terça-feira, 21 de abril de 2009

Kenneth Light - Com os pés no mar


Como um navegador, o pesquisador Kenneth Light analisa de maneira minuciosa os diários de bordo das embarcações que acompanharam D. João VI. Assim, provoca o naufrágio de mitos a respeito da precariedade da viagem e da idéia de que a Coroa portuguesa fugia de forma desesperada dos homens de Napoleão.

Kenneth Light estuda há dez anos a intensa relação entre as histórias de Portugal, Brasil e Inglaterra no século XIX, seguindo passageiros, capitães e marinheiros embarcados na viagem de 1808. A investigação de cada detalhe ocorrido na maior viagem que o Atlântico testemunhou revela a saga da única monarquia do continente europeu que sobreviveu à fúria republicana francesa, graças à preparação de uma viagem estratégica organizada “com seis meses de antecedência”.

A riqueza de conceitos do trabalho de Kenneth Light é fruto de um cuidado historiográfico fortemente comprometido com a análise precisa das fontes, capaz de comungar saberes marítimos, tecnológicos e culturais a serviço de um texto histórico de qualidade.

As idéias de Kenneth Light são ouvidas além-mar, circulando em conferências proferidas em Portugal e na Inglaterra. Nesta entrevista, temos a oportunidade de conhecer um navegante das letras que encontrou, sobretudo na História do Brasil, o seu porto seguro.

Revista de História Sua carreira de pesquisador é recente. Como se deu seu contato com a História?

Kenneth Light Morei no Brasil até os dez anos de idade. Era comum os ingleses mandarem seus filhos estudar na Inglaterra. Então, com essa idade fui para um colégio interno de jesuítas, onde fiquei por sete anos. Ao concluir meus estudos iniciais, fui para Londres estudar Economia. Trabalhei um pouco em Londres, depois no norte da Itália, e voltei para o Brasil. Passei duas décadas fora do país. No Brasil, trabalhei na Souza Cruz durante dezesseis anos como diretor, e com cinqüenta e dois anos me aposentei. Foi quando comecei a estudar História. Mas, realmente, eu não queria escrever o que os outros já tinham escrito muito melhor do que eu. Então, comecei lendo sobre D. João VI, e percebi que praticamente não havia discussão sobre a parte da viagem da Corte para o Brasil, em 1808.

RH Como o senhor conseguiu desenvolver sua pesquisa?


KL Passei um ano nos museus, em bibliotecas aqui e em Lisboa. E, na verdade, não consegui nada. Cheguei à conclusão de que os outros não tinham escrito porque não tinham encontrado nada. No Arquivo Central da Inglaterra, comecei a pesquisar os diários de bordo, livros de quarto – este é o nome correto – que estão guardados no Arquivo Central.

RH Qual a importância dessa fonte de pesquisa?


KL Na época em que D. João veio pra cá, vieram dezoito navios da Marinha portuguesa, entre naus, fragatas e corvetas. Ainda assim, seis ou sete ficaram em Lisboa, pois estavam em reparos. No Brasil já havia três ou quatro. Acho que na Índia havia dois ou três. De modo que eram umas trinta embarcações. Nesse mesmo ano, a Inglaterra tinha no mar oitocentos e oitenta navios de guerra. Você vê a diferença de tamanho. Os livros de quarto de todos esses navios da época, e mesmo anteriores e posteriores a ela, já estão todos guardados. Muitos deles ainda tinham sal, porque nunca tinham sido abertos. Eles foram depositados no Arquivo Central da Inglaterra um ou dois anos depois da chegada, porque eram usados para auditoria.


RH Foi difícil usar essas fontes?

KL Com toda essa informação,voltei para o Brasil e passei cinco anos analisando e tentando entender o que estava escrito, porque cada página de um diário desses é muito detalhada. E a Marinha tem gírias que são próprias dela. Além disso, a tinta da pena é fácil de ser apagada e difícil de ser secada: há pingos por todos os lados. Você não sabe se uma letra é i ou e. Então, como fica?


RH Algo de espantoso?

KL A relação de Portugal com o mar é tão intensa, que um escritor português chamado comandante António Marques Esparteiro escreveu uma obra em trinta volumes chamada Três Séculos no Mar. Somente para dar um pequeno exemplo de algo que escapa a muitos historiadores: o navio de D. João VI saiu da foz do Tejo, e os ingleses estavam esperando para escoltá-lo; o vento era sudoeste, e começou a ventar muito. O pessoal que descreveu a saída da Corte em terra firme disse que os navios estavam indo para o Brasil. Mas os navios estavam pegando o mar com vento de través, que é terrível, pouco confortável, além de perigoso. Muitos passageiros pediam para voltar. Entretanto, todos os navios fizeram o rumo em direção ao Canadá, porque com isso pegavam o vento soprando a favor. Aqueles que estavam em terra não puderam observar esta mudança no itinerário.


RH Em que momento a sorte da tripulação mudou?

KL No quarto dia, o vento mudou. Aí, viraram, subiram o mastro, vergas, velas, e nesse mesmo dia, à tarde, eles passaram a latitude de Lisboa. Mas já a 160 ou 170 milhas de distância. Isso eu posso dizer porque analisei os livros de quarto, mas o pessoal que está em terra e que não vê os navios depois das primeiras horas não pode dizer isso.

RH É uma visão nova?

KL Pela primeira vez se tem anotado o que estava acontecendo no mar, porque até então só havia registros e depoimentos de terra. Alguns historiadores famosos do passado escreveram que, enquanto a esquadra portuguesa saía, a esquadra inglesa estava lá fora esperando e, quando se encontraram, houve, como cumprimento, uma salva de tiros dos dois lados, e ambos os países se escoltaram até chegarem ao Brasil. Mas não foi bem isso que aconteceu.

RH E o que aconteceu?

KL Ao avistar a esquadra portuguesa saindo do Tejo, os navios ingleses receberam o sinal de seus capitães para se prepararem para uma possível batalha. Eles não sabiam ao certo se os navios portugueses estavam tripulados por inimigos, como os franceses, ou pelos próprios lusitanos. Na dúvida, era preciso se adiantar ao pior. Mas, felizmente, nenhum ataque ocorreu. Os navios conseguiram se identificar como aliados antes que isso fosse necessário.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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