terça-feira, 21 de abril de 2009

Luiz Mott - O humanista uranista


Revista de História

Paulistano de nascimento, baiano por adoção. Mas também piauiense, mineiro, sergipano (e muitos outros). O antropólogo e historiador, ou – como ele prefere se definir – “etnohistoriador”, Luiz Mott acumula na sua ficha pessoal a naturalidade dos lugares com os quais tem entrado em contato durante sua vida e sua pesquisa.

Decano do movimento homossexual brasileiro como fundador do Grupo Gay da Bahia no começo da década de 1980, sua forte atuação na luta pelos direitos dos homossexuais o levou a integrar a Comissão Nacional de Controle da Aids do Ministério da Saúde, e o Conselho Nacional de Combate à Discriminação do Ministério da Justiça.

Pesquisador de História da Religião, Mott cruzou fronteira ao abandonar a formação religiosa e passar a estudar os instrumentos de discriminação e estabelecimento da moral pela Igreja Católica, mas pelo olhar perdido no alto enquanto respondia às perguntas durante a entrevista, poderíamos pensar que estivesse tendo uma visão celeste.

Homem de contrastes, une na sua pessoa a severa disciplina escolástica do ex-seminarista dominicano à fé laica do ateu, o faro e a paciência do pesquisador de arquivo ao empenho e às lutas do militante, o fogo desbravador do bandeirante (“non ducor, duco”) à aguda sensibilidade diante dos dramas de muitos jovens.

Uma boina tirada discretamente da pasta e colocada na cabeça para a sessão de fotos no fim da entrevista indica com simpatia que a seriedade do pesquisador e a paixão do militante não conseguiram ofuscar a vaidade do homem.

REVISTA DE HISTÓRIA Só para desfazer um equívoco: o senhor é baiano?

LUIZ MOTT É, todo mundo pensa que sou baiano porque vivo na Bahia há muito tempo, mas, na verdade, sou paulista. Não é muito politicamente correto dizer isso, mas descendo dos bandeirantes. Nasci em 1946 na capital de São Paulo. Recentemente, recebi o título de Cidadão de Salvador e também o de Cidadão do Piauí, conferidos pelas Assembléias Legislativas desses estados, mas tenho muito orgulho de ser paulistano. O lema do estado de São Paulo é “non ducor, duco”, isto é, “não sou conduzido, conduzo”, e, de fato, em toda a minha vida eu procurei, tanto na parte acadêmica quanto na parte política, conduzir, tomar algumas iniciativas de liderança, seja escolhendo temas ainda pouco explorados na historiografia, seja defendendo os direitos humanos das minorias sexuais.

RH De onde veio sua sensibilidade para as ciências humanas?

LM Inicialmente, eu queria ser padre. Durante sete anos fui seminarista na Ordem dos Dominicanos, mas depois descobri que não tinha vocação religiosa, não gostava de rezar. Entrei então para o curso de Ciências Sociais, na USP, em 1965, pouco tempo depois do golpe militar, ainda na Maria Antônia, onde fui aluno de Otávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Ruth Cardoso e outros professores importantes. Foi por essa época que li dois livros que marcaram muito minha formação acadêmica e minha vida pessoal: Os parceiros do Rio Bonito, de Antonio Candido, e A ideologia alemã, do Karl Marx. Este último me tornou um ateu militante. De ex-dominicano, tornei-me uma pessoa preocupada com a questão do ateísmo, com o materialismo histórico. Isso me abriu a cabeça para uma antropologia mais orgânica, voltada para o compromisso com a realidade empírica, que é uma postura diferente da do pesquisador teórico.

RH O início da sua carreira foi como antropólogo. Como virou historiador?

LM Logo no começo, descobri que gostava mais de pesquisar documentos do que de ficar entrevistando meus contemporâneos. Mas não tive uma formação histórica, minha profundidade teórica nessa área é mínima, cito pouquíssimos luminares da historiografia. No meu curso de Ciências Sociais, tive apenas um semestre com o professor Carlos Guilherme Mota, a quem devo o pouco que sei de metodologia e de teoria histórica. Hoje tenho consciência de que, na verdade, sou um etnoistoriador – um etnoistoriador que deu uma contribuição crucial para o resgate de temas até então inexplorados no Brasil.


RH A questão da homossexualidade, por exemplo...

LM É, mas, antes de mais nada, devo dizer que, embora o Luiz Mott esteja associado, no imaginário acadêmico e midiático, à questão homossexual, na verdade vou bem além disso. Modéstia à parte, sou também um expert em outras áreas. Fui eu quem mais escreveu sobre a Inquisição, o Sergipe do século XIX ou a pecuária no sertão do Piauí colonial, para dar apenas três exemplos. Não há tantos trabalhos publicados quanto os que eu divulguei sobre esses temas. Pesquisei também sobre as feiras brasileiras, o pequeno comércio exercido pelas negras de tabuleiro, a revolta do Haiti e a negrofobia aqui no Brasil.

RH A formação religiosa foi importante na sua atividade acadêmica?

LM Sem dúvida, me deu um background que, segundo o professor Stuart Schwartz, é raro entre os historiadores brasileiros. Poucos têm essa experiência religiosa e, ao mesmo tempo, essa visão crítica de um ateu. Devo a minha disciplina escolástica aos dominicanos – um gosto pela arte religiosa e pela música clássica, por exemplo, e um conhecimento de línguas. Saí do seminário falando francês correntemente; além disso, aprendi grego e latim, sem falar em teologia, em liturgia etc, que com certeza me ajudaram nas pesquisas sobre religião popular, sobre Inquisição, sobre moralidade sexual.

RH E agora, qual é sua relação com a religião?

LM Não chego a ser anticlerical, mas tenho uma visão crítica, e a mais objetiva possível, em relação à Igreja Católica.

RH O senhor vai comemorar a visita do papa ao Brasil?

LM Não; neste caso, não há o que comemorar. Devo dizer ainda que a visita do papa será alvo de grandes manifestações por parte do movimento homossexual brasileiro organizado. A visita desse papa é extremamente mal-vinda não só pelos gays, mas pelo movimento das mulheres, o movimento contra a Aids etc. Bento XVI disse que “a homossexualidade é intrinsecamente má”. Ele tem sido o baluarte da ignorância, da intolerância, da homofobia, do machismo. É inaceitável que um chefe da maior e da mais organizada religião mundial tenha um discurso tão intolerante.


RH O que o movimento gay programou para a visita do papa?

LM Haverá manifestações em todas as capitais, em frente às catedrais, com as bandeiras do arco-íris, mas cada grupo vai decidir o grau de irreverência em relação a este papa, que é, sem dúvida nenhuma, o corifeu da homofobia. Nem papas que viveram em épocas mais conservadoras, como João Paulo II e Pio XII, ousaram sintetizar de forma tão cruel a sua intolerância.

RH Quando começaram suas pesquisas sobre a Inquisição?

LM A partir de 1977, com as minhas pesquisas sobre a história da homossexualidade no Brasil. Passei mais de um ano e meio na Torre do Tombo, em Lisboa. Pesquisar sobre a sodomia foi a maneira que encontrei de me tornar um intelectual orgânico, ou seja, passei a pesquisar para mostrar que a presença da homossexualidade era uma vertente do comportamento humano tão antiga quanto a heterossexualidade e a bissexualidade. Quis dar vez e voz a essa minoria social que um complô do silêncio impedia que tivesse visibilidade.

RH O senhor escreveu sobre as relações entre a formação eclesiástica e o homossexualismo. Podia falar sobre isso?

LM Por favor, não falem homossexualismo, escrevam homossexualidade. Homossexualismo é um termo médico, usado ainda antes da despatologização da homossexualidade, em 1985, pelo Conselho Federal de Medicina, graças a uma campanha que eu liderei aqui no Brasil. Depois a OMS, Organização Mundial da Saúde, confirmou, e a homossexualidade foi retirada do código internacional de doenças, agora não é mais. Então, deve-se usar sempre o termo homossexualidade. E travesti, sempre no feminino: “a travesti”, porque é assim que elas querem ser chamadas.

RH Então fale sobre a homossexualidade e o clero...

LM Na tradição ocidental, a sodomia sempre esteve visceralmente associada ao clero, a tal ponto que durante a Idade Média era chamada de “vício dos clérigos”. Tanto que o Livro de Gomorra, obra famosa de São Pedro Damiani, que era um bispo do século XI, foi escrito para denunciar a homossexualidade no clero. É, de fato, uma questão muito problemática para a Igreja, e que na tradição luso-brasileira se reflete nos processos da Inquisição. Um em cada três sodomitas denunciados e presos era sacerdote, seminarista, sacristão etc., ou seja, pertencia ao clero.


RH Há uma explicação para isso?

LM Acho que sim. Dentro da Igreja eles podiam camuflar a própria homossexualidade, já que não tinham de casar e, além disso, passavam a viver em comunidades masculinas. A própria vida clerical permite a exteriorização de um certo estilo de vida muito ligado à subcultura gay. As vestimentas, a delicadeza de certas funções, como a ornamentação dos altares etc., tudo isso certamente inspirou muitos a procurarem a Igreja como um local onde podiam viver mais facilmente a sua homossexualidade.

RH Há um artigo seu muito interessante em que é discutida a origem da palavra “gay”.

LM Chama-se “Pagode português – a subcultura gay em Portugal nos tempos da Inquisição”. É interessante porque uma das críticas que hoje se faz ao movimento homossexual é sobre a utilização da palavra “gay”, pois isso seria repetir modelos norte-americanos. Mas o professor John Boswell descobriu que, na verdade, desde o século XIV, no catalão provençal, a palavra “gai”, que inclusive deu origem às palavras “gaiato” e “gaia ciência”, era sinônimo de “rapazes alegres”, trovadores com um comportamento andrógino. A alegria deles era considerada um tanto ou quanto sodomítica, e usada como sinônimo de homossexual. De modo que é uma palavra que tem raízes mais antigas do que se imagina.

RH Como começou o seu interesse pela religiosidade popular?

LM Foi pesquisando, sobretudo na Torre do Tombo e no Arquivo Histórico Ultramarino, em Portugal, e no Arquivo da Cúria da Bahia, que descobri a importância da santidade no Brasil colonial. É curioso que a minha formação religiosa nos dominicanos era muito cristocêntrica, havia pouco de devoção aos santos. No entanto, descobri que o imaginário dos católicos, no dia-a-dia, estava povoado por uma verdadeira constelação de santos. Havia diabos também. Mas a presença da santidade era um elemento muito importante, presente em todos os estamentos sociais da Colônia. Então fiz um levantamento sobre as manifestações sobrenaturais, aparições de Nossa Senhora e de outros santos aqui antes mesmo da chegada dos portugueses.

RH Há muitos casos registrados?

LM Muitos, como o de São Tomé, que teria deixado traços pelo litoral, nas pedras; a presença de São Sebastião na conquista do Rio de Janeiro, de Nossa Senhora da Vitória, lá em Ilhéus, lutando contra os indígenas etc. Mas uma das grandes descobertas, uma das pérolas dos meus muitos anos de pesquisa nos arquivos, foi o processo da Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, africana da Costa da Mina, do Reino do Daomé, e que de prostituta se torna uma mística, e funda o Recolhimento do Parto, aqui na zona central do Rio de Janeiro, no século XVIII. Desenvolveu-se em torno dela toda uma liturgia, todo um ritual de adoração e espiritualidade. Ela chegou a escrever um livro de mais de 200 páginas que, infelizmente, foi queimado, no momento da sua prisão, pelo Tribunal do Santo Ofício. Isso me fez então aprofundar mais esses temas relacionados às virtudes da santidade no Brasil, e descobrir uma grande complexidade na vida social e religiosa brasileira.


RH Tão complexa que podia transformar uma prostituta em santa...

LM Sim, uma sociedade altamente estamental e racista, mas que abria uma brecha para a possibilidade de uma negra tornar-se santa. Uma negra feia, segundo depoimento dos seus contemporâneos, e com um defeito no braço, em virtude de ter sido chicoteada excessivamente, acusada de feitiçaria, por ordem do primeiro bispo de Mariana, dom frei Manoel da Cruz, que era muito piedoso, mas via nela um perigo, em termos de heterodoxia. Era uma negra africana, ex-prostituta, ex-escrava, e, no entanto, foi alvo da maior veneração, a ponto de os seus senhores se ajoelharem para beijar-lhe os pés. Isso me apontou a importância de pesquisar a vida religiosa no Brasil colonial, mostrando essas contradições e esse sincretismo, essas miscigenações culturais.

RH Qual era a posição da Igreja em relação a Rosa Egipcíaca?

LM Bem favorável. Representantes da hierarquia religiosa do Rio de Janeiro diziam que ela era a “flor do Rio de Janeiro”, e que Santa Teresa D’Ávila, a maior doutora da Igreja, não passava de uma “menina de recados da preta Rosa”; enfim, uma inversão total de valores em termos de hierarquia social, racial e estamental. Ela só caiu em desgraça porque exorbitou, no sentido de um culto exagerado à própria pessoa. Era absolutamente megalomaníaca, se proclamava a nova redentora da humanidade e que não havia santa maior no céu do que ela. Agora, tudo isso apoiado por padres.

RH Por que o senhor escolheu viver na Bahia?

LM Porque eu gostava da cultura negra. Agora, infelizmente, tenho uma certa desilusão em relação ao movimento negro e à negritude baiana e brasileira contemporânea. Eu me sinto minoria ameaçada numa Bahia dominada pela baianidade nagô. Cada vez mais, vejo atos, gestos e palavras de intolerância racial contra os brancos. Já fui chamado de branquelo, de branco azedo etc. Embora eu não negue que exista discriminação no Brasil, nunca vi ninguém insultar um negro racialmente. De modo que eu tenho uma certa melancolia em relação a esses meus 30 anos de Bahia. Acho que, infelizmente, a importação do modelo de antagonismo racial norte-americano, diz-se à boca miúda que influenciado na nossa realidade sobretudo pela Fundação Ford, teve um papel negativo, por ter contribuído para essa racialização da sociedade brasileira.

RH Qual a sua posição sobre as cotas raciais?

LM Sou a favor, na medida em que elas sejam universalizadas para todas as outras minorias, incluindo homossexuais, deficientes físicos, obesos etc., que sofrem discriminação social e econômica pelo fato de portarem esses estigmas.


RH Muitos o criticam por misturar vida pessoal com trabalho acadêmico.

LM É, costumam dizer que o Luiz Mott vive inventando que todo mundo é homossexual, que personagens históricos são homossexuais. Na verdade, a maioria das minhas revelações não é inédita. No caso de Zumbi dos Palmares, parti de uma indicação do professor Décio Freitas. As pistas existentes me levaram a sugerir uma possível homossexualidade de Zumbi.

RH Que pistas?

LM Há pelo menos cinco pistas sugerindo que ele era muito mais ligado à homossexualidade do que à heterossexualidade. Nunca foi casado. Foi criado, lá em Porto Calvo, por um padre, seu proprietário, que o tratava de “meu negrinho”. Era como os padres sodomitas chamavam seus amantes. Ele vinha de uma etnia de Angola, os famosos quimbandas, do reino da rainha Ginga, em que havia muita homossexualidade. Fora isso, tinha um apelido, “Sueca”, no mínimo suspeito para um negão, e, ao ser assassinado, teve o pênis cortado e colocado dentro da boca. Uma forma freqüente de se castigar homossexuais, até contemporaneamente.

RH O movimento negro não gostou muito dessas revelações...

LM Causaram danos até ao meu patrimônio. Picharam o muro da minha casa com os dizeres “Zumbi vive”, e meu carro na época, um Lada importado, teve o vidro quebrado. Fui à delegacia pedir proteção de vida, com medo de um atentado, mas não adiantou nada. Foi uma experiência extremamente negativa, mas, ao mesmo tempo, tenho outras extremamente positivas.

RH Por exemplo?

LM Por exemplo, ter descoberto a existência de uma escrava no Piauí, chamada Esperança Garcia, que teve a coragem de enviar uma carta ao governador, em 1770, denunciando os maus-tratos que sofria do feitor: “Meu corpo é um colchão de pancadas”. A data dessa carta que descobri passou a ser o Dia Estadual da Consciência Negra no Piauí. Há uma estátua da Esperança Garcia, em pedra, no principal centro de artesanato do estado, em Teresina. Ela deu nome a uma maternidade em São João do Piauí e, recentemente, um grupo de feministas negras adotou o mesmo nome, de Esperança Garcia. Então, é uma grande alegria para um historiador resgatar uma personagem histórica que passa a ser um símbolo, um ícone da emancipação da população negra do Piauí.


RH O senhor tem orgulhos também no campo da militância?

LM Tenho a alegria, a felicidade e o reconhecimento por ter salvado muitas vidas, inclusive por ter feito, pioneiramente, a prevenção da Aids na Bahia, como membro da Comissão Nacional de Controle da Aids. Depois, como humanista, defensor dos direitos humanos dos homossexuais, eu tenho ajudado muitos jovens a se assumirem, a terem auto-estima e, sobretudo, a não se matarem.

RH Apesar de se sentir ameaçado na Bahia, pretende continuar vivendo lá?

LM Ah, sim, pretendo morrer na Bahia. Aliás, comprei um túmulo, por vinte mil reais, decorado com mármore preto de Ubatuba, muito lindo. Fica no melhor cemitério de Salvador, pois já que vivi bem em vida, quero também viver bem pós-morte. Já escrevi até o epitáfio: “Aqui jaz Luiz Mott, humanista e uranista”. Vou pôr “uranista”, porque se puser “Luiz Mott, humanista e gay”, algum vândalo pode destruir a sepultura. “Uranista”, no século XIX, era sinônimo de homossexual. Assim, a inscrição ficará mais erudita e obrigará as pessoas a irem ao dicionário.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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