quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Alberto da Costa e Silva


Alberto da Costa e Silva
Sem a África o Brasil não existiria
Revista de História

Em 1963, Alberto da Costa e Silva ouviu de um professor de Oxford, Hugh Trevor-Hopper, que não existia uma História da África subsaariana, mas somente a História dos europeus no continente, “porque o resto era escuridão, e a escuridão não é matéria da História”. Foi nessa época que o historiador, poeta e diplomata brasileiro começou a pesquisar com afinco a História do continente africano, matéria de incontáveis artigos e ensaios – e também dos monumentais A enxada e a lança e A manilha e o libambo, dois primeiros volumes de uma ambiciosa História do continente negro, aos quais logo se juntará um terceiro, que tratará do tema até o fim da Primeira Guerra, como ele revela nesta entrevista à Revista de História.

Filho do poeta Da Costa e Silva, Alberto nasceu em São Paulo, em 1931. Formado pelo Instituto Rio Branco, no ano de 1957, serviu como diplomata em Lisboa, Caracas, Washington, Madri e Roma, antes de ser embaixador na Nigéria e no Benim, em Portugal, na Colômbia e no Paraguai. Foi chefe do Departamento Cultural, Subsecretário-Geral e Inspetor-Geral do Ministério das Relações Exteriores. Membro da Academia Brasileira de Letras, é o mais importante estudioso brasileiro das relações entre o Brasil e a África negra. Para essa entrevista, Alberto abriu o seu apartamento no Rio, cercado de máscaras, estátuas, tapetes e toda sorte de objetos que recolheu ao longo da vida: um pedaço da África no coração do bairro de Laranjeiras.

REVISTA de HISTÓRIA Vamos falar um pouco da sua história.

ALBERTO DA COSTA E SILVA Nasci numa biblioteca. Sou como Baudelaire, meu berço ficava na biblioteca. Sou um homem de letras, um poeta, cresci entre livros. Meu avô materno era um comerciante de borracha na Amazônia, mas tinha uma enorme biblioteca jurídica e filosófica. O hobby dele era estudar Direito. De certa maneira, o mundo sempre me chegou pelos livros. Desde menino tive essas duas paixões: a poesia e a História. E tenho a impressão de que o poeta ajuda o historiador – o poeta intui esse muito de imaginação de que você necessita para tentar restaurar um tempo que já passou – e que, de certa forma, você jamais pode dissociar a História das artes literárias, pois a História surge como um gênero literário e é um gênero literário até hoje. Não importa muito se você aceita inteiramente o que está em Gibbons, Michelet, Burckhardt ou Huizinga. O fato é que você continua a lê-los porque eles apresentam o retrato pessoal do que eles achavam que era o passado, e esta visão pessoal é o poeta quem a dá. Num certo sentido, eles eram poetas. Nasci em São Paulo, criei-me em Fortaleza, e, aos 13 anos, vim para o Rio de Janeiro. Meu pai era do Piauí, mas se encontrava em São Paulo como alto funcionário do Governo Federal quando houve a Revolução de 32, e precisou abandonar a cidade. Pouco depois ele teve um problema neurológico e perdeu o uso da razão. Tinha 42 ou 43 anos. Passou o resto da vida sentado, lendo seus livrinhos. Às vezes ele lia em voz alta para mim, foi o meu grande companheiro de infância. Lia Walt Whitman em inglês. Eu não sabia inglês, mas sabia que aquilo era bonito, tinha a noção de que as palavras possuem valor musical próprio, independente do significado. Então me criei com um homem enfermo, mas que me abriu muitos horizontes. Vim para o Rio de Janeiro aos 13, 14 anos. Estudei no Colégio São José e no Instituto Lafayette. Quando, mais tarde, entrei para a Faculdade de Direito, fui trabalhar na Biblioteca Nacional, na seção de Manuscritos, com José Honório Rodrigues. Trabalhei na catalogação e identificação da coleção de Alexandre Rodrigues Ferreira, e também na coleção do Visconde do Rio Branco. Aí, como era normal entre os adolescentes, eu tive a minha tuberculose e fui para Campos do Jordão, onde fiquei três anos. Lá, tive um companheiro de quarto, um alemão chamado Rolf, que era filho de Waldemar Wreszinski, professor de História Antiga na Universidade de Königsberg e autor de três volumes monumentais sobre a medicina no Antigo Egito. O Professor Wreszinski morreu no início do nazismo, desgostoso com a evolução dos acontecimentos na Alemanha, e o filho imigrou para o Brasil. Rolf me abriu muitos horizontes, porque era um homem de uma amplidão cultural como existem poucos no Brasil.


RH O senhor já pensava em seguir a carreira diplomática?

ACS De volta ao Rio de Janeiro, resolvi fazer concurso para o Itamaraty. Na realidade, o que eu queria era ser antropólogo, mas com a doença a antropologia foi descartada. Resolvi ser diplomata para tirar a desforra do Barão do Rio Branco, que selecionava os diplomatas num almoço no Itamaraty. Ele chamava os jovens para almoçar e depois decidia se o sujeito entrava ou não. Ao que parece, ele era bom examinador, pois na época o nível da diplomacia brasileira era muito alto. Mas acho que com o meu pai ele foi injusto, porque, depois do almoço com meu pai, disse-lhe: “Da Costa – era como meu pai era conhecido –, você é muito inteligente, fala francês muito bem, conhece inglês, alemão, espanhol, mas você é muito feio.” Meu pai não era bonito, mas também não era tão feio assim, era um nordestino franzino, e era estrábico. O Barão continuou: “Já dizem que o Brasil é o país dos macaquinhos, e se você for lá para fora vão verificar que isso é verdade.” O Pedro Nava narra essa impiedade do Barão do Rio Branco em O Balão Cativo, mas eu já conhecia o episódio por tradição familiar. Então pensei: eu sou menos feio que meu pai, e o Itamaraty não tem mais esses critérios, então vou fazer o exame para o Instituto Rio Branco. E deu certo.

RH Que lembranças o senhor tem do tempo em que morou na África?

ACS A primeira impressão que tive foi a de entrar num mundo culturalmente rico. O colonialismo na África tinha sido de superfície, pelo menos foi essa a impressão quando nela estive pela primeira vez. A cultura africana continuava viva e bem de saúde. Foi uma impressão que já tinha tido, curiosamente, anos antes, durante negociações com os japoneses, no Itamaraty. Tudo que era ocidentalizado neles era de superfície, a cultura era diferente da nossa, embora sempre participando da cultura humana que é a mais geral de todas. Há duas coisas na África Ocidental que são muito marcantes: os valores familiares e o respeito à idade. Ninguém se aproxima de uma pessoa mais velha sem uma postura de respeito, a olhar o mais velho na mesma altura dos olhos, mas sempre de joelhos ou de cócoras. São marcas da maneira de viver, assim como o respeito imenso que se tem pelas crianças, que são tratadas de igual para igual. Na verdade, a África, como unidade, não existe, é uma invenção nossa. O que existe são numerosos povos de culturas diferentes, que, da mesma maneira que os europeus, possuem alguns elementos culturais básicos comuns. Não há nada mais diferente culturalmente que um espanhol e um escandinavo, ou um inglês e um russo.


RH Fale sobre o seu apego à África.

ACS Foi a partir dos meus 15, 16 anos, que comecei a me interessar pela África. Li Casa Grande e Senzala e foi um deslumbramento. Logo ficou muito claro para mim que não se podia entender o Brasil e não se podia escrever sobre o Brasil sem conhecer a África. E nós tínhamos uma História que era uma transposição lusa para o continente americano. Nós nos víamos como portugueses exilados nos trópicos. E não éramos exatamente aquilo, éramos muito mais do que portugueses exilados nos trópicos. Tínhamos um componente africano que era nítido, e mais tarde eu pude compreender isso quando vivi na Nigéria. Notei que os movimentos brasileiros são, em grande parte, movimentos africanos. A maneira de sentar dos brasileiros não é portuguesa, eu vivi em Portugal oito anos, conheço muito Portugal. Você só vê gente deitada em cima do muro em dois lugares do mundo, no Brasil e na África, em qualquer outro lugar o sujeito cai. E eu vi isso em países africanos: na Nigéria, no Benim, no Congo, o sujeito deitadinho em cima do muro e dormindo sem cair. No Itamaraty, entre 1958 e 1960, li tudo o que me chegava sobre a África das Embaixadas em Londres, Paris, Bruxelas, Lisboa e Nações Unidas. E me embrenhei na biblioteca do Itamaraty, onde havia muita coisa sobre o continente. Lá encontrei o Valentim Fernandes, o Ramusio (Giovan Battista) na primeira edição, que era do Barão. Li Leão Africano, o Relato do Piloto Anônimo, o Esmeraldo de situ orbis, do Duarte Pacheco Pereira, João de Barros... Comecei a procurar a África nos antigos autores portugueses e descobri uma riqueza espantosa, até mesmo em Camões, no Canto V dos Lusíadas, que é uma visão extraordinariamente poética e real da costa africana. Ele mostra um espanto semelhante ao que tive ao chegar à Nigéria em 1960, o espanto que tomou Vasco da Gama ao chegar a Moçambique, Quiloa, Mombaça, Zanzibar, quando topou com aquele mundo de barcos, aquele comércio enorme que a África Oriental tinha com a Índia, com a China e com a Indonésia. Então fui para Portugal e meu chefe, que era Negrão de Lima, me pôs a cuidar dos assuntos africanos e a acompanhar o que se passava na África Portuguesa. Os anos 60 marcam o início da renovação dos estudos africanos, que vinham numa perspectiva diferente, mais antropológica, mais etnográfica do que histórica. Nos anos 60 os estudos históricos foram impulsionados pelo processo de descolonização da África, e foi nessa época que o Itamaraty começou a me mandar para lá: Nigéria, Etiópia, Daomé, Togo, Gana, Camarões, Angola, Serra Leoa, Libéria e Senegal. Conheci esses países todos à custa do erário público. Estou devolvendo um pouco do que investiram em mim.

RH E quando o senhor decidiu escrever sobre a História africana?

ACS Um dia, numa discussão com Carlos Lacerda a respeito da guerra civil angolana, mencionei coisas históricas relativas ao passado de Angola e Carlos me disse: “Alberto, você sabe tudo isso sobre a África e guarda para si? Você tem a obrigação intelectual de pôr isso no papel, de publicar, de transmitir o que sabe!”. Fui para casa e decidi escrever sobre a África. Foi quando comecei a trabalhar no livro A enxada e a lança, em 1975 ou 1976. Eu tinha pouco tempo para escrever, estava em Madri e comecei a juntar minhas notas. Depois de Madri eu fui para Roma, na época do seqüestro de Aldo Moro, das Brigadas Vermelhas, da crise da democracia cristã, um momento complicado. Depois fui para a Nigéria, continuei escrevendo, e vim para o Brasil para ser chefe do departamento cultural do Itamaraty e subsecretário geral do Ministério. Eu escrevia todos os dias de manhã, das seis às oito. Passei dez anos escrevendo A enxada e a lança. Curiosamente, o livro teve uma boa aceitação. Foi praticamente o primeiro livro sobre História africana que se publicou no país. Imediatamente comecei a escrever a continuação, A manilha e o libambo, e agora quero dedicar-me ao terceiro volume.


RH Como será esse livro?

ACS Será sobre os séculos XVIII e XIX na África, quando ocorre o verdadeiro impacto europeu. Até 1700, o comércio de escravos foi bastante reduzido e estava localizado em determinadas áreas da África, pouco extensas. No século XVIII começaram a ser trazidas para a América grandes massas de escravos, na maior migração forçada da história da humanidade. Foi então que a Europa começou a entrar de verdade na África. A história do colonialismo, no entanto, só começa no fim do século XIX, quando a Europa consegue romper a casca da África. A África era como uma laranja, e os europeus foram picando a casca. Só a partir do século XVIII eles começaram a entrar na polpa branca da laranja. E foi somente no fim do século XIX que eles entraram nos gomos da fruta. Eu quero mostrar como os reinos africanos, como as estruturas políticas africanas, desde as mais elaboradas até as mais simples, de aldeias-estados e de microestados, reagiram à entrada dos europeus, como se opuseram aos europeus, como se organizaram e como surgiram, em resposta ao desafio europeu, novas estruturas políticas. Este é o aspecto mais fascinante da História da África, aquele que sempre mais me seduziu, mas eu não podia tratar dele sem tratar antes dos outros. Eu tinha que começar pela pré-história da África, para dar sentido ao que eu estava fazendo. Eu mostro como os europeus chegaram lá como hóspedes e como foram tratados como tal. Antes do século XIX, não havia impérios nem inglês, nem francês, nem português. Os portugueses tinham pequenos enclaves ao redor de Luanda, ao redor de Benguela, da ilha de Moçambique, na Zambézia, em Cachéu e em Bissau. Os ingleses possuíam um enclave na Serra Leoa. E ingleses e descendentes de holandeses e franceses dominavam espaços na África do Sul, a partir da colônia no Cabo. Fora disso, todo o domínio do continente era africano e, mesmo em alguns desses enclaves, pagavam-se tributos aos reis locais. Até que começou o lento processo de intromissão dos europeus, de desarticulação dos reinos africanos, embora alguns deles ainda sobrevivam até hoje. É um pouco a história de tudo isso, até 1918. Não pretendo entrar no processo de descolonização, que já é outra história. Eu só espero viver tempo suficiente, pois passei dez anos para escrever um livro e cinco anos para escrever o outro.

RH O senhor também escreveu Francisco Félix de Souza, Mercador de Escravos...

ACS Era um pesadelo que me acompanhava há muito tempo, desde a juventude, esse meu interesse por Francisco Félix de Souza, o Chachá. Eu tinha de escrever a biografia dele, e esta teve um destino ótimo para um livro de História: vendeu seis mil exemplares.

RH Como é possível comparar a relação com o sagrado na cultura africana e no Brasil?

ACS A relação com o sagrado está em todas as culturas. Não há cultura que não se ampare no sagrado, quer seja ele religioso ou não. Mesmo os laicos do Ocidente europeu estão na realidade ligados ao sagrado: o sagrado da igualdade, da liberdade e da fraternidade. Em povos com tradição monárquica, a força do sagrado também é muito forte. Entre os antigos estados africanos, a presença do divino era permanente. Era o divino que explicava o presente.

RH Que outras trocas ocorreram entre esses dois lados, Brasil e África?

ACS Desde o século XVI, existiu um movimento de fluxo e refluxo. De trocas de vegetais, por exemplo. Os africanos trouxeram o inhame, a malagueta, o dendê e a maconha. Para a África foram a mandioca, a batata-doce, o caju, o abacaxi.

RH A maconha não é nativa da América?

ACS Não. A maconha vem do Oriente, passa pelo Egito, desce até Angola e vem para o Brasil. Na época colonial era usada para fumar, exatamente como hoje. Em Angola era fumada normalmente. Não sou um expert no assunto, mas o que se sabe é que a maconha veio de Angola para o Brasil, talvez já no século XVI ou XVII. Os escravos a conheciam e a trouxeram como tantas outras coisas.


RH Fale sobre a importância da diplomacia em sua vida.

ACS A diplomacia, se me tirou muito das minhas ambições intelectuais, que retomei praticamente às vésperas de me aposentar, me abriu horizontes que eu não teria conhecido se tivesse ficado permanentemente no Brasil. Servi em Portugal, por duas vezes, na Venezuela, nos Estados Unidos, na Espanha, na Itália, na Nigéria, no Benim, na Colômbia e no Paraguai, viajei por quase todo o continente africano, por boa parte das Américas e pelo Oriente Médio. O ofício de diplomata ampliou a minha visão do mundo e me fez perceber que é impossível entender os países isoladamente. Você não pode escrever História do Brasil sem ter uma perspectiva de fora, uma perspectiva portuguesa, uma perspectiva africana, uma perspectiva espanhola, e italiana, e alemã. A diplomacia me deu essa abertura. Além disso, como diplomata presenciei muitos fatos históricos: no 25 de abril, eu estava em Portugal, saí às ruas às 5h da manhã para ver a Revolução [dos Cravos]. Eu estava em Roma, na Itália, durante o seqüestro de Aldo Moro, estive em Luanda em 1961, início da rebelião, e fui à frente de batalha. Nos Estados Unidos, assisti ao movimento contra a Guerra do Vietnã, e estava em Madri durante a morte de Franco e início da monarquia constitucional. Ser testemunha da História, ver a História com meus próprios olhos, ver a História se produzindo, foi a diplomacia que me permitiu isso.

RH E o papel da memória?

ACS Quando, na mocidade, fazia entrevistas para a revista A Cigarra, não havia gravador. Tinha de prestar atenção e guardar na memória, para depois escrever. Todo mundo tinha que ter memória ou não conseguia fazer entrevista. A memória é muito importante na vida das pessoas, não há aprendizado sem memória. Se não guardar, não adianta entender. Antes, tudo dependia da memória, você tinha que guardar tudo o que via e o que ouvia, e isso era extraordinário nos viajantes dos séculos XVIII e XIX. Lendo os livros deles, você tem a impressão exata de estar vendo o que eles viam. Eles não estavam escrevendo naquele momento. Eles viam, iam para casa e faziam seus diários, seus textos, mas conseguiam guardar na retina, conseguiam guardar o que eles realmente tinham observado com muita precisão, pois não tinham máquinas fotográficas nem gravador. Eram obrigados a observar com acuidade, com cuidado e atenção os pormenores. Os viajantes eram preconceituosos, eram cheios das más noções do seu tempo, mas sabiam ver. Eram fantasiosos, mas a fantasia ajuda. Coleridge fez aquela distinção entre fantasia e imaginação: a fantasia pode ser prejudicial, mas a imaginação é a fantasia organizada.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

sábado, 8 de agosto de 2009

Tim Jackson - Efeito estufa


Efeito estufa: do jeito que está, não dá para ficar
É impossível reduzir as emissões de gases do efeito estufa sem pôr um freio no crescimento da economia, afirma o inglês Tim Jackson
por Estela Silva
A atual crise financeira global vem tirando o sono de muita gente – de trabalhadores angustiados com o fantasma do desemprego a investidores que amargam prejuízos com a quedNegritoa da bolsa de valores, de empresários que estão arrancando os cabelos por causa da diminuição de seus lucros a governantes preocupados com a ameaça da recessão. Esse cenário sombrio, no entanto, é uma excelente oportunidade para as pessoas refletirem sobre as armadilhas do atual modelo econômico, baseado na busca obsessiva do crescimento. É o que diz o matemático e filósofo inglês Tim Jackson, professor de desenvolvimento sustentável da Universidade de Surrey, na região de Londres. Para Jackson – um estudioso das relações entre o estilo de vida e o ambiente –, se a economia mundial continuar a crescer no mesmo ritmo dos últimos anos, será impossível garantir a sustentabilidade das próximas gerações. Segundo ele, a atitude mais sensata que cada um de nós pode adotar para um mundo mais sustentável é comprar menos – já que as medidas adotadas até agora têm sido insuficientes para neutralizar as emissões de gases que causam o efeito estufa. “Acreditar que as emissões vão diminuir enquanto a economia continuar crescendo sem limites é a receita do desastre”, afirma Jackson na entrevista a seguir.

Qual é o papel da economia para a sustentabilidade do mundo?

Em geral, a economia trata do gerenciamento de recursos – humanos, naturais e financeiros. Uma sociedade justa e saudável, que viva dentro de limites ambientais definidos, precisa ter sustentabilidade econômica, na qual se concentram os recursos apropriados para várias gerações. No momento, nossa teoria econômica não funciona bem dessa forma.

Como ela funciona?

A crise financeira é um exemplo e um grande alerta. Ela demonstra que ainda não sabemos como lidar com a economia. A única maneira com que fazemos a economia funcionar é estimular cada vez mais consumidores a gastar com coisas de que eles realmente não precisam, o que compromete os recursos naturais e polui o ambiente. O problema financeiro mundial que veio à tona agora mostra que estamos na armadilha de um modelo econômico falido. E também se trata de um desastre em termos ecológicos. A boa notícia é que temos uma oportunidade única de tirar lições da crise e construir algo melhor.

O capitalismo é negativo para a sustentabilidade?

Sim. Generalizando, a idéia do capitalismo irrestrito é uma das responsáveis por este caos que estamos vivendo. Achar que isso pode ser uma saída é um pensamento extremamente otimista.

Qual é a saída então?

O crescimento é essencial para o desenvolvimento das economias. A idéia de que podemos tirar 2 bilhões de pessoas no planeta da mais absoluta pobreza sem crescimento é claramente problemática. Isso significa que cada país pode continuar crescendo sem limites? Não acredito nisso. No momento, o crescimento é estruturalmente importante. Mas isso acontece porque uma economia em crescimento é estável, enquanto uma economia que pára de crescer corre o risco de entrar em colapso. É realmente importante construir novas macroeconomias, que encontrem uma forma de estabilidade que não esteja baseada no crescimento ilimitado.

Não parece tão simples. Em sua opinião, como deve ser a construção dessas macroeconomias?

Esse é possivelmente o problema mais importante do nosso tempo, mas ainda posso contar nos dedos de uma mão o número de pessoas que estão trabalhando com esse objetivo! A idéia mais aceita é que devemos continuar crescendo, mas isso não faz sentido. A crise financeira nos mostra que nem economicamente faz sentido. Imagine, então, ecologicamente. Para mobilizar uma mudança de fato na economia, o governo tem de liderar a iniciativa de diminuição de consumo e do crescimento. Não faz sentido pensar nisso se não houver uma contribuição das empresas e dos consumidores, pois cada um tem o seu papel. O papel do governo é a responsabilidade pela formulação da macroeconomia. Esta é uma das lições muito claras desta crise: quando as coisas vão mal, o Estado é o agente que está habilitado a resolver.

É possível fazer a economia crescer e, ao mesmo tempo, reduzir as emissões de gases nocivos?

Sim, acredito que seja possível. Em algumas nações desenvolvidas já podemos observar algumas dessas tendências. Globalmente, o melhor que se observa é algo que está ainda em processo, onde as emissões vêm sendo controladas e seu aumento tem sido mais lento do que o ritmo do crescimento econômico. Temos como exemplo alguns dos países signatários do Protocolo de Kyoto, como o Reino Unido, que vem seguindo as regras de diminuição mundial, mas ainda não está atendendo às expectativas internas. Porém, em alguns segmentos produtivos, como nas indústrias de cimento, metais e bauxita, a tendência é pior que essa. Esses crescem acima da taxa de expansão da economia. Estamos indo para a direção errada! Acreditar que as emissões vão diminuir enquanto a economia continua crescendo é a receita do desastre.

Os recursos tecnológicos criados com o objetivo de diminuir a poluição e as emissões estão esgotados? Como eles podem contribuir para melhorar a sustentabilidade dos países?

Os avanços tecnológicos e de produtividade, em particular, são absolutamente vitais. Não podemos pensar em sustentabilidade sem eles. Mas eles são limitados em termos da eficiência que podem atingir. A má notícia é que, apesar dessas melhorias, não estamos diminuindo nossas emissões ou o consumo de recursos que impactam o ambiente. Seria necessário concentrar mais esforços numa política de investimentos para aumentar essa eficiência, a fim de substituir produtos e processos mais poluentes por outros menos poluentes.

Quanto deveria ser o crescimento mundial por ano para um ambiente sustentável?

Muito difícil responder. O crescimento é claramente necessário por várias décadas ainda na maioria dos países em desenvolvimento, mas o ambiente de negócios atual, que acredita que o crescimento econômico deve ser 10 vezes maior até 2100, não tem credibilidade em termos ecológicos. Atualmente, já estamos acima do limite de emissões, já que, de acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), deveríamos reduzir as emissões de carbono em 80% em relação à quantidade do ano de 1990 para prevenirmos a interferência no clima mundial.

Há muitas diferenças entre os países desenvolvidos e os em desenvolvimento?

Sim, as diferenças são enormes. Os países desenvolvidos deveriam assumir a liderança na busca de soluções reais para os problemas de sustentabilidade. Afinal, eles ainda são os maiores consumidores per capita de recursos e em emissões de poluentes. Os países pobres lutam com os poucos recursos que têm para aumentar os padrões básicos de sobrevivência. Os países ricos precisam dar o exemplo de crescimento às nações em desenvolvimento, se quisermos viver num mundo sustentável onde as pessoas possam ter um padrão de vida decente em qualquer lugar do planeta.

Você concorda com a maneira como os políticos vêm lidando com a questão da sustentabilidade?

Não, eles não têm feito o suficiente pela sustentabilidade. Embora as mudanças climáticas, finalmente, estejam recebendo a atenção merecida, ninguém está tratando com seriedade as limitações de recursos, como a biodiversidade, a segurança da água, o uso da terra, a segurança alimentar, o gerenciamento das florestas ou a conservação dos oceanos. E, certamente, estamos longe de dar atenção aos impactos sociais das economias não sustentáveis.

Qual seria sua proposta para promover sustentabilidade e evitar a recessão global?

Ninguém sabe ao certo, mas alguns caminhos ajudariam, como redesenhar toda a economia, principalmente a macro. Não podemos acreditar num sistema de aceleração de consumo com o aumento de dívidas. Poderíamos também buscar mais equilíbrio entre consumo e investimento, mais flexibilidade no mercado de trabalho para facilitar o pleno emprego sem a necessidade de contínuo crescimento. Seria importante também desenvolver instituições internacionais fortes para regular o fluxo econômico e dar amplo apoio às nações em desenvolvimento na transferência de tecnologias que ajudem na diminuição de emissões. Outra sugestão seria ajustar procedimentos contábeis, nacionais e internacionais, para que se tornem adequados e beneficiem tanto as finanças quanto o ambiente, e reestruturar a sociedade para dar suporte aos produtos e serviços importantes para as comunidades, que devem estar capacitadas para prosperar – dentro de limites ecológicos claros. Talvez a recessão não seja o pior que vá acontecer para nós....

O que poderia ser pior que a recessão?

Pergunte à Rússia e à África. Um colapso no sistema social realmente traz perdas para o bem-estar humano, diminuindo a expectativa de vida, aumentando a mortalidade infantil e trazendo perdas para a unidade social, entre outros problemas. A longo prazo, isso é o que teremos de enfrentar se não construirmos um sistema econômico robusto e sustentável em termos ecológicos.

O que as pessoas podem fazer individualmente para que isso não aconteça?

Comprar menos, ser mais eficiente no uso da energia, viajar menos de carro e de avião, economizar, fazer investimentos éticos e protestar!



Faça a sua parte
Como você pode contribuir para um mundo mais sustentável, segundo Tim Jackson
Compre com moderação

Pense duas vezes antes de comprar um produto. Você realmente precisa dele? Consumir menos é a atitude individual mais importante que você pode tomar para diminuir as emissões de gases causadores do efeito estufa.

Dedique-se a ações comunitárias

Não se deixe influenciar pelos anúncios publicitários. Para tirar da cabeça a idéia de fazer compras, você pode, por exemplo, passar mais tempo com a família e dedicar-se a atividades comunitárias.

Escolha bem os produtos

Já que vai comprar, dê preferência a produtos sustentáveis, como os eletrodomésticos que consomem menos energia. Evite o uso de sacolas plásticas e colabore para aumentar a reciclagem de embalagens.

Selecione o fabricante

Consuma produtos éticos, fabricados por empresas reconhecidas por adotar boas práticas no seu relacionamento com os parceiros de negócios, aí incluídos os clientes, os funcionários e os fornecedores.

Use o transporte coletivo e caminhe

Evite o transporte individual e utilize mais o transporte público. Se tiver de usar o carro para locomover-se no dia-a-dia, procure compartilhar a viagem com outras pessoas que fazem o mesmo roteiro. Caminhe mais.


Tim Jackson
• É mestre em filosofia pela Universidade de Western Ontario, no Canadá, e Ph.D em física pela Universidade de St. Andrews, na Escócia.

• Publicou estudos sobre a relação entre consumo, estilo de vida, bem-estar e ambiente.

• Desde 2000 é professor de desenvolvimento sustentável da Universidade de Surrey (a primeira instituição na Grã-Bretanha a criar um departamento voltado para questões de sustentabilidade).

• Paralelamente ao trabalho científico, é um premiado autor de dramas para rádio, as peças radiofônicas. dezembro/2008

Revista Super Interessante

PADDY CLARK HA HA HA" - RODDY DOYLE


Subúrbio de Dublin ganha o mundo
O escritor irlandês Roddy Doyle conquista público e crítica com 'Paddy Clarke Ha Ha Ha', lançado no Brasil
FERNANDA SCALZO
O irlandês Roddy Doyle, 37, é um daqueles casos em que crítica e público se encontram. Em 1993, com "Paddy Clarke Ha Ha Ha", que agora está sendo lançado no Brasil, ele ganhou o mais importante prêmio de literatura da Grã-Bretanha, o Booker Prize.
Mas antes desse reconhecimento da crítica, Doyle já vendia como água sua trilogia da família Rabbite: "The Commitments", "The Snapper" e "The Van", ainda não traduzidos no Brasil.
"The Commitments" virou filme de Alan Parker. "The Snapper", filme de Stephen Frears (aqui chamou "A Grande Família"). "The Van" está sendo filmado por Frears também.
"A primeira resenha de meu primeiro livro, 'The Commitments', dizia que ele teria muito pouco interesse fora de Dublin", disse Doyle, nesta entrevista concedida por fax, de Dublin, à Folha. Os livros de Doyle estão traduzidos em 20 línguas.
Paddy Clarke, protagonista e narrador do livro (leia texto ao lado), é um garoto de dez anos que conta suas aventuras em Barrytown, subúrbio de Dublin.

Folha - Em "Paddy Clarke Ha Ha Ha" parece que as coisas acontecem todas ao mesmo tempo para o menino. Você acha que as crianças percebem o tempo desta maneira?
Roddy Doyle - Não acho que as crianças percebam o tempo da mesma maneira que nós. Nós organizamos o tempo para elas; impomos os horários. Se ficassem por conta própria, iriam dormir quando caíssem, comer quando tivessem fome. Tentei colocar uma estrutura não-cronológica no livro. Ele cobre cerca de um ano, mas não de uma maneira organizada ou adulta. Queria que as coisas parecessem mais caóticas.
Folha - Paddy Clarke vai ficando mais velho e um pouco mais amargo. Você acha que isso faz parte da vida adulta?
Doyle - Não acho que a amargura seja inevitável. Nunca vi a transição da infância para a vida adulta como a perda da inocência ou de outra coisa. Não gostaria de ser criança novamente. Sou um adulto satisfeito _mas gostaria que meu cabelo não caísse tão depressa.
Folha - A tradução de seu livro mantém a fala das crianças, que soa bastante natural e infantil. Você tem filhos? De onde você pega essas falas?
Doyle - Tenho dois filhos, mas um nasceu apenas algumas semanas antes de eu começar a escrever o livro e o outro nasceu depois. Eles não me ajudaram nada! Fui professor durante 14 anos; isso me ajudou. Mas, principalmente, me apoiei na memória. Tentei me lembrar como as crianças falavam quando eu era criança.
Folha - Em sua crueldade e no seu jeito de fazer as pequenas coisas parecerem "incríveis", Paddy parece realmente um menino de dez anos. De onde vem essa sua percepção da infância?
Doyle - Da observação e da memória. Gradualmente, enquanto escrevia, comecei a me lembrar incidentes cruéis e absurdos. Lembrei-me de pequenos acontecimentos que se transformaram em grandes fatos da mitologia da minha família. Tive, sobretudo, uma infância feliz, mas pude me lembrar de momentos de crueldade, incerteza, solidão e medo.
Folha - Quanto Paddy Clarke tem de você mesmo?
Doyle - Obviamente, não poderia ter escrito "Paddy Clarke Ha Ha Ha" se eu não tivesse sido um garoto de 10 anos alguma vez, mas não acho que eu seja Paddy Clarke. Minha mãe também não acha e acredito em sua opinião. A história, Paddy vendo seus pais se separarem, não tem nada a ver com minha vida. Nunca vi meus pais discutindo ou brigando; eles ainda são casados.
Folha - Como escritor irlandês, o que acha de ser comparado a James Joyce pelos críticos?
Doyle - Enquanto escrevo, não penso em mim como um escritor irlandês. Não penso nas consequências ou na importância do que estou fazendo. Simplesmente quero contar bem uma história. Quanto às comparações com James Joyce, nós dois somos irlandeses e míopes _elas acabam aí.
Folha - Você ganhou o Booker Prize. Esperava esse tipo de reconhecimento?
Doyle - Não esperava muita coisa quando comecei a escrever. A popularidade de meus livros, os prêmios, foram uma surpresa muito boa. A primeira resenha de meu primeiro livro, "The Commitments", dizia que ele teria muito pouco interesse fora de Dublin. Nove anos depois, meus livros foram traduzidos em 20 línguas.
Folha - Você escreveu o roteiro de "The Van", que Stephen Frears está filmando agora. Também escreveu os roteiros para "The Commitments" e "The Snapper"? O que um livro perde e o que ganha ao se transformar em filme?
Doyle - Escrevi o roteiro de "Snapper" e co-escrevi o de "The Commitments". A qualidade do filme depende da qualidade das pessoas que o produzem. Eu tive muita sorte. Muito do livro original se perde, mas também muito se ganha _imagens, expressões faciais, expressões visuais etc.
Folha - Você imagina um filme de "Paddy Clarke"?
Doyle - Não posso imaginar um filme de "Paddy Clarke" _ainda. Não quero fazer _ainda. Seria muito, muito difícil.

Folha de São Paulo

ALLEN GINSBERG - ARTE BEAT


Folha - O sr. acha que o cidadão ainda é capaz de influenciar a política?
Ginsberg - Acho que você pode perceber a influência de gente como Burroughs ou Gary Snider ou mesmo Kerouac, talvez minha própria, na penetração do pensamento oriental, o que teve algum importe político _consciência ecológica, crítica da guerra às drogas, fim da censura sobre os livros e, agora, da censura sobre a TV e a mídia eletrônica, que o senador Jesse Helms e a Federal Comunications Comission impuseram. Em última instância, acho que alguns indivíduos ajudaram a pôr fim à Guerra do Vietnã _Abbie Hoffman, David Dellinger, Dorothy Day e outros líderes do movimento antibélico de fato afetaram o resultado final.
Folha - Afetando a consciência do público?
Ginsberg - Bem, Ellsberg disse-me que, quando trabalhava como assistente de Kissinger durante a eleição de 1968, Nixon anunciou um plano secreto para acabar com a guerra. O plano secreto era o de lançar bombas nucleares sobre o Vietnã do Norte. E só o protesto nas ruas, o movimento antibélico, liderado por indivíduos, conseguiu detê-los. Quer dizer, eles tiveram medo de que o país se cindisse se de fato fizessem aquilo.
Folha - O que o sr. acha que de fato aconteceu a Kerouac nos anos 60? Não conseguiu se adaptar ao novo ambiente social?
Ginsberg - Ele estava bebendo, velho. Além disso, jamais teve muita disciplina. Jamais aprendeu a meditar. Jamais teve uma figura de autoridade, um guru hierárquico, com exceção de Burroughs _mas não teve um verdadeiro professor zen. Havia um problema na relação de Kerouac com sua mãe. Os ataques incessantes da mídia e da "intelligentsia...
Folha - Mas o sr. também foi atacado várias vezes e não reagiu como ele.
Ginsberg - Sim, mas eu tinha mais apoio, porque era um bom rapaz judeu. Ninguém me atacava integralmente como faziam com ele. Todos sabiam que eu me havia formado em Columbia. Perceberam que não me podiam tachar de ignorante ou delinquente juvenil. Podiam me atacar por ser inconveniente ou homossexual. Mas Kerouac eles podiam atacar como bárbaro "goyishe", e isso eles não deixaram de fazer. Ademais, ele foi traído por Kenneth Rexroth (poeta e crítico influente em San Francisco), cuja resenha do livro-poema "Mexico City Blues" era realmente maldosa, dizendo que Kerouac não sabia escrever, que ele era um fogo de palha e sua obra um palavrório incoerente.
Folha - O sr. imagina por que tantos ocidentais têm sido atraídos pelo budismo no último quarto de século?
Ginsberg - Porque estão escapando à noção unilateral, irascível e gananciosa de monoteísmo, onde há um só Deus e acabou. Só há uma noção do que seja correto, e tudo o mais é maldito, ou digno de ostracismo, ou ainda "contracultura McGovernick" _conhece a expressão? (de George McGovern, democrata liberal que concorreu com Nixon em 1972).
O deputado Newt Gingrich (líder republicano e presidente da Câmara) declarou guerra contra o que chamou de "contracultura McGovernick". Foi manchete no "The New York Times" _querer fazer do Partido Democrata em bloco um representante da contracultura. E ele disse que "por volta de um terço das pessoas na Casa Branca já usaram drogas". Não que ele próprio não tenha! Gingrich em pessoa disse ter fumado maconha _e tragado. Depois disse: "Grande erro".
Pois bem, aí está essa aposta fundamentalista, monoteísta, numa verdade absoluta, um fascismo ou uma ditadura mental no qual toda autoridade deriva do ponto de referência central. Se é essa a direção que estão tomando, e se as igrejas liberais são demasiado débeis e desinteressantes, então tudo o que os fundamentalistas estão atacando _coisas como o relativismo moral, o relativismo psicológico ou a variabilidade_ torna-se mais atraente, justamente por ser mais próximo da mente, do homem. E toda a minha poesia refere-se aos pensamentos por que passei. Ela não tem que ser tão verdadeira quanto Deus; basta ser verdade que eu pensei aquilo. Não estou certo de que alguém possa querer mais de seus pensamentos. Alguém poderia ter esse pensamento final que representaria a concepção última do universo? A exceção é a idéia de que a mudança é permanente.
Folha - Para onde o sr. acha que a poesia está indo?
Ginsberg - Acho que haverá um grande renascimento da poesia em oposição ao ataque neoconservador à arte, hoje, nos EUA. Os neoconservadores não têm quaisquer artistas, são inanes imaginativamente. Assim, depois que eles abolirem a National Public Radio, a TV educativa e o National Endowment for the Arts, todos sairão como cães raivosos latindo contra o governo.
Folha - O sr. foi influenciado pelas canções políticas que ouvia no círculo de amizades de seus pais? O sr. usou "Soviet Star" em "Kaddish".
Ginsberg - Eu conhecia Josh White e ouvia as "Dustbowl Ballads". Ouvia Burle Ives nos tempos de escola, quando ele era um jovem cantor, e também Leadbelly _"Bourgeois Blues" e "Jim Crow Blues"_ que são ambos abertamente políticos ao mesmo tempo que fazem blues. Dylan tem uma faceta apocalíptica, agora como antes _de "You Gotta Serve Somebody" até "Hard Rain".
Folha - E The Clash?
Ginsberg - O Clash é político, mas muitos grupos de rock estão envolvidos com algum tipo de questão social, mesmo U2 e Sonic Youth, fazendo o que podem. Os Stones tentaram com "Street Fighting Man". Até os Beatles tentaram. Um caso chocante com os Beatles foi, em certa ocasião, durante a Guerra do Vietnã, quando eles tinham um álbum popular mesmo, cuja capa mostrava um monte de bonecas cobertas de sangue. Livingston, presidente da Capital Records, recusou-se a aceitar a capa. Era um grande sinal social. Em vez de se eximirem, os Beatles fizeram esse gesto social, antibélico. Era uma coisa de fato terrível. Lennon acabou declarando sua independência pouco depois, em 71 ou 72. Fala-se muito que o rock foi cooptado nos anos 70, tornou-se baboseira, comércio e mercadoria. Não deixa de ser verdade, mas havia também a subversão do "glitter rock" e...
Folha - O punk.
Ginsberg - O punk, mas também rock n'roll de qualidade, a tendência satânica.
Folha - E Frank Zappa.
Ginsberg - Ou os travestis.
Folha - Isso, David Bowie estava em alta.
Ginsberg - "Diamond Dogs".
Folha - O que acha das letras dos Beatles?
Ginsberg - Eu gosto delas, acho-as ótimas. Especialmente "A Day In The Life" _é um grande poema: "Now we know how many holes it takes to fill the Albert Hall" (Agora sabemos com quantos buracos se enche o Albert Hall). É um poema moderno muito bom, que, pela construção, pelos cortes abruptos e pela modernidade, me faz pensar em "Zone" de Apollinaire, mas muito comprimido. Muitas das letras são muito engenhosas e modernas, como "Lovely Rita, Meter Maid". "She's Leaving Home" é surpreendente, também musicalmente, e a letra é muito simpática.
Estive em Londres no ano passado e fui visitar Paul McCartney. Ele trouxe uma resma de poemas. Queria que eu os examinasse e criticasse. A maior parte me pareceu vaga e algo sentimental, com alguns instantes em que se percebiam a alegria e o brilho dos Beatles, mas o ponto central da conversa foi: por que os poemas eram tão abstratos e nebulosos, quando as letras dos Beatles são por vezes tão precisas. E ele disse: "Bem, eu e John sabíamos disso. Em música, você tem mesmo que ter seus Strawberry Fields _lugares precisos, fatos reais_ mas eu achava que com poesia seria diferente". E eu disse: "Vocês estavam no caminho certo!". Você sabe quem não é nada mau como poeta? Jimmy Carter. Li uma resenha maldosa no "The New York Times" que o depreciava, mas abri o livro em algum shopping e fiquei impressionado _era concreto, detalhista, perspicaz. Não era algo de poeticamente dopado. Era uma poesia judiciosa, levemente realista, cínica, quase à maneira de Thomas Hardy.
Folha - Queria lhe perguntar sobre algo que encontrei diversas vezes em sua poesia _a combinação e a diferença entre desejo e amor. O sr. vê as duas coisas como idênticas ou cada qual ocupa uma esfera diferente em sua poesia?
Ginsberg - Sorte de quem conseguir combiná-las. Se o seu coração bate mais forte por alguém e se além disso há desejo, rapaz, isso é ótimo _ao menos se você conseguir satisfazê-lo. Tenho vários relacionamentos que não envolvem desejo genital ou qualquer coisa do gênero. E são todos satisfatórios _com mulheres e com homens. Quero dizer que há homens pelos quais sinto afeição despida de desejo.
Folha - E Neal Cassady?
Ginsberg - Com Cassady é diferente. Havia amor, mas desejo também. Gostava dele das duas maneiras. Peter Orlovsky, desejo total, mas ao mesmo tempo um amor muito forte e, agora que nenhum de nós está em forma para o sexo _já que mudamos fisicamente_, ainda ouço Peter em meu coração, sem nenhum anseio sexual, mas com certeza ainda o ouço em meu coração.
Folha - Pode-se dizer que toda a sua obra lidou com o aspecto pessoal. O manifesto de Frank O'Hara sobre o "Personism" dizia: "Percebi que usar o telefone era tão fácil quanto escrever um poema" _mas é claro que ele continuou a escrever poemas. No poema "Now and Forever", o sr. diz querer ser lembrado por sua poesia. O que é mais importante para o sr., o modo de levar a vida ou a arte que o sr. cria?
Ginsberg - As duas são uma mesma coisa. A poesia e a vida são por assim dizer idênticas. A poesia vem das coisas que penso na vida real ou das atitudes que tomo. Tal como na expressão de Whitman _"quem toca isto, toca o homem"_, gostaria que a poesia refletisse uma pessoa real, na linha do candor whitmaniano. Se você quer ser cândido em sua escrita, você tem que não se envergonhar do que faz na vida. Ou pelo menos não ser tão envergonhado a ponto de não poder escrever! Mas o veículo das palavras é a respiração, e elas são reprodutíveis pela respiração de qualquer um. As palavras e a respiração podem ser idênticas ou intercambiáveis.
Folha - O sr. se impõe tarefas em poesia? Quero dizer, o sr. alguma vez diz: "Por Deus, eu gostaria de escrever um poema sobre isto ou aquilo"?
Ginsberg - Ah, sim _noite passada estava lendo um panfleto de Todd Colby, da banda de rock Drunken Boat. Era engraçado, e quando acabei de ler aquela coisa agressiva, pensei: "Bem, eu também vou escrever um poema agressivo". Pus-me então a imitar Todd Colby. Fiquei acordado até as três da manhã e escrevi uma coisa que batizei de "It's Time I Got Mad". Aí está um conceito _ficar louco.
Folha - Isso me faz lembrar seu poema sobre Pessoa, "Salutations to Fernando Pessoa", que me interessou porque eu o li de duas maneiras diferentes. Numa das leituras, o sr. está de fato louco, com ciúmes de Pessoa; mas na outra, o sr. ama Pessoa e a raiva" é uma espécie de encenação. Lembro que o sr. disse certa vez que, se nascesse de novo, gostaria de ser Pessoa. Fui reler o poema de Pessoa, "Saudação a Walt Whitman", do heterônimo Álvaro de Campos.
Ginsberg - É um poema colossal, mas ele "hiper-whitmaniza" Whitman. Quero dizer que ele incorpora o entusiasmo de Whitman ao mesmo tempo em que o parodia; ele simultaneamente homenageia e acaba com Whitman. Você sabe: coisas como "o grande masturbador" ou "o bastardo do universal" _mas o que eu de fato gostei foi que, em vez de desatarraxar a porta, ele a derruba. E eu o estava imitando, mas outra vez indo um pouco além, como ele fizera com Whitman. É uma imitação de "Saudação a Whitman", porque eu "curto" muito Pessoa. Eu gosto muito de sua extravagância e de seu candor _seu egocentrismo impressionante, bem-humorado, expansivo e auto-consciente, que se torna quase sublime. Isso é personalidade.

VINCENT KATZ é poeta e tradutor; seu livro mais recente é "Charm", com traduções do poeta latino Sextus Propertius

Tradução de SAMUEL TITAN JR.

Folha de São Paulo

sábado, 25 de julho de 2009

O São Francisco, a razão e a loucura - Dom Luiz Flávio Cappio

NÃO ACEITANDO ser comparado com figuras históricas dos sertões brasileiros ou com o Mahatma Gandhi, Dom Luiz Flávio Cappio, bispo da diocese de Barra, revela a tranqüilidade e a firmeza com que realizou a greve de fome que paralisou a execução do projeto de transposição de águas do Rio São Francisco, porque comoveu a opinião pública do país ante a possibilidade de aquele protesto causar a morte de um prelado dedicado à população que vive nas margens do grande rio. Informando que sua decisão não foi aprovada pela hierarquia da Igreja, Dom Cappio lançou uma frase que ficou famosa: "Quando a razão se extingue, a loucura é o caminho".

No dia 15 de janeiro de 2006, quando veio a São Paulo a fim de anualmente reencontrar aqueles que se transferiram da região do São Francisco para nossa metrópole, Dom Luiz Flávio Cappio concedeu uma entrevista à ESTUDOS AVANÇADOS. Realizada numa das salas da imponente Igreja de São Judas Tadeu, no bairro do Jabaquara, dela participaram o jornalista Marco Antônio Coelho, editor executivo da revista, e o economista Paulo Batista Nogueira Júnior.

A seguir, um resumo dessa entrevista, cujos pontos principais já foram veiculados pela internet – nos sites do Instituto de Estudos Avançados da USP e de Dom Luiz F. Cappio (www.umavidapelavida.com).

Paulo Nogueira Batista Júnior – Gostaria de começar perguntando sobre sua formação intelectual e religiosa. Quais foram suas principais influências?

Dom Cappio – Sou filho de Guaratinguetá, SP, no Vale do Paraíba. Nasci num lar bastante religioso, em que a presença de minha mãe determinou o encaminhamento de minha formação humana e, principalmente, religiosa. Meu pai trabalhava numa fábrica de tecidos. Os dois são italianos de nascimento. Estudei em Guaratinguetá, e ao término da escola secundária fiz a opção pela vida religiosa. Ingressei no noviciado franciscano em Rodeio, SC. Fiz o curso de Filosofia e Teologia em Petrópolis e Curitiba, e simultaneamente graduei-me em Ciências Econômicas, Contábeis e Administrativas na Universidade Católica de Petrópolis. Vim para São Paulo em 1973 e, durante esse ano, engajei-me na Pastoral do Mundo do Trabalho, quando Dom Paulo Evaristo [Arns] assumiu a Arquidiocese de São Paulo. Foi uma época muito difícil em virtude da repressão política. Trabalhando com o operariado na periferia paulistana, constatei que uma boa parte daquele povo provinha do Nordeste e vivia numa situação de penúria, de grande sofrimento e marginalização. Esses nordestinos me diziam que haviam se transferido para São Paulo a fim de melhorar de vida. Pensei, então: como não deveria ser terrível a situação no semi-árido? Isso fez com que me sentisse atraído pelo Nordeste e o que me levou para lá no início de 1974. Desde aquele tempo passei a atuar como missionário franciscano e, ultimamente, como bispo na diocese de Barra.

Paulo Nogueira Batista Júnior – O sr. foi aluno de Leonardo Boff, não?

Dom Cappio – Sim, ele é meu querido mestre e amigo. Tenho por ele um profundo respeito, admiração e bem-querer. Devo muito a ele, a partir de suas convicções, de seu testemunho de vida e de sua coerência intelectual e vivencial. Para um jovem exigente (que sempre fui em meu tempo dos anos rebeldes, nos anos de 1960), a presença de Leonardo Boff me indicou um norte – identifico-me como seu eterno discípulo.

Paulo Nogueira Batista Júnior – Como o sr. vê a Teologia da Libertação e o papel que ela teve?

Dom Cappio – Não diria o papel que ela teve, mas sim o papel que ainda tem. A Teologia da Libertação, como outras teologias, são avanços que a ciência teológica produz ao longo dos tempos. Uma teologia para se firmar e ter raízes profundas no pensar eclesiástico precisa de décadas e às vezes até de séculos. Mas à Teologia da Libertação não foi dado o tempo necessário para que realmente se fortalecesse como teologia. Ela foi incipientemente podada, mas seus efeitos continuam sendo ainda muito vivos. Quem sabe não com a exuberância que deveria ter hoje, mas seus efeitos continuam e estarão perenemente presentes no contexto teológico da Igreja Católica. Todavia, hoje pode não ter a exuberância que teve num momento histórico da Igreja.



A transferência para o vale do São Francisco

Marco Antônio Coelho – Que razões o levaram a se interessar e a se transferir para o vale do São Francisco? Por que se dedicou ao estudo dos problemas do Velho Chico?

Dom Cappio – Fui buscar as origens daquele povo que vivia em São Paulo e que havia chegado do Nordeste, porque neste está o ninho da miséria brasileira. Como franciscano, me sentia atraído em estar no meio daquele povo e entregar minha vida a seu serviço. Achava-me e ainda me acho muito identificado com essa realidade dura, cruel, do povo brasileiro, e me senti no dever – como cidadão e como franciscano – de somar a minha vida à vida daquele povo. Lá chegando, percebi que, embora as condições sociais e econômicas são precárias, ali está um povo de profunda riqueza humana, que cultiva suas tradições e leva a sério suas memórias, sendo também um povo de esperança e lutador. São sofridos, mas não deixam morrer no coração a esperança e os grandes ideais da vida. Isso faz com que a gente se apaixone por aquele povo e aquela região. Já dizia um antropólogo que, quando as realidades vivenciais são muito exigentes e cruéis, isso faz com que seja criado na gente um profundo amor. As carências do povo do Nordeste e sua grandeza humana me cativaram. Além disso, fiz desse povo o meu povo, efetuando uma comunhão, um profundo casamento de 32 anos. E, se depender de mim, morrerei por lá. Em relação ao Rio São Francisco, ele foi uma descoberta que aconteceu ao longo de minha vida, porque até então ele, para mim, era apenas um acidente geográfico – como o Tietê, ou o Paraíba do Sul, onde aprendi a nadar. Fui entendendo que era mais do que isso – é a condição de vida de toda uma população. Um rio que nasce no sudoeste de Minas Gerais, muito perto do Rio Grande (afluente do Paraná), mas, que, ao contrário de seus semelhantes, ao invés de seguir para o Centro-Sul, faz uma curva e se encaminha para o Nordeste. Sempre digo que ele imita o santo de seu nome – nasce rico e entrega toda sua riqueza aos pobres. No Nordeste é a mãe e o pai de todo o povo, de onde tiram o peixe para comer, a água para beber e molhar suas plantações – principalmente em suas ilhas e áreas de vazantes. Mesmo não sendo o maior rio brasileiro em volume d'água, talvez seja o mais importante do país, porque é a condição de vida da população. Sempre dizemos: "Rio São Francisco vivo, povo vivo; Rio São Francisco doente e morto, população doente e morta". Aí entra um dado ecológico que é refletido numa intenção social e antropológica: um rio com toda sua riqueza passa a ser importante na vida de um povo e na sua maneira de se organizar. Alguém me perguntou: "Você é um ecologista?". Respondi: "Não, sou um pastor de gente, alguém que tem amor ao povo daquela região". No entanto, descobri que esse amor passa pela preocupação de que eles tenham uma vida digna, cidadã, em plenitude. E isso passa pelo Rio São Francisco.

Marco Antônio Coelho – Como o sr. aceitou ser bispo de Barra?

Dom Cappio – Foi minha vocação franciscana. Depois de 23 anos que lá estava, em 1997, fui ordenado bispo. Durante esses anos eu trabalhava nas comunidades, caminhando e missionando entre os mais carentes. O episcopado é a Igreja quem nos confere, através do papa. Acredito que ele tenha visto em mim um trabalhador profícuo. Para minha surpresa como simples franciscano, recebi uma carta do santo padre me convidando para ser bispo de minha diocese. Ela compreende onze municípios: são 43 mil quilômetros quadrados, área maior do que a do Estado do Rio de Janeiro, mas com uma população tão-só de 250 mil habitantes. Recebi de bom-grado esse convite porque era a oportunidade de prestar um serviço em âmbito maior.

A caminhada que durou um ano

Marco Antônio Coelho – Um fato pouco divulgado de sua vida de pastor é a caminhada que realizou durante um ano ao longo do Rio São Francisco. Como o sr. foi recebido pela comunidade ribeirinha e pelos párocos da região?

Dom Cappio – Quando percebemos o valor do rio e como seu povo é o primeiro a cuidar dele – quase como guardiães –, identifiquei a necessidade de estabelecer um diálogo com a comunidade ribeirinha, justamente com o objetivo de mostrar que aquele rio é muito importante. Usando não a linguagem técnica do ecologista e do geógrafo, mas uma linguagem religiosa, que é a do povo simples do sertão. Falamos a eles que o rio é um presente de Deus para vida de todos. E que, antes de colocar o povo nessa região, Deus colocou o rio. Essa linguagem mística o povo entende. Outro objetivo da caminhada era fazer um grande diagnóstico, era identificar as grandes causas da morte do rio, porque observamos como o rio está morrendo. Nosso objetivo último era dizermos para os ribeirinhos que eles são os zeladores do rio e que tinham de assumir essa missão, já que nenhum estranho cuidaria disso. Dávamos exemplos concretos e simples de cuidados com as árvores – plantamos mais de um milhão de mudas – e de como não poluir o rio. Essa viagem virou uma página na história do rio e de seu povo. Porque, a partir de então, constatamos as inúmeras iniciativas que o povo começou a ter em relação a seu rio. Hoje podemos observar, da nascente à foz, um povo sensibilizado pela vida do rio – adultos, adolescentes, crianças, prefeituras, escolas, zona rural, meios de comunicação etc. Percorremos todas as comunidades ribeirinhas, pois, se na viagem gastamos um ano, a preparamos durante dois anos. Antes de começar a peregrinação estivemos em todas as dioceses à beira do rio (são dezesseis); conversamos com o bispo de cada uma e pedimos seu apoio; através deles contatamos todas as paróquias na beira do rio (quase 100). Começamos no dia 4 de outubro de 1992 e, pontualmente, celebramos o encerramento na foz em 4 de outubro de 1993. O cronograma foi disciplinadamente observado, embora, como possam imaginar, foi difícil percorrer em um ano uma diversidade incrível de realidades. Visitamos todas as comunidades, realizamos palestras nas escolas – desde o pré-primário até as universidades. Debatemos os objetivos da caminhada com os meios de comunicação, com os grupos organizados e associações de bairro; o mesmo sucedeu com as entidades, câmaras de vereadores e prefeituras etc.





Gandhi e as grandes figuras do sertão

Paulo Nogueira Batista Júnior – Depois da greve de fome, o sr. tem sido comparado a algumas figuras importantes no Nordeste; por exemplo, o padre Cícero e Antônio Conselheiro. Como o sr. vê essas comparações e qual sua avaliação sobre essas figuras históricas?

Dom Cappio – Tenho uma profunda veneração por essas figuras, como o padre Ibiapina, que foi um grande educador do sertão, pois aplicou uma pedagogia incrivelmente avançada para o seu tempo. O mesmo posso dizer do padre Cícero Romão Batista, de Juazeiro, que foi um homem profundamente comprometido com o seu povo, mas muito mal compreendido pela própria Igreja, embora hoje reabilitado. Antônio Conselheiro também é uma pessoa a ser mais bem estudada, porque possuía um carisma incrível, um poder de arrebanhar o povo e de mostrar um norte. Enfim, são personalidades a quem respeito. Quando me comparam a essas figuras – digo com toda sinceridade –, sinto-me muito aquém. Quem sou eu, meu Deus, para ser comparado ao padre Ibiapina ou ao padre Cícero? Quem sou eu para ser comparado a Antônio Conselheiro? Não sou ninguém. Sou um simples e pequeno franciscano que procura levar a sério e coerentemente sua vocação. Estou muito longe de ser até a sombra dessas figuras históricas. O povo na sua generosidade e na sua grandeza de alma tem uma sede, uma fome de atualizar seus grandes heróis. É um processo de substituição, um desejo muito grande. Se fizermos uma análise mais aprofundada desse fenômeno de psicologia social, concluiremos que estamos vivendo uma época de carência de líderes populares. Então, o povo almeja, sonha, em vislumbrar no mundo de hoje alguém que tenha a grandeza de um Ibiapina, a liderança de um Conselheiro, o comprometimento de um padre Cícero.


Paulo Nogueira Batista Júnior – Também no exterior sua luta teve enorme repercussão. Por exemplo, The Economist chegou a dizer, em relação à sua greve de fome, que o Rio São Francisco havia encontrado o seu Gandhi. Então, queria lhe perguntar: o sr. estudou a experiência de Gandhi, da resistência não-violenta? E a experiência dele com greve de fome teve alguma influência em seu gesto?

Dom Cappio – Gandhi me fascinou notadamente no meu tempo de militância como estudante, e em alguns dos meus primeiros anos em São Paulo, na Pastoral do mundo do trabalho, quando estávamos no auge da repressão política brasileira. Se alguém desejar ser fiel ao Evangelho e fiel ao carisma de São Francisco de Assis tem de se exercitar numa postura não-violenta, de tolerância. Exercitar sua fé no amor, acreditar na possibilidade de um mundo melhor, sem o uso da violência. Porque a violência atrai a violência e o amor gera o amor. Uma figura muito atualizada nesses valores foi Gandhi. A ideologia da não-violência dele era profundamente iluminadora e isso nos ajudou muito, pois ele sempre indicava um caminho. Embora eu não tenha me aprofundado no estudo da vida de Gandhi, ele foi uma personagem histórica que marcou a sua época e sua luta tinha um conteúdo que nos ajudou numa fase muito difícil como aquela que vivemos no Brasil durante tantos anos.



A razão e a loucura

Paulo Nogueira Batista Júnior – Quando o sr. iniciou a greve de fome, disse aquela frase que foi muito citada: "Quando a razão se extingue, a loucura é caminho". Qual é o papel que o sr. vê para a razão e a loucura nos assuntos humanos e nas questões sociais?

Dom Cappio – Aquela frase ficou um tanto ambígua. Mas quem penetra nas entrelinhas do significado dos termos entende as razões profundas daquela frase. Eu diria o seguinte: minha vida é alimentada pela fé. O que me norteia é minha fé incondicional. A presença de Deus na minha vida, a sinceridade com que procuro trazer para ela essa presença do Deus vivo e do desejo de estar no meio do seu povo, segue aquela lição de São Paulo – "a de que para o mundo a fé é uma loucura". O que o mundo não entende só pode ser explicado pelo lado da fé. Então, um gesto como esse para o mundo é uma loucura. Como é que alguém que tem tudo para ter uma vida razoavelmente tranqüila faz a opção de morrer por uma causa do seu semelhante? Isso é loucura... Eu diria – é até uma insanidade. Quem olha para o significado dos termos formais pode até pensar que aquela pessoa está louca, e deve ser levada para um tratamento psiquiátrico. Entretanto, quem lê as entrelinhas e conhece um pouquinho do coração da gente sabe que os motivos são bem outros. Quando eu dizia loucura, me referia à loucura da fé, de alguém que faz uma opção de vida que está na contramão do pensamento das pessoas normais. Desde meus primórdios, pois venho de uma família abastada, fiz um voto de pobreza, entrei numa ordem religiosa, vou para o sertão e, de repente, opto por morrer. Então, para alguém que não traz em seus parâmetros a fé, tudo é uma loucura, uma insanidade. Nesse sentido, Jesus e São Francisco de Assis foram loucos. Uma loucura que não é a insanidade da razão, mas a saúde espiritual do coração.

Paulo Nogueira Batista Júnior – Essa decisão de realizar a greve de fome foi tomada solitariamente, ou antes o sr. consultou amigos, correligionários, parentes e pessoas da Igreja?

Dom Cappio – Essas decisões não podem ser tomadas em mutirão, pois dizem respeito só a você mesmo. É algo que pertence ao fórum íntimo que alguém toma diante de Deus e diante dele mesmo. Esse ano de 2005 foi o mais difícil da minha vida, já que convivi com a morte 24 horas por dia. Meu documento anunciando a greve de fome foi assinado no domingo de Páscoa, no final de março. Isso porque o início das obras da transposição estava previsto para abril. Porém, aconteceu que, justamente naqueles dias, estourou a denúncia da corrupção em Brasília. Então, todos se voltaram durante meses para esse problema. Em fins de setembro as questões em Brasília se amenizaram e, quando ocorreu o plebiscito em torno da venda de armas, percebi que era o momento de realizar o gesto contra a transposição do São Francisco. Assim, desde o início do ano até o final de setembro convivi com o espectro da morte ao meu lado, e isso é doloroso e cruel. Foi uma experiência dura e exigente. Por outro lado, foi rica, pois foi vivida dentro de um espírito de muita fé. Acredito que, se não fosse a fé que me alimenta, eu não teria suportado. No dia seguinte, quando tomou conhecimento da minha luta, sem pensar muito, o presidente Lula comentou: "Ah, e se agora pegar moda de todo mundo fazer greve de fome diante de um problema qualquer...". Em nossa conversa, no Palácio do Planalto, comentei com ele: "Olha, presidente, essa moda não pega. É cruel e desumana".

Paulo Nogueira Batista Júnior – Um aspecto interessante é a reação da Igreja diante da sua iniciativa. Antes de iniciar a greve de fome o sr. conversou com seus superiores hierárquicos?

Dom Cappio – Logo depois que tomei a decisão de promover a greve de fome, conversei com Adriano Martins, sociólogo ambientalista, uma pessoa pela qual nutro grande respeito, quer pela sua capacidade intelectual quer pela sua amizade. Fiz dele um grande interlocutor. Ele, também por amor à causa, com muita dor no coração, pois me estima muito, aceitou esse desafio que foi tão pesado para ele. Também comuniquei a meus familiares a decisão que havia tomado. Porém, não pedi sugestões e conselhos. Os senhores podem imaginar o quanto isso foi doloroso para eles que sempre caminharam ao meu lado. Igualmente, conversei com alguns colegas. Meu gesto não foi aprovado por ninguém, mas foi aceito. Com a CNBB houve a mesma coisa, pois ela nunca concordou com a minha decisão, mas sempre a respeitou. Não gosto dessa expressão "greve de fome". No entanto, é uma questão de palavra. Se eu dissesse: "Vou para Cabrobó fazer um jejum de oração", não criaria impacto. O importante é entendermos os fatos. Embora estivesse pronto para morrer, tinha certeza que se iria encontrar uma solução. Isso porque vivemos no contexto de uma nação onde se pode discutir em torno de uma mesa para se chegar a um consenso, sem a necessidade de haver um cadáver no meio da discussão. Todavia, um jornalista da BBC, de Londres, disse a meus familiares (como fiquei sabendo depois) que eles deveriam se preparar porque eu iria morrer, pois o governo não cederia.

Paulo Nogueira Batista Júnior – Ninguém tentou impedi-lo de realizar a greve de fome?

Dom Cappio – Recebi uma carta do Vaticano, através da Secretaria para os Bispos, pedindo insistentemente que voltasse a me alimentar, pois a minha atitude estava causando um grande problema de ordem moral – a questão da opção pela vida, ou pela morte –, sendo um fato sem antecedentes. O Vaticano, então, pediu que eu me mantivesse aberto a todas as possibilidades de uma solução. Foi o que fiz. Quando o Jacques Wagner chegou a Cabrobó levando uma segunda carta do presidente Lula, disse a ele: "Ministro, não estou satisfeito com o teor dessa carta, por isso permaneço sem me alimentar". Foram cinco horas e meia de discussão. Ele com todas as suas energias renovadas e eu com onze dias de jejum. No entanto, era ainda capaz de discernir o que era melhor ou não. Enfim, cheguei a um acordo, sendo fiel ao que me foi pedido, ou seja, que me mantivesse aberto a todas as possibilidades para que minha vida não fosse tolhida. Fiquei satisfeito quando o ministro Wagner disse que não se falaria mais em transposição a fim de abrirmos um grande diálogo. O resultado transcendeu as minhas expectativas, porque no início também eu estava sendo autoritário. Contudo, tive a capacidade de me abrir para o diálogo. Tanto é que isso me levou a interromper o jejum, abrindo esse diálogo em que participaria a nação brasileira, deixando de ser apenas um problema meu, para se tornar um problema nacional. Havia grande preocupação com a minha vida e um bem-querer muito grande por parte da Igreja. A CNBB – na figura de Dom Geraldo Majella – foi um pai, um irmão, um amigo que me ligava todos os dias para saber como eu estava. Meu queridíssimo Dom Luciano de Almeida estava preocupado e, encontrando-se em Roma naqueles dias, também fez jejum em solidariedade a mim. O mesmo sucedeu com tantos outros, alguns que não concordavam comigo, mas que também são meus irmãos. Era tanta gente comigo que me sentia confortado.



O transcorrer da greve de fome

Paulo Nogueira Batista Júnior – O sr. entrou em greve abruptamente, ou foi diminuindo a alimentação aos poucos?

Dom Cappio – Abruptamente. Sempre fui muito comedido no comer e no beber, além de haver sempre gozado de boa saúde. Só bebia água do São Francisco. No dia 26 de setembro tomei, como última alimentação, um suco de maracujá, mais ou menos às dez horas da manhã. Depois de doze dias recebi soro no hospital. Minha primeira ingestão foi de água de coco.

Paulo Nogueira Batista Júnior – E o sr. teve acompanhamento médico?

Dom Cappio – Lá estiveram o juiz de Direito de Cabrobó e o promotor de Justiça pedindo cordialmente que eu aceitasse o acompanhamento médico. Concordei, mas como a cidade tem apenas um médico, disse que gostaria que ele não ficasse à minha disposição, quando tanta gente carente necessita dele. Ele poderia vir apenas de vez em quando, medir a pressão etc. E assim foi. A partir do oitavo dia ele passou a me visitar duas vezes ao dia para fazer um pequeno check-up. Havia também uma ambulância à disposição. Houve esse acompanhamento, e foi muito carinhoso. A secretária de Saúde do Estado de Pernambuco foi me visitar para saber como eu estava sendo tratado. Não posso reclamar porque fui bem acompanhado, sendo alvo de muito carinho e cuidado.


Paulo Nogueira Batista Júnior – E como é suportar uma greve de fome?

Dom Cappio – É uma loucura. Se a gente não tiver um suporte espiritual, uma experiência muito profunda de Deus na sua vida, de uma fé de que a morte não é o fim, é passagem. Como diz São Francisco, é morrendo que se nasce. Se não tivermos uma profunda convicção da eternidade presente no tempo, não fazemos nada. Uma greve de fome é uma agressão tremenda, já que faz parte do instinto humano a preservação da vida. Só tendo uma convicção espiritual muito forte podemos vencer o instinto. Os quatro primeiros dias são insuportáveis e muito dolorosos porque se tem a expectativa do organismo pelo alimento que deve receber, que vem de fora. Depois disso o organismo está psicologicamente preparado, pois sabe que não vai receber nada e passa a se autoconsumir. Você não sente tanto a necessidade do alimento, mas o enfraquecimento é visível e cada vez mais você percebe a debilidade em seu corpo. Começa a faltar a memória e aparecem as dificuldades de se locomover. Depois fiquei sabendo que, pelas previsões médicas, eu agüentaria apenas mais dez dias.



O diálogo com Lula e o governo

Marco Antônio Coelho – Como foi a negociação no Palácio do Planalto?

Dom Cappio – Na conversa com o presidente da República, exatamente há um mês, o senhor Luiz Inácio Lula da Silva me questionou: "Dom Luiz, por que o senhor antes não veio conversar comigo e apresentar suas razões a respeito da transposição do São Francisco?". Respondi: "Presidente, vim sim, e não apenas uma vez, mas diversas vezes. Participei de todos os debates e seminários em defesa do rio, do povo, e do semi-árido. O senhor pode ver que em todos os documentos enviados encontra-se a minha assinatura. Porém, infelizmente, esses documentos nunca foram examinados. O governo sempre colocou de lado a contribuição que veio da sociedade brasileira. Os senhores decidiram realizar esse projeto na contramão do desejo do cidadão brasileiro. Assim, dentro de nosso discernimento, somente um gesto desesperado poderia sensibilizar o governo. Por isso é que assumi esse grito, sem prever suas conseqüências e resultados. Ou seja, a CNBB me apoiar e, a partir dessa postura, obter a cobertura da mídia nacional, tornando o Brasil e o mundo sensíveis à causa do São Francisco. Porém, o resultado poderia ser outro. Todos poderiam ignorar meu comportamento e hoje eu poderia estar descansando num campo santo. As conseqüências desse gesto eram imprevisíveis, portanto. A vida é sempre um risco e em decisões você corta alguma coisa. Num gesto desesperado, cortei até a possibilidade de viver. Foi uma decisão, na tentativa de meu protesto ser ouvido. Isso porque a minha fala civilizada foi inútil, sendo necessário um gesto louco para minha opinião ser levada em conta".

Marco Antônio Coelho – O governo está firme na disposição de levar adiante o projeto da transposição. Diante disso, embora seja uma especulação, qual será sua posição face ao desatino do governo?

Dom Cappio – Quando fomos ao Palácio do Planalto, para o governo, o encontro conosco seria o término do diálogo acertado em Cabrobó. Todavia, tive o cuidado de dizer ao presidente Lula que naquele encontro simplesmente iniciaríamos o processo de discussão. Portanto, alterei o sentido daquela reunião em Brasília. Para o presidente e seus assessores, principalmente o ministro Ciro Gomes, tudo se resumiria no seguinte: "Pronto, recebemos o bispo, ouvimos suas reclamações e encerramos os compromissos assumidos em Cabrobó". Assim, os surpreendemos quando afirmamos que apenas estávamos iniciando um debate. Conversamos duas horas e meia naquela reunião no dia 15 de dezembro. Ao final, o presidente disse: "A minha posição é de fazer a transposição, pois estou convencido que é importante. É uma meta de meu governo". Então, qual foi a posição do presidente? Destaco três pontos: 1. o propósito dele é realizar o projeto de transposição de águas do rio; 2. ele aceitou nosso pedido de abrir o debate na sociedade brasileira; 3. afirmou que poderá mudar de idéia caso nossos argumentos sejam convincentes. Ouvi esses três pontos. Já que estou disposto a conversar, tenho de confiar no presidente. Se não, nem teria ido lá. Com freqüência estão saindo nos jornais notícias que a transposição será feita. Porém, conhecemos a mídia e o jogo que ela faz. Para nós, vale o que foi firmado. E até agora tem sido respeitado tudo que combinamos. Pode ser que, daqui a três meses, quando for publicada esta entrevista em Estudos Avançados, estaremos diante das seguintes possibilidades: 1. o governo não mais poderá realizar nenhum projeto em razão de exigências legais que impedem o início de obras nos meses que antecedem o pleito eleitoral; 2. no entanto, pode ser que comecem as obras se o governo rapidamente eliminar na Justiça as medidas que paralisaram a execução do projeto da transposição. Então, se isto suceder, veremos o que poderá ser feito.

Paulo Nogueira Batista Júnior – Se o governo não cumprir o acordo, o sr. tem dito que voltará a Cabrobó e não voltará sozinho. Qual sua expectativa em relação a isso?

Dom Cappio – Minha palavra se mantém. Porém, há outras formas de luta. Decisões extremas talvez aconteçam apenas uma vez na vida. Pela mobilização que minha atitude ocasionou, temos outras formas de impedir esse projeto de transposição. O grito foi dado, mas não é gritando continuamente que resolvemos os problemas. Com o trabalho que realizamos em Brasília, com aquelas discussões a respeito de medidas sobre o semi-árido, conseguimos reunir quem estava conosco, pois o governo estava coeso, mas nós ainda não. Agora falamos a mesma linguagem. Todos podemos explicar por que o rio necessita da revitalização e daquilo que propomos como alternativa. Hoje existe um conjunto comum de teses que nos unem. Todavia, ainda há um imenso trabalho a ser feito. No entanto, se isso não for respeitado e se amanhã aparecer nos jornais a notícia de que o "governo iniciou a transposição", vamos decidir o que fazer – e vocês ficarão sabendo.

ANEXOS

Carta ao presidente da República

É IMPORTANTE reconhecer e destacar que esta audiência dá início à participação da sociedade na discussão de um modelo de desenvolvimento baseado na convivência com o semi-árido, que priorize os direitos dos pequenos. Os movimentos sociais e seus coletivos há muito fazem a reflexão das alternativas, origem da pauta inicial para este processo de discussão.

Não mudamos nossa compreensão da transposição de águas do Rio São Francisco, conforme já expressa em Cabrobó. A transposição recebe severas críticas dos movimentos sociais, dos coletivos populares, amparados em estudos de técnicos e especialistas em recursos hídricos.

O Brasil possui uma das mais injustas concentrações no acesso à água. A transposição do Rio São Francisco é um projeto de segurança hídrica dos grandes reservatórios, o que reafirma atual lógica de exclusão no acesso à água. Ele não contempla a democratização ao acesso à água e a ampliação da rede de distribuição. Não é verdade que a transposição levará água a quem tem sede e isto, por si só, já é um impedimento ético mais do que suficiente para justificar a oposição a este projeto.

De qualquer forma, tomamos a iniciativa de trazer um documento que sintetiza os principais argumentos éticos e sociais que amparam a consciente oposição à transposição.

O Rio São Francisco, vítima de décadas de descaso e exploração insustentável, agoniza lentamente. É imperativo um pacto nacional pela recuperação do rio. Os diagnósticos da situação são amplamente conhecidos e os documentos que trouxemos demonstram claramente isto.

Precisamos passar do diagnóstico para o tratamento real e efetivo, acima e além de quaisquer interesses regionais ou institucionais isolados e de curto prazo.

O desenvolvimento do Nordeste brasileiro exige a superação da visão preconceituosa do que seja a vida no semi-árido. Já existe uma proposta básica, um indicativo de caminho, para um projeto de desenvolvimento, baseado na convivência com o semi-árido. Uma proposta viável em termos técnicos e econômicos, além de socialmente justa e inclusiva.

Em primeiro lugar, é de fundamental importância que a democratização do acesso à água seja o tema central do modelo de desenvolvimento a ser discutido. A água é um direito humano fundamental, secularmente negado à população do Nordeste brasileiro, porque as obras hídricas sempre reproduziram o modelo concentrador e excludente.

Para o desenvolvimento de um sistema integrado de gerenciamento dos recursos hídricos existentes no semi-árido brasileiro será essencial que a água democratizada esteja realmente disponível para o atendimento das demandas da população.

Mas a água por si mesma não é suficiente para garantir um desenvolvimento socialmente justo e economicamente inclusivo. É essencial a concepção de uma reforma agrária que seja desenvolvida a partir das reais características do semi-árido.

Existem inúmeras iniciativas da sociedade organizada que demonstram as potencialidades da convivência com o semi-árido. As cisternas de placas para consumo doméstico, as cisternas de produção, as barragens subterrâneas, as microbarragens, dentre outras, precisam do apoio de políticas públicas que integrem e sistematizem as ações atualmente isoladas.

O modelo de desenvolvimento sustentável no semi-árido é um tema complexo, que demandará amplas discussões entre a sociedade, especialmente no semi-árido e o governo.

Mas, quaisquer que sejam as dificuldades operacionais deste debate, é importante reafirmar a necessidade de um modelo nascido de forma democrática e participativa.

Um modelo de desenvolvimento sustentável no semi-árido é um importante componente de um projeto de país, que seja realmente democrático, justo e inclusivo a toda população historicamente marginalizada.

Esperamos que a abertura deste grande processo de discussões receba as bênçãos de Deus e que seja um marco histórico na transformação de nosso país.

Brasília, 15 de dezembro de 2005.

Dom Luiz Flávio Cappio, bispo diocesano de Barra, BA.

Relatos de uma peregrinação

O LIVRO Rio São Francisco – uma caminhada entre vida e morte (Cappio et al., 1995) registra o que sucedeu na caminhada da Serra da Canastra até a foz do São Francisco, realizada durante um ano – de 4 de outubro de 1992 até 4 de outubro de 1993. Nela participaram frei Luiz Flávio Cappio, a irmã Conceição Tanajura Menezes, Orlando Rosa de Araújo e Adriano Martins.

Esses relatos foram escritos por solicitação de entidades atuantes na defesa do rio. Mensal ou bimensalmente, os peregrinos definiam os assuntos mais importantes daquele período e eram redigidos por Adriano Martins em forma de cartas. Transcrevemos, a seguir, uma delas, escrita na cidade de Januária, em 4 de fevereiro de 1993:

"Amigos do São Francisco,

Escrevo tardiamente. Já se passaram dois meses desde nossa última carta. A fadiga das longas caminhadas e travessias do rio, a exigência do trabalho e as condições simples do povo que nos hospeda dificultam as escrituras. A lida com as palavras, sempre árida em relação ao vivido, tenta partilhar um pouco destes últimos dois meses de caminhada.

Desde o início de dezembro estamos percorrendo a área mineira do Polígono das Secas, região onde a chuva se torna escassa e o vínculo de dependência entre a população e o rio passa a ser fundamental. Aqui, o rio do povo e o povo do rio compõem fios de uma única e vital rede de interdependência. É do Rio São Francisco a água que se bebe, é ele que fornece o peixe e é do plantio nas ilhas e vazantes que vem o sustento do povo barranqueiro. O rio gera a base de sobrevivência e as atividades econômicas e fundamentais do seu povo. Ouvimos de Dona Iraci, na Barra do Rio Urucuia: 'Quem na beira do Rio São Francisco morá, de fome não morrrerá'.

Em nossa caminhada vemos, com tristeza, os fios desta rede de interdependência serem rompidos. O povo do rio está sendo cada vez mais afastado de suas beiras, tomadas pelas fazendas de gado. Está sendo afastado também das chapadas, tomadas pelo carvoejamento e pela monocultura do eucalipto. Desde que o rio passou a ser visto como área de interesse para a expansão do capital, o povo do rio se vê ameaçado em sua sobrevivência. Destruir ou alterar as condições naturais do São Francisco e seus ecossistemas significa destruir as condições básicas de sobrevivência dos milhões de seres humanos que formam o povo do Rio.

Concentração das terras – Durante uma celebração na cidade de São Francisco conversávamos sobre a necessidade urgente de recuperar as matas da beira do Rio. Uma senhora, bastante sensibilizada e disposta a agir, perguntou:'Como poderemos replantar a beira do rio se hoje ela está nas mãos dos ricos'?

Assoreamento e diminuição da vazão do Rio – Relato feito em Pirapora, durante uma reunião: 'Tenho 70 anos e já vi o Rio São Francisco, na seca, com mais água do que agora com as chuvas'. Outro relato, feito pelo dirigente da comunidade de Bom Jardim em São Francisco: 'O rio está morrendo e nós aqui já descobrimos. Antes, de barranco a barranco eram mil metros, hoje é cada coroa que em alguns lugares já diminuiu para 500 m'.



A fome – Quando fomos de Barra do Pacuí (município de Ibiaí) para Ponto Chic (município de Ubaí), a uma certa altura a chuva impossibilitou a continuidade da caminhada e nos abrigamos em uma casa próxima ao Riacho da Fama. Eram 15h00 e esta família não tinha nada além de pequi para o almoço (fruto generoso do cerrado). Até a farinha tinha acabado. Em muitas comunidades fomos hospedados por famílias de pescadores que dificilmente comem do peixe que pescam. Normalmente o dono do armazém local é também o 'atravessador' do peixe, e os pescadores, pressionados por dívidas que nunca têm fim, repassam diretamente a este todo o fruto de seu trabalho. Ouvimos em Palmeirinha, município de Pedras de Maria da Cruz, este bendito entoado por um povo familiarizado com a doença, a fome e a violência:

'Viva São Francisco de toda grandeza /Retrato de Cristo, ele é Pai da pobreza /Senhora Santana livrai-nos da peste /Da fome, da guerra e dê chuva na terra'.

Intoxicação nos eucaliptais – Depoimentos de uma senhora que já trabalhou aplicando agrotóxicos em eucaliptais de Buritizerio, sobre o socorro prestado aos colegas que desmaiavam durante a aplicação: 'Quando caía, a gente levava o companheiro para perto da água e lavava com sabão até chegar o carro para levar a pessoa para a cidade. O veneno era o Blenco' (Blenco ou Bromex é um gás de brometo de metila altamente tóxico, de Classe I, proibido em sete países).

As veredas do grande sertão – As veredas (ecossistemas das nascentes nos cerrados brasileiros) eram tão freqüentes no município de Buritizeiro que foi cenário para filmagens da minissérie 'Grande Sertão: Veredas', adaptação do romance de João Guimarães Rosa, produzida e veiculada pela rede Globo de Televisão. Hoje, o município de Buritizeiro já não poderia mais servir de cenário para a saga de Riobaldo Tatarana. A maior parte de suas veredas, ecossistema protegido por lei, foi barbaramente destruída ou danificada pelo carvoejamento.

Segundo informação obtida na câmara de vereadores daquele município, Buritizeiro possui hoje a maior área de monocultura de eucalipto do Brasil. Em 1972, a chegada das carvoeiras no município foi saudada pelas oligarquias locais como sendo 'o dedo de Deus' promovendo o progresso da região. Poucos anos depois, o povo começou a descobrir a farsa: carvoeiras e 'reflorestadoras' – é possível chamar uma monocultura ecologicamente tão danosa como a do eucalipto de floresta? – são, na verdade, o 'diabo verde' a infernizar a vida já sofrida do povo pobre do sertão.


Poluição do ar e das águas promovida com o dinheiro público – A industrialização de áreas-pólo no Nordeste brasileiro, estratégia adotada pela Sudene, consumiu somas fabulosas do erário público com a justificativa de minorar as condições de miséria no sertão. Da forma que foi implantada, via de regra, esta estratégia criou problemas sociais graves, acentuando consideravelmente o êxodo rural (Montes Claros, cidade-pólo do norte de Minas, tem hoje 90 mil favelados). Além dos problemas sociais, agravam-se os problemas ambientais. Em Pirapora empresas que produzem e exportam ferro silício para o Japão lançam no ar resíduos altamente prejudiciais à saúde da população. Empresas têxteis lançam restos de tinta e soda cáustica diretamente nas águas do Velho Chico. A desinformação e o pequeno poder de pressão da população local, herança da cultura de dominação política no nordeste, aliados ao sucateamento e corrupção nos órgãos públicos, responsáveis pela fiscalização ambiental, fazem do Vale do São Francisco uma terra-de-ninguém, onde o lucro irracional de poucos significa a morte para milhares.

Os cerrados – Segundo bioma (conjunto de ecossistemas) em extensão da América Latina, os cerrados brasileiros entram em contato com todos os demais biomas do país: Floresta Amazônica, Mata Atlântica, Pantanal Mato-Grossense, Caatinga, Mata de Araucária e os Pampas. A altitude e a grande capacidade de absorção da água da chuva pelos solos arenosos dos cerrados fazem deste bioma uma verdadeira caixa d'água, alimentando seis das oito maiores bacias hidrográficas do país. Da região dos cerrados parte o Velho Chico e seus mais importantes afluentes, a maioria dos rios da margem direita do Amazonas, todos os rios da bacia Araguaia-Tocantins, grande parte dos rios da bacia do Prata e parte considerável dos rios das bacias do leste e nordeste brasileiros. Não obstante a sua fundamental importância para o equilíbrio dos demais ecossistemas brasileiros, como dispersor de águas, os cerrados têm sido vorazmente destruídos nas últimas décadas. A destruição dos cerrados tem financiamento subsidiado e isenções fiscais do governo brasileiro e envolve interesses de grandes grupos internacionais. Até quando o nosso silêncio condenará os cerrados ao fenecimento? Este alerta do 'Manifesto Grande Sertão Veredas' (Grupo de Estudos e Ações Ambientais, Montes Claros) tem sido refletido amplamente em nossa peregrinação, a partir das experiências concretas da seca de vários riachos e ribeirões em conseqüência do desmatamento do cerrado.

Atividades – Foram grandes as distâncias percorridas a pé durante este período de dois meses entre Pirapora e Januária. Neste tempo de férias escolares os espaços de debate e reflexão foram, além das celebrações, as reuniões com grupos específicos: crianças, jovens, educadores, pescadores, vazanteiros, lavadeiras, sindicatos rurais e urbanos, associações de desenvolvimento comunitário. Nestas reuniões tentamos, além de trocar informações sobre a situação da bacia do São Francisco e dos problemas locais, pensar e realizar ações concretas e possíveis para a preservação do Rio. Têm sido especialmente frutíferas as experiências com o plantio de árvores. Tentamos estimular ações possíveis ao indivíduo, ações possíveis através do trabalho coletivo em grupos e associações e ações possíveis através da pressão sobre órgãos públicos, governantes e empresas. Muitas sementes estão sendo plantadas. Que as águas do São Francisco reguem no coração de todo barranqueiro a responsabilidade e o carinho com o futuro do nosso vale.

Prefeituras e câmaras de vereadores – É muito importante espaço que temos ocupado, pois é fundamental que os municípios tomem posição frente à destruição do rio e o empobrecimento de suas populações. Na cidade de Januária, em resposta a nossa iniciativa, a presidência da câmara instituiu uma comissão composta por cinco vereadores. Esta comissão deverá coletar, junto à população de Januária, sugestões para a preservação do rio e propor a criação de leis e fomentar o desenvolvimento de ações e projetos. Durante nossa estadia no município discutimos e propomos a esta comissão sugestões relativas ao carvoejamento, ao tratamento dado ao esgoto da cidade, ao lixo (doméstico e hospitalar) à arborização da cidade, às áreas de preservação; propomos ainda projetos de desenvolvimento com aproveitamento dos frutos do cerrado, o trabalho de educação ecológica através das escolas e dos meios de comunicação etc..."(p.38-42).



O polígono da maconha

Na carta datada de 4 de setembro de 1993, escrita na cidade de Amparo do São Francisco, pode-se ler o seguinte trecho:

"O 'polígono da maconha' – No dia 24 de julho, atendendo ao convite do bispo Dom Ceslau Stanula, nos afastamos 60 km da beira do rio para um dia de intensas atividades na sede da diocese. Ao chegarmos em Floresta, PE, soubemos que a programação estava suspensa, pois na véspera 'mais um' tinha sido assassinado na guerra que envolve problemas de família e disputas pelo domínio nos negócios de produção e tráfico da maconha. Os moradores, certos e temerosos do revide, mal saíam à porta de suas casas e qualquer movimentação maior seria perigosa. Tivemos assim nosso primeiro dia de 'descanso forçado' na longa jornada pelo São Francisco. Fatos como este são hoje comuns em Floresta, um dos centros do 'polígono da maconha'. Este 'polígono' compreende uma vasta área dos estados da Bahia e de Pernambuco, hoje maior produtora da droga no mundo. Desde Xique-Xique já nos deparávamos com a violência ligada ao narcotráfico, mas neste último trecho a máfia da droga se tornou de tal forma poderosa que o terror e a impunidade compõem o cotidiano das comunidades. Em Belém do São Francisco ouvimos de uma mãe de família: 'Graças a Deus, lá em casa só mataram um'. No interior de Juazeiro foi assassinado um agente de pastoral, o Manequinha, suspeito de ter denunciado uma plantação de maconha. Se forem feitas estatísticas sobre os assassinatos ligados à droga nesta região, ficará evidenciada uma das mais graves situações de violência do país. Por que tamanho silêncio e tão grande impunidade?


Silêncio e impunidade – Os negócios da maconha movimentam a economia regional, envolvendo grandes interesses. Uma região castigada pela pobreza, pelo coronelismo e pelas políticas agrícolas excludentes em relação à pequena produção, foi um terreno fértil para a máfia da droga. A atuação da polícia se mostra ineficiente e também perversa, quando evita a punição dos grandes responsáveis por esta situação (donos das plantações, grandes traficantes, lideranças políticas envolvidas, etc...) e acirra a violência sobre e entre os moradores locais. Apesar da gravidade da situação, pouquíssimo se fala a este respeito na região. Em relação aos meios de comunicação, com poucas exceções, o silêncio é sepulcral. À exceção do jornal Diário de Pernambuco e das entrevistas ao vivo em algumas rádios, todos os demais meios de comunicação a que tivemos acesso (foram várias rádios, TVs e jornais) omitiram declarações sobre o assunto. Em meio a este silêncio opressivo ganha força a voz profética de Dom José Rodrigues, bispo de Juazeiro, BA, a única autoridade da região a denunciar esta situação de morte e opressão. Nas comunidades do interior o medo é tal, que os moradores evitam falar no assunto. No projeto Brígida, re-assentamento dos atingidos de Itaparica em Orocó, PE, ao final da celebração, alguns moradores, mais animados a enfrentar o problema, nos diziam que aquela foi à primeira vez que lá alguém teve a coragem de pronunciar em público a palavra 'maconha'. Comunidades como Itamotinga, interior de Juazeiro, sofrem tamanha violência que os moradores amedrontados, não ousam sair de suas casas depois do anoitecer. A desconfiança e o medo tomam o lugar da espontaneidade e da hospitalidade tão características no interior nordestino. Em todas as comunidades que visitamos este assunto foi abordado de maneira enfática. O clima era tenso e muitos irmãos na caminhada temeram por nossas vidas. Deus nos quis vivos e nos sustentou, a questionar este caminho de desagregação e violência.

Ética e trabalho – Na borda do Lago de Sobradinho visitamos uma família que sabíamos envolvida com a droga. Ao perguntarmos à dona da casa pelo seu filho, esta nos informou que ele estava trabalhando em uma roça de cebola. Perguntamos, sem rodeios, se junto com a cebola ele não plantava também maconha. A resposta foi surpreendente: 'Não deixa de plantar, porque aqui todo mundo planta'. Perguntada se o filho fumava maconha, esta senhora quase desmaiou: 'Nossa Senhora me livre dessa hora má'! Percebemos que entre a população existe uma condenação terrível em relação aos usuários e uma tolerância imensa em relação aos que lucram com a maconha. Uma profunda e generalizada interdição faz da erva e dos seus usuários os 'malditos'. Por causa do dinheiro, muitos se sujeitam a trabalhar na produção daquilo que íntima e profundamente condenam, gerando uma situação de mal-estar com implicações psicossociais ainda pouco aquilatadas. Esta dissociação entre o que se pensa e o que se faz em relação à maconha é a vivência, no sertão, de um corte que a nossa civilização produziu: ética para um lado, trabalho para o outro. Da mesma forma que o nosso povo justifica trabalhar no que condena por causa do dinheiro auferido, países fomentadores e beneficiários da indústria bélica se arrogam defensores da paz. Esta dicotomia quebra dentro de nós algo sagrado: nossa inteireza, nossa integridade. Daí o mal-estar. Acreditamos que todos, independentemente do seu grau de instrução e informação, são capazes de apreender o que é essencial. Mesmo as idéias mais sutis, desde que colocadas de forma acessível, são temas para debate. Por isso, esta dicotomia entre ética e trabalho, questão fundamental da crise civilizatória que vivemos, foi debatida com todos os grupos e comunidades que visitamos. Às vezes, o trabalho com os pobres está imbuído de uma idéia distorcida, que os isenta da responsabilidade sobre sua situação de opressão. A 'culpa' recai exclusivamente sobre os opressores e o sistema opressor, mas é esquecido que os pobres são peças fundamentais na manutenção desta engrenagem. Nosso trabalho com estas comunidades foi questionar o quanto cada um, por proveito próprio ou omissão, é também responsável pelo terror que todos estão vivendo. Buscamos fortalecer a resistência destas comunidades à violência que se banaliza pela freqüência e pela impunidade. Buscamos fortalecer a disposição de cada um a trilhar o caminho reto, a não ceder ao cinismo de querer 'levar vantagem em tudo'. Que cada um se saiba responsável pela vida que constrói para si e para sua comunidade" (p.63-5).



As meninas-formicida

Na carta escrita no trajeto de Dores do Indaiá a Várzea da Palma, em 4 de dezembro de 1992, aparece o seguinte registro:

"As 'meninas-formicida' – São as crianças e adolescentes que trabalham para as empresas de reflorestamento aplicando formicida nas áreas de eucalipto, constituindo um novo tipo de bóia-fria que se espalha pelo sertão mineiro. 'O serviço é duro e cansativo, cansa e irrita a mão, mas é o único trabalho que sobrou numa cidade cercada de eucalipto por todo lado', informa uma das tantas 'meninas-formicida' de Felixlândia, MG. O trabalho consiste em aplicar, com as mãos, formicida granulado ou líquido nos formigueiros que proliferam entre os eucaliptais. As 'meninas-formicida' não usam máscara, nem luvas, apesar de estarem em permanente contato com um inseticida altamente tóxico, como indica a faixa preta da embalagem. A preferência na escolha por meninas para esse trabalho se deve ao fato de elas terem uma maior paciência para procurar os formigueiros. Estivemos no embarque das turmas de 'meninas-formicida' de Felixlândia, que diariamente se dirigem para as áreas das reflorestadoras Mannesmann, Ical e Verágua" (p.33).

Referência bibliográfica

CAPPIO, L. F. (Frei OFM); MARTINS, A.; KIRCHNER, R. (Org.) Rio São Francisco: uma caminhada entre vida e morte. Apresentação Nancy Mangabeira Unger. Petrópolis: Vozes, 1995.

Revista Estudos Avançados - 2006