Incremento do mercado interno, a adoção de mecanismos que visem a distribuição de renda, o incentivo de atividades produtivas que possibilitem a inclusão social e o controle cambial. Essa é, em linhas gerais, a receita de Celso Furtado para que o Brasil retome o caminho do crescimento. Doutor honoris causa da Unicamp e visto pela maioria de seus pares como o mais importante economista brasileiro do século 20, Furtado não esconde seu descontentamento com a falta de autonomia do país para assumir as rédeas do crescimento e, também, com o fato de os intelectuais não acreditarem mais no papel do Estado como condutor de políticas públicas. Na entrevista que segue, Celso Furtado fala, entre outros temas, da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), dos governos da segunda metade do século 20, do liberalismo, da opção pela política de exportação feita pela equipe econômica de Lula e do nacionalismo.
JU - O senhor disse recentemente que nunca foi tão grande a distância entre o que somos e o que esperávamos ser. O que o senhor quis dizer com isso?
Celso Furtado - Houve um período, na década de 50, em que o otimismo era justificado. Havia a possibilidade de se empreenderem reformas, tínhamos indústrias de base, siderurgia, a Petrobrás etc. Todo o esforço feito por Getúlio Vargas em prol da nossa indústria de base permitia balizar o caminho a seguir. Quando Juscelino chega à Presidência, ele pega esse caminho, e nele persiste. Nessa época, o Brasil se empenhou para implantar a indústria de bens de consumo duráveis, por exemplo, a de automóveis. Toda essa seqüência, tão importante para o nosso crescimento, obedeceu a uma certa lógica. Mas foi interrompida. Não se pode explicar o que aconteceu sem ter em conta o quadro político mundial da época, em que existia uma grande instabilidade decorrente dos ajustamentos da Guerra Fria. Depois dos anos da ditadura militar, houve expectativa de uma retomada do esforço de construção que já tinha sido feito. Porém, as idéias do neoliberalismo, que prevaleceram amplamente entre nós durante os anos 90, puseram em segundo plano a visão de um Brasil com mais autonomia na orientação de seu desenvolvimento.
JU - Na década de 50, o senhor teve um papel fundamental no plano de metas do governo Juscelino. O que o diferenciava dos governos subseqüentes?
Celso Furtado - A diferença essencial está em que Juscelino deu início a um processo e tinha margem para desenvolver algumas inovações. Aqueles que vieram depois encontraram outro país, porque a crise que se iniciou no fim do governo Juscelino e se prolongou durante os governos que o sucederam, numa transição dolorosa, decerto exauriu o país. Quem analisa os dados macroeconômicos constata que o país estava alcançando, bem ou mal, uma taxa de crescimento razoável. Depois dessa transição, entrou numa fase de estagnação.
JU - Como a ditadura militar interferiu nesse processo?
Celso Furtado - Ela foi nociva, antes de mais nada, porque seus dirigentes imaginavam que poderiam resolver os problemas rapidamente. Na verdade, os problemas eram complexos. Não bastava a estabilidade política. A economia estava em contração depois de um período de forte expansão, a qual só foi retomada, precariamente, em etapa posterior.
JU - Na época em foi criada a Cepal, os governos e intelectuais norte-americanos também propunham reformas modernizantes para os países subdesenvolvidos, para decolar do subdesenvolvimento em direção ao crescimento auto-sustentado. Era o “Consenso de Washington” daquela época?
Celso Furtado - Isso é verdade. A idéia que se tinha quando eu estava na Cepal era que a saída do subdesenvolvimento seria algo factível a relativamente curto prazo. Mas se trata de um processo muito mais complexo do que se pensava na época, o que pude perceber quando participei dos governos anteriores ao golpe militar. Nessa época, não tínhamos uma idéia exata das dificuldades que íamos enfrentar.
JU - O senhor poderia relacioná-las?
Celso Furtado - Eu começaria pelo problema financeiro, que era o mais espinhoso. Ao lado do problema financeiro, havia o da balança de pagamento, que na verdade era uma crise crônica. Só se escapava a essa crise com soluções mais ou menos provisórias, e muito precárias. A crise no país era muito séria. Tínhamos pensado num desenvolvimento no quadro de um certo modelo. Mas esse modelo, ainda que fosse bem implantado, era insuficiente.
JU - O senhor acha que ainda há lugar hoje para o nacionalismo?
Celso Furtado - O nacionalismo — discurso de sobrevivência em período de globalização — passou a ser uma força compulsiva. O problema central hoje é a globalização, que é conseqüência da evolução tecnológica. Não se trata de problema estritamente brasileiro.
JU - Qual a receita para atenuar esses problemas?
Celso Furtado - É evidente que esses problemas poderiam ser atenuados mediante reformas oportunas. Como deter, por exemplo, a concentração de renda? Cada país tem de encontrar o seu caminho, evidentemente, cada um vai fazer a sua história. No caso do Brasil, o melhor caminho seria voltar-se para o mercado interno. O país tem um grande potencial de crescimento baseado no mercado interno, o que é raro. São poucos os países que reúnem essas condições.
JU - O senhor acha que esse mercado resolveria parte das mazelas?
Celso Furtado - Sim, a saída para o Brasil consiste em dinamizar o mercado interno. Mas para isso, é preciso deter a concentração de renda. É preciso, portanto, fazer crescer as atividades produtivas em sentido amplo, isto é, incentivar atividades produtivas que nem sempre visam o lucro, mas que são essenciais para alcançar os objetivos sociais.
JU - Qual seria a receita, em linhas gerais, para o incremento do mercado interno?
Celso Furtado - O primeiro objetivo é fazer crescer o nível de emprego, para se criar uma demanda efetiva. Isso pressupõe que se determinem que setores devem ser privilegiados. Vejamos o caso da indústria automobilística: de uns anos para cá, todos os investimentos direcionados para esse setor têm resultado na criação de desemprego. Não se trata de restringir a ação das empresas transnacionais, mas de orientá-las para dar prioridade ao mercado nacional e à criação de empregos. Do contrário o país acaba sendo arrastado a praticar uma política estrutural de desemprego.
JU - O senhor sempre teve uma visão bastante otimista do papel do intelectual nos países subdesenvolvidos. O senhor continua a pensar da mesma forma? Acha que o intelectual brasileiro está hoje à altura de suas expectativas?
Celso Furtado - Em parte, o desafio é muito maior do que no passado. Isso explica, de certa maneira, o desânimo, o medo e a descrença de muitos deles. No que diz respeito especificamente aos economistas, como já não se pode mais recorrer a saídas simples — tal como a substituição de importações —, cabe enfrentar a realidade das mudanças estruturais, o que é muito mais incerto. Entre os economistas a visão da realidade foi insuficiente, pois se baseou na idéia simples — que eu também partilhava nos anos 40 e 50 — de que a retomada do crescimento estava ao alcance da mão. Seria puramente uma questão de administração da demanda, a ser realizada cuidadosamente de forma a não prejudicar a estabilidade econômica. Tudo seria assim governado pelo medo da inflação. Cabia, portanto, arbitrar entre uma política inflacionária ou deflacionária.
JU - Os intelectuais não têm refletido sobre isso?
Celso Furtado - Eles não confiam nos instrumentos do Estado. Esta é a diferença. No passado, acreditávamos que o Estado dispunha de recursos importantes para atuar, tinha meios de agir. Estamos numa época em que o Estado é omisso por conta da conjuntura global, além de estar submetido a muitos interesses. O que é grave, na minha opinião, é a manipulação da taxa de câmbio. Creio que o controle cambial é fundamental para se ter uma política efetiva. Hoje não pode sequer falar disso. Não há margem para discussão e nem coragem da classe política. Os países da Europa formaram um bloco visando uma política comum, mas na América Latina não enxergo perspectivas de uma ação comum. Veja a dificuldade que o Mercosul está tendo para atuar.
JU - A que o senhor atribui essa fragilidade?
Celso Furtado - Os governos não estão enfrentando a realidade. Um país como a Argentina se endividou até a raiz dos cabelos, e sua dívida de curto e médio prazo é de quase 100 bilhões de dólares. Assim, o país está sem possibilidades de agir, devido às ameaças e reações. Com o controle da taxa de câmbio, a dívida externa desses países seria certamente mais manejável do que atualmente.
JU - Nesse contexto, qual seria o papel do Estado?
Celso Furtado - A renúncia ao Estado praticamente deixa o país em situação similiar à da era colonial, quando a Metrópole exercia essa função. Cabe ao Estado assumir o papel de condutor da política nos países subdesenvolvidos.
É ele o instrumento privilegiado para enfrentar os problemas estruturais, cabendo indagar como compatibilizá-lo com o processo de globalização. Não há dúvida de que a globalização dos fluxos monetários e financeiros deve ter como contrapartida um aparato de medidas disciplinadoras em cada país, e isso exige a preservação e o aperfeiçoamento constante das instituições estatais.
JU - O senhor defendeu a moratória há alguns anos. Continua com a mesma opinião?
Celso Furtado - Não dá para se renunciar a um instrumento como a moratória. Moratória não significa espoliação dos credores, e nem “calote”, como a decretada pela Rússia czarista. Moratória significa um entendimento para viabilizar a continuidade da cooperação entre credores e devedores. Portanto, toda moratória implica uma ampla negociação prévia que garanta a manutenção das relações comerciais no futuro. A Argentina, por exemplo, está tentando essa negociação. É um caso concreto, em que as duas partes terão de definir prioridades e estabelecer até que ponto poderão avançar. No caso da Argentina, parece clara a necessidade de se ter uma política de desenvolvimento com a adequada criação de empregos. Mesmo os críticos à situação admitem que sem essa política o país não sairá do atoleiro.
JU - O Brasil poderia adotar o mesmo caminho?
Celso Furtado - No Brasil é fundamental manter e fazer crescer o emprego. Se não existisse cooperação externa, o país teria de se refugiar apenas no mercado interno, o que traz o risco de suscitar um nacionalismo fechado, quase obscurantista. Isso seria um recuo muito grande na história.
JU - Muitas das teses formuladas pelo senhor voltaram à tona. Essa retomada pode ser atribuída a um certo esgotamento do ideário neoliberal?
Celso Furtado - Isso não acontece somente no Brasil. Por toda parte há uma busca de saída que substitua o liberalismo. É o pêndulo da História. No nosso caso é evidente que o país tem possibilidades enormes a partir do seu mercado interno. Isso não pode ser ignorado pela classe dirigente, particularmente a classe empresarial, quando joga todas as fichas na exportação.
JU - Qual o resultado dessa política?
Celso Furtado - A política de exportação pode atropelar interesses de outros países, como vêm demonstrando as reações recentes da Argentina, da China e da Venezuela, no sentido de se defenderem contra o Brasil. Mas este é o preço a pagar por uma política de exportação.
JU - O nível de sofisticação tecnológica passou a ser vital para o funcionamento da economia. Como enfrentar essa dicotomia, conciliando a busca pela inovação sem interferir na política de criação de empregos?
Celso Furtado - Favorecer tecnologias de ponta é racional se o objetivo estratégico é abrir espaço no mercado externo. Mas quando o objetivo principal é alcançar o bem-estar social, é ilógico investir em técnicas intensivas de capital e poupadoras de mão-de-obra, como se vem fazendo no Brasil.
JU - O que o senhor acha da política econômica do governo Lula?
Celso Furtado - Acho que ainda não está definida.
JU - Como o senhor vê a opção do governo pela ortodoxia?
Celso Furtado - Aparentemente é uma tática que está se prolongando mais do que o esperado.
JU - Qual seria seu objetivo?
Celso Furtado - Evitar que os credores tomem a ofensiva.
JU - E no caso das reformas estruturais?
Celso Furtado - Aí teria de se conseguir o apoio efetivo da opinião pública. Isso daria ânimo ao governo, que marcharia num caminho legitimado e apoiado pela sociedade.
Jornal UNICAMP - 2004
JU - O senhor disse recentemente que nunca foi tão grande a distância entre o que somos e o que esperávamos ser. O que o senhor quis dizer com isso?
Celso Furtado - Houve um período, na década de 50, em que o otimismo era justificado. Havia a possibilidade de se empreenderem reformas, tínhamos indústrias de base, siderurgia, a Petrobrás etc. Todo o esforço feito por Getúlio Vargas em prol da nossa indústria de base permitia balizar o caminho a seguir. Quando Juscelino chega à Presidência, ele pega esse caminho, e nele persiste. Nessa época, o Brasil se empenhou para implantar a indústria de bens de consumo duráveis, por exemplo, a de automóveis. Toda essa seqüência, tão importante para o nosso crescimento, obedeceu a uma certa lógica. Mas foi interrompida. Não se pode explicar o que aconteceu sem ter em conta o quadro político mundial da época, em que existia uma grande instabilidade decorrente dos ajustamentos da Guerra Fria. Depois dos anos da ditadura militar, houve expectativa de uma retomada do esforço de construção que já tinha sido feito. Porém, as idéias do neoliberalismo, que prevaleceram amplamente entre nós durante os anos 90, puseram em segundo plano a visão de um Brasil com mais autonomia na orientação de seu desenvolvimento.
JU - Na década de 50, o senhor teve um papel fundamental no plano de metas do governo Juscelino. O que o diferenciava dos governos subseqüentes?
Celso Furtado - A diferença essencial está em que Juscelino deu início a um processo e tinha margem para desenvolver algumas inovações. Aqueles que vieram depois encontraram outro país, porque a crise que se iniciou no fim do governo Juscelino e se prolongou durante os governos que o sucederam, numa transição dolorosa, decerto exauriu o país. Quem analisa os dados macroeconômicos constata que o país estava alcançando, bem ou mal, uma taxa de crescimento razoável. Depois dessa transição, entrou numa fase de estagnação.
JU - Como a ditadura militar interferiu nesse processo?
Celso Furtado - Ela foi nociva, antes de mais nada, porque seus dirigentes imaginavam que poderiam resolver os problemas rapidamente. Na verdade, os problemas eram complexos. Não bastava a estabilidade política. A economia estava em contração depois de um período de forte expansão, a qual só foi retomada, precariamente, em etapa posterior.
JU - Na época em foi criada a Cepal, os governos e intelectuais norte-americanos também propunham reformas modernizantes para os países subdesenvolvidos, para decolar do subdesenvolvimento em direção ao crescimento auto-sustentado. Era o “Consenso de Washington” daquela época?
Celso Furtado - Isso é verdade. A idéia que se tinha quando eu estava na Cepal era que a saída do subdesenvolvimento seria algo factível a relativamente curto prazo. Mas se trata de um processo muito mais complexo do que se pensava na época, o que pude perceber quando participei dos governos anteriores ao golpe militar. Nessa época, não tínhamos uma idéia exata das dificuldades que íamos enfrentar.
JU - O senhor poderia relacioná-las?
Celso Furtado - Eu começaria pelo problema financeiro, que era o mais espinhoso. Ao lado do problema financeiro, havia o da balança de pagamento, que na verdade era uma crise crônica. Só se escapava a essa crise com soluções mais ou menos provisórias, e muito precárias. A crise no país era muito séria. Tínhamos pensado num desenvolvimento no quadro de um certo modelo. Mas esse modelo, ainda que fosse bem implantado, era insuficiente.
JU - O senhor acha que ainda há lugar hoje para o nacionalismo?
Celso Furtado - O nacionalismo — discurso de sobrevivência em período de globalização — passou a ser uma força compulsiva. O problema central hoje é a globalização, que é conseqüência da evolução tecnológica. Não se trata de problema estritamente brasileiro.
JU - Qual a receita para atenuar esses problemas?
Celso Furtado - É evidente que esses problemas poderiam ser atenuados mediante reformas oportunas. Como deter, por exemplo, a concentração de renda? Cada país tem de encontrar o seu caminho, evidentemente, cada um vai fazer a sua história. No caso do Brasil, o melhor caminho seria voltar-se para o mercado interno. O país tem um grande potencial de crescimento baseado no mercado interno, o que é raro. São poucos os países que reúnem essas condições.
JU - O senhor acha que esse mercado resolveria parte das mazelas?
Celso Furtado - Sim, a saída para o Brasil consiste em dinamizar o mercado interno. Mas para isso, é preciso deter a concentração de renda. É preciso, portanto, fazer crescer as atividades produtivas em sentido amplo, isto é, incentivar atividades produtivas que nem sempre visam o lucro, mas que são essenciais para alcançar os objetivos sociais.
JU - Qual seria a receita, em linhas gerais, para o incremento do mercado interno?
Celso Furtado - O primeiro objetivo é fazer crescer o nível de emprego, para se criar uma demanda efetiva. Isso pressupõe que se determinem que setores devem ser privilegiados. Vejamos o caso da indústria automobilística: de uns anos para cá, todos os investimentos direcionados para esse setor têm resultado na criação de desemprego. Não se trata de restringir a ação das empresas transnacionais, mas de orientá-las para dar prioridade ao mercado nacional e à criação de empregos. Do contrário o país acaba sendo arrastado a praticar uma política estrutural de desemprego.
JU - O senhor sempre teve uma visão bastante otimista do papel do intelectual nos países subdesenvolvidos. O senhor continua a pensar da mesma forma? Acha que o intelectual brasileiro está hoje à altura de suas expectativas?
Celso Furtado - Em parte, o desafio é muito maior do que no passado. Isso explica, de certa maneira, o desânimo, o medo e a descrença de muitos deles. No que diz respeito especificamente aos economistas, como já não se pode mais recorrer a saídas simples — tal como a substituição de importações —, cabe enfrentar a realidade das mudanças estruturais, o que é muito mais incerto. Entre os economistas a visão da realidade foi insuficiente, pois se baseou na idéia simples — que eu também partilhava nos anos 40 e 50 — de que a retomada do crescimento estava ao alcance da mão. Seria puramente uma questão de administração da demanda, a ser realizada cuidadosamente de forma a não prejudicar a estabilidade econômica. Tudo seria assim governado pelo medo da inflação. Cabia, portanto, arbitrar entre uma política inflacionária ou deflacionária.
JU - Os intelectuais não têm refletido sobre isso?
Celso Furtado - Eles não confiam nos instrumentos do Estado. Esta é a diferença. No passado, acreditávamos que o Estado dispunha de recursos importantes para atuar, tinha meios de agir. Estamos numa época em que o Estado é omisso por conta da conjuntura global, além de estar submetido a muitos interesses. O que é grave, na minha opinião, é a manipulação da taxa de câmbio. Creio que o controle cambial é fundamental para se ter uma política efetiva. Hoje não pode sequer falar disso. Não há margem para discussão e nem coragem da classe política. Os países da Europa formaram um bloco visando uma política comum, mas na América Latina não enxergo perspectivas de uma ação comum. Veja a dificuldade que o Mercosul está tendo para atuar.
JU - A que o senhor atribui essa fragilidade?
Celso Furtado - Os governos não estão enfrentando a realidade. Um país como a Argentina se endividou até a raiz dos cabelos, e sua dívida de curto e médio prazo é de quase 100 bilhões de dólares. Assim, o país está sem possibilidades de agir, devido às ameaças e reações. Com o controle da taxa de câmbio, a dívida externa desses países seria certamente mais manejável do que atualmente.
JU - Nesse contexto, qual seria o papel do Estado?
Celso Furtado - A renúncia ao Estado praticamente deixa o país em situação similiar à da era colonial, quando a Metrópole exercia essa função. Cabe ao Estado assumir o papel de condutor da política nos países subdesenvolvidos.
É ele o instrumento privilegiado para enfrentar os problemas estruturais, cabendo indagar como compatibilizá-lo com o processo de globalização. Não há dúvida de que a globalização dos fluxos monetários e financeiros deve ter como contrapartida um aparato de medidas disciplinadoras em cada país, e isso exige a preservação e o aperfeiçoamento constante das instituições estatais.
JU - O senhor defendeu a moratória há alguns anos. Continua com a mesma opinião?
Celso Furtado - Não dá para se renunciar a um instrumento como a moratória. Moratória não significa espoliação dos credores, e nem “calote”, como a decretada pela Rússia czarista. Moratória significa um entendimento para viabilizar a continuidade da cooperação entre credores e devedores. Portanto, toda moratória implica uma ampla negociação prévia que garanta a manutenção das relações comerciais no futuro. A Argentina, por exemplo, está tentando essa negociação. É um caso concreto, em que as duas partes terão de definir prioridades e estabelecer até que ponto poderão avançar. No caso da Argentina, parece clara a necessidade de se ter uma política de desenvolvimento com a adequada criação de empregos. Mesmo os críticos à situação admitem que sem essa política o país não sairá do atoleiro.
JU - O Brasil poderia adotar o mesmo caminho?
Celso Furtado - No Brasil é fundamental manter e fazer crescer o emprego. Se não existisse cooperação externa, o país teria de se refugiar apenas no mercado interno, o que traz o risco de suscitar um nacionalismo fechado, quase obscurantista. Isso seria um recuo muito grande na história.
JU - Muitas das teses formuladas pelo senhor voltaram à tona. Essa retomada pode ser atribuída a um certo esgotamento do ideário neoliberal?
Celso Furtado - Isso não acontece somente no Brasil. Por toda parte há uma busca de saída que substitua o liberalismo. É o pêndulo da História. No nosso caso é evidente que o país tem possibilidades enormes a partir do seu mercado interno. Isso não pode ser ignorado pela classe dirigente, particularmente a classe empresarial, quando joga todas as fichas na exportação.
JU - Qual o resultado dessa política?
Celso Furtado - A política de exportação pode atropelar interesses de outros países, como vêm demonstrando as reações recentes da Argentina, da China e da Venezuela, no sentido de se defenderem contra o Brasil. Mas este é o preço a pagar por uma política de exportação.
JU - O nível de sofisticação tecnológica passou a ser vital para o funcionamento da economia. Como enfrentar essa dicotomia, conciliando a busca pela inovação sem interferir na política de criação de empregos?
Celso Furtado - Favorecer tecnologias de ponta é racional se o objetivo estratégico é abrir espaço no mercado externo. Mas quando o objetivo principal é alcançar o bem-estar social, é ilógico investir em técnicas intensivas de capital e poupadoras de mão-de-obra, como se vem fazendo no Brasil.
JU - O que o senhor acha da política econômica do governo Lula?
Celso Furtado - Acho que ainda não está definida.
JU - Como o senhor vê a opção do governo pela ortodoxia?
Celso Furtado - Aparentemente é uma tática que está se prolongando mais do que o esperado.
JU - Qual seria seu objetivo?
Celso Furtado - Evitar que os credores tomem a ofensiva.
JU - E no caso das reformas estruturais?
Celso Furtado - Aí teria de se conseguir o apoio efetivo da opinião pública. Isso daria ânimo ao governo, que marcharia num caminho legitimado e apoiado pela sociedade.
Jornal UNICAMP - 2004
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