terça-feira, 13 de outubro de 2009

Luís Henrique Dias Tavares


Luís Henrique Dias Tavares
As histórias regionais são a história do Brasil


A Bahia é, desde o nascimento, um tema permanente na vida e pensamento do historiador Luís Henrique Dias Tavares. Praticamente todos os temas históricos ligados ao seu estado natal passaram por sua análise nesses mais de 50 anos de ofício: o comércio de escravos, a Conjuração Baiana de 1798, as lutas pela independência e as transformações experimentadas ao longo do século XX. Autor de uma celebrada História da Bahia, já na décima edição, Luís Henrique defende a necessidade de se pesquisar os aspectos regionais de nosso passado para valorizar a diversidade que caracteriza nosso país. “As histórias dos estados fazem parte da história do país. As nossas histórias do Brasil, em destaque as que são didáticas, não dão atenção a importantes acontecimentos históricos ocorridos nos estados”, afirma ele.

Professor aposentado da Universidade Federal da Bahia, Luís Henrique recebeu a Revista de História em sua casa em Salvador, com a hospitalidade característica dos bons baianos. Nessa entrevista, ele ensina que a Bahia, além de ser de todos os santos, é também de muita história e tradição. Sobre a Conjuração Baiana, tema polêmico da historiografia brasileira, acredita que tenha ocorrido em duas fases distintas: a primeira contando com a participação de proprietários; a segunda, mais radical, contando com libertos e cativos. “O objetivo dos conjurados era fundar naquela terrivelmente pobre e miserável capitania da Bahia a primeira república no Brasil: a República Bahiense.”

Ao falar do país hoje, aponta para um atraso crônico, atribuído por ele à escravidão. Por conta disso, afirma, ainda que com humor, que “o Brasil só será o Brasil em 2050”.


Revista de História – Quando o senhor começou a se interessar por história?
Luís Henrique Dias Tavares – Desde o curso colegial. Tive um grande professor chamado Luís Adolfo. Era um professor de excelentes qualidades, muito tímido, muito simples, muito inteligente e muito lido. Suas aulas eram encantadoras. Foi em grande parte por influência dele que fiz vestibular para o curso de história, na Faculdade de Filosofia, em 1948.

RH – Antes disso tinha outros interesses?
LHDT – Tive uma pequena experiência humana, digamos assim, como jornalista. Era repórter do jornal O Momento, do Partido Comunista Brasileiro. Cheguei a cobrir o último comício dos deputados comunistas estaduais, que teve como destaque o deputado Giocondo Dias, na praça da Sé, em São Paulo. Este comício foi disperso à bala. Fui preso com um colega, Henrique Lima Santos, que na época também era jornalista. Fomos levados para a Secretaria de Segurança, apanhamos, levamos muitas bordoadas, muitos pontapés. Três dias depois fiz o vestibular, ainda meio tonto por causa das pancadas.

RH – O senhor atuava na imprensa comunista e ao mesmo tempo cursava o segundo grau, é isso?
LHDT – Isso. Mais tarde iria viver uma outra fase de jornalista, no Jornal da Bahia, entre 1958 a 1963. Mas aí eu era só cronista, foi quando passei a explorar o meu lado ficcionista.

RH – Durante a sua militância política, o PCB estava na legalidade...
LHDT – Estava, mas também pegamos a ilegalidade, a partir de 1947. Sou um dos que colocam que o Estado Novo não terminou em 1945. Na verdade, perdurou no governo Dutra, quando se encontraram novas formas para não acabar com a repressão política. Por outro lado, tenho posições extremamente críticas em relação ao Partido Comunista Brasileiro, quanto à sua atuação e aos jornais que conseguiu fundar e manter em todos os estados do Brasil, incluindo O Momento.


RH – Voltando à sua atividade de cronista, essa vivência influenciou o seu trabalho de historiador?
LHDT – De certa maneira, sim. Meu trabalho de historiador começou com a primeira edição de História da Bahia. Foi um colega mais velho e mais experiente, o professor Luís Monteiro da Costa, que pediu que eu fizesse esse trabalho. Essa disciplina, história da Bahia, existia no ensino médio da Bahia. Não sei bem em qual governo, um secretário de Educação decidiu tirá-la da programação obrigatória.

RH – O senhor acha importante o ensino de histórias regionais no Brasil?
LHDT – Acho. As histórias dos estados fazem parte da história do país. As nossas histórias do Brasil, em destaque as que são didáticas, não dão atenção a importantes acontecimentos históricos ocorridos nos estados. A história conhecida pelos alunos é a história do Sul do Brasil, muito mais Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Muito dificilmente Bahia, Pernambuco, Paraíba, Sergipe, Alagoas, Maranhão, Pará e Amazonas aparecem nesses compêndios e nos programas de história do Brasil das escolas dos diferentes estados. Isso resulta num enorme buraco no conhecimento de fatos históricos relevantes. Para não ficar só na Bahia: os brasileiros não conhecem a chamada Confederação do Equador, porque o episódio está muito confinado a Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará – o que é totalmente errado. O nosso colega Evaldo Cabral de Mello, um historiador exemplar, publicou este ano um livro, A outra independência, que procura colocar a Confederação do Equador, com toda a sua importância, dentro da história do Brasil. Desejo muito que o texto seja conhecido e lido. Ainda assim, o importante mesmo é conseguirmos que as histórias didáticas do Brasil que circulam nos colégios de ensino médio relatem os fatos acontecidos nesses estados.

RH – Que episódio o senhor destaca na Bahia, especificamente?
LHDT – A história da independência da Bahia, por exemplo, sempre foi para mim razão de grande preocupação. Tanto assim que tempos atrás, muito às carreiras, atendi a uma solicitação do falecido editor Ênio Silveira, da antiga Civilização Brasileira, e, numa ocasião em que estávamos comemorando mais um aniversário da Independência, preparei A independência do Brasil na Bahia, livro que teve alguma aceitação entre os colegas, mesmo porque começou a colocar novos problemas.


RH – O assunto continua a lhe interessar?
LHDT – Ah, sem dúvida, muito. No ano passado, ainda com o tema me martelando a consciência, sentei para reescrever A independência do Brasil na Bahia. Essa nova edição está agora programada pela editora da Universidade Federal da Bahia e provavelmente vai ser entregue ao público leitor em dezembro deste ano. O livro está pronto, falta apenas imprimir, mas imprimir custa dinheiro, e a universidade não tem como absorver os custos. A editora vive do que pode produzir e do que ela vende, mas ultimamente tem passado por algumas dificuldades. O livro ainda não está nas livrarias porque faltam recursos para a impressão.

RH – O senhor reescreve muito seus trabalhos?
LHDT – Reescrevo. Faço um esforço muito grande para torná-los mais claros, a cada publicação. O propósito é que minhas colocações sejam mais bem entendidas pelos leitores – não só pelos colegas profissionais de história, mas por todos aqueles que se interessam pelos assunto que abordo.

RH – O senhor ainda escreve obras de ficção?
LHDT – Escrevo mas não publico. Nesses últimos três anos andei fazendo umas experiências na área da dramaturgia. Escrevi duas peças, que foram publicadas pela revista da Academia de Letras da Bahia. Mas posso, se for possível, voltar às novelas. Quero retomar uma novela que comecei e não terminei. Ficou apenas no primeiro capítulo, e isso já tem cinco anos.


RH – É difícil conciliar a mente sonhadora do ficcionista com a realidade dos fatos históricos?
LHDT – Tenho conseguido separar as duas coisas. Tive um professor de história na Faculdade de Filosofia que me deu a seguinte coordenada: só se faz história pesquisando nos arquivos. De modo que por isso mesmo todos os meus livros de história são muito mais resultados de pesquisas do que de leituras sobre o tema. Por exemplo, o tráfico de escravos. Tem uma bibliografia extensa, muito extensa, e toda ela indispensável. Mas o meu livro Comércio proibido de escravos é calcado, principalmente, nas pesquisas que fiz sobre o assunto no Foreign Office, em Londres.

RH – Um outro assunto, a Conjuração Baiana de 1798. Teria sido a primeira tentativa de revolução no Brasil?
LHDT – Não vou a tanto. Estou convencido de que esse movimento, ocorrido no final da década de 1790 na capitania da Bahia, tem duas fases distintas. A primeira, em 1797, reúne baianos de situação, que tinham propriedades no Recôncavo. Estes estavam presos aos comerciantes portugueses. Pagavam as suas compras, principalmente escravos, com dolo de agiotagem: cada escravo comprado era pago com juros de três, quatro, cinco por cento ao mês, o que tornava qualquer compra, sobretudo a de escravos, extremamente cara. Eu estou certo de que, em 1797, essa categoria de proprietários e também jovens militares baianos brasileiros estiveram conversando sobre a possibilidade de tirar a capitania da Bahia do Império português, da ordem e do domínio da monarquia absolutista portuguesa.

RH – Nessa fase tudo não passou da conversa?
LHDT – Ainda não tenho elementos para afirmar que em 1797 ocorreu mais do que conversas, e se estas se encaminhavam para uma rebelião ou revolução. É importante destacar que o movimento reunia, nesse período, personalidades baianas, militares e proprietários com fazendas de cana e engenhos de açúcar no Recôncavo. Eram os elementos que formariam depois a classe dominante brasileira, ou as classes dominantes brasileiras. Essa fase da conspiração foi denunciada ao então governador, Fernando José de Portugal, e ele tomou providências que são muito difíceis de serem entendidas. Em vez de coordenar prisões, ele avisou aos que estavam mais indicados como conspiradores militantes – é o caso de Cipriano José Barata de Almeida – que diminuíssem as suas atividades, para que se acautelassem, porque ele teria de agir.


RH – E 1798?
LHDT – Foi diferente. Havia toda aquela inquietação de sentido político. A capitania da Bahia necessitava de ampla e total liberdade de comércio para vender seus produtos a quem pagasse melhor. Defendia-se uma identificação baiana, independente de Portugal. Mas também se pregava a completa destruição do trabalho escravo. Da conjuração de 1798 participaram brasileiros livres descendentes de escravos e brasileiros escravos.

RH – Como é que o senhor compara ou aproxima essa experiência rebelde baiana de 1797 e 98 – para aproveitar sua divisão – das outras inconfidências ocorridas no Brasil?
LHDT – Além do traço de crítica religiosa, introduziu questões como a liberdade de escravos e contou com a participação de setores subalternos. Isso trouxe para a Bahia, digamos, a nota mais radical da crítica contra a colonização, que não teve nas outras. Lucas Dantas de Amorim Torres, Manoel Faustino, João de Deus, Luís Gonzaga das Neves, que participaram do movimento, tinham antepassados escravos. Filho de escravo não esquece que foi escravo. Descendente de escravo não esquece que tem ascendente escravo. Aqueles quatro mártires – Lucas, Manoel Faustino, João de Deus, Luís Gonzaga – foram escolhidos para serem enforcados e esquartejados para que a repressão não atingisse outros brasileiros que eram igualmente contra a situação de colônia da capitania da Bahia e também desejavam libertar os escravos. O objetivo dos conjurados era fundar naquela terrivelmente pobre e miserável capitania da Bahia a primeira república no Brasil: a República Bahiense.

RH – Por que a memória nacional esqueceu esses mártires ou sentenciados do movimento da Bahia e não esquece os inconfidentes de Minas Gerais?
LHDT – É fácil de entender. Os inconfidentes mineiros, direta ou indiretamente, fossem mais ou menos ricos, e até mesmo o nosso sagrado Tiradentes, todos eles pertenciam às classes dominantes. Mas aqui na Bahia havia filhos de escravos e até escravos. É isso que diferencia grandemente a sedição baiana da mineira. Aproveito para repelir aqui, com o mestre Hélio Vianna, essa denominação de inconfidentes. A palavra inconfidente é injuriosa. Eles são, na verdade, nossos heróis.


RH – Saltando um pouco no tempo, de 1798 para 1822, quais foram as particularidades da luta pela Independência travada aqui na Bahia?
LHDT – A situação que se instalou na cidade de Salvador no início de 1822 colocou forçosamente a Bahia numa situação bem diferente da das outras províncias do Brasil. A luta armada começou aqui muito antes de a Bahia ser informada de todas as vinculações e circunstâncias que estavam encaminhando o Brasil a se separar de Portugal, com o príncipe d. Pedro transformado em rei do Brasil. Não que os baianos tenham sido mais avançados politicamente que os fluminenses, os paulistas, os mineiros e os gaúchos. É que aqui eclodiu, antes da Independência proclamada por d. Pedro, uma luta armada para impedir a posse do brigadeiro Madeira de Melo, nomeado por Portugal governador de Armas da Bahia. A nomeação não foi aceita pelos baianos em nenhum instante, e muito especialmente pelos grandes proprietários de engenhos, plantações de cana, gado e escravos.

RH – O senhor já dirigiu o Arquivo Público do Estado da Bahia. Como foi essa experiência? Fale um pouco dos tesouros que podem ser encontrados lá.
LHDT –Toda a documentação que está no Arquivo Público do Estado da Bahia é indispensável para conhecer o Brasil. Mas a instituição tem graves problemas, como todos os outros arquivos do Brasil. Digo também que é impossível estudar qualquer tema da história da Bahia sem conhecer o arquivo da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Só que hoje a Biblioteca Nacional é uma fundação, e como tal carente de pessoal para cuidar dela como um bem único no país. Na minha opinião, os arquivos têm de estar sob a responsabilidade direta do Poder Executivo. Os arquivos dos estados devem estar ligados aos governadores dos estados, ao Poder Executivo, e devem ter recursos não só para manter a enorme e valiosa documentação que possuem, mas para completá-la e continuar recolhendo material.

RH – Qual é a riqueza, a potencialidade e a história que o Brasil ainda não conhece da região do Recôncavo?
LHDT – É a história do açúcar, é a história do fumo. A desgraça da Bahia é que não teve lucidez e condições para avançar tecnicamente.


RH – Quando o senhor elabora a sua história da Bahia, o que encontra de mais específico, de mais particular, no passado do estado?
LHDT – A continuidade do atraso. A antiga capitania foi produtora de artigos de grande circulação no comércio externo, como o açúcar e o tabaco, mas não sustentou essa sua aparente riqueza, não teve suficiente lucidez para caminhar no sentido do desenvolvimento. Acredito que a manutenção do trabalho escravo tenha sido um dos motivos desse atraso. A história da escravidão no Brasil é terrivelmente tocante. Por causa dela todos os brasileiros, ao se cumprimentarem, deveriam acrescentar o seguinte: “Nós tivemos trabalho escravo até 1888, estamos pagando esse terrível atraso”. E vamos continuar pagando, acredito eu, ainda nesse chamado novo século XXI.

RH – Além da escravidão, que outras causas do atraso o senhor. enumera?
LHDT – No século XX, as diferenças regionais acentuaram-se com o Estado Novo e o período chamado de ditadura militar, mas que não foi ditadura só dos oficiais militares, seja do Exército da Marinha ou Aeronáutica. Foi uma ditadura da qual participaram intimamente os grandes empresários nacionais – paulistas, cariocas, mineiros etc. Foi também a ditadura dos capitalismos norte-americano, inglês, francês e assim por diante. Não estou querendo dirimir a responsabilidade dos militares brasileiros naquele período negro – negro no sentido de atraso, de total atraso do nosso país. Essa última ditadura que o Brasil sofreu vai nos custar este século XXI. Sou amigo fraternal de Leslie Bethel e conversamos muito sobre o Brasil. Outro dia eu lhe dizia: o Brasil só será o Brasil em 2050. Ele deu uma bonita risada e me disse: “Ilusão sua, meu querido Luís Henrique. Em 2080 ainda estaremos pagando o nosso atraso”.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Nenhum comentário: