dois daquela avaliação tão favorável ao nosso trabalho, ninguém se lembrou dos elogios que nos tinham sido feitos.

Atravessei esse período conturbado de 1968 em parte na América Latina, porque fui fazer uma palestra no México e depois passei três semanas num seminário da Cepal em Santiago. Quando voltei a Varsóvia o reitor me chamou e disse: "O seu projeto de Instituto foi aprovado". Em seguida, ele citou os nomes dos novos diretores dessa instituição. Respondi que a única coisa que me restava era entregar as chaves. Ao que ele disse: "Não, lhe peço um favor pessoal, isso ainda não está formalizado. Continue na chefia do Centro". Assim passaram duas semanas e numa manhã abri o jornal e aprendi, entre outras coisas, que, sob o pretexto de construir pontes entre Leste e Oeste, eu fazia o contrabando do estruturalismo de Lévi-Strauss e de outros "ismos" burgueses.

Na verdade, na época participei de um grande projeto da Unesco sobre as tendências principais nas ciências sociais. Nele fui representar Oskar Lange, que logo depois morreu. Eu atuava ao lado de Lévi-Strauss, Lasarsfeld, Piaget, Jakobson, Trist, além de outros cientistas de renome internacional.

Esses foram os eventos que me afastaram de meu país natal. Contudo, em 1968, retomei à mesma problemática num âmbito mais auspicioso, em Paris, convidado por Fernand Braudel, para integrar a hoje École des Hautes Études en Sciences Sociales.
Revista Estudos Avançados

Entrevista com Zigmunt Bauman


Um renomado periódico espanhol referiu-se recentemente a Zygmunt Bauman como um dos poucos sociólogos contemporâneos "nos quais ainda se encontram idéias". Opinião semelhante é freqüentemente exposta por críticos de várias partes do mundo quando refletem sobre o pensamento desse intelectual polonês radicado na Inglaterra desde 1971 e empenhado há meio século em "traduzir o mundo em textos", como diz um deles. Indiferente às fronteiras disciplinares, Bauman é um dos líderes da chamada "sociologia humanística", ao lado de Peter Berger, Thomas Luckmann e John O'Neill, entre outros. De um lado, não se encontram em suas obras abstrações ou análises e levantamentos estatísticos; de outro, são ali aproveitadas quaisquer idéias e abordagens que possam ajudá-lo na tarefa de compreender a complexidade e a diversidade da vida humana. Essa é uma das razões pelas quais Bauman tem muito a dizer para uma gama de leitores muito maior do que normalmente se espera de um trabalho de sociologia mais convencional, o que condiz com suas próprias ambições de atingir um público composto de pessoas comuns "esforçando-se para ser humanas" num mundo mais e mais desumano. Como ele gosta de insistir, seu objetivo é mostrar a seus leitores que o mundo pode ser diferente e melhor do que é.

Autor prolífico e de renome internacional, pode-se dizer que sua fama e prolixidade aumentaram significativamente após a aposentadoria, em 1990: 16 de seus 25 livros foram publicados após essa data e cinco obras dedicadas ao estudo de seu pensamento foram escritas nos últimos anos.

Descrito certa vez como "profeta da pós-modernidade" (com o que não concorda), por suas reflexões sobre as condições do mundo da "modernidade líquida", os temas abordados por Bauman tendem a ser amplos, variados e especialmente focalizados na vida cotidiana de homens e mulheres comuns. Holocausto, globalização, sociedade de consumo, amor, comunidade, individualidade são algumas das questões de que trata, sempre salientando a dimensão ética e humanitária que deve nortear tudo o que diz respeito à condição humana. Preocupado com a sina dos oprimidos, Bauman é uma das vozes a permanentemente questionar a ação dos governos neoliberais que promovem e estimulam as chamadas forças do mercado, ao mesmo tempo em que abdicam da responsabilidade de promover a justiça social. "Hoje em dia", lamenta ele, "os maiores obstáculos para a justiça social não são as intenções... invasivas do Estado, mas sua crescente impotência, ajudada e apoiada todos os dias pelo credo que oficialmente adota: o de que 'não há alternativa'". É nesse quadro que se pode entender sua afirmação de que "esse nosso mundo" precisa do socialismo como nunca antes. Mas o socialismo de que Bauman fala, como insiste em esclarecer, não se opõe "a nenhum modelo de sociedade, sob a condição de que essa sociedade teste permanentemente sua habilidade de corrigir as injustiças e de aliviar os sofrimentos que ela própria causou". É nesse sentido que ele define o socialismo como "uma faca afiada prensada contra as flagrantes injustiças da sociedade".

Nascido na Posnânia em 1925, Bauman escapou dos horrores do holocausto que aguardavam os judeus poloneses na Segunda Guerra Mundial ao fugir com sua família para a Rússia, em 1939. De lá voltou após a guerra, quando se filiou ao partido comunista, estudou na Universidade de Varsóvia e conheceu Janina, com quem está casado há 55 anos e com quem teve três filhas: Anna (matemática), Lydia (pintora) e Irena (arquiteta).

Confiantes e animados pelo sonho de criar uma sociedade mais justa e igualitária, Zygmunt e Janina ali construíram suas carreiras (ele como professor da Universidade de Varsóvia e ela como editora de roteiros cinematográficos) e criaram sua família, até que uma nova onda de anti-semitismo e repressão esmagou seus sonhos e os forçou ao exílio. Após três anos em Israel, o convite para o cargo de chefe do departamento de sociologia na Universidade de Leeds trouxe Bauman e sua esposa à Inglaterra, onde permanecem até hoje.

Gentil, modesto e reservado, Zygmunt Bauman aceitou prontamente ser entrevistado para o público do Brasil, país que pouco conhece e onde esteve uma única vez há vários anos, para um congresso de sociologia no Rio de Janeiro. Pelas notícias que ouve do país, o que o impressiona é a desumanidade de cidades como São Paulo, por exemplo, uma cidade que, como diz, com sua abundância de muros ao redor de residências, prédios, parques etc., mostra "o lado mais brutal e inescrupuloso das tendências segregadoras e exclusivistas" das cidades metropolitanas. O fato de os brasileiros despenderem "4,5 bilhões de dólares por ano em segurança privada" só acresce a desumanidade de um quadro que considera sintomático da realidade mundial.

Bauman recebeu-me em Leeds, na confortável casa onde mora desde que ali chegou, há mais de trinta anos. "Naquela época achei a cidade horrível, imunda", disse-me Janina, comentando a mudança dos últimos tempos, que transformou Leeds de um sujo centro industrial em uma cidade bonita, verdejante e cheia de vida.

Extremamente hospitaleiro (algo muito próprio dos europeus do Leste, como dizem), Bauman entremeou reflexões sobre sua obra e sua vida com idas à cozinha para servir chá quente e com oferecimentos insistentes de caprichados canapés de salmão e outros petiscos cuidadosamente dispostos na pequena mesa de sua biblioteca.

Quando se acompanha sua carreira, o senhor parece um filósofo que, devido às condições da Polônia de pós-guerra, foi temporariamente desviado de sua vocação, voltando-se para a sociologia. Concorda com essa descrição?

Essa seria uma reconstrução justa do que realmente aconteceu e de como eu encarava a situação, mas com uma ressalva. Eu não era um filósofo profissional antes de ter me desviado para a sociologia, como você sugere; nem desejava me tornar um. Antes de me juntar ao exército polonês e voltar para meu país natal por essa via, eu fiz dois anos de curso universitário de física por correspondência (na Rússia, os estrangeiros não tinham permissão de viver em cidades grandes, onde havia universidades). Lembro de, como tantos adolescentes, me sentir um tanto apavorado e esmagado pelos mistérios e enigmas do universo e de desejar ardentemente dedicar minha vida a desvendar esses mistérios e a solucionar esses enigmas. Meus estudos no entanto foram interrompidos pelo apelo das armas, quando eu tinha 18 anos, para jamais serem retomados.

Ao deixar o exército em 1945, eu me vi novamente numa Polônia arruinada pela ocupação nazista, o que se somava a um anterior legado de miséria, de desemprego em massa, de conflitos étnicos e religiosos aparentemente insolúveis e de exploração de classe brutal. Os desafios que meu país confrontava eram, pois, muito maiores do que os do resto da Europa, pois além de reconstruir fábricas e casas, semear campos abandonados e colocar a economia de pé novamente, a Polônia exigia a batalha exaustiva contra uma pobreza sedimentada e contra profundas divisões de classe; a abertura das oportunidades educativas também era tarefa urgente, já que até então elas haviam estado fechadas à grande maioria da nação. Para resumir, a Polônia ainda tinha que aderir ao "projeto de modernidade", que podia ainda estar "inacabado" na Europa (e ainda hoje está, como insiste Jurgen Habermas), mas que na Polônia de 1945 ainda nem havia começado seriamente.

Imagino que a crença de que a sociologia poderia melhorar a vida humana ao reformar o meio social no qual esta se conduzia era parte integral do "projeto de modernidade". Até mesmo diria que o projeto consistia exatamente nisso. Assim, as pessoas que estavam seriamente empenhadas em levar a sociedade a desenvolver condições mais desejáveis — a fim de ser "moderna", ou seja, mais humana e melhor estruturada para promover a felicidade e a dignidade humanas — não titubeavam um instante sobre que tipo de conhecimento deveria ser com mais urgência adquirido, dominado e colocado em prática. Certamente só poderia ser a "ciência da sociedade", a sociologia, a disciplina que surgira para servir ao "projeto de modernidade". Como Auguste Comte disse na origem do mais "modernista" dos objetivos científicos, "il faut savoir pour prévoir, e prévoir pour pouvoir". Tal convicção sobre a missão da sociologia e tal fé em seu poder de realizar sua missão devem, sem dúvida, intrigar um leitor contemporâneo, mas somente porque vivemos hoje numa era diferente, quando o mantra do dia não é mais "salvação pela sociedade"; infelizmente, o que se ouve agora, como homilias insistentes, é que devemos buscar soluções individuais para problemas produzidos socialmente e sofridos coletivamente.

Se o senhor é ao mesmo tempo sociólogo e filósofo, poderia dizer se há ocasiões em que os dois papéis entram em conflito?

Essa é uma questão de perspectiva, pois combinar os papéis de "sociólogo" e de "filósofo" (ou ser enquadrado ora em um ora no outro, ou nos dois ao mesmo tempo) pode parecer esquisito agora e no mundo anglo-saxão (ou nas partes do mundo nas quais o desenvolvimento das ciências sociais seguiu um padrão americano após a Guerra). Mas nem sempre, nem em todos os lugares, foi assim... Certamente não era assim na Polônia, onde, como em grande parte da Europa, a sociologia foi concebida, gestada e incubada dentro do pensamento filosófico — como parte, ou ramo, da filosofia. Fui educado e treinado no Departamento de Filosofia e Sociologia, e não me recordo de nenhum conflito entre as duas partes do mundo acadêmico: ambas pareciam assumir que eram "naturalmente" parte de um todo, talvez se vissem mesmo como gêmeos siameses, ou até gêmeos holocéfalos!

Sou inclinado a acreditar que as raízes da sociologia como uma atividade intelectual separada e relativamente autônoma se encontram na exposição da antiga atividade filosófica à ousada, e até temerária, intenção de "ilustrar". O projeto de "ilustração" pode ser entendido, para usar a famosa alegoria de Platão, como a vontade de levar o produto da contemplação das verdades brilhantes e ofuscantes dos filósofos para os habitantes das cavernas e, desse modo, retirá-los dos bancos aos quais estavam atados, permitindo que vissem, absorvessem e retivessem algo mais valioso do que as meras sombras das coisas refletidas nas paredes. Em outras palavras, a sociologia nasceu da intenção, do desejo de compartilhar a sabedoria dos filósofos com hoi polloi, as "pessoas comuns", e de com isso elevá-las da ignorância e superstição para o conhecimento e entendimento genuínos. Inclino-me a pensar que na sua origem a sociologia era um programa de educação filosófica universal... Li o apelo à razão como uma faculdade universal dos seres humanos, contido em Was is Aufklarung ("O que é Iluminismo") de Kant, como um manifesto sociológico (dentre outras coisas, é claro).

Muitas pessoas tendem a descrever sua obra como sendo a de um moralista ou, pelo menos, como a de um sociólogo com mensagens éticas muito fortes. Concorda com essa descrição? Se sim, diria que está propondo um novo tipo de sociologia?

Talvez deva começar dizendo que, diferentemente da filosofia que "deixa o mundo como é", conforme a famosa reclamação de Ludwig Wittgenstein (que disse isso seguramente pensando no tipo de filosofia de "análise lingüística" que dominava o universo acadêmico da época), a sociologia faz diferença no mundo. Diria mesmo que, considerando sua ligação com a condição humana, há alguma afinidade entre o papel da sociologia e o da engenharia. A "engenharia" em que a sociologia se engaja, quer deliberadamente ou não, pode ser de dois tipos, e faz uma imensa diferença saber de qual deles se trata. Desde os anos de 1950 cunhei os termos "engenharia pela manipulação" e "engenharia pela racionalização" para diferenciar os dois tipos de engajamento e esclarecer para mim mesmo a qual tipo eu deveria aderir e de qual eu deveria me afastar.

O primeiro tipo de "engenharia", imensamente popular no meu tempo de estudante, tanto na comunista Polônia como na capitalista América, se oferecia aos corredores do poder com a promessa de ajudá-los a obter, sem nenhum questionamento, qualquer tipo de ordem que fosse escolhida para a sociedade sob seu domínio. Supridos com informações sociológicas sobre as condições sob as quais os homens e as mulheres se inclinam a diminuir suas obstinações e indocilidades usuais e se tornam menos propensos a se rebelar e a trilhar seus próprios caminhos, os detentores do poder podiam, então, legislar e transformar a realidade de modo a obter e receber a obediência e a disciplina que achassem necessárias. O livro de sociologia mais influente da época, The structure of social action, de Talcott Parsons, declarava exatamente seu propósito de desvendar os segredos do comportamento humano e de torná-lo previsível, não obstante ser um fato inquestionável que os atos humanos são voluntários; em outras palavras, alardeava a possibilidade de "neutralizar" os efeitos potencialmente perturbadores da escolha livre inata dos seres humanos, escolha danosa e abominável do ponto de vista dos construtores e guardiães da ordem. Esse tipo de sociologia prometia ser uma ciência da não-liberdade a serviço da tecnologia da não-liberdade... algo na mesma linha do que disse recentemente William Kristol em apoio às intenções dos dirigentes americanos de remodelar a ordem social das pátrias de outras pessoas, desta vez em escala planetária: "Bem, o que há de errado com o domínio, desde que a serviço de bons princípios e altos ideais?"1. Já ouvi tais palavras muitas vezes, e me arrepiei antes do mesmo modo como ainda me arrepio agora.

Penso que fui atraído para a sociologia por motivos exatamente opostos aos que moviam os praticantes e "propagandistas" da "engenharia pela manipulação". Suponho que o que me seduziu foi a esperança de ampliar a extensão e a potência da liberdade dos atores sociais, oferecendo a eles um melhor insight na organização social na qual desempenham suas tarefas de vida e que eles co-produzem (a maior parte das vezes inconscientemente). Desde sempre acreditei que, se a vocação sociológica tem alguma utilidade para os seres humanos, essa utilidade se deve aos serviços que presta e pode prestar ao esforço de compreender, dar sentido e adquirir um modicum de controle sobre suas vidas. É por isso que tendo a descrever o que faço como um contínuo diálogo com a experiência humana. Era isso ao menos o que Stanislaw Ossowski, um dos maiores sociólogos poloneses e um dos meus mais persuasivos professores em Varsóvia, considerava a premissa central de sua muito peculiar "sociologia humanística".

Foi com isso em mente que durante os cinqüenta anos de minha aventura sociológica me movi de uma área da "condição humana" para outra, sempre estimulado pelas contínuas mudanças, algumas profundas e outras sutis, dessa condição, ou seja, do cenário social em que os indivíduos devem atuar. Desempenhando sua função — isto é, representando a condição humana como produto das ações humanas —, a sociologia era e é para mim uma crítica da realidade social. Entendo que cabe à sociologia expor publicamente a contingência, a relatividade do que é "a ordem", para abrir a possibilidade de arranjos sociais e modos de vida alternativos; em outras palavras, ela deve militar contra as ideologias e as filosofias de vida estilo TINA ("there is no other alternative") e manter outras opções vivas. Eu me regozijaria se algum dia dissessem de mim o que Kracauer disse de Simmel: "É sempre o homem — considerado o construtor de cultura e um ser espiritual e intelectual maduro, agindo e avaliando com total controle dos poderes de sua alma e ligado fraternalmente aos outros homens em sentimento e em ação coletiva — que está no centro da visão de Simmel".

Se isso é ser moralista, então sou moralista no sentido de que creio que todas as decisões que o ser humano toma em seu ambiente social (pois ninguém está sozinho, todos nós estamos conectados a outras pessoas) têm significado ético, têm um impacto em outras pessoas, mesmo quando só pensamos no que ganhamos ou perdemos com o que fazemos. A extensão planetária da televisão não nos permite mais dizer "eu não sabia" como desculpa para nossa inação. Contemplamos diariamente como se faz o mal, como se sofre a dor, e dizer que nada podemos fazer pelo outro é uma desculpa fraca e pouco convincente, até mesmo para nós próprios. Não há como negar que em nosso planeta abarrotado e intercomunicado dependemos todos uns dos outros e somos, num grau difícil de precisar, responsáveis pela situação dos demais; enfim, que o que se faz em uma parte do planeta tem um alcance global.

Max Weber também era um moralista, no sentido de que estava interessado em ética e desenvolveu a idéia de ética como dever; mas o seu contexto era diferente, era de grandes poderes. Não é esse o meu caso, pois nunca estive particularmente interessado em falar com os detentores do poder, tanto na Polônia como na Inglaterra.

Diria, então, que o papel da sociologia mudou na última geração?

Gostaria de voltar a insistir sobre o que cabia à sociologia nas suas origens. Como disse, essa "ciência da sociedade" nasceu junto com o projeto de modernidade, que era um projeto muito simples. Partindo da idéia de que o mundo que herdamos dos tempos pré-modernos, tradicionais, ignorantes, preconceituosos e supersticiosos era um mundo desordenado e caótico, a tarefa que se impunha era torná-lo melhor. Ora, quem assumiria esse papel? Evidentemente os legisladores, os reis, os príncipes, os presidentes, os parlamentos, enfim, quem quer que estivesse no poder e que se impusesse a tarefa de reorganizar o mundo de tal modo que as pessoas viessem a se comportar racionalmente, a buscar a felicidade sem correr o risco de fazer escolhas erradas. Nesse quadro, cabia à sociologia fornecer informações sobre como obter um comportamento desejável das pessoas, sobre as razões pelas quais elas se desviam do caminho certo, como mantê-las nesse caminho e evitar desvios etc. Enfim, o conhecimento sociológico era, portanto, dirigido àqueles que estavam no papel de legislar, de criar as condições para uma boa sociedade. Esse era, enfim, o projeto da modernidade, que hoje está em grande parte abandonado.

O que quero dizer, portanto, é que a sociologia, como um esforço de entendimento da experiência humana, não mudou. Continua agora como era antes. O problema é que hoje o conhecimento sociológico é dirigido não mais aos governantes, porque estes renunciaram à sua responsabilidade para com o bem da sociedade; eles são agora neutros, não interferem na vida que se escolhe, a não ser que se trate de um assassino ou um terrorista. Por exemplo, o único tipo de conhecimento pelo qual Tony Blair se interessa é aquele que lhe diz qual movimento deve ser feito para ser mais popular. Outras coisas, como o bem da sociedade, não lhe interessam muito.

Vivemos em tempos de desregulamentação, de descentralização, de individualização, em que se assiste ao fim da Política com P maiúsculo e ao surgimento da "política da vida", ou seja, que assume que eu, você e todo o mundo deve encontrar soluções biográficas para problemas históricos, respostas individuais para problemas sociais. Nós, indivíduos, homens e mulheres na sociedade, fomos portanto, de modo geral, abandonados aos nossos próprios recursos.

Sendo assim, a única entidade a quem a sociologia se dirige hoje é aquela que realmente está assumindo a responsabilidade — o indivíduo. Ora, a experiência individual é normalmente muito estreita para que o indivíduo seja capaz de ver os mecanismos internos da vida. Não saberíamos o que está acontecendo nesse mundo da modernidade líquida se não fôssemos alertados para as possíveis conseqüências do processo em andamento. Explicar como as coisas funcionam, ampliar a visão necessariamente limitada dos indivíduos, alargar seus horizontes cognitivos, enfim, dar a eles condições de enxergar além de seu próprio nariz é o que cabe à sociologia agora. Como disse Ulrich Beck, que mais do que ninguém nos alertou sobre os intricados mecanismos do que ele chama de Risikogesellschaf, a sociedade de risco, "nós, cidadãos, perdemos a soberania sobre nossos sentidos e, portanto, também sobre nosso julgamento... ninguém é mais cego para o perigo do que aqueles que continuam a confiar em seus próprios olhos".

Poderia falar mais amplamente sobre os riscos da modernidade?

Uma das características do que chamo de "modernidade sólida" era que as maiores ameaças para a existência humana eram muito mais óbvias. Os perigos eram reais, palpáveis, e não havia muito mistério sobre o que fazer para neutralizá-los ou, ao menos, aliviá-los. Era óbvio, por exemplo, que alimento, e só alimento, era o remédio para a fome.

Os riscos de hoje são de outra ordem, não se pode sentir ou tocar muitos deles, apesar de estarmos todos expostos, em algum grau, a suas conseqüências. Não podemos, por exemplo, cheirar, ouvir, ver ou tocar as condições climáticas que gradativamente, mas sem trégua, estão se deteriorando. O mesmo acontece com os níveis de radiação e de poluição, a diminuição das matérias-primas e das fontes de energia não renováveis, e os processos de globalização sem controle político ou ético, que solapam as bases de nossa existência e sobrecarregam a vida dos indivíduos com um grau de incerteza e ansiedade sem precedentes.

Diferentemente dos perigos antigos, os riscos que envolvem a condição humana no mundo das dependências globais podem não só deixar de ser notados, mas também deixar de ser minimizados mesmo quando notados. As ações necessárias para exterminar ou limitar os riscos podem ser desviadas das verdadeiras fontes do perigo e canalizadas para alvos errados. Quando a complexidade da situação é descartada, fica fácil apontar para aquilo que está mais à mão como causa das incertezas e das ansiedades modernas. Veja, por exemplo, o caso das manifestações contra imigrantes que ocorrem na Europa. Vistos como "o inimigo" próximo, eles são apontados como os culpados pelas frustrações da sociedade, como aqueles que põem obstáculos aos projetos de vida dos demais cidadãos. A noção de "solicitante de asilo" adquire, assim, uma conotação negativa, ao mesmo tempo em que as leis que regem a imigração e a naturalização se tornam mais restritivas e a promessa de construção de "centros de detenção" para estrangeiros confere vantagens eleitorais a plataformas políticas.

Para confrontar sua condição existencial e enfrentar seus desafios, a humanidade precisa se colocar acima dos dados da experiência a que tem acesso como indivíduo. Ou seja, a percepção individual, para ser ampliada, necessita da assistência de intérpretes munidos com dados não amplamente disponíveis à experiência individual. E a sociologia, como parte integrante desse processo interpretativo — um processo que, cumpre lembrar, está em andamento e é permanentemente inconclusivo —, constitui um empenho constante para ampliar os horizontes cognitivos dos indivíduos e uma voz potencialmente poderosa nesse diálogo sem fim com a condição humana.

Poderia nos dizer como foi a experiência de viver no que o senhor descreveu como a "idade áurea", quando as universidades polonesas tiraram o máximo de vantagem da liberdade ganha nas batalhas do "outubro polonês"2?

Foi algo, de fato, fascinante, diferente de qualquer outra universidade que conheci; diferente, diria, de qualquer vida universitária existente. Há situações de liberdade acadêmica praticamente sem limites, quando todos os tipos de Weltanchauungen (visões de mundo), estratégias de pesquisa, hierarquias de relevância e prioridades, estilos de se contar histórias se encontram, conversam e argumentam. E há também situações em que os sociólogos se movem pelo sentido de urgência, e não somente pela necessidade de completar dissertações a tempo e assegurar uma próxima promoção; uma urgência de dar sua própria contribuição para a batalha por uma sociedade melhor, mais hospitaleira aos seres humanos e à sua humanidade. E também se movem por uma vocação, uma missão de só se dedicar a isso. O que foi peculiar da situação pós-outubro polonês foi que as duas situações emergiram juntas e continuaram durante algum tempo a coincidir e a se fertilizar reciprocamente. Tal convergência é muito menos freqüente do que a presença de uma ou de outra das duas situações isoladamente; na verdade, tanto quanto posso julgar a partir de minha experiência de meio século, é mesmo uma raridade.

Esse tipo de combinação entre sentimento de liberdade e de propósito é uma felicidade de que a maioria dos acadêmicos contemporâneos infelizmente carece, quer tenham ou não consciência do que estão perdendo. Na maioria dos lugares do mundo a liberdade de expressão acadêmica é completa ou quase completa, somente limitada pelos regulamentos e regras (muitas vezes penosas e até ridículas) da carreira e de outras invenções da burocracia universitária; mas, fora isso, as escolhas são deixadas inteiramente livres para cada um. Há, no entanto, muito pouco sentido do propósito e particularmente da relevância de seu próprio trabalho para o mundo fora dos muros da academia, como se todos compartilhassem da sina da filosofia lamentada por Wittgenstein, de "deixar o mundo como é". Como se queixam muitos sociólogos americanos, e também alguns europeus, os estudos sociais acadêmicos perderam a ligação com a agenda pública. Parece haver poucos fregueses, se é que algum, para os modelos de "boa sociedade", o que costumava ser a preocupação central e o forte da sociologia com inclinações humanísticas. As classes educadas não estão mais interessadas na tarefa de ilustração e de elevação espiritual do povo. Os intelectuais pararam em grande parte de se definir pela responsabilidade que têm para com "o povo", a nação e a humanidade.

O senhor se referiu aos "muros da academia" como um obstáculo para o pensamento livre. Há alguma esperança para as universidades?

O que quer que as universidades façam, elas não conseguirão jamais pôr um fim à curiosidade humana, que talvez tenha de sair da academia para se satisfazer. Ainda tenho meu escritório na Universidade de Leeds, mas mal posso reconhecer a universidade da qual saí há poucos anos, tal a velocidade da mudança. Os nomes aparecem e desaparecem das portas, as pessoas são classificadas de acordo com o projeto em que estão engajadas no momento, mas tudo é tão a curto prazo! Cambridge provavelmente ainda é diferente.

Se se pensa nas limitações que a organização universitária hoje impõe ao desenvolvimento do pensamento livre, basta olhar para o que acontece com a filosofia e a sociologia tal como são praticadas nos departamentos universitários e em outros "locais de autoridade", ou seja, os lugares em que afirmações reconhecidas como pertencentes a uma dada disciplina podem ser feitas e nos quais elas devem ser expressas para serem reconhecidas como tais. Nesse quadro, pois, a filosofia e a sociologia se ligam a interesses intelectuais, estilos de pensamento e modos de argumentação bastante diferentes. Cada uma dessas duas disciplinas acadêmicas se pretende de posse de grupos distintos de "dados primários" e os processa, interpreta, verifica e refuta de maneiras diferentes. Dominar o canon tanto da sociologia como da filosofia e adquirir credenciais oficialmente reconhecidas e confirmadas em cada uma delas toma todo o tempo dos estudantes universitários — e a competência em uma dessas disciplinas acadêmicas raramente é exigida para se adquirir o grau na outra.

Posso entender a preocupação dos sociólogos acadêmicos com a circunscrição, as barreiras e a defesa de suas possessões contra os competidores na obtenção do dinheiro das fundações e do governo, mas o que não podemos esquecer é que essa preocupação se origina na realidade da vida acadêmica e não na lógica da experiência humana que a sociologia é chamada a servir.

Quão difícil foi para o senhor se ajustar à cultura britânica, quando veio viver na Inglaterra, com mais de 40 anos?

Ajustamento nunca ocupou um lugar prioritário no meu programa de vida. Nesse campo não fui além do básico, isto é, aprender o idioma local e me fazer compreensível, evitando os mais crassos faux pas. Tal como lembro, meu estado mental ao chegar à Grã-Bretanha não estava particularmente preocupado em esconder, sufocar ou erradicar minha idiossincrasia, em abandonar o que no meu modo de agir e pensar poderia parecer estranho aos nativos. Tornar-me como os outros e dissolver-me no plano de fundo não me parecia tarefa nem possível nem especialmente atraente, e nunca foi minha intenção. Na época, eu considerava que o desafio estava em outro lugar: como revelar para meus colegas e alunos britânicos o sentido das minhas diferenças e talvez induzi-los a achar algum interesse e uso no que era inicialmente alheio a eles.

"Ajustamento" sugere uma via de mão única. Ao contrário, eu pensava em termos de troca igualitária: o único meio de retribuir a hospitalidade dos meus anfitriões britânicos era oferecer a eles algo que não tinham ainda e não poderiam adquirir a não ser num encontro face a face com um pensamento e um modo de agir alternativos; algo novo e diferente que pudesse eventualmente enriquecê-los do mesmo modo que me tenho enriquecido com o encontro com o cotidiano britânico. Eu, na verdade, desejava ser aceito — mas aceito precisamente pelo que eu era, por minha dessemelhança.

Minha sorte foi que, com essa atitude, eu aterrissei e me estabeleci na Grã —Bretanha. Posso pensar em muitos países onde viver com tal atitude teria sido muito mais difícil e social e espiritualmente custoso. Se alguém tiver de ser um exilado ou um estrangeiro, a Grã-Bretanha é o lugar certo para se estar. Pode-se esperar boa vontade, tolerância e bastante hospitalidade — com a condição de que não se queira fingir que se é inglês... Além disso, o que aqui chega vindo de fora não é colocado numa classe mas numa categoria separada, de "estrangeiro", na qual a liberdade de pensamento e de ação tem amplo espaço; os estrangeiros escapam da atribuição de classe, de certo modo inflexível e rija, que interfere na vida dos outros, dos britânicos comuns...

O senhor certa vez disse que se sentia "fora de lugar" em muitas circunstâncias. Ainda se sente assim? Diria que esse sentimento implica perdas e ganhos?

Sim, ainda me sinto assim e gosto disso. Não tenho certeza se tal atitude foi fruto de uma escolha livre que gradualmente se tornou um hábito, ou se foi, e ainda é, um meio de transformar uma necessidade em virtude. Perdas deve haver, como ser ocasionalmente objeto de desconfiança, de zombaria, de descortesia, de um caso ou dois de rejeição e, o que para mim é a coisa mais vexatória e nociva de todas, sentir que em vez de avaliarem suas opiniões de acordo com o seu mérito, elas são descartadas como manifestações de alienismo. Mas os ganhos superam imensamente as perdas. No meu ponto de vista (e por experiência), estar "fora de lugar", ao menos em parte do nosso ser, não concordar completamente, manifestar divergência e dissensão, é o único meio de resguardarmos nossa autonomia e liberdade. Estar "dentro" mas parcialmente "fora" é também um meio de preservar o frescor, a inocência e a abençoada ingenuidade de visão. Quem está assim situado tende a fazer perguntas que não ocorreriam àqueles estabelecidos mais solidamente; tende a notar o estranho no familiar, o anormal no óbvio. Exílio é muito freqüentemente uma situação de sofrimento, mas também de expansão do pensamento crítico, de independência, insight e criatividade. No conjunto, foi minha grande sorte viajar e me estabelecer aqui.

Quando e como o senhor abandonou o marxismo? Considera-se ainda um socialista?

Nunca abandonei Marx, apesar de minha intoxicação pelo "marxismo realmente existente" ter sido, felizmente, breve; de fato, terminou bem cedo, no momento em que o vi como era: um imenso obstáculo para a recepção e a manutenção da mensagem ética de Marx.

Imagino que meu entusiasmo por Emmanuel Lévinas3 tenha sido, em grande parte, predeterminado pela minha antiga inoculação com a idéia de Marx de que a qualidade da sociedade deve ser testada pelos critérios de justiça e de fair play que regulamentam a coletividade humana: a sociedade deve se justificar pelos padrões éticos, e não o contrário, os padrões éticos pela sociedade. Espero ter o direito de dizer que nunca abandonei essa crença. O mesmo se aplica ao meu socialismo, que, em meu entender, se resume na convicção de que, assim como o poder de carga de uma ponte se mede não pela força média de todos os pilares mas pela força de seu pilar mais fraco, a qualidade de uma sociedade também não se mede pelo PIB, pela renda média de sua população, mas pela qualidade de vida de seus membros mais fracos.

Socialismo para mim não é o nome de um tipo particular de sociedade. É, exatamente como o postulado de Marx de justiça social, uma dor aguda e constante de consciência que nos impulsiona a corrigir ou a remover variedades sucessivas de injustiça. Não acredito mais na possibilidade (e até no desejo) de uma "sociedade perfeita", mas acredito numa "boa sociedade" — definida como aquela que se recrimina sem cessar por não ser suficientemente boa e não estar fazendo o suficiente para se tornar melhor...

Fiquei muito marcado pelo Homme révolté de Albert Camus, que li no fim dos anos de 1950. O rebelde de Camus é um ser humano que diz "não", mas que também diz "sim", ou seja, um ser humano que diz cada uma dessas palavras de tal modo que deixa espaço para a outra. O rebelde se recusa a aceitar o que existe, mas também se abstém de rejeitar totalmente o que existe. Ele não desculpa a condição humana pela sua desumanidade, por não se equiparar ao que ela poderia ser, mas também não a despreza; aceita a condição humana "realmente existente", completa, com todas as suas desumanidades. A motto hic Rhodos, hic salta4 define o rebelde de Camus e também o distingue dos rebeldes "metafísicos" e "históricos", aparentemente seus parentes próximos, mas não companheiros de armas e talvez até mesmo seus confessos inimigos e adversários mais traiçoeiros.

O rebelde metafísico rejeita a condição humana, considerando-a injusta, fraudulenta, abjeta e absurda. Ele nega a ela o direito de existir e o direito de reconhecimento. É, pois, um rebelde intolerante que não perdoaria, e muito menos absolveria, o pecado da não-resistência. Ele odeia o pecado, mas odeia mais ainda o pecador. Ele odeia a desumanidade do mundo, mas odeia mais ainda — já que também desdenha e rejeita — seus escravos, vítimas e feridos colaterais. O rebelde metafísico diria que o mais horrendo crime da condição humana "realmente existente" é a conspiração contra a rebelião. E, no entanto, nenhum criminoso é tão repelente para ele como os seres humanos não rebeldes.

Os erros do rebelde histórico são ainda mais terríveis, ou ao menos assim parecem, pois foi contra ele que o rebelde de Camus teve de afirmar seu próprio tipo de rebelião. Na época em que Camus escreveu, o rebelde metafísico já parecia ter sido derrubado e destronado por seu "primo histórico", e essa mudança de dinastia parecia irreversível e definitiva. Era também claro que, apesar de o rebelde histórico ter feito sua rebelião contra a variedade metafísica de escravidão, ele a fizera em nome de uma escravidão nova e aprimorada.

Ele se rebelou contra ter de encarar o fato da solidão humana e da responsabilidade que a acompanha. Não podia suportar a condição de sujeito moral dos homens, bem como o absurdo da impotência e da insignificância humanas. A servidão, disse Camus, era a verdadeira paixão do século XX. Amedrontado por sua impotência, o rebelde histórico correu em busca de proteção, procurando desesperadamente uma nova autoridade que aceitasse sua rendição. E isso ele encontrou nas "leis da história", que inevitavelmente aliviam os ombros doloridos do peso da escolha responsável, e também nos absolvem do mais angustioso dos deveres — o da subjetividade: daquele cuidado pelo Outro no qual o Eu, o sujeito que está sozinho mas que não é solitário, que se auto-guia mas não está abandonado, nasce. Finalmente, as leis da história oferecem a fuga mais eficaz da culpa de crueldade ao fazer a inevitabilidade histórica do progresso tomar o lugar da distinção entre o bem e o mal.

Muitos anos mais tarde deparei com outra afirmação de Camus: "Existe a beleza e existem os humilhados. Quaisquer que sejam as dificuldades que o empreendimento possa apresentar, gostaria de nunca ser infiel quer aos segundos quer à primeira". Também gostaria que minha vida me permitisse dizer que me comportei o mais possível de acordo com esse princípio. Por outro lado, não me importo muito com a lealdade aos "ismos"...

O senhor se diz ao mesmo tempo um socialista e um liberal. Poderia explicar como concilia as duas posições?

Eu, na verdade, não acredito que requeiram conciliação. Defino o socialismo de um modo muito simples, como já disse antes, pela qualidade de vida de seus membros mais fracos.

Se se pensa, por exemplo, num dos fundadores do liberalismo moderno, John Stuart Mill, nota-se que ele também chegou ao socialismo por acreditar que para implementar o programa liberal, o programa da liberdade humana, é necessário uma distribuição justa de oportunidades, diminuindo-se a distância entre os membros mais ricos e os mais pobres da sociedade. E, se nos lembrarmos de Lord Beveridge, o criador do Estado de bem-estar social britânico, o caso é o mesmo. Durante a guerra, o governo da Grã-Bretanha criou uma comissão para organizar um programa de bem-estar social (do qual Beveridge era diretor), prevendo que com o fim do conflito haveria milhões de desempregados que não mais aceitariam a sina dos oprimidos. Beveridge preparou então todo um programa que foi pouco a pouco aceito pelo governo após a guerra. Ora, ele não era um socialista e não se definiu jamais como tal. Dizia que era um liberal e que o que estava propondo era, na verdade, a implementação definitiva do programa liberal, porque, se o liberalismo quer que todos sejam seres autônomos e autoconfiantes, então para ser livre é necessário que se tenha recursos, que haja um chão firme no qual se apoiar. A idéia de Lord Beveridge, que infelizmente não se impôs, era que toda essa assistência social, esse bem-estar social, toda essa provisão eram necessários como medidas temporárias. E isso porque ele partia do pressuposto de que, para ter a coragem, a ousadia de ser aventurosas e se arriscar, as pessoas precisam se sentir seguras — e segurança elas não podem obter por si próprias, mas deve ser oferecida e garantida pela grande sociedade. Se as pessoas se arriscam sozinhas, correm o perigo de ser abatidas por um grande fracasso, uma tragédia, uma crueldade ou coisa semelhante. Deve haver, portanto, essa garantia do Estado, o que eu chamo de seguro coletivo contra o infortúnio individual. Se isso existe, as pessoas se enchem de coragem e, sem receio de tentar, logo podem tornar-se prósperas. Essa era a idéia de Beveridge.

Enfim, como vemos, se se considera o melhor na história do liberalismo e o melhor na história do socialismo, eles sempre convergem, há sempre essa conexão entre os dois. Para resumir, tudo se reduz à questão muito simples de que há dois valores igualmente indispensáveis para uma vida humana decente e digna: liberdade e segurança. Não se pode ter um sem que se tenha o outro. Esse é o meu ponto, mas infelizmente na prática política eles são normalmente justapostos e apresentados como tendo propósitos opostos, como sendo necessário sacrificar a segurança sob o argumento de que quanto maior ela for menos livre se é. A acusação mais comum hoje em dia é que o Estado de bem-estar social torna as pessoas dependentes, já que ninguém pode ser livre se depende de assistências de qualquer natureza: saúde, caridade e coisas do gênero. Isso tudo me soa muito cruel, porque eu sou um ser moral na medida em que me considero dependente de você. Em certo sentido, meu bem-estar depende do seu bem-estar, minha autonomia depende da sua autonomia. Assim, qualquer que seja a perspectiva da qual se parta, chega-se sempre à mesma questão de que, ou liberdade e segurança são obtidas juntas, ou não serão obtidas de modo algum. Esse é o ponto de encontro entre socialismo e liberalismo.

Em sua obra o senhor se refere freqüentemente a romances. O que acha que a literatura pode ensinar sobre a sociedade e sobre a condição humana? Mais especificamente, o senhor confessa ser Borges uma de suas grandes fontes inspiradoras. Poderia nos explicar em que um escritor que parece não tratar especificamente de questões sociais lhe é importante?

Devo começar lembrando que meus professores na Polônia nunca se preocuparam com as diferenças entre "filosofia social" e "sociologia propriamente dita"; mas, acima de tudo, consideravam romancistas e poetas seus camaradas de armas, não competidores, e muito menos antagonistas. Aprendi a considerar a sociologia uma daquelas numerosas narrativas, de muitos estilos e gêneros, que recontam — após terem primeiramente processado e reinterpretado — a experiência humana de estar no mundo. A tarefa conjunta de tais narrativas era oferecer um insight mais profundo do modo como essa experiência foi construída e pensada, e dessa maneira ajudar os seres humanos na sua luta pelo controle de seus destinos individuais e coletivos. Nessa tarefa, a narrativa sociológica não era "por direito" superior a outras narrativas, pois tinha de demonstrar e provar seu valor e utilidade pela qualidade de seu produto. Eu, por exemplo, me lembro de ganhar de Tolstoi, Balzac, Dickens, Dostoievski, Kafka ou Thomas More muito mais insight sobre a substância das experiências humanas do que de centenas de relatórios de pesquisa sociológica. Acima de tudo, aprendi a não perguntar de onde uma determinada idéia vem, mas somente como ela ajuda a iluminar as respostas humanas à sua condição — assunto tanto da sociologia como das belles-lettres.

Compreendo, pois, a observação de Richard Rorty de que, se os futuros arqueólogos quisessem saber como era viver, buscar a felicidade e sofrer na nossa era agridoce, teriam muita sorte se encontrassem em alguma biblioteca os livros de Dickens e muito azar se encontrassem os de Heidegger. Quando se está seriamente interessado em colocar o pensamento, o sentimento e a ação humana no centro da pesquisa sociológica e em se tratar a sociologia como uma conversa contínua com os seres humanos, o veredicto de Rorty faz muito sentido. A lida diária com médias estatísticas, tipos, categorias e padrões facilmente faz com que se perca de vista a experiência. Um bom romance teria, então, um efeito salutar e sóbrio, relembrando ao praticante dos "métodos sociológicos" qual deveria sempre ser o "negócio" da sociologia e que tipo de sabedoria ela deveria estar permanentemente buscando.

Não só a sociologia perde para a literatura quando se quer entender o que faz as pessoas serem o que são, conhecer o que pensam, os dilemas que enfrentam, suas alternativas etc. Muito pouco também se pode aprender sobre isso de escritos que estão extremamente distantes das experiências diárias, que as processam de modo a selecionar somente uma pequena parcela da condição humana. Pensemos, por exemplo, no grande Kant, que estabeleceu as fundações de nosso pensamento. Pois bem, nas suas tentativas de explicar o humano, ele desconsiderou todo o aspecto da condição humana que não fosse a razão, deixando de lado, portanto, as características emocionais, irracionais, erráticas, que também fazem parte dessa condição. Isso nos deixa com um quadro da humanidade muito empobrecido, que, se por um lado pode aumentar a elegância teórica e o prazer estético do relato lógico, de outro perde a comunicação com a experiência humana diária. Ora, se se entende a sociologia, como já mencionei antes, como um diálogo contínuo com a experiência humana, tal estratégia representa o fim do diálogo, pois com ela muito pouco se pode aprender sobre a humanidade.

O que aprendi com Borges? Acima de tudo, aprendi sobre os limites de certas ilusões humanas: sobre a futilidade de sonhos de precisão total, de exatidão absoluta, de conhecimento completo, de informação exaustiva sobre tudo; enfim, sobre as ambições humanas que, no final, se revelam ilusórias e nos mostram impotentes. Lembremos, por exemplo, do conto de Borges que fala sobre o mapa: o sonho do mapa exato que acaba ficando do mesmo tamanho da própria coisa mapeada e, portanto, sem nenhuma utilidade. Não me ocorre nenhum filósofo ou sociólogo que tenha podido tratar de tais questões de forma tão persuasiva, tão convincente, tão espetacular. Em parte isso se deve à posição muito luxuosa e mesmo invejável de nunca ter sido um acadêmico e de nunca ter estado submetido a uma disciplina. Fora dos muros da academia os romancistas desfrutam da liberdade que é negada, por exemplo, aos sociólogos profissionais, que têm seus trabalhos avaliados pela conformidade com os procedimentos que definem e distinguem a profissão, e não por sua relevância humana. Quando se envia um artigo a uma revista científica para ser avaliado por um "par", numa opinião anônima, isso só tem um impacto: reduzir a originalidade ao denominador comum! Pois na verdade o que acontece é que essas opiniões fazem rebaixar todo pensamento original. Borges nunca teve que se submeter a esse tipo de coisa. Note que os dois cientistas sociais da modernidade realmente interessantes e ainda hoje extremamente tópicos foram Marx e Simmel, e eles têm também essa característica em comum: ambos eram free lancers e nenhum deles ensinou nas universidades!

Ao contrário dos acadêmicos, portanto, os romancistas podem, aberta e sem a menor vergonha, recorrer a estratégias que os primeiros desconsiderariam arrogantemente como "meras intuições", "puras suposições" ou mesmo "construções da imaginação". É por agirem assim que eles podem abrir novas possibilidades interpretativas que os profissionais de bona fide dificilmente iriam suspeitar ou mesmo notar.

Mas, acima de tudo, a maior vantagem da narrativa dos romancistas é que ela se aproxima mais da experiência humana do que a maioria dos trabalhos e relatórios das ciências sociais. Elas são capazes de reproduzir a não-determinação, a não-finalidade, a ambivalência obstinada e insidiosa da experiência humana e a ambigüidade de seu significado — todas características muito marcantes do modo de o ser humano estar no mundo, mas que a ciência social se inclina a ver como "impressões falsas", originárias da ignorância ou do conhecimento insuficiente.

O senhor tem sempre enfatizado a necessidade de todos nós "questionarmos ostensivamente as premissas de nosso modo de vida". Teria alguma sugestão a nos dar sobre as respostas a esses questionamentos?

Maurice Blanchot disse certa vez, em palavras que ficaram famosas, que as respostas são a má sorte das perguntas. De fato, cada resposta implica fechamento, fim da estrada, fim da conversa. Também sugere nitidez, harmonia, elegância; enfim, qualidades que o mundo narrado não possui. Tenta forçar o mundo numa camisa-de — força na qual ele definitivamente não cabe. Corta as opções, a multidão de sentidos e possibilidades que a condição humana implica a cada momento. Promete falsamente uma solução simples para uma busca provocada e impelida pela complexidade. Também mente, pois declara que as contradições e as incompatibilidades que provocam as questões são fantasmas — efeitos de erros lingüísticos ou lógicos, em vez de qualidades endêmicas e irremovíveis da condição humana.

Creio que a experiência humana é mais rica do que qualquer uma de suas interpretações, pois nenhuma delas, por mais genial e "compreensiva" que seja, poderia exauri-la. Aqueles que embarcam numa vida de conversação com a experiência humana deveriam abandonar todos os sonhos de um fim tranqüilo de viagem. Essa viagem não tem um final feliz — toda a felicidade se encontra na própria jornada.

O senhor descreveu modestamente um de seus livros mais recentes como um discussion paper. Diria que é por acaso ou propositadamente que tem se dedicado a escrever ensaios?

No curso de meio século de estudos e de escrita, nunca consegui adquirir a habilidade de terminar um livro... Com o passar do tempo reconheço que todos os meus livros foram entregues ao editor inacabados. Em regra, antes mesmo que o manuscrito seja impresso, fica claro para mim que o que há pouco me parecia "o fim" era, de fato, um começo — com uma seqüência desconhecida, mas tremendamente necessária. Por trás de cada resposta percebo que novas questões estão piscando; que mais, muito mais restou a ser explorado e compreendido, e muito pouco, de fato, foi revelado pelo "acabamento bem-sucedido" das explorações passadas. As perguntas mais intrigantes e provocantes emergem, via de regra, após as respostas. No decurso dos anos aprendi a apreciar a queixa de Adorno sobre a convenção linear da nossa escrita: por causa dela nós não conseguimos transmitir a lógica do pensamento que, diferentemente da escrita, move-se em círculos e está invariavelmente forçada, por seu próprio progresso, a fazer perpétuos retornos.

O senhor já foi descrito como um "profeta da pós-modernidade" e os termos "pós-moderno" e "pós-modernidade" aparecem em títulos de quatro de seus livros. Estaria sugerindo que uma mudança cultural e social significativa ocorreu na última geração, suficientemente grande para que falemos de um novo período da história?

Uma das razões pelas quais passei a falar em "modernidade líquida" e não em "pós-modernidade" (meus trabalhos mais recentes evitam esse termo) é que fiquei cansado de tentar esclarecer uma confusão semântica que não distingue sociologia pós-moderna de sociologia da pós-modernidade, "pós-modernismo" de "pós-modernidade". No meu vocabulário, "pós-modernidade" significa uma sociedade (ou, se se prefere, um tipo de condição humana), enquanto "pós-modernismo" refere-se a uma visão de mundo que pode surgir, mas não necessariamente, da condição pós —moderna. Procurei sempre enfatizar que, do mesmo modo que ser um ornitólogo não significa ser um pássaro, ser um sociólogo da pós-modernidade não significa ser um pós-modernista, o que definitivamente não sou. Ser um pós-modernista significa ter uma ideologia, uma percepção do mundo, uma determinada hierarquia de valores que, entre outras coisas, descarta a idéia de um tipo de regulamentação normativa da comunidade humana, assume que todos os tipos de vida humana se equivalem, que todas as sociedades são igualmente boas ou más; enfim, uma ideologia que se recusa a fazer qualquer julgamento e a debater seriamente questões relativas a modos de vida viciosos e virtuosos, pois, no limite, acredita que não há nada a ser debatido. Isso é pós-modernismo. Mas eu sempre estive interessado na sociologia da pós-modernidade, ou seja, meu tema tem sempre sido compreender esse tipo curioso e em muitos sentidos misterioso de sociedade que vem surgindo ao nosso redor; e a vejo como uma condição que ainda se mantém eminentemente moderna na suas ambições e modus operandi (ou seja, no seu esforço de modernização compulsiva, obsessiva), mas que está desprovida das antigas ilusões de que o fim da jornada estava logo adiante. É nesse sentido que pós-modernidade é, para mim, modernidade sem ilusões.

Diferentemente da sociedade moderna anterior, que chamo de "modernidade sólida", que também tratava sempre de desmontar a realidade herdada, a de agora não o faz com uma perspectiva de longa duração, com a intenção de torná-la melhor e novamente sólida. Tudo está agora sendo permanentemente desmontado mas sem perspectiva de alguma permanência. Tudo é temporário. É por isso que sugeri a metáfora da "liquidez" para caracterizar o estado da sociedade moderna: como os líquidos, ela caracteriza-se pela incapacidade de manter a forma. Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades "auto-evidentes". Sem dúvida a vida moderna foi desde o início "desenraizadora", "derretia os sólidos e profanava os sagrados", como os jovens Marx e Engels notaram. Mas enquanto no passado isso era feito para ser novamente "re-enraizado", agora todas as coisas — empregos, relacionamentos, know-hows etc. — tendem a permanecer em fluxo, voláteis, desreguladas, flexíveis. A nossa é uma era, portanto, que se caracteriza não tanto por quebrar as rotinas e subverter as tradições, mas por evitar que padrões de conduta se congelem em rotinas e tradições.

Como um exemplo dessa perspectiva, li outro dia que um famoso arquiteto de Los Angeles estava se propondo a construir casas que permanecessem lindas "para sempre". Ao ser perguntado o que queria dizer com isso, ele teria respondido: até daqui a vinte anos! Isso é "para sempre", grande duração, hoje. O que me interessa é, portanto, tentar compreender quais as conseqüências dessa situação para a lógica do indivíduo, para seu cotidiano. Virtualmente todos os aspectos da vida humana são afetados quando se vive a cada momento sem que a perspectiva de longo prazo tenha mais sentido.

Jean-Paul Sartre aconselhou seus discípulos em todo o mundo a ter um projeto de vida, a decidir o que queriam ser e, a partir daí, implementar esse programa consistentemente, passo a passo, hora a hora. Ora, ter uma identidade fixa, como Sartre aconselhava, é hoje, nesse mundo fluido, uma decisão de certo modo suicida. Se se toma, por exemplo, os dados levantados por Richard Sennett — o tempo médio de emprego em Silicon Valley, por exemplo, é de oito meses —, quem pode pensar num projet de la vie nessas circunstâncias? Na época da modernidade sólida, quem entrasse como aprendiz nas fábricas da Renault ou da Ford iria com toda a probabilidade ter ali uma longa carreira e se aposentar após 40 ou 45 anos. Hoje em dia, quem trabalha para Bill Gates por um salário talvez cem vezes maior não tem idéia do que poderá lhe acontecer dali a meio ano! E isso faz uma diferença incrível em todos os aspectos da vida humana.

No meu livro mais recente, Liquid love, exploro o impacto dessa situação nas relações humanas, quando o indivíduo se vê diante de um dilema terrível: de um lado, ele precisa dos outros como o ar que respira, mas, ao mesmo tempo, tem medo de desenvolver relacionamentos mais profundos que o imobilizem em um mundo em permanente movimento.

Em muitas partes de sua obra o senhor soa nostálgico, às vezes até mesmo do que chama de "modernidade sólida", quando a humanidade aparentemente era menos ansiosa e tinha uma vida mais estável e segura. Concorda com essa interpretação?

Eu não diria isso. Não acredito que haja um progresso linear no que diz respeito à felicidade humana. Podemos dizer que, como um pêndulo, nos movemos de tempos mais felizes para tempos menos felizes e de menos felizes para mais felizes. Hoje temos medo e somos infelizes do mesmo modo como também tínhamos medo e éramos infelizes há cem anos, mas por razões diferentes. A modernidade sólida tinha um aspecto medonho: o espectro das botas dos soldados esmagando as faces humanas. Virtualmente todo mundo, quer da esquerda quer da direita, assumia que a democracia, quando existia, era para hoje ou para amanhã, mas que uma ditadura estava sempre à vista; no limite, o totalitarismo poderia sempre chegar e sacrificar a liberdade em nome da segurança e da estabilidade. Por outro lado, como Sennett mostrou, a antiga condição de emprego poderia destruir a criatividade e as habilidades humanas, mas construía, por assim dizer, a vida humana, que podia ser planejada. Tanto os trabalhadores como os donos de fábrica sabiam muito bem que iriam se encontrar novamente amanhã, depois de amanhã, no ano seguinte, pois os dois lados dependiam um do outro. Os operários dependiam da Ford assim como esta dependia dos operários, e porque todos sabiam disso podiam brigar uns com os outros, mas no final tendiam a concordar com um modus vivendi. Essa dependência recíproca mitigava, em certo sentido, o conflito de interesses e promovia algum esforço positivo de coexistência, por menor que fosse.

Bem, nada disso existe hoje. Os medos e as infelicidades de agora são de outra ordem. Dificilmente outro tipo de stalinismo voltará e o pesadelo de hoje não é mais a bota dos soldados esmagando as faces humanas. Temos outros pesadelos. O chão em que piso pode, de repente, se abrir como num terremoto, sem que haja nada ao que me segurar. A maioria das pessoas não pode planejar seu futuro muito tempo adiante. Os acadêmicos são umas das poucas pessoas que ainda têm essa possibilidade. Na maioria dos empregos podemos ser demitidos sem uma palavra de alerta. Você chama isso nostalgia? Não sei... Para pessoas que viveram no tipo de sistema Ford, semitotalitário, que tinha uma tendência totalitária inerente, como Hannah Arendt dizia, nossas apreensões devem parecer incompreensíveis!

A questão é que, como já disse antes, aproximando-me dos meus 80 anos, não mais acredito que possa existir algo como uma sociedade perfeita. A vida é como um lençol muito curto: quando se cobre o nariz os pés ficam frios, e quando se cobrem os pés o nariz fica gelado. Há sempre um custo a ser pago para a melhora numa determinada direção. Mas insisto que a sociedade que obsessivamente se vê como não sendo boa o suficiente é a única definição que posso dar de uma boa sociedade.

O senhor subscreveria a motto de Romain Rolland sobre o "pessimismo da inteligência" e o "otimismo da vontade"?

Pessimismo? No meu entender, o otimista é aquele que acredita que este é o melhor dos mundos possíveis. E o pessimista é aquele que suspeita que o otimista tem razão... Nesse quadro, não me identifico nem com o otimista nem com o pessimista, pois acredito que o mundo possa ser melhorado e que essa mera crença é instrumental em torná-lo melhor...

Qual seria sua mensagem para os jovens de hoje?

Gostaria que tentassem, apesar de tudo (e talvez esteja aí o elemento de nostalgia que você notou), apesar de todas as tendências em contrário e de todas as pressões de fora, reter na consciência e na memória o valor da durabilidade, da constância, do compromisso. Eles não podem mais contar, como a antiga geração, com a natureza permanente do mundo lá fora, com a durabilidade das instituições que tinham antes toda a probabilidade de sobreviver aos indivíduos. Isso não é mais possível e, na verdade, a vida humana individual, apesar de ser muito curta, abominavelmente curta, é a única entidade da sociedade de agora que tem sua longevidade aumentada. Sim, somente a vida humana individual vê crescer sua durabilidade, enquanto a vida de todas as outras entidades sociais que a rodeiam — instituições, idéias, movimentos políticos — é cada vez mais curta. Assim, o único sentido duradouro, o único significado que tem chance de deixar traços, rastos no mundo, de acrescentar algo ao mundo exterior, deve ser fruto de seu próprio esforço e trabalho. Os jovens podem contar unicamente com eles próprios e só haverá em suas vidas o sentido e a relevância que forem capazes de lhes dar. Sei que essa é uma tarefa muito difícil... mas é a única coisa que posso lhes dizer.





Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke é professora aposentada da Faculdade de Educação da USP e pesquisadora associada do Center of Latin American Studies, Universidade de Cambridge. É autora, entre outros, de Nísia Floresta, o Carapuceiro e outros ensaios de tradução cultural (Hucitec, 1996) e As muitas faces da história (Unesp, 2000), editado também em inglês, The new history: confessions and conversations (Polity Press, 2002).
*Uma versão reduzida desta entrevista foi publicada na Folha de S. Paulo, caderno "Mais!", 19 de outubro de 2003.

1. William Kristol é um dos mais influentes pensadores neo-conservadores de Washington e um dos ideólogos da chamada "doutrina Bush". É editor da The Weekly Standard e chairman do Project for the New American Century. Seu pai, Irving Kristol, foi um dos grandes defensores do senador Joseph McCarthy e de sua política inquisitorial contra os comunistas — conhecida como macarthismo — do início dos anos de 1950.
2. O "outubro polonês" (1956) ficou conhecido como o início de um período de grandes promessas e expectativas, quando a liberalização do regime — que se propunha a ser mais fiel aos ideais comunistas — parecia abrir novas perspectivas para a Polônia.
3. Nascido na Lituânia em 1906 e naturalizado francês, foi um filósofo que fez da responsabilidade ética para com os outros o ponto de partida e o foco principal de suas análises filosóficas. "A Ética precede a ontologia" é uma frase que sintetiza sua posição. Totalité et infini (1961) e Autrement qu'être (1974) são consideradas suas obras-primas. Faleceu em 1995.
4. De significado controverso, essa expressão de Esopo é usada aqui no sentido de Marx, que, seguindo Hegel, a usou para descrever as condições das quais não se pode fugir. No caso do rebelde de Camus, trata-se de acentuar que, se ele quer aprimorar o mundo, não há como escapar ao fato de que o ponto de partida tem de ser a condição humana existente, com todas as suas imperfeições.

Revista Tempo Social - 2004

Receita para o crescimento

Incremento do mercado interno, a adoção de mecanismos que visem a distribuição de renda, o incentivo de atividades produtivas que possibilitem a inclusão social e o controle cambial. Essa é, em linhas gerais, a receita de Celso Furtado para que o Brasil retome o caminho do crescimento. Doutor honoris causa da Unicamp e visto pela maioria de seus pares como o mais importante economista brasileiro do século 20, Furtado não esconde seu descontentamento com a falta de autonomia do país para assumir as rédeas do crescimento e, também, com o fato de os intelectuais não acreditarem mais no papel do Estado como condutor de políticas públicas. Na entrevista que segue, Celso Furtado fala, entre outros temas, da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), dos governos da segunda metade do século 20, do liberalismo, da opção pela política de exportação feita pela equipe econômica de Lula e do nacionalismo.


JU - O senhor disse recentemente que nunca foi tão grande a distância entre o que somos e o que esperávamos ser. O que o senhor quis dizer com isso?


Celso Furtado - Houve um período, na década de 50, em que o otimismo era justificado. Havia a possibilidade de se empreenderem reformas, tínhamos indústrias de base, siderurgia, a Petrobrás etc. Todo o esforço feito por Getúlio Vargas em prol da nossa indústria de base permitia balizar o caminho a seguir. Quando Juscelino chega à Presidência, ele pega esse caminho, e nele persiste. Nessa época, o Brasil se empenhou para implantar a indústria de bens de consumo duráveis, por exemplo, a de automóveis. Toda essa seqüência, tão importante para o nosso crescimento, obedeceu a uma certa lógica. Mas foi interrompida. Não se pode explicar o que aconteceu sem ter em conta o quadro político mundial da época, em que existia uma grande instabilidade decorrente dos ajustamentos da Guerra Fria. Depois dos anos da ditadura militar, houve expectativa de uma retomada do esforço de construção que já tinha sido feito. Porém, as idéias do neoliberalismo, que prevaleceram amplamente entre nós durante os anos 90, puseram em segundo plano a visão de um Brasil com mais autonomia na orientação de seu desenvolvimento.



JU - Na década de 50, o senhor teve um papel fundamental no plano de metas do governo Juscelino. O que o diferenciava dos governos subseqüentes?


Celso Furtado - A diferença essencial está em que Juscelino deu início a um processo e tinha margem para desenvolver algumas inovações. Aqueles que vieram depois encontraram outro país, porque a crise que se iniciou no fim do governo Juscelino e se prolongou durante os governos que o sucederam, numa transição dolorosa, decerto exauriu o país. Quem analisa os dados macroeconômicos constata que o país estava alcançando, bem ou mal, uma taxa de crescimento razoável. Depois dessa transição, entrou numa fase de estagnação.



JU - Como a ditadura militar interferiu nesse processo?


Celso Furtado - Ela foi nociva, antes de mais nada, porque seus dirigentes imaginavam que poderiam resolver os problemas rapidamente. Na verdade, os problemas eram complexos. Não bastava a estabilidade política. A economia estava em contração depois de um período de forte expansão, a qual só foi retomada, precariamente, em etapa posterior.


JU - Na época em foi criada a Cepal, os governos e intelectuais norte-americanos também propunham reformas modernizantes para os países subdesenvolvidos, para decolar do subdesenvolvimento em direção ao crescimento auto-sustentado. Era o “Consenso de Washington” daquela época?


Celso Furtado - Isso é verdade. A idéia que se tinha quando eu estava na Cepal era que a saída do subdesenvolvimento seria algo factível a relativamente curto prazo. Mas se trata de um processo muito mais complexo do que se pensava na época, o que pude perceber quando participei dos governos anteriores ao golpe militar. Nessa época, não tínhamos uma idéia exata das dificuldades que íamos enfrentar.



JU - O senhor poderia relacioná-las?


Celso Furtado - Eu começaria pelo problema financeiro, que era o mais espinhoso. Ao lado do problema financeiro, havia o da balança de pagamento, que na verdade era uma crise crônica. Só se escapava a essa crise com soluções mais ou menos provisórias, e muito precárias. A crise no país era muito séria. Tínhamos pensado num desenvolvimento no quadro de um certo modelo. Mas esse modelo, ainda que fosse bem implantado, era insuficiente.



JU - O senhor acha que ainda há lugar hoje para o nacionalismo?


Celso Furtado - O nacionalismo — discurso de sobrevivência em período de globalização — passou a ser uma força compulsiva. O problema central hoje é a globalização, que é conseqüência da evolução tecnológica. Não se trata de problema estritamente brasileiro.



JU - Qual a receita para atenuar esses problemas?


Celso Furtado - É evidente que esses problemas poderiam ser atenuados mediante reformas oportunas. Como deter, por exemplo, a concentração de renda? Cada país tem de encontrar o seu caminho, evidentemente, cada um vai fazer a sua história. No caso do Brasil, o melhor caminho seria voltar-se para o mercado interno. O país tem um grande potencial de crescimento baseado no mercado interno, o que é raro. São poucos os países que reúnem essas condições.



JU - O senhor acha que esse mercado resolveria parte das mazelas?


Celso Furtado - Sim, a saída para o Brasil consiste em dinamizar o mercado interno. Mas para isso, é preciso deter a concentração de renda. É preciso, portanto, fazer crescer as atividades produtivas em sentido amplo, isto é, incentivar atividades produtivas que nem sempre visam o lucro, mas que são essenciais para alcançar os objetivos sociais.



JU - Qual seria a receita, em linhas gerais, para o incremento do mercado interno?


Celso Furtado - O primeiro objetivo é fazer crescer o nível de emprego, para se criar uma demanda efetiva. Isso pressupõe que se determinem que setores devem ser privilegiados. Vejamos o caso da indústria automobilística: de uns anos para cá, todos os investimentos direcionados para esse setor têm resultado na criação de desemprego. Não se trata de restringir a ação das empresas transnacionais, mas de orientá-las para dar prioridade ao mercado nacional e à criação de empregos. Do contrário o país acaba sendo arrastado a praticar uma política estrutural de desemprego.

JU - O senhor sempre teve uma visão bastante otimista do papel do intelectual nos países subdesenvolvidos. O senhor continua a pensar da mesma forma? Acha que o intelectual brasileiro está hoje à altura de suas expectativas?

Celso Furtado - Em parte, o desafio é muito maior do que no passado. Isso explica, de certa maneira, o desânimo, o medo e a descrença de muitos deles. No que diz respeito especificamente aos economistas, como já não se pode mais recorrer a saídas simples — tal como a substituição de importações —, cabe enfrentar a realidade das mudanças estruturais, o que é muito mais incerto. Entre os economistas a visão da realidade foi insuficiente, pois se baseou na idéia simples — que eu também partilhava nos anos 40 e 50 — de que a retomada do crescimento estava ao alcance da mão. Seria puramente uma questão de administração da demanda, a ser realizada cuidadosamente de forma a não prejudicar a estabilidade econômica. Tudo seria assim governado pelo medo da inflação. Cabia, portanto, arbitrar entre uma política inflacionária ou deflacionária.

JU - Os intelectuais não têm refletido sobre isso?


Celso Furtado - Eles não confiam nos instrumentos do Estado. Esta é a diferença. No passado, acreditávamos que o Estado dispunha de recursos importantes para atuar, tinha meios de agir. Estamos numa época em que o Estado é omisso por conta da conjuntura global, além de estar submetido a muitos interesses. O que é grave, na minha opinião, é a manipulação da taxa de câmbio. Creio que o controle cambial é fundamental para se ter uma política efetiva. Hoje não pode sequer falar disso. Não há margem para discussão e nem coragem da classe política. Os países da Europa formaram um bloco visando uma política comum, mas na América Latina não enxergo perspectivas de uma ação comum. Veja a dificuldade que o Mercosul está tendo para atuar.

JU - A que o senhor atribui essa fragilidade?

Celso Furtado - Os governos não estão enfrentando a realidade. Um país como a Argentina se endividou até a raiz dos cabelos, e sua dívida de curto e médio prazo é de quase 100 bilhões de dólares. Assim, o país está sem possibilidades de agir, devido às ameaças e reações. Com o controle da taxa de câmbio, a dívida externa desses países seria certamente mais manejável do que atualmente.

JU - Nesse contexto, qual seria o papel do Estado?

Celso Furtado - A renúncia ao Estado praticamente deixa o país em situação similiar à da era colonial, quando a Metrópole exercia essa função. Cabe ao Estado assumir o papel de condutor da política nos países subdesenvolvidos.

É ele o instrumento privilegiado para enfrentar os problemas estruturais, cabendo indagar como compatibilizá-lo com o processo de globalização. Não há dúvida de que a globalização dos fluxos monetários e financeiros deve ter como contrapartida um aparato de medidas disciplinadoras em cada país, e isso exige a preservação e o aperfeiçoamento constante das instituições estatais.

JU - O senhor defendeu a moratória há alguns anos. Continua com a mesma opinião?


Celso Furtado - Não dá para se renunciar a um instrumento como a moratória. Moratória não significa espoliação dos credores, e nem “calote”, como a decretada pela Rússia czarista. Moratória significa um entendimento para viabilizar a continuidade da cooperação entre credores e devedores. Portanto, toda moratória implica uma ampla negociação prévia que garanta a manutenção das relações comerciais no futuro. A Argentina, por exemplo, está tentando essa negociação. É um caso concreto, em que as duas partes terão de definir prioridades e estabelecer até que ponto poderão avançar. No caso da Argentina, parece clara a necessidade de se ter uma política de desenvolvimento com a adequada criação de empregos. Mesmo os críticos à situação admitem que sem essa política o país não sairá do atoleiro.



JU - O Brasil poderia adotar o mesmo caminho?


Celso Furtado - No Brasil é fundamental manter e fazer crescer o emprego. Se não existisse cooperação externa, o país teria de se refugiar apenas no mercado interno, o que traz o risco de suscitar um nacionalismo fechado, quase obscurantista. Isso seria um recuo muito grande na história.



JU - Muitas das teses formuladas pelo senhor voltaram à tona. Essa retomada pode ser atribuída a um certo esgotamento do ideário neoliberal?


Celso Furtado - Isso não acontece somente no Brasil. Por toda parte há uma busca de saída que substitua o liberalismo. É o pêndulo da História. No nosso caso é evidente que o país tem possibilidades enormes a partir do seu mercado interno. Isso não pode ser ignorado pela classe dirigente, particularmente a classe empresarial, quando joga todas as fichas na exportação.



JU - Qual o resultado dessa política?


Celso Furtado - A política de exportação pode atropelar interesses de outros países, como vêm demonstrando as reações recentes da Argentina, da China e da Venezuela, no sentido de se defenderem contra o Brasil. Mas este é o preço a pagar por uma política de exportação.





JU - O nível de sofisticação tecnológica passou a ser vital para o funcionamento da economia. Como enfrentar essa dicotomia, conciliando a busca pela inovação sem interferir na política de criação de empregos?


Celso Furtado - Favorecer tecnologias de ponta é racional se o objetivo estratégico é abrir espaço no mercado externo. Mas quando o objetivo principal é alcançar o bem-estar social, é ilógico investir em técnicas intensivas de capital e poupadoras de mão-de-obra, como se vem fazendo no Brasil.



JU - O que o senhor acha da política econômica do governo Lula?


Celso Furtado - Acho que ainda não está definida.

JU - Como o senhor vê a opção do governo pela ortodoxia?


Celso Furtado - Aparentemente é uma tática que está se prolongando mais do que o esperado.

JU - Qual seria seu objetivo?

Celso Furtado - Evitar que os credores tomem a ofensiva.

JU - E no caso das reformas estruturais?

Celso Furtado - Aí teria de se conseguir o apoio efetivo da opinião pública. Isso daria ânimo ao governo, que marcharia num caminho legitimado e apoiado pela sociedade.

Jornal UNICAMP - 2004