domingo, 30 de novembro de 2008
Formação: Delegada de Polícia, com mais de 15 anos atuando, especificamente, na área de combate à violência a crianças e adolescentes.
Nós não podemos esquecer nunca a grande caminhada desse país. Saíram pessoas de todos os estados rumo ao Planalto, em busca de que nós pudéssemos construir uma lei, porque o Estatuto da Criança e do Adolescente é a melhor e a maior lei desse país, embora nós tenhamos a norma constitucional. Eu digo que é a maior porque foi a única lei que foi construída por mais de dez mil mãos. Eram pessoas de todos os segmentos sociais: da dona-de-casa ao parlamentar, buscando um novo caminho. E nós começamos a discutir o Estatuto da Criança e do Adolescente.
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Entrevista com Olga Câmara
Salto - Os anos 90 ficaram conhecidos como uma década de grande mobilização da sociedade civil. Quais foram as principais conquistas dessa época?
Olga Câmara – Eu diria que a maior conquista foi exatamente a questão do reconhecimento de que nós não poderíamos olhar só para nós mesmos, que nós não poderíamos nos ver só enquanto profissionais, enquanto donas-de-casa, enquanto professores, delegados, juízes, promotores, operadores do direito. Nós nos víamos apenas como cidadãos comuns e, de repente, com o advento do Estatuto, que já vinha numa mobilização da Constituição Federal de 1988, nós começamos a nos olhar, a nos entender e a falar uma mesma linguagem. Porque, antes da década de 90, eu diria antes do advento do Estatuto, propriamente dito, nós víamos a sociedade civil como inimiga do Estado, ou seja, inimiga do governo. E o governo nos via como inimigos da sociedade civil. E, às vezes, nós queríamos a mesma coisa, nós queríamos melhorar a qualidade de vida do cidadão, principalmente do cidadão criança. Mas, por questões até de formação mesmo, nós não conseguimos falar a mesma linguagem, embora quiséssemos ou tivéssemos o mesmo objetivo. E daí começou a surgir o diálogo. Não foi fácil. A princípio foi assim... até um pouco angustiante. Eu, principalmente, tinha uma certa dificuldade, porque enquanto polícia eu via toda uma história de repressão e eu não me sentia uma policial igual a alguns outros policiais. E quando chegava aos fóruns, porque não existiam ainda os Conselhos de Direito — Pernambuco teve o primeiro Conselho de Direito no país — então nós nos reuníamos em fóruns e, quando chegávamos nos fóruns, a sociedade civil entendia que era polícia, Ministério Público, Poder Judiciário de um lado e eles do outro. E foi necessário que alguns profissionais da área não-governamental, principalmente os professores, tivessem assim um papel fundamental. Começou-se a dizer: “Nós temos que conversar para podermos começar a nos entender”. E aí começou essa grande mobilização. A coisa de ouvir um ao outro, porque nós não nos escutávamos, falávamos todos ao mesmo tempo e não conseguíamos nos ouvir.
Salto - O que mudou a partir da década de 90 com relação à questão da violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil?
Olga Câmara – A consciência. A consciência coletiva. A partir da década de 90, com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, nós, brasileiros, começamos a perceber que tínhamos uma grande missão institucional. Cada um na sua área de atuação entendeu que não poderia continuar calado, não poderia continuar sem se indignar, e houve uma grande mobilização, uma mobilização de organizações governamentais e não-governamentais. Evidentemente que as organizações não-governamentais é que nos empurraram para que nós pudéssemos nos perceber enquanto agentes sociais e buscássemos, dentro de nossas instituições, aquela questão do convencimento aos nossos superiores, aos nossos colegas, para que eles também se percebessem enquanto cidadãos.
Salto – Qual a importância da sociedade civil para a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente?
Olga Câmara – A atuação da sociedade civil foi fundamental. Nós não podemos esquecer nunca a grande caminhada desse país. Saíram pessoas de todos os estados rumo ao Planalto, em busca de que nós pudéssemos construir uma lei, porque o Estatuto da Criança e do Adolescente é a melhor e a maior lei desse país, embora nós tenhamos a norma constitucional. Eu digo que é a maior porque foi a única lei que foi construída por mais de dez mil mãos. Eram pessoas de todos os segmentos sociais: da dona-de-casa ao parlamentar, buscando um novo caminho. E nós começamos a discutir o Estatuto da Criança e do Adolescente. E nós começamos a perceber que tínhamos um caminho, porque nós falávamos nesse caminho e o que precisava era só normatizar. Então, nós começamos a pôr no papel. E daí eu lembro bem que, no que dizia respeito à questão do abuso e da exploração sexual, eu, enquanto delegada de polícia, eu me sentia como todos os delegados de polícia, como todos os policiais militares, nós nos sentíamos como inoperantes e incompetentes, porque nós não conseguíamos ver aquele abusador sexual punido adequadamente. Tínhamos também uma grande preocupação, porque o profissional de polícia que não era bem preparado, ele muitas vezes pendia para a violência, ele partia para a violência porque ele entendia que aquele abusador, que aquele infrator, não ia ser punido. Então, nós precisávamos, urgentemente, buscar uma lei e, com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, nós começamos a perceber o caminho, nós começamos a “pôr nos eixos”... Todas as polícias começaram a estudar o Estatuto da Criança e do Adolescente. Eu inclusive tive um papel que me gratifica muito, eu visitei cada estado desse país junto com alguns policiais militares, capacitando as polícias. Discutimos com promotores, com juízes, com educadores, para que nós pudéssemos divulgar a lei e pudéssemos operacionalizá-la.
Salto - Como é que a senhora avalia a situação atual no Brasil no que se refere à violência sexual, ao abuso e à exploração de crianças e adolescentes?
Olga Câmara – Ainda com uma certa gravidade. Mas nós não podemos dizer que não tivemos um grande avanço. Eu entendo que o Brasil, hoje, é o país que mais avançou no mundo, e digo isso baseada inclusive na minha experiência no Ministério da Justiça. Como diretora do Departamento Nacional da Criança e do Adolescente, tive a oportunidade de participar de reuniões internacionais, de participar de conselhos mundiais e a questão é que, no Brasil, a mobilização da sociedade civil com instituições como Defensoria Pública, Ministério Público, Poder Judiciário, as polícias, os parlamentares que participam ativamente dessa questão, tudo isso faz com que haja uma mobilização em todos os níveis, estadual, federal, municipal. Agora, ainda falta muito para que nós tenhamos condições de dizer “conseguimos”.
Salto - O que tem sido feito para combater o abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes?
Olga Câmara – Eu diria que, mais uma vez, eu tenho que falar, o principal é o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, do Plano Nacional de Direitos Humanos, do Plano Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes... Todos nós, brasileiros, fizemos uma mobilização nacional e eu tive a honra e o orgulho de participar desse plano nacional que foi lançado no Rio Grande do Norte, mas estavam lá representadas mais de 180 organizações governamentais e não-governamentais. Eu diria que as organizações não-governamentais emprestam o seu nome, emprestam a sua competência, a sua qualidade de serviço à Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça. As comissões parlamentares são movimentos que surgiram pela necessidade e pela compreensão da gravidade do problema e que têm, na realidade, sido um eixo norteador para nossas ações, mas ainda falta muita coisa, ainda falta que todos os cidadãos brasileiros compreendam que nós não podemos perder a capacidade de indignação, que nós não podemos entender que, porque existem os Conselhos Estaduais e os Conselhos Municipais, nós não devemos estar presentes, nós precisamos voltar talvez um pouco no tempo. Naquele tempo em que não existia o Estatuto da Criança e do Adolescente, nós partíamos para uma luta. Aquela boa luta, aquela luta em que não tinha hora, não tinha dia que não íamos às ruas; nós buscávamos os parlamentares e cobrávamos de todos os cidadãos que eles cumprissem com o seu papel. Porque, hoje, eu inclusive afirmo que ainda há um compromisso de pessoas nas instituições e o que tem que existir é o compromisso das instituições que envolvam pessoas.
Salto – Nesse contexto, em que as diferentes instituições são “chamadas” a dar suas diferentes contribuições, qual é a seu ver o papel da escola?
Olga Câmara – É nessa visão que nós temos de que as pessoas precisam estar envolvidas, mas as instituições é que devem envolver as pessoas. Eu vejo assim o papel fundamental do educador, o professor está em sala de aula, o professor está no convívio diário com a criança e com o adolescente. Ele faz parte da nossa vida. Qual de nós não se lembra com carinho de um professor que nós tivemos na primeira infância ou na adolescência? Então, o professor, ele está formando a criança e ali ele consegue detectar, inclusive, uma criança que foi abusada sexualmente, porque ela começa a mudar o comportamento, ela começa a ter baixo rendimento escolar, ela passa a agredir mais os colegas ou ela se cala, ela silencia. Então, é fundamental que o professor comece a observar melhor a criança, que todos os professores deste país tenham também o Estatuto da Criança e do Adolescente como Bíblia, para que a criança tenha condições de compreender qual é o seu direito, mas também quais são os seus deveres. Porque uma criança que tenha sido abusada sexualmente, ela é um abusador em potencial, mas o professor pode evitar que isso aconteça.
Como é que hoje o professor pode estar se organizando na sua escola? Como é que pode ser assim... pensar o Plano Nacional, estudar o Estatuto? O que se pode fazer no espaço da escola, para que se possa trabalhar em função dessa denúncia, desse registro, que a gente ouviu alguns casos assim de que, às vezes, é muito difícil ainda a escola se manifestar, a escola denunciar, fazer registro....
Salto – O que é o Plano de Enfrentamento ao Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes?
Olga Câmara – O Plano Nacional é... eu diria que nós colocamos num documento tudo aquilo que nós pensávamos que seria importante, que todos os segmentos da sociedade percebessem. Percebessem e que começassem a pôr em prática. Então nós unimos todas as experiências, de jornalistas, de educadores, das organizações não governamentais que têm um papel fundamental, eu não posso deixar de dizer isso. Porque a sociedade civil, além de ter o papel do controle social, ela também teve e tem um papel de mobilização social. E o Plano de Enfrentamento ao Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes traz, digamos teoricamente, marcos que nos dão um horizonte, que nos permitem seguir o caminho, o eixo dentro do nosso estado e nos municípios. Então, além de traçar metas esperando resultados, faz com que a gente em nosso estado lance o próprio plano estadual, ou seja, ele, basicamente, embora não seja uma lei, ele tem essa força porque foi construído também por várias organizações e por todos os estados e lá nós traçamos exatamente metas e estamos cumprindo essas metas. Não com a aceleração que deveríamos cumprir. Existem, por exemplo, o CECRIA — Centro de Estudos e Pesquisas de Referência da Criança e do Adolescente — tem um papel fundamental, é que o próprio Ministério da Justiça, algumas Organizações não-governamentais têm cobrado dos governos esse papel, para lançarmos o Plano Estadual, e para que tenhamos condições de envolver todos os segmentos da sociedade e de monitorar as ações das organizações governamentais e também cobrar das organizações não-governamentais. E que, numa parceria, nós tenhamos condições de ir a todos os municípios, para que os municípios tenham conhecimento, porque, digamos, na cidade grande as coisas acontecem, há a televisão, o jornal, a rádio... Mas é importante ter também a rádio comunitária, é fundamental que lá naquele município aonde chega a tevê e aonde chega a rádio, nós tenhamos programas direcionados, para que as pessoas possam ver e ouvir a mensagem que nós temos para elas, que o Plano Nacional, com muito carinho, com muito cuidado, com muita seriedade, traçou para essas pessoas. E o educador, ele precisa estar sempre em dia com esse assunto, para que ele possa levar essas informações até as escolas.
Salto - Quem participou da elaboração desse Plano? (Plano de Enfrentamento ao Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes)?
Olga Câmara – Eu diria que homens e mulheres comprometidos com o destino das crianças e dos adolescentes deste país — todos os profissionais envolvidos — eles tiveram um caminho que nos foi aberto, mais uma vez eu diria, pela sociedade civil. Existiam alguns projetos e programas que nos fizeram acordar para a necessidade de termos um marco teórico, quebrando velhos paradigmas, rompendo com velhos paradigmas e partindo para novos rumos. E o CONANDA aprovou o plano nacional que foi levado pela sociedade civil e pelo governo. À época eu estava à frente do Departamento Nacional da Criança e do Adolescente e tive a honra de coordenar o plano nacional, junto, principalmente, com o CECRIA, com o projeto POMAR, enfim, com várias organizações não-governamentais, mas quem participou foi o Brasil todo.
Salto – Qual a importância do Estatuto da Criança e do Adolescente para o Plano?
Olga Câmara – Ah, o Estatuto da Criança e do Adolescente é um marco referencial, eu diria que sem o Estatuto o plano não existiria, porque foi o Estatuto que nos ensinou o exercício da mobilização. O Estatuto foi que, inclusive, nos deu normas, ou seja, é uma norma que alguns juízes chamam de norma extravagante, até porque ela tem — é a lei que tem — o poder de fazer com que a sociedade discuta. É a única Lei nesse país que é discutida, que é estudada, que é discutida nas escolas, nos fóruns, que é discutida em todos os segmentos. Os médicos quiseram aprender o que era o Estatuto da Criança e do Adolescente, até porque eles não compreendiam a legislação. Então, o Estatuto da Criança e do Adolescente ele teve, tem e eu entendo que ainda terá, por muitos e muitos anos, uma importância fundamental até que surja uma lei mais aperfeiçoada. Mas, o Estatuto da Criança e do Adolescente é o marco referencial para o Plano Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e de Adolescentes.
Salto – O que é o CONANDA?
Olga Câmara - O CONANDA é o Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente, é o conselho que se reúne em todos os estados. Onde houver uma demanda, o CONANDA vai estar presente. Ele traça a política nacional de atendimento à criança e ao adolescente. Ele tem poder fiscalizador. Se existe uma criança, ou várias crianças, num estado com problemas de omissão do Estado, daquele Estado membro, o CONANDA se faz presente. Se profissionais que trabalham na garantia de direitos de crianças e adolescentes se vêem ameaçados, porque isto também acontece, o CONANDA se faz presente. Eu passei algum tempo como presidente e vice-presidente do CONANDA, e nós fizemos várias incursões em alguns estados brasileiros que, do educador ao juiz, todos tiveram problemas porque ousaram defender o direito da criança e do adolescente, ousaram denunciar abusadores sexuais, porque, infelizmente, esse abusador ele pode estar dentro de uma casa, pode estar na favela, ou ele também pode estar nos bairros onde moram aqueles de classe social alta. E para nós, operadores do Direito, e para o CONANDA, não importa a classe social, o que importa é que a criança tenha o seu direito garantido.
Salto – Qual a importância do CONANDA?
Olga Câmara – Inicialmente, o CONANDA está acima de todos os Ministérios, de todas as Secretaria, é suprapartidário, não tem cor, não tem um estado ao qual ele pertença, porque o presidente pode ser carioca, pode ser pernambucano, pode ser norte-rio-grandense, pode ser paulista, os membros do CONANDA são governamentais e não-governamentais. Ele é paritário. Ele tem representatividade nacional e institucional, porque o Ministério da Justiça, o Ministério da Saúde, o Congresso, todos os Ministérios estão presentes, principalmente o do Planejamento, porque nós temos uma grande preocupação com o orçamento destinado também para as causas da questão da criança e do adolescente. Então, é importante que ele seja um órgão que não tenha alguém que o domine, porque essa é a grande preocupação. Muitas vezes, num estado, o Conselho Estadual pode ser abafado, porque não há condições de funcionamento daquele conselho. Um Conselho Municipal também pode ser esquecido por total falta de condições de funcionamento. E os Conselhos Tutelares? Que nós sabemos que ainda não existem em todos os municípios brasileiros? Então o CONANDA, ao ser chamado pelo estado, ele vai em socorro dos cidadãos daquele estado e não vai, digamos assim, interferir na política daquele estado, mas ele vai dizer àquele estado, digamos, qual é o seu papel, ele vai dizer àquele estado que o caminho que ele está seguindo nas políticas públicas de atendimento às crianças e aos adolescentes não é o caminho correto. Então, ele traça normas nacionais e que são seguidas e aplicadas pelos Conselhos Estaduais.
Salto – Como foi a sua participação na construção dessa proposta?
Olga Câmara – Ela foi uma participação além do meu conhecimento, pois é uma participação de consciência de cidadã brasileira. É... eu sou mãe, eu sou avó, eu sou professora e eu entendo que não poderia deixar de participar de um processo de construção de um novo Brasil, porque existe o Brasil que todos conhecem e o Brasil que as pessoas, muitas vezes, não querem conhecer. E é exatamente nesse Brasil que as pessoas não querem conhecer que acontece, na calada da noite, quando ninguém ouve, o choro, o grito de dor de uma criança... E é desse Brasil que eu participo. Então, eu não poderia, como profissional de polícia, como educadora, como operadora de direito, deixar de participar dessa grande cruzada nacional, onde nós poderíamos tirar as crianças e os adolescentes do silêncio. Porque as organizações não-governamentais gritavam há muito tempo, mas elas não eram ouvidas. Muitas vezes, eu tive a infelicidade de ver a própria polícia chamada não para dar o apoio a um operador de direito de uma organização não-governamental, e sim para fazer com que ele se calasse, porque a voz daquela pessoa incomodava. Falar sobre prostituição, falar sobre abuso sexual, sobre exploração comercial de crianças e adolescentes, era dizer que o Estado não estava se preocupando com suas crianças, então, aquela voz tinha que ser calada. E foi aí que eu entendi que precisava participar também. E nós começamos a participar como voluntários e, depois, conseguimos envolver a nossa instituição. E é exatamente esta grande preocupação que nós temos hoje. Que todos aqueles que participam, que têm vontade de participar desse Plano Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, que envolvam a sua Instituição, que façam com que o seu Diretor, o seu Delegado-Chefe, o Corregedor de Justiça, o Procurador do Ministério Público, o Defensor Público geral, quem quer que seja, que ele nos ouça, que ele sente com a gente e que compreenda qual é o papel institucional, que nós queremos que tenhamos menos abusadores sexuais. Se nós queremos oferecer uma melhor qualidade de vida às nossas crianças e aos adolescentes e, conseqüentemente, aos adultos num futuro bem próximo, precisamos cuidar melhor deles.
Nós percebemos que as instituições ainda não apreenderam qual é o seu real papel, embora exista o Estatuto, embora anterior ao Estatuto exista a Constituição Federal que faz o chamamento a todas as Instituições para que elas participem ativamente dessa — eu diria — desconstrução de uma sociedade que não se preocupava com a vida de nossas crianças e a construção de uma nova sociedade, onde as crianças possam ter voz, onde as crianças possam ser vistas como elas são e aí, mais uma vez, eu compreendo que ainda falta nas políticas públicas a preocupação de difusão do Estatuto da Criança e do Adolescente. A exemplo da Sociedade Brasileira de Pediatria, nós precisamos fazer com que todos os conselhos, partindo do Conselho Nacional de Educação, e que todos os conselhos estaduais tenham professores, para que eles tenham a real compreensão do que é, no seu município, o Conselho Municipal, que o professor participe do Conselho Municipal, construindo Políticas Públicas de Atendimento à criança e ao adolescente. Que o professor participe do Conselho Tutelar, que é o atendimento direto à criança e ao adolescente. Que o professor tenha condições de ter conhecimento total dos encaminhamentos que devem ser dados a uma criança que tenha qualquer tipo de vestígio de uma violência sofrida. Porque ela pode, aparentemente, ter sofrido maus-tratos, mas atrás dos maus-tratos pode estar um abuso sexual. E o professor só pode ter esse entendimento se ele começar a se mobilizar, porque muitas vezes os diretores das escolas não têm essa visão. Nós participamos de encontros nos municípios onde ainda há professores que não conhecem o Estatuto da Criança e do Adolescente. Então, nós precisamos fazer com que a TV Escola chegue a cada município. Que o professor daqueles municípios pequenos, que ainda vai de barco lá no Norte, que ele tenha condições de fazer com que seu aluno saiba qual é o seu direito e que ele, professor, saiba qual é o seu dever em fazer com que aquela criança, ao sofrer qualquer tipo de violência, quando tiver o seu direito ameaçado, possa conversar com o professor e possa dizer para ele a violência sofrida ou a ameaça de violência, e que o professor busque o Conselho Municipal, se não tiver Conselho Tutelar, que ele busque o Conselho Municipal, se não tiver Conselho Municipal procure o Promotor de Justiça. Procure o juiz, procure o Delegado do seu município, mas não cale, porque quem cala consente.
Edgar Morin

Formação: Graduado em Economia Política, História, Geografia e Direito.
Alguns livros publicados:
- A cabeça bem feita. Editora Bertrand, 1999.
- Os sete saberes necessários à educação do futuro. Editora Cortez, 1999.
O papel da educação é de nos ensinar a enfrentar a incerteza da vida; é de nos ensinar o que é o conhecimento, porque nos passam o conhecimento mas jamais dizem o que é o conhecimento. E o conhecimento pode nos induzir ao erro. Todo conhecimento do passado, para nós, são as ilusões. Logo, é preciso saber estudar o problema do conhecimento. Em outras palavras, o papel da educação é de instruir o espírito a viver e a enfrentar as dificuldades do mundo.
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Entrevista com o Edgar Morin
Salto: O senhor tem afirmado que a ciência é, e sempre será, uma aventura e que o conceito de ciência está se modificando. Como poderíamos conceituar a ciência hoje?
Edgar Morin: A ciência é uma aventura, pois não podemos prever o futuro, por isso esta concepção é verdadeira. Nós não podemos unificar o mundo da ciência. Hoje, por exemplo, a ciência não é somente a experiência, não é somente a verificação. A ciência necessita, ao mesmo tempo, de imaginação criadora, de verificação, de rigor e de atividade crítica. Se não há atividade crítica, não há ciência. É preciso diversidade de opiniões. Mas a ciência também necessita ter a regra do jogo, ou seja, certas teorias podem ser abandonadas quando percebemos que são insuficientes. Então, a ciência é uma realidade complexa e podemos dizer que é muito difícil definir as fronteiras da ciência. Digamos que, em geral, ela é alimentada pela preocupação de experimentar, de verificar todas as teorias que ela expressa. Mesmo que a teoria não possa ser definida de imediato, é preciso pelo menos ver a possibilidade de definí-la no futuro. Mas não há só a verificação, eu repito, porque é preciso criar a teoria ; é preciso aplicar as construções expressas sobre a realidade e ver se a realidade as aceita. Eu acredito que, hoje, quando vemos as diferentes transformações na ciência física, na ciência biológica, nas ciências da Terra, na Cosmologia, temos a impressão que a ciência, de agora em diante, reconhece que seu problema é a complexidade. A ciência do passado pensou ter encontrado uma verdade simples, uma verdade determinista, uma verdade que reduz o Universo a algumas fórmulas. Hoje, nós sabemos que o desafio do mundo e da realidade é a complexidade. E, a meu ver, a ciência que vai se desenvolver no futuro é a ciência da complexidade.
Salto: O século XX pode ser caracterizado como o século da imagem. Em que medida esse fato mudou o imaginário dos seres humanos?
Edgar Morin : Todos sabemos que a imagem sempre esteve presente, sobretudo na antigüidade. Mas é verdade que, hoje, com os meios audiovisuais, com o cinema, ela se estabeleceu. O que eu acredito, a grande diferença, é que o cinema, por exemplo, dá o sonho coletivo. Ao invés de termos somente um sonho individual, nós vivemos um sonho coletivo. Por outro lado, nós nos reencontramos com as grandes tendências do imaginário ; nos reencontramos com as grandes lendas, com os romances... Nos deparamos com os grandes problemas que vêm de encontro ao imaginário. O imaginário é a maneira de traduzir as aspirações das tragédias dos seres humanos. Mas nós o reencontramos sob uma nova forma.
Salto: Vivemos em uma época em que as tecnologias, que dão suporte à linguagem, estão reestruturando nossos modos de comunicação. Muitos vêem nessa mudança uma ameaça à subjetividade. Como o senhor vê essa questão?
Edgar Morin: Eu acredito que a subjetividade é uma questão que foi, por muito tempo, negada pela ciência. Mas hoje, cada vez mais, ela é reconhecida. E acho que todo questionamento é se as técnicas vão servir às subjetividades ou se as subjetividades vão se utilizar das técnicas. Isso é uma luta permanente que vai continuar. E nós esperamos que as subjetividades possam se utilizar das técnicas.
Salto: O senhor afirma que a cultura e a educação emergem das interações entre os seres humanos. Qual o papel da escola diante desta complexidade?
Edgar Morin: O papel da escola passa pela porta do conhecimento. É ajudar o ser que está em formação a viver, a encarar a vida. Eu acho que o papel da escola é nos ensinar quem somos nós; nos situar como seres humanos ; nos situar na condição humana diante do mundo, diante da vida; nos situar na sociedade ; é fazer conhecermos a nós mesmos. E eu acho que a literatura tem o seu papel. O papel da educação é de nos ensinar a enfrentar a incerteza da vida; é de nos ensinar o que é o conhecimento, porque nos passam o conhecimento mas jamais dizem o que é o conhecimento. E o conhecimento pode nos induzir ao erro. Todo conhecimento do passado, para nós, são as ilusões. Logo, é preciso saber estudar o problema do conhecimento. Em outras palavras, o papel da educação é de instruir o espírito a viver e a enfrentar as dificuldades do mundo.
Salto: Como o senhor vê a relação ciência, imaginário e educação?
Edgar Morin: A ciência das descobertas científicas muitas vezes puderam realizar os mitos que a humanidade consagrou, como o mito de voar. Nós passamos a ter o avião, suas técnicas, e a ciência ajudou a desenvolvê-lo. A ciência, seja qual for, necessita da imaginação. Então, frequentemente essa imaginação é alimentada pelo nosso imaginário. Não podemos separar. Não existe uma inteligência fria e pura, unicamente lógica. A inteligência inclui as paixões, as emoções e também o imaginário. Conseqüentemente, quando pensamos em educação, se você não busca o imaginário na pintura, o imaginário no romance, o imaginário na poesia, você tem uma educação muito pobre. O imaginário se comunica com a realidade e a realidade se comunica com o imaginário. A educação deve garantir essa comunicação permanente.
Salto: Qual a impressão que o senhor tem da educação no Brasil ou na América do Sul?
Edgar Morin: E suponho que existam mais ou menos os mesmos problemas que encontramos nos países europeus. Vocês têm um sistema de educação que se baseia em antigas disciplinas, que são separadas. O que é preciso mudar é reunir essas disciplinas e conceber as novas ciências que são muito mais de agrupamento de disciplinas, como a Ecologia, como a Cosmologia, como a ciência da Terra. Mas eu acho que é um sistema que precisa ser profundamente reformulado, tanto na América Latina quanto na Europa.
Edgar Morin, março de 2000
Tradução : José Roberto Mendes
(Entrevista concedida em 02 de dezembro de 2002)
http://www.redebrasil.tv.br/salto/
Roberto Setubal e Pedro Moreira Salles
O novo gigante brasileiro
A história e a lógica do negócio que aproximou as duas
famílias mais tradicionais do sistema bancário nacional
– e criou a maior instituição financeira da América Latina
Marcio Aith e Giuliano Guandalini

"A associação ocorreria da mesma maneira, com ou
sem crise"
Roberto Setubal Lailson Santos
Sempre me perguntei por que não tínhamos uma AmBev dos bancos
Pedro Moreira Salles
Na semana passada, Itaú e Unibanco juntaram-se para criar a maior instituição financeira do país e da América Latina. A fusão foi divulgada na manhã da segunda-feira e deu alento ao sistema financeiro brasileiro, em meio à mais séria crise mundial em oito décadas. Unidos, os dois bancos possuem ativos de 575 bilhões de reais, 14,5 milhões de clientes e 100 000 funcionários. Tornam-se o maior banco do país, superando o Banco do Brasil e o Bradesco. Na tarde de quarta-feira, os protagonistas do negócio deram uma entrevista conjunta a VEJA na sede do Itaú. Roberto Setubal, 54 anos, presidente do Itaú, e Pedro Moreira Salles, 49 anos, presidente do Unibanco, disseram que vão seguir o exemplo das empresas brasileiras que já se internacionalizaram e minimizaram a influência da turbulência financeira na decisão de fechar o negócio. "A associação ocorreria da mesma maneira, com ou sem crise", disse Setubal. "Nossos objetivos não foram pautados por questões momentâneas", completou Moreira Salles. O controle do novo gigante financeiro, o Itaú Unibanco, será compartilhado. A presidência do conselho de administração ficará a cargo de Moreira Salles. Setubal será o presidente executivo.
O que motivou a associação entre o Itaú e o Unibanco?
Moreira Salles – O que norteou as conversas desde o início foi a percepção de que, em um mundo cada vez mais globalizado, o poder da escala das empresas é fundamental. Assim como sua capacidade de internacionalização. Muitas indústrias já conseguiram dar o salto para o exterior. Mas não existe uma única multinacional financeira brasileira, embora os bancos nacionais sejam tão bem administrados. Sempre me perguntei por que não tínhamos uma AmBev dos bancos. O Itaú e o Unibanco têm uma identidade na forma de ver o mundo. A operação faz todo o sentido.
Setubal – Somos dois bancos que nunca tiveram um tropeço financeiro ou um tropeço ético. Temos, em comum, valores e tradição familiar sólidos. Tanto o pai do Pedro (o embaixador Walther Moreira Salles, que morreu em 2001) quanto o meu pai (Olavo Setubal, morto em agosto passado) foram ministros de estado, ambos com comprometimento de longa data com o sucesso deste país. O Brasil certamente merece um banco de dimensão internacional. Achamos que o Itaú Unibanco Holding pode vir a ser esse banco. Esse é o nosso grande sonho e motivação.
A crise apressou o fechamento do negócio?
Setubal – A associação ocorreria da mesma maneira, com ou sem crise. Mas a crise acelerou o negócio? Talvez em apenas um mês. Pensando bem, a crise pode até ter retardado o negócio em um mês.
Moreira Salles – A lógica desta fusão independe da situação atual do mercado. Não sabíamos que a crise viria. Tivemos uma dezena de conversas antes da tormenta financeira. Com essa transação, pretendemos olhar para a frente. Nossos objetivos não foram pautados por questões momentâneas. Houve rumores de que os bancos privados tinham perdido muito dinheiro com derivativos. Não é verdade, como ficou demonstrado.
Setubal – Devido a esses rumores, divulgamos antecipadamente nossos balanços do terceiro trimestre. Isso dissipou qualquer dúvida sobre a situação dos bancos.
Quando a fusão foi cogitada pela primeira vez?
Moreira Salles – Em 1998, quando o Banco Real foi vendido ao holandês ABN Amro. Isso nos colocava um novo desafio. Lembro que meu pai foi um grande entusiasta de uma união com o Itaú naquela ocasião. Ele até ficou bravo comigo porque o negócio não foi levado adiante. Achou, com muita razão, que tínhamos de olhar para o futuro.
Setubal – Claramente não estávamos preparados para isso naquela ocasião. Nenhum dos dois se convenceu muito. Foi preciso amadurecer. As condições de mercado mudaram com o rápido processo de consolidação no setor bancário. O fato que deflagrou nossa mais recente rodada de negociações, em agosto do ano passado, foi a notícia da venda do Real ao Santander. Aquela operação criou um grande competidor global muito forte no mercado local.
Moreira Salles – Ficou claro para nós, no ano passado, que o Santander poderia tornar-se maior que o Unibanco.
"As grandes transações não são mais feitas
em dinheiro, mas com troca de ações.
O valor de mercado de uma companhia tornou-se vital. É ele que dá a dimensão de sua capacidade de fazer aquisições"
Roberto Setubal
Por que é tão vital ser grande no setor financeiro?
Setubal – Por uma razão prática. Muito prática. Atualmente, as grandes transações entre bancos, sejam elas aquisições ou fusões, não são mais feitas em dinheiro. São feitas com trocas de ações, pelos seus valores de mercado. Portanto, o valor de mercado de uma companhia tornou-se o fator preponderante. É ele, em última análise, que dá a dimensão de sua capacidade de fazer aquisições. Um grande banco, com uma grande capitalização de mercado, é capaz de comprar outros bancos. Esse é um aspecto extremamente importante para entender a lógica dessa transação. Nós nos juntamos exatamente para ampliar nossa capitalização de mercado. E, é claro, para nos proteger de outros bancos com valores de mercado equivalentes. Passamos a ser compradores.
Moreira Salles – Ser número 1 não é lá muito relevante. O importante é termos escala. Ela abre o acesso ao mercado internacional, acesso a recursos lá fora.
Setubal – Mas é um ponto a ser levado em consideração. Ser reconhecidamente o líder e o banco mais forte faz com que você tenha, naturalmente, a preferência dos clientes e de quem faz negócios.
Durante períodos de turbulência, as linhas de crédito para o Brasil são cortadas. Não seria mais lógico associar-se a um banco estrangeiro?
Moreira Salles – Essa crise mostrou que, quando a situação aperta, as linhas secam para todo mundo, não apenas para os bancos brasileiros. Ter a participação de capital estrangeiro não altera o acesso a linhas internacionais de crédito. O importante é que, ao nos associarmos ao Itaú, teremos mais poupança e mais volume de negócios. O Brasil tem uma dimensão que permite o fortalecimento de um banco nacional em relação a seus concorrentes externos.
De que forma a união Itaú-Unibanco traz solidez ao sistema financeiro?
Moreira Salles – Em valor de mercado, estamos criando o 12º ou o 16º maior banco do mundo, dependendo da cotação diária das ações. Isso já é marcante. Há mais. Nosso índice de Basiléia (volume de capital próprio em relação ao total emprestado) é o dobro do mínimo exigido pela legislação internacional. Enquanto alguns dos principais bancos no mundo estão tentando se capitalizar, elevando esse patamar mínimo para 8%, o Itaú Unibanco nasce com pouco mais de 15%.
Setubal – Temos agora o maior índice de capitalização entre os trinta maiores bancos do mundo.
"Estamos em um mundo cada vez mais integrado. Se os bancos globais podem e devem entrar no Brasil, nós precisamos criar uma plataforma para fazer o mesmo lá fora. O país terá um banco com escala, com um olhar para o mundo"
Pedro Moreira Salles
Qual o significado de um banco privado se tornar a maior instituição financeira do país?
Setubal – Isso mostra uma tremenda evolução do Brasil. Revela um setor privado dinâmico e atuante, capaz de alcançar grandes realizações. Mas há espaço no país para bancos privados, públicos e estrangeiros. Os três se complementam na contribuição que podem dar ao desenvolvimento do Brasil. Inverteria então a pergunta: por que não ter um banco privado como o maior do país?
Moreira Salles – Significa que conseguiremos criar uma plataforma que atenda aos melhores interesses de nossos clientes. Ambos somos absolutamente a favor da livre concorrência. Estamos em um mundo cada vez mais integrado. Se os bancos globais podem e devem entrar no Brasil, nós precisamos criar uma plataforma para fazer o mesmo lá fora. O país terá um banco com escala que nos permitirá olhar para o mundo e identificar para onde faz sentido um banco brasileiro se expandir. Isso não deve se limitar a atender às operações internacionais das empresas brasileiras, como já ocorre hoje, e sim de fato ter operações bancárias relevantes em alguns mercados externos. Resultará disso uma instituição maior, com mais acesso a fundos.
Se o Itaú tem o dobro do tamanho do Unibanco, por que o comando será dividido?
Setubal – Antes de tudo, porque queremos construir algo maior. Essa é a razão essencial. Quando se quer construir algo maior, todos precisam fazer renúncias. Neste caso, todos nós fizemos renúncias relevantes. Acreditamos que os acionistas do Unibanco e do Itaú podem contribuir neste projeto.
Moreira Salles –De fato, o Itaú é um banco maior que o Unibanco. A partilha do comando foi o gesto que deu início às conversas. Caso contrário, não haveria esse projeto conjunto. A divisão do poder decisório era a condição para que o negócio fosse feito. Senão, seria uma venda pura e simples, e os acionistas do Unibanco sairiam do negócio. Os controladores do Itaú tiveram de abrir mão do poder que possuem hoje e partilhá-lo.
Ambas as empresas possuem controle familiar. Foi difícil convencer seus parentes?
Setubal – A primeira pessoa com quem conversei foi meu pai. A aprovação foi imediata. Ele tinha essa visão de construir novos negócios, de crescer e ajudar o país. Em seguida vieram as conversas com meus irmãos e primos, para obter o consenso. Era uma transação complexa, difícil de ser explicada. Houve alguns questionamentos, mas nenhum empecilho. As barreiras acabaram sendo transpostas com surpreendente facilidade.
Moreira Salles – Essas negociações familiares costumam emperrar em três pontos: o papel de cada um na administração da nova instituição; o nome que será usado; e o preço – neste caso específico, a participação acionária, porque não haverá troca de dinheiro. Esses assuntos foram resolvidos sem grandes discussões. O papel de cada um ficou definido desde o início. Aliás, no começo eu teria a vice-presidência do conselho. A presidência permaneceria com o pai do Roberto, que tinha uma posição legítima que jamais ousaria reivindicar. Ele acabou abrindo mão por generosidade e por entender que isso seria decisivo. Quanto ao segundo ponto, o nome Unibanco, ele será preservado na nova holding: Itaú Unibanco. As marcas que serão usadas comercialmente no futuro serão aquelas que o público preferir. Tivemos de lidar com isso de maneira desapaixonada para criar essa nova empresa.
Dos irmãos Moreira Salles, Pedro é o único envolvido diretamente na administração do banco (os outros três são o cineasta Walter, o documentarista João e o editor Fernando). De que forma a dinâmica familiar determinou a conclusão do negócio?
Moreira Salles – Existe um enorme orgulho de meus irmãos pelo que o Unibanco representa. A questão da referência aos pais, nos dois casos, é mais do que simbólica. O fato de um filho ter se envolvido com o banco não significa que os demais não o considerem relevante. Há o desejo de perpetuar, e para isso tínhamos de fazer um negócio dessa natureza. Essa é a perpetuação de um negócio criado pelo meu pai. Nós nunca fechamos outros negócios porque as propostas implicavam sempre que a família saísse do negócio.
Setubal – Ainda existem muitas empresas familiares no Brasil. Muitas vezes elas não possuem capital para ampliar suas atividades. Aí, juntar forças é o caminho. Mas é preciso ter maturidade para passar por todo
esse processo de renúncia. As pessoas às vezes tendem a se apegar demais a questões que deveriam ser consideradas secundárias e, agindo assim, perdem a chance de fortalecer suas empresas.
Eunice Durham
Uma das maiores especialistas em ensino superior
brasileiro, a antropóloga não tem dúvida: os cursos
de pedagogia perpetuam o péssimo ensino nas escolas
Monica Weinberg
Edu Lopes

"Os cursos de pedagogia desprezam a prática da sala de aula e supervalorizam teorias supostamente mais nobres. Os alunos saem de lá sem saber ensinar"
Hoje há poucos estudiosos empenhados em produzir pesquisa de bom nível sobre a universidade brasileira. Entre eles, a antropóloga Eunice Durham, 75 anos, vinte dos quais dedicados ao tema, tem o mérito de tratar do assunto com rara objetividade. Seu trabalho representa um avanço, também, porque mostra, com clareza, como as universidades têm relação direta com a má qualidade do ensino oferecido nas escolas do país. Ela diz: "Os cursos de pedagogia são incapazes de formar bons professores". Ex-secretária de política educacional do Ministério da Educação (MEC) no governo Fernando Henrique, Eunice é do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas, da Universidade de São Paulo – onde ingressou como professora há cinqüenta anos.
Sua pesquisa mostra que as faculdades de pedagogia estão na raiz do mau ensino nas escolas brasileiras. Como?
As faculdades de pedagogia formam professores incapazes de fazer o básico, entrar na sala de aula e ensinar a matéria. Mais grave ainda, muitos desses profissionais revelam limitações elementares: não conseguem escrever sem cometer erros de ortografia simples nem expor conceitos científicos de média complexidade. Chegam aos cursos de pedagogia com deficiências pedestres e saem de lá sem ter se livrado delas. Minha pesquisa aponta as causas. A primeira, sem dúvida, é a mentalidade da universidade, que supervaloriza a teoria e menospreza a prática. Segundo essa corrente acadêmica em vigor, o trabalho concreto em sala de aula é inferior a reflexões supostamente mais nobres.
Essa filosofia é assumida abertamente pelas faculdades de pedagogia?
O objetivo declarado dos cursos é ensinar os candidatos a professor a aplicar conhecimentos filosóficos, antropológicos, históricos e econômicos à educação. Pretensão alheia às necessidades reais das escolas – e absurda diante de estudantes universitários tão pouco escolarizados.
O que, exatamente, se ensina aos futuros professores?
Fiz uma análise detalhada das diretrizes oficiais para os cursos de pedagogia. Ali é possível constatar, com números, o que já se observa na prática. Entre catorze artigos, catorze parágrafos e 38 incisos, apenas dois itens se referem ao trabalho do professor em sala de aula. Esse parece um assunto secundário, menos relevante do que a ideologia atrasada que domina as faculdades de pedagogia.
Como essa ideologia se manifesta?
Por exemplo, na bibliografia adotada nesses cursos, circunscrita a autores da esquerda pedagógica. Eles confundem pensamento crítico com falar mal do governo ou do capitalismo. Não passam de manuais com uma visão simplificada, e por vezes preconceituosa, do mundo. O mesmo tom aparece nos programas dos cursos, que eu ajudo a analisar no Conselho Nacional de Educação. Perdi as contas de quantas vezes estive diante da palavra dialética, que, não há dúvida, a maioria das pessoas inclui sem saber do que se trata. Em vez de aprenderem a dar aula, os aspirantes a professor são expostos a uma coleção de jargões. Tudo precisa ser democrático, participativo, dialógico e, naturalmente, decidido em assembléia.
Quais os efeitos disso na escola?
Quando chegam às escolas para ensinar, muitos dos novatos apenas repetem esses bordões. Eles não sabem nem como começar a executar suas tarefas mais básicas. A situação se agrava com o fato de os professores, de modo geral, não admitirem o óbvio: o ensino no Brasil é ainda tão ruim, em parte, porque eles próprios não estão preparados para desempenhar a função.
Por que os professores são tão pouco autocríticos?
Eles são corporativistas ao extremo. Podem até estar cientes do baixo nível do ensino no país, mas costumam atribuir o fiasco a fatores externos, como o fato de o governo não lhes prover a formação necessária e de eles ganharem pouco. É um cenário preocupante. Os professores se eximem da culpa pelo mau ensino – e, conseqüentemente, da responsabilidade. Nos sindicatos, todo esse corporativismo se exacerba.
Como os sindicatos prejudicam a sala de aula?
Está suficientemente claro que a ação fundamental desses movimentos é garantir direitos corporativos, e não o bom ensino. Entenda-se por isso: lutar por greves, aumentos de salário e faltas ao trabalho sem nenhuma espécie de punição. O absenteísmo dos professores é, afinal, uma das pragas da escola pública brasileira. O índice de ausências é escandaloso. Um professor falta, em média, um mês de trabalho por ano e, o pior, não perde um centavo por isso. Cenário de atraso num país em que é urgente fazer a educação avançar. Combater o corporativismo dos professores e aprimorar os cursos de pedagogia, portanto, são duas medidas essenciais à melhora dos indicadores de ensino.
A senhora estende suas críticas ao restante da universidade pública?
Há dois fenômenos distintos nas instituições públicas. O primeiro é o dos cursos de pós-graduação nas áreas de ciências exatas, que, embora ainda atrás daqueles oferecidos em países desenvolvidos, estão sendo capazes de fazer o que é esperado deles: absorver novos conhecimentos, conseguir aplicá-los e contribuir para sua evolução. Nessas áreas, começa a surgir uma relação mais estreita entre as universidades e o mercado de trabalho. Algo que, segundo já foi suficientemente mensurado, é necessário ao avanço de qualquer país. A outra realidade da universidade pública a que me refiro é a das ciências humanas. Área que hoje, no Brasil, está prejudicada pela ideologia e pelo excesso de críticas vazias. Nada disso contribui para elevar o nível da pesquisa acadêmica.
Um estudo da OCDE (organização que reúne os países mais industrializados) mostra que o custo de um universitário no Brasil está entre os mais altos do mundo – e o país responde por apenas 2% das citações nas melhores revistas científicas. Como a senhora explica essa ineficiência?
Sem dúvida, poderíamos fazer o mesmo, ou mais, sem consumir tanto dinheiro do governo. O problema é que as universidades públicas brasileiras são pessimamente administradas. Sua versão de democracia, profundamente assembleísta, só ajuda a aumentar a burocracia e os gastos públicos. Essa é uma situação que piorou, sobretudo, no período de abertura política, na década de 80, quando, na universidade, democratização se tornou sinônimo de formação de conselhos e multiplicação de instâncias. Na prática, tantas são as alçadas e as exigências burocráticas que, parece inverossímil, um pesquisador com uma boa quantia de dinheiro na mão passa mais tempo envolvido com prestação de contas do que com sua investigação científica. Para agravar a situação, os maus profissionais não podem ser demitidos. Defino a universidade pública como a antítese de uma empresa bem montada.
Muita gente defende a expansão das universidades públicas. E a senhora?
Sou contra. Nos países onde o ensino superior funciona, apenas um grupo reduzido de instituições concentra a maior parte da pesquisa acadêmica, e as demais miram, basicamente, os cursos de graduação. O Brasil, ao contrário, sempre volta à idéia de expandir esse modelo de universidade. É um erro. Estou convicta de que já temos faculdades públicas em número suficiente para atender aqueles alunos que podem de fato vir a se tornar Ph.Ds. ou profissionais altamente qualificados. Estes são, naturalmente, uma minoria. Isso não tem nada a ver com o fato de o Brasil ser uma nação em desenvolvimento. É exatamente assim nos outros países.
As faculdades particulares são uma boa opção para os outros estudantes?
Freqüentemente, não. Aqui vale a pena chamar a atenção para um ponto: os cursos técnicos de ensino superior, ainda desconhecidos da maioria dos brasileiros, formam gente mais capacitada para o mercado de trabalho do que uma faculdade particular de ensino ruim. Esses cursos são mais curtos e menos pretensiosos, mas conseguem algo que muita universidade não faz: preparar para o mercado de trabalho. É estranho como, no meio acadêmico, uma formação voltada para as necessidades das empresas ainda soa como pecado. As universidades dizem, sem nenhum constrangimento, preferir "formar cidadãos". Cabe perguntar: o que o cidadão vai fazer da vida se ele não puder se inserir no mercado de trabalho?
Nos Estados Unidos, cerca de 60% dos alunos freqüentam essas escolas técnicas. No Brasil, são apenas 9%. Por quê?
Sempre houve preconceito no Brasil em relação a qualquer coisa que lembrasse o trabalho manual, caso desses cursos. Vejo, no entanto, uma melhora no conceito que se tem das escolas técnicas, o que se manifesta no aumento da procura. O fato concreto é que elas têm conseguido se adaptar às demandas reais da economia. Daí 95% das pessoas, em média, saírem formadas com emprego garantido. O mercado, afinal, não precisa apenas de pessoas pós-graduadas em letras que sejam peritas em crítica literária ou de estatísticos aptos a desenvolver grandes sistemas. É simples, mas só o Brasil, vítima de certa arrogância, parece ainda não ter entendido a lição.
Faculdades particulares de baixa qualidade são, então, pura perda de tempo?
Essas faculdades têm o foco nos estudantes menos escolarizados – daí serem tão ineficientes. O objetivo número 1 é manter o aluno pagante. Que ninguém espere entrar numa faculdade de mau ensino e concorrer a um bom emprego, porque o mercado brasileiro já sabe discernir as coisas. É notório que tais instituições formam os piores estudantes para se prestar às ocupações mais medíocres. Mas cabe observar que, mesmo mal formados, esses jovens levam vantagem sobre os outros que jamais pisaram numa universidade, ainda que tenham aprendido muito pouco em sala de aula. A lógica é típica de países em desenvolvimento, como o Brasil.
Por que num país em desenvolvimento o diploma universitário, mesmo sendo de um curso ruim, tem tanto valor?
No Brasil, ao contrário do que ocorre em nações mais ricas, o diploma de ensino superior possui um valor independente da qualidade. Quem tem vale mais no mercado. É a realidade de um país onde a maioria dos jovens está ainda fora da universidade e o diploma ganha peso pela raridade. Numa seleção de emprego, entre dois candidatos parecidos, uma empresa vai dar preferência, naturalmente, ao que conseguiu chegar ao ensino superior. Mas é preciso que se repita: eles servirão a uma classe de empregos bem medíocres – jamais estarão na disputa pelas melhores vagas ofertadas no mercado de trabalho.
A tendência é que o mercado se encarregue de eliminar as faculdades ruins?
A experiência mostra que, conforme a população se torna mais escolarizada e o mercado de trabalho mais exigente, as faculdades ruins passam a ser menos procuradas e uma parte delas acaba desaparecendo do mapa. Isso já foi comprovado num levantamento feito com base no antigo Provão. Ao jogar luz nas instituições que haviam acumulado notas vermelhas, o exame contribuiu decisivamente para o seu fracasso. O fato de o MEC intervir num curso que, testado mais de uma vez, não apresente sinais de melhora também é uma medida sensata. O mau ensino, afinal, é um grande desserviço.
A senhora fecharia as faculdades de pedagogia se pudesse?
Acho que elas precisam ser inteiramente reformuladas. Repensadas do zero mesmo. Não é preciso ir tão longe para entender por quê. Basta consultar os rankings internacionais de ensino. Neles, o Brasil chama atenção por uma razão para lá de negativa. Está sempre entre os piores países do mundo em educação.
http://veja.abril.uol.com.br/261108/entrevista.shtml
Uma vitória da razão - Demétrio Magnoli
Para o sociólogo, as últimas eleições mostraram que
os brasileiros não se deixam mais levar pela conversa
de que toda esquerda é boa e toda direita é má
Diogo Schelp
Lailson Santos

"O PT no poder revelou a esquerda que faz o mensalão, persegue o caseiro e confunde estado com governo e partido"
O paulistano Demétrio Magnoli, de 49 anos, faz parte de uma categoria de intelectuais – rara no Brasil – que se notabiliza tanto pelo conhecimento acadêmico, como pela habilidade para escrever sobre temas complexos de maneira clara e objetiva. Sociólogo e doutor em geografia humana, Magnoli integra o Grupo de Análises da Conjuntura Internacional, da Universidade de São Paulo, e é autor de mais de uma dezena de livros didáticos. Em sua coluna nos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo, ele expõe análises aprofundadas de política mundial e críticas incisivas às manifestações de pensamento único na sociedade e no governo brasileiros. Magnoli concedeu, descalço, a seguinte entrevista a VEJA, em seu apartamento, em São Paulo.
Os conceitos de esquerda e direita estão ultrapassados?
Não, desde que sejam compreendidos no marco da democracia. No sistema democrático, há uma tensão permanente entre liberdade e igualdade. A primeira está associada à direita democrática, para a qual existe um conjunto indissociável de liberdades: a de expressão e organização, a econômica e a de pluralidade de opiniões. Já o conceito de igualdade está associado à esquerda democrática, que defende a necessidade de restringir um pouco a liberdade econômica para que as desigualdades não cresçam muito. As democracias maduras oscilam entre a direita e a esquerda, em busca ora de mais liberdade, ora de mais igualdade. Essa é a história das eleições na Europa e nos Estados Unidos no último meio século. Acredito que a história do Brasil também será essa. Trata-se de algo muito diferente dos conceitos de esquerda e direita não-democráticas, estes, sim, ultrapassados.
"O filósofo francês Raymond Aron disse que o marxismo é o ópio dos intelectuais. Isso porque lhes oferece a ilusão de que são donos de um saber maior: o do fim da história. É natural que uma ideologia que afirme isso os seduza"
Em certos círculos, dizer que algo é "de direita" serve para desqualificar desde filmes até valores morais. Qual é a explicação para esse uso do termo "direita"?
A palavra "direita" esteve associada no século XX ao fascismo e ao nazismo. Tais regimes foram condenados de maneira absoluta pela população mundial. Em países da América Latina, em particular, a direita foi ligada a regimes militares. Por isso, no Brasil, a expressão "direita" ainda é usada, embora cada vez com menor freqüência, como sinônimo de tudo o que deve ser rejeitado. Já o termo "esquerda" costuma ser relacionado a uma idéia de transformação humanista do mundo, imaginada a partir da Revolução Francesa e das lutas sociais do século XIX. Muita gente esquece que elas, em sua origem, deceparam milhares de cabeças por meio da guilhotina. Assim como esquece a brutalidade do stalinismo e do maoísmo, no século XX.
O senhor acredita que o preconceito contra a direita tende a diminuir?
Sim, e isso acontece quando um país experimenta a esquerda no poder, como é o caso do Brasil, hoje. Nos países de democracia madura, o argumento "isso é de direita" não serve para encerrar uma discussão. Não gosto do governo Lula, mas ele está sendo bom para o nosso amadurecimento político. O PT no poder revelou a esquerda que faz o mensalão, persegue o caseiro, tenta controlar os meios estatais para os seus próprios fins e confunde estado com governo e partido. Com o tempo, os brasileiros vão se convencer de que os partidos de direita e de esquerda devem existir dentro de um mesmo espectro político, desde que aceitem a democracia. Essa mudança de percepção pode ser verificada nas últimas eleições municipais. A classe média de São Paulo, que no passado votou em massa em candidatos do PT, agora elegeu Gilberto Kassab e não o vê como um candidato da velha direita – apesar de pertencer ao DEM, o antigo PFL. Os eleitores não compraram a idéia de que as eleições eram a luta do bem contra o mal, como a campanha do PT tentou vender. O PT imbuiu-se, nessas eleições, da missão de eliminar o DEM. A idéia de eliminar um partido, de centro-direita ou não, é antidemocrática. O que o discurso do PT revela é o desejo de ser partido único. Resultado: a classe média que acreditou no PT agora desconfia de sua natureza democrática.
Pode-se dizer que a ideologia serviu de pretexto para a corrupção do PT?
A corrupção é um fenômeno muito antigo na história do Brasil e completamente suprapartidário. O que espantou muita gente foi o estilo PT de corromper – e que, claro, tem a ver com a sua visão de mundo. O partido apresentou um modo centralizado de praticar a corrupção. Ao contrário da prática tradicional, feita em nome de interesses localizados, o PT deliberou e organizou a corrupção a partir da sua cúpula. Isso provocou uma ruptura muito grande entre o partido e boa parte do seu eleitorado tradicional, principalmente nas grandes cidades.
A vontade de ser partido único não é um anacronismo?
A verdade é que a queda do Muro de Berlim fez muito mal ao PT. O fracasso da União Soviética e de seus satélites no Leste Europeu tirou de cena o foco da crítica petista, que em sua origem repudiava o chamado socialismo real. A partir daí, o partido tomou um rumo regressivo e foi dominado por três grupos. O primeiro é a corrente de origem castrista, representada, entre outros, por José Dirceu. O segundo é o dos sindicalistas, notadamente os que controlam a CUT. O terceiro é formado pelas correntes católicas ligadas à Teologia da Libertação, cujo principal representante é Frei Betto, que foi um alto assessor de Lula. Com isso, o PT adotou uma ideologia retrógrada do estado como salvador da sociedade. Deixou de fazer qualquer crítica ao socialismo real – a não ser em dias de festa, em documentos para inglês ver – e passou a falar como um velho partido comunista de outros tempos. O PT se tornou uma agremiação de esquerda estatizante, para a qual a história é uma ferrovia cujo destino final é a redenção da humanidade – e que vê a si própria como a locomotiva do comboio. Esse é o conceito de história que deveria ter desaparecido depois de 1989, com a queda do Muro de Berlim. Ao encampá-lo, o PT se tornou uma espécie de relíquia.
Por que a universidade brasileira ainda é um centro irradiador do marxismo?
Isso é verdade apenas em parte. Há bastante crítica à esquerda tradicional e stalinista nas universidades. Mas, sem dúvida, é fato que existe um apoio grande a essa ideologia no meio acadêmico. O filósofo francês Raymond Aron (1905-1983) disse que o marxismo é o ópio dos intelectuais. Isso porque o marxismo lhes oferece a ilusão de que são donos de um saber maior: o do fim da história. Como conseqüência, os intelectuais teriam a função de dirigir a sociedade. É natural que uma ideologia assim os seduza. Afinal de contas, dá a eles uma perspectiva de poder, influência e prestígio que o simples compromisso com a democracia não permite.
O que explica a ascensão dessa esquerda obsoleta em países da América Latina?
A falta do espelho do socialismo real na União Soviética e no Leste Europeu faz com que a esquerda latino-americana se entusiasme com governantes como Hugo Chávez. A esquerda latino-americana ainda imagina que deve construir o mundo de novo. Chávez, da Venezuela, Evo Morales, da Bolívia, Rafael Correa, do Equador, e Lula são muito diferentes entre si. Mas o que há em comum entre os partidos e os movimentos que apóiam esses governantes é a noção do estado como instrumento de salvação. Essa é uma idéia fundamentalmente antidemocrática. Não há nada parecido com isso fora da América Latina.
"A hostilidade à liberdade de imprensa é tão ampla no PT que apareceu em uma resolução oficial da direção nacional do partido, durante o escândalo do mensalão. O documento acusava os veículos de comunicação de golpismo"
Quem são os principais entusiastas de Chávez no Brasil?
Não é verdade que o PT como um todo siga Chávez, mas existem no seu interior correntes que o fazem. O chavismo exerce forte sedução sobre a sua Secretaria de Relações Internacionais. Acho triste que a direção nacional do partido tenha chegado ao ponto de soltar uma nota oficial em apoio ao fechamento, por motivos políticos, do canal venezuelano RCTV. Essa nota não foi contestada pelos parlamentares do PT de quem se esperaria uma palavra em defesa da democracia, como Eduardo Suplicy e José Eduardo Cardozo.
Como o senhor avalia a política externa brasileira?
A política externa brasileira tem duas cabeças. A oficial, que segue a linha histórica do Itamaraty, e a extra-oficial, que é a política externa do PT, representada por Marco Aurélio Garcia, assessor de Lula, que boicota a diplomacia tradicional. Garcia acha que a integração latino-americana deve ser feita em bases nacionalistas e antiamericanas, quase chavistas. Ele recusa que a América do Sul deva participar da globalização – o que significa recusar a realidade. Por isso, o Brasil deixou de falar duro com Evo Morales diante do aparatoso cerco militar às instalações da Petrobras, das intimidações contra agricultores brasileiros na Bolívia e da ruptura unilateral de contratos que estabeleciam o valor das refinarias. Logo, logo vamos ter uma crise no Paraguai. Temo que o governo Lula faça pouco para defender os agricultores brasileiros naquele país.
O ministro da Justiça, Tarso Genro, o processou em 2006 e depois retirou a acusação. O que ocorreu?
Ele abriu um processo em razão de um artigo que escrevi, intitulado "Ministério da classificação racial". No ano anterior, Tarso Genro, o ministro itinerante do governo Lula, ocupava a Pasta da Educação e determinou que as escolas brasileiras passassem a incluir o item "raça/cor" nas fichas de matrícula dos alunos. Tarso Genro abriu um processo penal contra mim – e por meio da Advocacia-Geral da União – porque critiquei essa medida. Quando foi indicado para o Ministério da Justiça, ele retirou o processo. Imagino que considerou constrangedora a possibilidade de um ministro da Justiça perder um processo. Sabe-se que Tarso Genro, no Rio Grande do Sul, abria processos em grande quantidade contra jornalistas, para intimidá-los.
Essa estratégia de intimidação, aliás, passou a ser muito usada por setores do governo.
Existem divergências dentro do governo sobre liberdade de imprensa. Alguns membros do governo e do PT acham que se trata de um valor fundamental. Outros, e são muitos, acreditam que o país ideal é Cuba, onde há um partido único e um jornal único. A hostilidade à liberdade de imprensa é tão ampla no PT que apareceu em uma resolução oficial da direção nacional do partido, durante o escândalo do mensalão. O documento acusava os veículos de comunicação de golpismo.
No início da década de 90, os pais dos alunos de um colégio tentaram impedir que um professor adotasse um livro seu, sob o argumento de que o senhor era comunista. Sua visão de mundo mudou ou os pais estavam errados?
Minha visão de mundo não é a mesma de vinte anos atrás nem, menos ainda, a de trinta anos atrás. Na faculdade, nos tempos da ditadura militar, eu participei de uma organização trotskista, a Liberdade e Luta (Libelu), cujo verdadeiro nome era Organização Socialista Internacionalista. Quando escrevi meus primeiros livros, no entanto, já havia rompido com a organização e não me via mais como alguém de esquerda ou comunista. Meu primeiro livro didático, de 1989, era detestado pela esquerda. Talvez os pais desse colégio estivessem um pouco assustados com fantasmas do passado.
Como é a relação com os seus amigos que ainda nutrem admiração por figuras como Che Guevara e Hugo Chávez?
Eu não tenho amigos que gostam de Hugo Chávez, Che Guevara ou Fidel Castro. Simplesmente porque nunca tive amigos stalinistas. Eu tenho amigos que os trotskistas consideram pertencentes à direita feroz. Quando convido todos para uma mesma festa, começa um debate que, obviamente, nunca vai terminar. O debate político não deve impedir as pessoas de se tratar decentemente, mas a atividade intelectual pressupõe o exercício da crítica. Intelectuais que elogiam governos têm algum problema. Provavelmente querem um emprego.