terça-feira, 21 de abril de 2009

Luiz Mott - O humanista uranista


Revista de História

Paulistano de nascimento, baiano por adoção. Mas também piauiense, mineiro, sergipano (e muitos outros). O antropólogo e historiador, ou – como ele prefere se definir – “etnohistoriador”, Luiz Mott acumula na sua ficha pessoal a naturalidade dos lugares com os quais tem entrado em contato durante sua vida e sua pesquisa.

Decano do movimento homossexual brasileiro como fundador do Grupo Gay da Bahia no começo da década de 1980, sua forte atuação na luta pelos direitos dos homossexuais o levou a integrar a Comissão Nacional de Controle da Aids do Ministério da Saúde, e o Conselho Nacional de Combate à Discriminação do Ministério da Justiça.

Pesquisador de História da Religião, Mott cruzou fronteira ao abandonar a formação religiosa e passar a estudar os instrumentos de discriminação e estabelecimento da moral pela Igreja Católica, mas pelo olhar perdido no alto enquanto respondia às perguntas durante a entrevista, poderíamos pensar que estivesse tendo uma visão celeste.

Homem de contrastes, une na sua pessoa a severa disciplina escolástica do ex-seminarista dominicano à fé laica do ateu, o faro e a paciência do pesquisador de arquivo ao empenho e às lutas do militante, o fogo desbravador do bandeirante (“non ducor, duco”) à aguda sensibilidade diante dos dramas de muitos jovens.

Uma boina tirada discretamente da pasta e colocada na cabeça para a sessão de fotos no fim da entrevista indica com simpatia que a seriedade do pesquisador e a paixão do militante não conseguiram ofuscar a vaidade do homem.

REVISTA DE HISTÓRIA Só para desfazer um equívoco: o senhor é baiano?

LUIZ MOTT É, todo mundo pensa que sou baiano porque vivo na Bahia há muito tempo, mas, na verdade, sou paulista. Não é muito politicamente correto dizer isso, mas descendo dos bandeirantes. Nasci em 1946 na capital de São Paulo. Recentemente, recebi o título de Cidadão de Salvador e também o de Cidadão do Piauí, conferidos pelas Assembléias Legislativas desses estados, mas tenho muito orgulho de ser paulistano. O lema do estado de São Paulo é “non ducor, duco”, isto é, “não sou conduzido, conduzo”, e, de fato, em toda a minha vida eu procurei, tanto na parte acadêmica quanto na parte política, conduzir, tomar algumas iniciativas de liderança, seja escolhendo temas ainda pouco explorados na historiografia, seja defendendo os direitos humanos das minorias sexuais.

RH De onde veio sua sensibilidade para as ciências humanas?

LM Inicialmente, eu queria ser padre. Durante sete anos fui seminarista na Ordem dos Dominicanos, mas depois descobri que não tinha vocação religiosa, não gostava de rezar. Entrei então para o curso de Ciências Sociais, na USP, em 1965, pouco tempo depois do golpe militar, ainda na Maria Antônia, onde fui aluno de Otávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Ruth Cardoso e outros professores importantes. Foi por essa época que li dois livros que marcaram muito minha formação acadêmica e minha vida pessoal: Os parceiros do Rio Bonito, de Antonio Candido, e A ideologia alemã, do Karl Marx. Este último me tornou um ateu militante. De ex-dominicano, tornei-me uma pessoa preocupada com a questão do ateísmo, com o materialismo histórico. Isso me abriu a cabeça para uma antropologia mais orgânica, voltada para o compromisso com a realidade empírica, que é uma postura diferente da do pesquisador teórico.

RH O início da sua carreira foi como antropólogo. Como virou historiador?

LM Logo no começo, descobri que gostava mais de pesquisar documentos do que de ficar entrevistando meus contemporâneos. Mas não tive uma formação histórica, minha profundidade teórica nessa área é mínima, cito pouquíssimos luminares da historiografia. No meu curso de Ciências Sociais, tive apenas um semestre com o professor Carlos Guilherme Mota, a quem devo o pouco que sei de metodologia e de teoria histórica. Hoje tenho consciência de que, na verdade, sou um etnoistoriador – um etnoistoriador que deu uma contribuição crucial para o resgate de temas até então inexplorados no Brasil.


RH A questão da homossexualidade, por exemplo...

LM É, mas, antes de mais nada, devo dizer que, embora o Luiz Mott esteja associado, no imaginário acadêmico e midiático, à questão homossexual, na verdade vou bem além disso. Modéstia à parte, sou também um expert em outras áreas. Fui eu quem mais escreveu sobre a Inquisição, o Sergipe do século XIX ou a pecuária no sertão do Piauí colonial, para dar apenas três exemplos. Não há tantos trabalhos publicados quanto os que eu divulguei sobre esses temas. Pesquisei também sobre as feiras brasileiras, o pequeno comércio exercido pelas negras de tabuleiro, a revolta do Haiti e a negrofobia aqui no Brasil.

RH A formação religiosa foi importante na sua atividade acadêmica?

LM Sem dúvida, me deu um background que, segundo o professor Stuart Schwartz, é raro entre os historiadores brasileiros. Poucos têm essa experiência religiosa e, ao mesmo tempo, essa visão crítica de um ateu. Devo a minha disciplina escolástica aos dominicanos – um gosto pela arte religiosa e pela música clássica, por exemplo, e um conhecimento de línguas. Saí do seminário falando francês correntemente; além disso, aprendi grego e latim, sem falar em teologia, em liturgia etc, que com certeza me ajudaram nas pesquisas sobre religião popular, sobre Inquisição, sobre moralidade sexual.

RH E agora, qual é sua relação com a religião?

LM Não chego a ser anticlerical, mas tenho uma visão crítica, e a mais objetiva possível, em relação à Igreja Católica.

RH O senhor vai comemorar a visita do papa ao Brasil?

LM Não; neste caso, não há o que comemorar. Devo dizer ainda que a visita do papa será alvo de grandes manifestações por parte do movimento homossexual brasileiro organizado. A visita desse papa é extremamente mal-vinda não só pelos gays, mas pelo movimento das mulheres, o movimento contra a Aids etc. Bento XVI disse que “a homossexualidade é intrinsecamente má”. Ele tem sido o baluarte da ignorância, da intolerância, da homofobia, do machismo. É inaceitável que um chefe da maior e da mais organizada religião mundial tenha um discurso tão intolerante.


RH O que o movimento gay programou para a visita do papa?

LM Haverá manifestações em todas as capitais, em frente às catedrais, com as bandeiras do arco-íris, mas cada grupo vai decidir o grau de irreverência em relação a este papa, que é, sem dúvida nenhuma, o corifeu da homofobia. Nem papas que viveram em épocas mais conservadoras, como João Paulo II e Pio XII, ousaram sintetizar de forma tão cruel a sua intolerância.

RH Quando começaram suas pesquisas sobre a Inquisição?

LM A partir de 1977, com as minhas pesquisas sobre a história da homossexualidade no Brasil. Passei mais de um ano e meio na Torre do Tombo, em Lisboa. Pesquisar sobre a sodomia foi a maneira que encontrei de me tornar um intelectual orgânico, ou seja, passei a pesquisar para mostrar que a presença da homossexualidade era uma vertente do comportamento humano tão antiga quanto a heterossexualidade e a bissexualidade. Quis dar vez e voz a essa minoria social que um complô do silêncio impedia que tivesse visibilidade.

RH O senhor escreveu sobre as relações entre a formação eclesiástica e o homossexualismo. Podia falar sobre isso?

LM Por favor, não falem homossexualismo, escrevam homossexualidade. Homossexualismo é um termo médico, usado ainda antes da despatologização da homossexualidade, em 1985, pelo Conselho Federal de Medicina, graças a uma campanha que eu liderei aqui no Brasil. Depois a OMS, Organização Mundial da Saúde, confirmou, e a homossexualidade foi retirada do código internacional de doenças, agora não é mais. Então, deve-se usar sempre o termo homossexualidade. E travesti, sempre no feminino: “a travesti”, porque é assim que elas querem ser chamadas.

RH Então fale sobre a homossexualidade e o clero...

LM Na tradição ocidental, a sodomia sempre esteve visceralmente associada ao clero, a tal ponto que durante a Idade Média era chamada de “vício dos clérigos”. Tanto que o Livro de Gomorra, obra famosa de São Pedro Damiani, que era um bispo do século XI, foi escrito para denunciar a homossexualidade no clero. É, de fato, uma questão muito problemática para a Igreja, e que na tradição luso-brasileira se reflete nos processos da Inquisição. Um em cada três sodomitas denunciados e presos era sacerdote, seminarista, sacristão etc., ou seja, pertencia ao clero.


RH Há uma explicação para isso?

LM Acho que sim. Dentro da Igreja eles podiam camuflar a própria homossexualidade, já que não tinham de casar e, além disso, passavam a viver em comunidades masculinas. A própria vida clerical permite a exteriorização de um certo estilo de vida muito ligado à subcultura gay. As vestimentas, a delicadeza de certas funções, como a ornamentação dos altares etc., tudo isso certamente inspirou muitos a procurarem a Igreja como um local onde podiam viver mais facilmente a sua homossexualidade.

RH Há um artigo seu muito interessante em que é discutida a origem da palavra “gay”.

LM Chama-se “Pagode português – a subcultura gay em Portugal nos tempos da Inquisição”. É interessante porque uma das críticas que hoje se faz ao movimento homossexual é sobre a utilização da palavra “gay”, pois isso seria repetir modelos norte-americanos. Mas o professor John Boswell descobriu que, na verdade, desde o século XIV, no catalão provençal, a palavra “gai”, que inclusive deu origem às palavras “gaiato” e “gaia ciência”, era sinônimo de “rapazes alegres”, trovadores com um comportamento andrógino. A alegria deles era considerada um tanto ou quanto sodomítica, e usada como sinônimo de homossexual. De modo que é uma palavra que tem raízes mais antigas do que se imagina.

RH Como começou o seu interesse pela religiosidade popular?

LM Foi pesquisando, sobretudo na Torre do Tombo e no Arquivo Histórico Ultramarino, em Portugal, e no Arquivo da Cúria da Bahia, que descobri a importância da santidade no Brasil colonial. É curioso que a minha formação religiosa nos dominicanos era muito cristocêntrica, havia pouco de devoção aos santos. No entanto, descobri que o imaginário dos católicos, no dia-a-dia, estava povoado por uma verdadeira constelação de santos. Havia diabos também. Mas a presença da santidade era um elemento muito importante, presente em todos os estamentos sociais da Colônia. Então fiz um levantamento sobre as manifestações sobrenaturais, aparições de Nossa Senhora e de outros santos aqui antes mesmo da chegada dos portugueses.

RH Há muitos casos registrados?

LM Muitos, como o de São Tomé, que teria deixado traços pelo litoral, nas pedras; a presença de São Sebastião na conquista do Rio de Janeiro, de Nossa Senhora da Vitória, lá em Ilhéus, lutando contra os indígenas etc. Mas uma das grandes descobertas, uma das pérolas dos meus muitos anos de pesquisa nos arquivos, foi o processo da Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, africana da Costa da Mina, do Reino do Daomé, e que de prostituta se torna uma mística, e funda o Recolhimento do Parto, aqui na zona central do Rio de Janeiro, no século XVIII. Desenvolveu-se em torno dela toda uma liturgia, todo um ritual de adoração e espiritualidade. Ela chegou a escrever um livro de mais de 200 páginas que, infelizmente, foi queimado, no momento da sua prisão, pelo Tribunal do Santo Ofício. Isso me fez então aprofundar mais esses temas relacionados às virtudes da santidade no Brasil, e descobrir uma grande complexidade na vida social e religiosa brasileira.


RH Tão complexa que podia transformar uma prostituta em santa...

LM Sim, uma sociedade altamente estamental e racista, mas que abria uma brecha para a possibilidade de uma negra tornar-se santa. Uma negra feia, segundo depoimento dos seus contemporâneos, e com um defeito no braço, em virtude de ter sido chicoteada excessivamente, acusada de feitiçaria, por ordem do primeiro bispo de Mariana, dom frei Manoel da Cruz, que era muito piedoso, mas via nela um perigo, em termos de heterodoxia. Era uma negra africana, ex-prostituta, ex-escrava, e, no entanto, foi alvo da maior veneração, a ponto de os seus senhores se ajoelharem para beijar-lhe os pés. Isso me apontou a importância de pesquisar a vida religiosa no Brasil colonial, mostrando essas contradições e esse sincretismo, essas miscigenações culturais.

RH Qual era a posição da Igreja em relação a Rosa Egipcíaca?

LM Bem favorável. Representantes da hierarquia religiosa do Rio de Janeiro diziam que ela era a “flor do Rio de Janeiro”, e que Santa Teresa D’Ávila, a maior doutora da Igreja, não passava de uma “menina de recados da preta Rosa”; enfim, uma inversão total de valores em termos de hierarquia social, racial e estamental. Ela só caiu em desgraça porque exorbitou, no sentido de um culto exagerado à própria pessoa. Era absolutamente megalomaníaca, se proclamava a nova redentora da humanidade e que não havia santa maior no céu do que ela. Agora, tudo isso apoiado por padres.

RH Por que o senhor escolheu viver na Bahia?

LM Porque eu gostava da cultura negra. Agora, infelizmente, tenho uma certa desilusão em relação ao movimento negro e à negritude baiana e brasileira contemporânea. Eu me sinto minoria ameaçada numa Bahia dominada pela baianidade nagô. Cada vez mais, vejo atos, gestos e palavras de intolerância racial contra os brancos. Já fui chamado de branquelo, de branco azedo etc. Embora eu não negue que exista discriminação no Brasil, nunca vi ninguém insultar um negro racialmente. De modo que eu tenho uma certa melancolia em relação a esses meus 30 anos de Bahia. Acho que, infelizmente, a importação do modelo de antagonismo racial norte-americano, diz-se à boca miúda que influenciado na nossa realidade sobretudo pela Fundação Ford, teve um papel negativo, por ter contribuído para essa racialização da sociedade brasileira.

RH Qual a sua posição sobre as cotas raciais?

LM Sou a favor, na medida em que elas sejam universalizadas para todas as outras minorias, incluindo homossexuais, deficientes físicos, obesos etc., que sofrem discriminação social e econômica pelo fato de portarem esses estigmas.


RH Muitos o criticam por misturar vida pessoal com trabalho acadêmico.

LM É, costumam dizer que o Luiz Mott vive inventando que todo mundo é homossexual, que personagens históricos são homossexuais. Na verdade, a maioria das minhas revelações não é inédita. No caso de Zumbi dos Palmares, parti de uma indicação do professor Décio Freitas. As pistas existentes me levaram a sugerir uma possível homossexualidade de Zumbi.

RH Que pistas?

LM Há pelo menos cinco pistas sugerindo que ele era muito mais ligado à homossexualidade do que à heterossexualidade. Nunca foi casado. Foi criado, lá em Porto Calvo, por um padre, seu proprietário, que o tratava de “meu negrinho”. Era como os padres sodomitas chamavam seus amantes. Ele vinha de uma etnia de Angola, os famosos quimbandas, do reino da rainha Ginga, em que havia muita homossexualidade. Fora isso, tinha um apelido, “Sueca”, no mínimo suspeito para um negão, e, ao ser assassinado, teve o pênis cortado e colocado dentro da boca. Uma forma freqüente de se castigar homossexuais, até contemporaneamente.

RH O movimento negro não gostou muito dessas revelações...

LM Causaram danos até ao meu patrimônio. Picharam o muro da minha casa com os dizeres “Zumbi vive”, e meu carro na época, um Lada importado, teve o vidro quebrado. Fui à delegacia pedir proteção de vida, com medo de um atentado, mas não adiantou nada. Foi uma experiência extremamente negativa, mas, ao mesmo tempo, tenho outras extremamente positivas.

RH Por exemplo?

LM Por exemplo, ter descoberto a existência de uma escrava no Piauí, chamada Esperança Garcia, que teve a coragem de enviar uma carta ao governador, em 1770, denunciando os maus-tratos que sofria do feitor: “Meu corpo é um colchão de pancadas”. A data dessa carta que descobri passou a ser o Dia Estadual da Consciência Negra no Piauí. Há uma estátua da Esperança Garcia, em pedra, no principal centro de artesanato do estado, em Teresina. Ela deu nome a uma maternidade em São João do Piauí e, recentemente, um grupo de feministas negras adotou o mesmo nome, de Esperança Garcia. Então, é uma grande alegria para um historiador resgatar uma personagem histórica que passa a ser um símbolo, um ícone da emancipação da população negra do Piauí.


RH O senhor tem orgulhos também no campo da militância?

LM Tenho a alegria, a felicidade e o reconhecimento por ter salvado muitas vidas, inclusive por ter feito, pioneiramente, a prevenção da Aids na Bahia, como membro da Comissão Nacional de Controle da Aids. Depois, como humanista, defensor dos direitos humanos dos homossexuais, eu tenho ajudado muitos jovens a se assumirem, a terem auto-estima e, sobretudo, a não se matarem.

RH Apesar de se sentir ameaçado na Bahia, pretende continuar vivendo lá?

LM Ah, sim, pretendo morrer na Bahia. Aliás, comprei um túmulo, por vinte mil reais, decorado com mármore preto de Ubatuba, muito lindo. Fica no melhor cemitério de Salvador, pois já que vivi bem em vida, quero também viver bem pós-morte. Já escrevi até o epitáfio: “Aqui jaz Luiz Mott, humanista e uranista”. Vou pôr “uranista”, porque se puser “Luiz Mott, humanista e gay”, algum vândalo pode destruir a sepultura. “Uranista”, no século XIX, era sinônimo de homossexual. Assim, a inscrição ficará mais erudita e obrigará as pessoas a irem ao dicionário.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Liberdade não é de graça

Angela de Castro Gomes
Revista de História Temos uma democracia sólida no Brasil hoje em dia?

Angela de Castro Gomes Sem dúvida, hoje é muito mais difícil no Brasil haver discursos e projetos políticos que desconsiderem, sobretudo de uma forma mais radical, o valor da democracia. Isso foi algo bom que, após o regime militar, conseguimos construir neste país. Eu, por exemplo, uma vez fiquei em uma “saia justa” devido a essa questão. Fui chamada pelo ex-governador Leonel Brizola à sede do PDT, no Rio, para falar do trabalhismo do PTB e do PDT. No fim do encontro, em que eu era a única mulher, Brizola fala: “Agora, vamos passar um documento pedindo a saída do Fernando Henrique, para que todos assinem”. Eu pensei: “Estou perdida!” E, realmente, ele continuou: “A professora Angela vai assinar primeiro”. Era um documento pedindo a renúncia do Fernando Henrique. Aquele monte de pedetista na minha frente... E eu tive que dizer: “O senhor vai me desculpar, mas eu não vou assinar, porque lutei muito para termos eleição neste país. Quero que o Fernando Henrique seja derrotado por um candidato nas próximas eleições. Não quero que saia do poder por outros expedientes. Nem ele nem qualquer outro presidente da República. Quero campanhas eleitorais, quero eleições”. Sei que é difícil, mas eu aprendi a valorizar os procedimentos democráticos. A nossa Câmara dos Deputados, realmente, embora não totalmente, é lamentável. Mas eu quero a Câmara dos Deputados funcionando. É como o casamento: muito difícil, mas ainda não se inventou nada melhor para substituí-lo.

RH Como foi viver e estudar nos anos 1960 e 70, durante a ditadura militar?

ACG Muito duro. Na minha turma da UFF de 1969, foram poucos os formandos. Vários colegas de História e Ciências Sociais caíram na clandestinidade e tiveram que abandonar o curso. Descobrimos ainda que tínhamos na sala um aluno policial, um informante. Durante esse período, a polícia chegou a invadir a universidade a cavalo. Alguns professores foram proibidos de continuar lecionando, foram perseguidos. Então, essa foi uma época muito agitada, de muito aprendizado, mas não foi um tempo bom. O Boris Fausto me disse recentemente que às vezes as pessoas acham que liberdade é como o ar que se respira. Eu concordo, não é não, não basta usar o nariz. Ela não é de graça. Temos que lutar muito para que liberdade e democracia não sejam reduzidas a questões como probidade de parlamentares e outras do mesmo gênero. Temos que ter a clareza de que são valores inegociáveis, que devem ser defendidos. É o que já se viu: os fins não justificam os meios.

RH Voltando um pouco no tempo, como você descobriu a vocação para a História?

ACG Bem, eu queria ser médica, fazer pesquisa em laboratório. Para isso, teria que ingressar no que se chamava Curso Científico, e não na Escola Normal. Meus pais não eram ricos e achavam fundamental que os filhos estudassem e começassem a trabalhar, a ganhar o seu dinheiro. Não permitiram que eu fosse fazer o Científico. Achavam que não era muito adequado para uma moça. Quando eu estava no terceiro e último ano do Normal, fui para um cursinho pré-vestibular. Cheguei lá, fiz um teste e tirei zero em Física, em Química... Enfim, me dei muito mal, pois na Escola Normal você não estudava nada disso. Eu teria que ficar uns dois ou três anos me preparando para entrar na Faculdade de Medicina, que era de cinco anos. Aí, fiz as contas e pensei: “Melhor não fazer Medicina”. Fui ser professora primária: dei aulas para crianças do jardim-de-infância, alfabetizei. Eu gostava de ser professora e podia continuar sendo, ensinando Letras ou História. Escolhi História porque me interessava pela ação política. Mas a minha formação de professora, do ponto de vista pedagógico, didático, deve-se fundamentalmente à Escola Normal, e não à universidade.


RH Era difícil conciliar os estudos com as suas pretensões de casar e formar uma família?

ACG No último ano da Escola Normal, fui a um monte de casamentos de colegas. Eu, inclusive, fiquei noiva antes de me formar. Naquela época, as pessoas costumavam ficar noivas. Mas meu noivo cometeu um erro estratégico: ele começou a achar que esse negócio de fazer faculdade não era legal. Então, acabei desmanchando o noivado e ficando com a faculdade. Meus pais eram muito pobres. Minha mãe sempre teve muita vontade de estudar e não conseguiu. Meu pai, mineiro, achava que eu não precisava estudar tanto porque, segundo ele, mulher que estuda muito não casa, e se casa, separa. Mas olha que sou casada há mais de 30 anos, e com o mesmo marido! Quando fui fazer mestrado, meu pai disse: “Mas o que mais você tem que estudar?” E no doutorado: “Mais estudo ainda?” Na verdade, ele achava o máximo esse negócio de estudar, pois não tinha nem o curso primário. Fiz questão que ele assistisse à minha defesa de tese de doutorado. Era uma banca de seis homens, presidida pelo Boris Fausto, já que o orientador, Wanderley Guilherme dos Santos, não podia fazer isso no Iuperj. Depois fiquei sabendo que meu pai foi reclamar que era um absurdo aquele monte de homens me massacrando. Que história era aquela, se eu tinha me esforçado tanto? A secretária do Iuperj foi acalmá-lo: “É assim mesmo. Ela vai ser aprovada, o senhor vai ver”. Aí ele comentou: “Ué, mas então, se já está tudo combinado, porque não avisam?” Para a cabeça dele, evidentemente, o ritual era incompreensível. Se vão aprovar, por que fazer o sujeito sofrer tanto?

RH Por que você optou por fazer o mestrado em Ciência Política?

ACG A única universidade que tinha pós-graduação em História era a USP. Tendo que trabalhar, sem recursos para ficar indo e vindo de São Paulo, sem poder ficar lá, porque tinha marido e gostava dele, resolvi ficar no Rio. Aí optei pela pós em Ciência Política no Iuperj. Sabia que a teoria política era um instrumental rico e importante para pensar a História. O Iuperj era um lugar de reflexão e de produção de idéias, além de ter uma postura de resistência ao regime militar. Fui estudar política, como muitos outros da minha geração, porque queria pensar a questão do autoritarismo no Brasil. Que país é esse, afinal?

RH Você queria tentar entender as raízes do autoritarismo no Brasil...

ACG Isso. Estudar os momentos em que a questão do autoritarismo tivesse sido especialmente relevante no Brasil. Daí o meu interesse pelos anos 1930/40 e por autores como o Oliveira Vianna, pois ele é uma entrada fantástica para se entender inúmeras questões da sociedade brasileira. Ele elabora o diagnóstico do insolidarismo social para o Brasil. Temos uma formação histórica colonial centrada no grande domínio rural e em sua auto-suficiência, cujas bases de solidariedade são o espírito de clã. Não temos bases de solidariedade social modernas, como o associativismo político, profissional. No Brasil haveria dificuldades imemoriais/coloniais para a ação coletiva, o que justificaria a força de um Estado centralizado. Brinco com meus alunos: parece que tem uma caveira-de-burro enterrada no Brasil. Acho que um dos grandes responsáveis por essa crença, ainda existente, é Oliveira Vianna. A construção que os ideólogos autoritários do pós-30, ele e outros, fazem da Primeira República como um período de vazio organizacional, de uma ausência de possibilidades de ação coletiva, é impressionante, porque continua vigente. Essa grande interpretação, do insolidarismo, do clientelismo, do familismo no Brasil, vai fundamentar a idéia de que o Estado é a fonte de ordenamento e de criação do povo brasileiro. Porque o povo ou a sociedade (se é que existem) não têm lógica política, não têm capacidade de ação coletiva. É preciso que alguém faça por eles, e este alguém é o Estado; um certo tipo de Estado.

RH O Estado destrói as autonomias regionais?

ACG No pós-30, houve um projeto para fortalecer o poder do Estado, um processo de centralização política, tendo como alvo o federalismo. A Primeira República é o espelho do federalismo excessivo, que fazia com que o Brasil fosse atrasado e ineficiente, por culpa do liberalismo, naturalmente. O antifederalismo é muito presente nos confrontos políticos do pós-30. A defesa das autonomias políticas estaduais se transforma na defesa de interesses locais, espúrios e até danosos à unidade nacional, porque podem levar à guerra civil, como em 32. É depois de 1930 que se oficializa uma divisão do Brasil em regiões. Inclusive no mapa, na representação cartográfica. “Inventa-se” um Brasil que tem o Nordeste, o Norte, o Sul, o Centro-Oeste. Aí, povoa-se esse mapa com tipos regionais. Um Brasil de geografia humana, que tem cultura, traduzida em formas de alimentação, danças, atividades econômicas. Daí os personagens-símbolo: a rendeira, o seringueiro, o vaqueiro do Pampa, o vaqueiro do Nordeste. As regiões têm características, têm solidariedades, têm marcas e têm problemas. E o Brasil, na verdade, é esse conjunto diversificado, mas uno ao mesmo tempo. Porque neste Brasil, entre outras coisas, só se fala o português. Você constrói ao mesmo tempo marcas de unidade e marcas de diversidade que são regionais, ou seja, não passam por questões político-administrativas, não passam pelo federalismo. Há uma unidade política demarcada por um Estado forte e centralizado, mas que comporta a diversidade cultural.



RH O debate sobre o conceito de populismo também se situa nesse período...

ACG A maneira de enfrentar a questão do populismo, para mim, nos anos 1980, foi não trabalhar com o conceito. Você pode pegar o meu livro, que não tem uma vez escrita essa palavra. Porque a minha perspectiva era discutir o valor interpretativo do conceito. Havia formulações sofisticadas, como a de Francisco Weffort, mas ainda assim não me agradavam. Eu queria acentuar que o discurso político do pós-30 se apropriava do discurso dos trabalhadores, daí toda uma primeira parte de meu livro A invenção do trabalhismo. No pós-30 havia um processo de controle dos trabalhadores, sem dúvida, mas havia também um processo de negociação, que eu queria ressaltar. Entrevistei para a minha tese o Seu Hílcar Leite, um gráfico comunista e depois trotskista, que me disse: “Eu ia para a porta da fábrica falar mal do Getulio e quase apanhava. Os trabalhadores adoravam o Getulio!” Ora, dizer que se vivia um processo de manipulação dos trabalhadores, que eram todos enganados durante tanto tempo, era algo insatisfatório para mim. Essas pessoas seriam completamente desprovidas de discernimento? Ou, afinal, tinham uma lógica em seu comportamento político que deveríamos encontrar e respeitar? Os trabalhadores, quando “gostam” de Vargas, entendem que há ganhos nessa negociação, e vão explorar essa possibilidade.


RH O populismo deixa de ser conceito e vira uma categoria acusatória?

ACG Creio que sim; cada vez mais ele se consagra como uma categoria de acusação. Basta ver quem é chamado de populista. O discurso político envolve sempre quem o faz, a quem se dirige, e em que circunstâncias é feito. Os ideólogos autoritários desqualificam a Primeira República para colocar o pós-30 em uma posição de quase feitura da sociedade e do Estado no Brasil; como um ponto zero. O que vai acontecer no pós-64, em relação à experiência da República de 1945 a 64, é também um pouco isso. Ela vai ser chamada de “república de populista”. Assim como se chama a Primeira República de “Velha”. Velho aí não é elogio, é defeito, e grande. Chamar nossa experiência liberal-democrática de populista é minimizá-la, esvaziá-la como período de aprendizado político fundamental. Um conceito, para ser conceito, tem que ter um sentido preciso, um significado esclarecedor. Ele não pode abarcar praticamente tudo, referindo-se a personagens os mais diversos e a períodos muito distintos. Então, para alguns, na Primeira República tem populista, e no pós-30 e no pós-45 também tem, e muito. Mas no pós-64 tem também, e até Fernando Henrique Cardoso é populista. Como discurso político, como retórica, como arma de ataque, chamar algo ou alguém de populista funciona muito bem. Mas eu sou historiadora. Sei que política é retórica, que se ganha espaço e se luta com a linguagem, portanto, com o vocabulário, com as palavras. A palavra, sendo conhecida, tem muito poder nesse campo. Então torno essa palavra meu objeto de estudo; trabalho com ela para explicar esse poder. Essa palavra não explica; tem que ser explicada.


RH E quanto aos atuais governos latino-americanos ditos populistas?

ACG Para entender esses novos governos teremos que entender o que está se passando em cada país, e estudar isso com afinco. Assumir que a designação populista não é em nada esclarecedora não significa, contudo, estar considerando Hugo Chávez um democrata. Aliás, como também não se pode considerar Getulio Vargas um democrata nos anos 1930/40. Ele não era, e Hugo Chávez não é. Mas em 1930/40, internacionalmente, não havia apreço algum pela democracia. O tempo que se vivia era bem diferente dos anos 2000, e isso também precisa ser considerado.


RH E sua experiência no CPDOC?

ACG Entrei para o CPDOC em 1976. Então, eu trabalhava com documentos também. Para mim, era quase o paraíso. Esse negócio de ficar mexendo com documento era absolutamente delicioso. Tinha arquivos fantásticos! Lembro-me do dia em que chegou o arquivo do Gustavo Capanema. A gente quase desfalecia, porque não parava de chegar documento... Era um monumento, em todos os sentidos. Como eu disse, o Capanema virou monumento lá no palácio e no CPDOC, porque o arquivo dele é fantástico! (ver Revista de História da Biblioteca Nacional nº 2) Trabalhávamos com História do Brasil, mas com um projeto que reunia pesquisa e documentação. Esta é uma originalidade do CPDOC. E estudávamos a história contemporânea, história “recente”, hoje história do tempo presente. Fiz entrevistas com Batista Luzardo, com Temístocles Cavalcanti, homens muito idosos que podiam falar da Primeira República, da Revolução de 30 e , evidentemente, precisavam ser entrevistados logo. A gente tinha que começar a montar um acervo buscando as doações de documentação textual desses homens e fazer as entrevistas. E “perseguimos” ministros, parlamentares, burocratas, depois militares, líderes de movimentos sociais etc.


RH Como surgiu o CPDOC?

ACG O CPDOC foi criado em 1973, basicamente em função da experiência e dos contatos de Celina Vargas do Amaral Peixoto. Ela via na casa de sua mãe, D. Alzira Vargas, aquele volume de documentos de seu avô, Getulio Vargas. Vinham pesquisadores estrangeiros, os “brasilianistas”, indicados por pessoas, pedindo para consultar o material. A Celina nos contava: “Vinham pessoas aqui em casa, e mamãe, inclusive, dava bolo e cafezinho para elas. Às vezes, ficavam o dia inteiro”. Celina fez Ciências Sociais e tinha noção de que isso era um absurdo. Não se tinha controle, os documentos não estavam devidamente organizados.


RH O que você acha daqueles que se apropriam de documentos e bloqueiam o acesso de outros pesquisadores?

ACG Algumas pessoas se consideram proprietárias de documentos. E aí não os doam a instituições que possam preservá-los e socializá-los. Toda documentação de interesse histórico e cultural deve estar em arquivos, sejam eles públicos ou privados. Por isso, é terrível fechar qualquer documentação, principalmente por tempo indeterminado, como está se fazendo no Brasil. Para isso existe uma lei de arquivos e o Conarq. O CPDOC da Fundação Getulio Vargas funciona numa instituição privada, mas o acesso à sua documentação é gratuito. Os arquivos estão abertos, disponibilizados, inclusive, pela Internet. Toda instituição privada que tem a guarda de um bem público, como uma documentação histórica, tem a obrigação ética de disponibilizá-la. Claro que se eu quero uma cópia do documento ou da fotografia, tenho que pagar, inclusive na instituição pública. Mas para consultar não tenho que pagar nada, e tenho que ter livre acesso a tudo. É um bem público, ele pertence ao patrimônio cultural deste país.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Vitor Serrão - Operário de Memórias


Ele percebeu cedo que jamais seria um artista brilhante. A falta de dom foi o seu “pecado original”, como define. Mas a paixão incondicional pelo patrimônio artístico o levaria a abraçá-lo de outras maneiras. Seria um dos desbravadores da História da Arte em Portugal, disciplina que começou a ganhar força no país a partir dos anos 1970. Apesar de dedicar-se principalmente ao estudo do passado, Vitor Serrão se define como “intérprete político comprometido com o futuro”.

Quando era adolescente, militou nos movimentos estudantis contra o salazarismo. O marxismo e o forte comprometimento ideológico se fariam notar em sua postura acadêmica ao longo dos anos. Remando contra a corrente dentro da academia, contrapôs-se aos que desprezavam uma parte do patrimônio histórico-artístico português considerado menos importante. Sempre inquieto, afirma que “não há temas de Histórias da Arte menores”: obras mortas e expressões consideradas periféricas merecem a mesma dedicação por parte do pesquisador.

De passagem por Ouro Preto para participar do IV Congresso Ibero-Americano sobre o Barroco, Serrão desfrutou as obras e monumentos da cidade histórica mineira e conversou com a Revista de História. Observando as peças de Aleijadinho e Athayde, lamentou a falta de entrelaçamento que existe entre o estudo da História da Arte no Brasil e em Portugal: “Como é que podemos estudar o barroco mineiro hoje ignorando a arte transmontana, da Beira Alta ou do Minho ou de Lisboa?”

Revista de História Como surgiu o seu interesse pela História e pela Arte?

Vitor Serrão Meu pai, Joaquim Veríssimo Serrão, era um importante historiador português, e foi, até pouco tempo atrás, mentor da Academia Portuguesa de História. Tive o privilégio de nascer no meio de livros, em contato com problemas da cultura. Meu amor pela arte tem a ver, creio, com uma falha, um pecado original, que é o de não saber criar arte. Gostaria muito de ter pintado, e tentei pintar; cheguei a aprender algum rudimento de técnica, mas não tinha qualidade mínima. Com oito, nove, dez anos, fui capaz de afinar o meu poder autocrítico e descobrir que não era aquele o caminho. Mas, por outro lado, haveria um patrimônio extraordinário em Portugal por estudar. Os livros que via na estante só apresentavam os grandes monumentos. O patrimônio que eu via nas igrejas e museus era ignorado e, por vezes, maltratado.

RH Dez anos? Tão cedo assim?

VS No final dos anos 60, ainda na escola, adolescente, o primeiro artigo que publiquei foi sobre uma tela que identifiquei e achei importante demais. Como é que ninguém tinha olhado para aquele quadro do Pedro Alexandrino que estava na Igreja da Misericórdia de Santarém? E como é que ele estava ignorado e abandonado em uma capela? A partir daí foi intervindo também a minha postura política de combate antifascista. Muito novo, em plena ditadura ainda, fui militante formado nos movimentos estudantis.

RH Sua leitura da Arte, nesse momento, estava infiltrada pelo marxismo.

VS E continua. Continuo a ver a obra de arte como um produto multicolor, ideologicamente comprometido, transcontextualmente veiculado para o futuro e que retrata e testemunha, de uma maneira global, os comportamentos, os conflitos, a vida real, no momento em que foi elaborada.

RH O marxismo sempre gosta de enquadrar as coisas...

VS Não era uma prioridade dentro do Partido Comunista português ao qual estive filiado, e até com algum destaque no setor intelectual, por muito tempo. Mas o que aprendi com Walter Benjamin e depois com a iconologia, que tem uma raiz de esquerda militante e operativa, contava muito. O papel da esquerda em Portugal antes, com a ditadura, e depois, com o regime democrático, foi importante para alavancar também a prática da disciplina; não havia História da Arte, e a que havia, francamente...

RH Falando dos anos 70, como era esse campo de conhecimento e de pesquisa antes e depois da Revolução dos Cravos?

VS A História da Arte que existia em Portugal era uma parente pobre da História, que não tinha autonomia. Os historiadores de arte do regime eram preocupados com um formalismo deformado e deformador da própria História. Tanto que, em Portugal, o que contava era o estilo manuelino, porque remetia ao momento da glória do império, e a época de Dom João V, que é a do ouro mineiro. Enfim, a perspectiva dominante era que não valia a pena estudar o patrimônio. Uma atitude de auto-menoridade que ainda existe. Ainda há muito a combater. Há muita gente em Portugal, e aqui também, que define certo patrimônio como menor. Há o Aleijadinho, claro. Pois há uma miríade de Aleijadinhos, no barroco e no rococó mineiro, que não foram estudados. Há um Ataíde, entre tantos que nunca foram estudados. Porque havia uma perspectiva de que não vale a pena, de que é menor, que não é digno.

RH Qual é a importância do historiador da Arte?

VS É uma função não de mera testemunha dos fatos e bens da memória, mas, fundamentalmente, de um intérprete político comprometido com o futuro. Isto é, um técnico dotado de utilidade pública. Ele pode ajudar a defender corretamente os bens patrimoniais arquitetônicos, ambientais, pictóricos, arquivísticos e outros. Ele tem o poder de corrigir uma barbaridade, um erro, pode intervir, pedagogicamente e objetivamente, para recuperar o que seria a memória do patrimônio comum, e de salvaguardar, explicando. O meu trabalho é um trabalho de operário de memórias.

RH Mas nem todos se interessam pela proteção do patrimônio, não?

VS Há historiadores de arte que colaboram na venda e na dilapidação de obras no mercado antiquário e em projetos de denegrimento do patrimônio. Há grandes interesses especulativos envolvidos e a falta de uma consciência de cidadania. Há historiadores de arte que vendem a obra de arte e a sua dignidade por prebendas e por migalhas; há ovelhas negras em cada disciplina.

RH O seu trabalho é sempre permeado por um forte comprometimento ideológico...

VS Preocupa-me estudar não só o autor, a matéria da obra, a temática, a iconografia, mas também o porquê da obra, o programa que ela tem, o que desejou comunicar, por que ela foi importante em um determinado momento e hoje é importante para quem a vê. A obra de arte tem uma memória. Uma obra da arte pode ir para o futuro e intervir, gerando sempre novos públicos. É inesgotável. O meu trabalho, o levantamento de um pintor, um arquiteto, nunca vai chegar ao fim, ainda bem. Haverá amanhã outros públicos, outros críticos, outro olhar. Eles vão naturalmente ampliar o meu, alterá-lo, modificá-lo. Portanto, o fascínio que a obra provoca é efetivamente transcontextual e inesgotável.

RH Qual é o poder da imagem?

VS O poder das imagens, como símbolos, é transcontextual e infinito. Ontem, hoje e amanhã a imagem incomoda. Ela é promovida, de fato, por estruturas de poder, contra-poder, com objetivos poderosos: afirmar a religião, o poder, a ritualidade, a magia, o amor, o desejo de imortalidade. Tem um papel tão ou mais forte do que mil tratados políticos retóricos porque cria memória, legitima pessoas, poderes, dinastias, lógicas, partidos, correntes de opinião. É tanto mais forte quanto mais a obra é inovadora, vanguardista e de qualidade estética. Por isso, podemos falar de obras de arte não como fato histórico, como meros documentos, mas objetos de fascínio que vão encantar, hoje e amanhã, outros públicos e novos olhares.

RH Poderia citar alguns casos significativos em que a imagem foi apropriada ou foi, de alguma forma, central para determinados processos?

VS O caso de Diogo Pereira, que na Restauração serviu à corte de D. João IV, e é um modelo de pintor político, famoso por retratar fomes, tragédias, caprichos, e que pintou muitas vezes a história da Guerra de Tróia. Descobri que aqueles quadros tinham a marca legitimadora da nova dinastia política que Dom João IV vinha inaugurando contra o domínio espanhol. Eram verdadeiros panfletos de resistência! A metodologia aplicada tornou os códigos de leitura dessas telas ininteligíveis para quem olhava para eles buscando recuperar a sua memória perdida. Ela volta a recuperar hoje tal prestígio justamente porque há o trabalho dos historiadores de arte que olham as obras não apenas como iconografia, mas no conjunto de problemas que reúnem.

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Kenneth Light - Com os pés no mar


Como um navegador, o pesquisador Kenneth Light analisa de maneira minuciosa os diários de bordo das embarcações que acompanharam D. João VI. Assim, provoca o naufrágio de mitos a respeito da precariedade da viagem e da idéia de que a Coroa portuguesa fugia de forma desesperada dos homens de Napoleão.

Kenneth Light estuda há dez anos a intensa relação entre as histórias de Portugal, Brasil e Inglaterra no século XIX, seguindo passageiros, capitães e marinheiros embarcados na viagem de 1808. A investigação de cada detalhe ocorrido na maior viagem que o Atlântico testemunhou revela a saga da única monarquia do continente europeu que sobreviveu à fúria republicana francesa, graças à preparação de uma viagem estratégica organizada “com seis meses de antecedência”.

A riqueza de conceitos do trabalho de Kenneth Light é fruto de um cuidado historiográfico fortemente comprometido com a análise precisa das fontes, capaz de comungar saberes marítimos, tecnológicos e culturais a serviço de um texto histórico de qualidade.

As idéias de Kenneth Light são ouvidas além-mar, circulando em conferências proferidas em Portugal e na Inglaterra. Nesta entrevista, temos a oportunidade de conhecer um navegante das letras que encontrou, sobretudo na História do Brasil, o seu porto seguro.

Revista de História Sua carreira de pesquisador é recente. Como se deu seu contato com a História?

Kenneth Light Morei no Brasil até os dez anos de idade. Era comum os ingleses mandarem seus filhos estudar na Inglaterra. Então, com essa idade fui para um colégio interno de jesuítas, onde fiquei por sete anos. Ao concluir meus estudos iniciais, fui para Londres estudar Economia. Trabalhei um pouco em Londres, depois no norte da Itália, e voltei para o Brasil. Passei duas décadas fora do país. No Brasil, trabalhei na Souza Cruz durante dezesseis anos como diretor, e com cinqüenta e dois anos me aposentei. Foi quando comecei a estudar História. Mas, realmente, eu não queria escrever o que os outros já tinham escrito muito melhor do que eu. Então, comecei lendo sobre D. João VI, e percebi que praticamente não havia discussão sobre a parte da viagem da Corte para o Brasil, em 1808.

RH Como o senhor conseguiu desenvolver sua pesquisa?


KL Passei um ano nos museus, em bibliotecas aqui e em Lisboa. E, na verdade, não consegui nada. Cheguei à conclusão de que os outros não tinham escrito porque não tinham encontrado nada. No Arquivo Central da Inglaterra, comecei a pesquisar os diários de bordo, livros de quarto – este é o nome correto – que estão guardados no Arquivo Central.

RH Qual a importância dessa fonte de pesquisa?


KL Na época em que D. João veio pra cá, vieram dezoito navios da Marinha portuguesa, entre naus, fragatas e corvetas. Ainda assim, seis ou sete ficaram em Lisboa, pois estavam em reparos. No Brasil já havia três ou quatro. Acho que na Índia havia dois ou três. De modo que eram umas trinta embarcações. Nesse mesmo ano, a Inglaterra tinha no mar oitocentos e oitenta navios de guerra. Você vê a diferença de tamanho. Os livros de quarto de todos esses navios da época, e mesmo anteriores e posteriores a ela, já estão todos guardados. Muitos deles ainda tinham sal, porque nunca tinham sido abertos. Eles foram depositados no Arquivo Central da Inglaterra um ou dois anos depois da chegada, porque eram usados para auditoria.


RH Foi difícil usar essas fontes?

KL Com toda essa informação,voltei para o Brasil e passei cinco anos analisando e tentando entender o que estava escrito, porque cada página de um diário desses é muito detalhada. E a Marinha tem gírias que são próprias dela. Além disso, a tinta da pena é fácil de ser apagada e difícil de ser secada: há pingos por todos os lados. Você não sabe se uma letra é i ou e. Então, como fica?


RH Algo de espantoso?

KL A relação de Portugal com o mar é tão intensa, que um escritor português chamado comandante António Marques Esparteiro escreveu uma obra em trinta volumes chamada Três Séculos no Mar. Somente para dar um pequeno exemplo de algo que escapa a muitos historiadores: o navio de D. João VI saiu da foz do Tejo, e os ingleses estavam esperando para escoltá-lo; o vento era sudoeste, e começou a ventar muito. O pessoal que descreveu a saída da Corte em terra firme disse que os navios estavam indo para o Brasil. Mas os navios estavam pegando o mar com vento de través, que é terrível, pouco confortável, além de perigoso. Muitos passageiros pediam para voltar. Entretanto, todos os navios fizeram o rumo em direção ao Canadá, porque com isso pegavam o vento soprando a favor. Aqueles que estavam em terra não puderam observar esta mudança no itinerário.


RH Em que momento a sorte da tripulação mudou?

KL No quarto dia, o vento mudou. Aí, viraram, subiram o mastro, vergas, velas, e nesse mesmo dia, à tarde, eles passaram a latitude de Lisboa. Mas já a 160 ou 170 milhas de distância. Isso eu posso dizer porque analisei os livros de quarto, mas o pessoal que está em terra e que não vê os navios depois das primeiras horas não pode dizer isso.

RH É uma visão nova?

KL Pela primeira vez se tem anotado o que estava acontecendo no mar, porque até então só havia registros e depoimentos de terra. Alguns historiadores famosos do passado escreveram que, enquanto a esquadra portuguesa saía, a esquadra inglesa estava lá fora esperando e, quando se encontraram, houve, como cumprimento, uma salva de tiros dos dois lados, e ambos os países se escoltaram até chegarem ao Brasil. Mas não foi bem isso que aconteceu.

RH E o que aconteceu?

KL Ao avistar a esquadra portuguesa saindo do Tejo, os navios ingleses receberam o sinal de seus capitães para se prepararem para uma possível batalha. Eles não sabiam ao certo se os navios portugueses estavam tripulados por inimigos, como os franceses, ou pelos próprios lusitanos. Na dúvida, era preciso se adiantar ao pior. Mas, felizmente, nenhum ataque ocorreu. Os navios conseguiram se identificar como aliados antes que isso fosse necessário.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

A difícil tarefa de entender o Brasil


Stuart B. Schwartz

“Que país interessante!”, exclamou o jovem estudante de pós-graduação, encantado com “Orfeu Negro”, que assistiu em Nova York nos anos 1960. Chegando ao Brasil por caminhos tortuosos, o historiador norte-americano Stuart B. Schwartz, hoje professor na Universidade de Yale, acabou adotado pela Bahia e se orgulha do título de cidadão da cidade de Salvador.

Versátil, ele não se restringe a um tema: escreveu sobre a economia e a justiça coloniais, disputas entre portugueses e espanhóis, tolerância religiosa, cultura popular, e ainda prepara uma história social dos furacões no Caribe! Entre suas pesquisa recentes, um ivro "saindo do forno" sobre cultura popular e tolerância no mundo ibérico. Documentos descobertos por ele em Portugal mostra, pessoas simples em total desacordo com o rigor religiosos das autoridades da época, gente pobre que acreditava que não havia apenas uma forma de se reacionar com Deus, com os parceiros e, o mais "perigoso" com o Estado.

Além de estudar o passado, Stuart não se furta a observar o presente: ciente das desigualdades sociais geradas no país pelos três sécuos de escravidão, ele não acredita que os problemas possam ser resolvidos por meio da adoção de medidas importadas dos Estados Unidos.

Em Niterói para um colóquio da Companhia das Índias (núcleo de História Moderna sediado na UFF), o professor Schwartz conversou com a Revista de História e, diante do entardecer na Baía de Guanabara, mandou um recado: a maior responsabilidade de cada geração de historiadores é formar outra ainda melhor.

Revista de História – Antes de visitar o Brasil o Sr. já conhecia outros países da América Latina?


Stuart Schwartz – Conhecia o México, mas minha primeira experiência fora dos Estados Unidos foi no Haiti, em 1952. Eu tinha dez anos. Meu pai fazia parte de um grupo dos médicos que iam todo ano a um país diferente para assistir crianças pobres. Lembro ainda da chegada à baía de Porto Príncipe. Era de noite, os tambores soavam. Lembro das luzes da cidade e dos meninos chegando em canoas para pedir esmola ao pessoal dos barcos e mergulhando, para pegar as moedas que atiravam. Foi a minha primeira experiência fora dos Estados Unidos. Foi aí que a América Latina começou a me atrair.

RH – Já se interessava por história nessa época?


SS – Já, mas meu interesse original era por autores de romances históricos – como Dumas, Stevenson e outros. Por influência do meu pai. Além das revistas de medicina, ele só gostava de ler sobre história, não história acadêmica, mas história popular, biografias etc.

RH – Quando o Sr. descobriu o Brasil?


SS – No início dos anos 1960, quando fui fazer mestrado na Universidade de Columbia, em Nova York. Havia um programa de pós-graduação em história da América Latina com o professor Lewis Hanke, grande especialista no assunto. Nessa época, ele achava que o Brasil não era bem estudado nos Estados Unidos. Aconselhado por ele, fiz então um curso intensivo de português, de seis semanas. Este foi o meu primeiro contato com o Brasil. Exatamente nesse período, estavam passando em Nova York dois filmes brasileiros: Orfeu negro e O cangaceiro. Fiquei impressionado: “Mas que país interessante!”. A beleza física, a música, a maneira da gente se comportar na rua, tudo isso bem no momento da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos.


RH – Então deu para o Sr. comparar os dois países...


SS – Fiz uma certa analogia, vi no filme inclusive alternativas à situação das relações raciais no meu país. Foi exatamente nesse sentido que começou meu interesse pelo Brasil. Minha intenção original era trabalhar com o México, um país que eu já conhecia. Mas, muito por influência do Hanke, escolhi como tema de doutorado o Brasil sob o domínio espanhol, a chamada União Ibérica, entre 1580 e 1640. Para isso, era mais importante ir a Portugal do que vir ao Brasil, porque lá estava a documentação mais importante. No final das contas, minha tese de doutorado foi sobre o Tribunal de Relação da Bahia, e não sobre o domínio espanhol no Brasil.

RH – Então o Sr. descobriu o Brasil através de Portugal...


SS – De certa forma sim. Foi em Portugal que conheci os primeiros brasileiros, entre outros Anita Novinsky, Luis Mott e Luiz Henrique Dias Tavares, o grande historiador da Bahia. Todos eram meus conselheiros. Então, quando cheguei aqui, falando com sotaque de português, já conhecia vários brasileiros e tinha contatos por aqui. No Rio, meu primeiro contato foi com o professor José Honório Rodrigues.

RH – O Sr. disse uma vez que esse contato foi bem revelador...


SS – Realmente. Cheguei com uma carta de apresentação do Hanke, porque ele conhecia bem o José Honório. Telefonei do hotel dizendo: “Sou aluno de Louis Hanke e estou aqui no Brasil pela primeira vez. Gostaria muito de conhecer o senhor”. Aí ele disse: “Ah, infelizmente, amanhã eu vou para a América Latina”. Fiquei muito confuso, porque eu acabava de chegar à América Latina, isto é, ao Brasil, e ele estava indo para lá – senão me engano para a Bolívia ou Peru. Essa foi a minha introdução á maneira como os brasileiros se consideram frente à América Latina.

RH – O momento da sua formação acadêmica foi politicamente dramático, especialmente aqui no

Brasil. No seu país, como a Guerra Fria influía no trabalho do historiador?
SS – O Thomas Skidmore, que é um historiador americano muito conhecido aqui no Brasil, disse uma vez: “Somos os afilhados de Fidel”. De uma certa maneira é verdade, porque essa geração universitária americana que estava entrando na pós-graduação no momento imediatamente posterior à Revolução Cubana, em 1959, se deu conta de uma realidade nova. O governo americano estava muito preocupado: “O que aconteceu na América Latina?”; “O comunismo está chegando a América Latina?”. Então investiu mais na educação secundária e concedeu bolsas para estudo do português e do espanhol, coisa que não existia antes. O interessante é que aqueles que foram formados com o apoio do governo, quase todos se voltariam contra ele depois. Nesse sentido Skidmore tem razão: somos de fato os afilhados de Fidel.


RH – Aqui no Brasil o Sr. passava a maior parte do seu tempo em Salvador. Qual foi sua impressão inicial da Bahia?


SS – Acho que para os americanos em geral a Bahia é um pedaço da África separado do continente, um lugar exótico. Há os que se entusiasmam, gostam muito, e outros que detestam, porque acham a Bahia quente, suja etc. Eu de cara entrei para aquele primeiro time. Para mim, a Bahia era um paraíso, lá eu sempre me senti em casa. Por sinal, há uns cinco anos recebi uma homenagem lá em Salvador. Agora, sou um cidadão soteropolitano!

RH – Como naquela música do Gilberto Gil, a Bahia lhe deu régua e compasso, não é assim?


SS – Exatamente. Mas devo também muitas coisas a muita gente, como à minha amiga Neuza Esteves, grande profissional e grande baiana, hoje diretora do arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia. Ela me ajudou muito quando me voltei para o tema dos engenhos do Nordeste e fui pesquisar em arquivos do Recôncavo Baiano, que nesse tempo não eram muito procurados. Tive a maior sorte, pois encontrei documentos valiosíssimos e totalmente abandonados, na Câmara de Cachoeira.

RH – Não tinham ainda sido descobertos pelos historiadores baianos...

SS – É, infelizmente na Bahia não há um grupo, como aqui no Rio e em São Paulo, concentrado na história colonial. É uma pena, porque a Bahia tem uma riqueza de documentação colonial como não existe em outra parte do país.

RH – O Sr. acha os historiadores brasileiros, em relação aos brasilianistas, davam pouca importância à documentação dos arquivos?


SS – Aconte o seguinte. A historiografia, no Brasil, se dividia entre os filhos de Varnhagen e os filhos de Capistrano, e estes últimos haviam ganho a batalha. Lá pelos anos 1930, o ensaio era o desejo supremo do historiador brasileiro. Sérgio Buarque de Hollanda era um grande historiador, mas sobretudo um ensaísta, que por sinal escrevia muito bem. Casa grande & senzala (1933), de Gilberto Freyre, não é um livro de arquivo, mas um ensaio. Acho que fiz parte de um período de retorno aos arquivos. Isso não se deu só entre os brasilianistas. O livro de Fernando Novais sobre o antigo sistema colonial, de 1979, é um trabalho de fôlego em matéria de pesquisa. José Antônio Gonsalves de Mello e José Honório Rodrigues também trabalhavam assim.


RH – Na sua opinião, o que unifica a América Latina?


SS – A América Latina é unificada pela sua experiência cronológica. Ela nasceu no momento da Revolução Atlântica, e todos os países daqui compartilham uma certa conexão com as idéias liberais do fim do século XVIII e início do século XIX. A democracia, mesmo durante os períodos autoritários, foi sempre oferecida como um ideal da sociedade. Lembro muito bem que quando Allende foi eleito presidente do Chile. No primeiro discurso, ele falou do processo democrático e da importância constitucional do seu governo. Quando Allende foi deposto pelos militares, a primeira fala de Pinochet foi exatamente igual: “Vamos obedecer a constituição e defender os princípios democráticos”. Então, isso é uma coisa que une a América Latina, assim como a sombra dos Estados Unidos. Esta relação com os Estados Unidos, seja ela boa ou má, tem de ser reconhecida.

RH – O Sr. tem um livro importante sobre o açúcar, lançado aqui com o título Segredos internos. Qual é a conexão entre a produção do açúcar no Novo Mundo e o desenvolvimento econômico europeu?


SS – Confesso que minha intenção com esse livro, no início, era demonstrar que o Gilberto Freyre estava errado, que ele realmente não tinha utilizado documentação dos arquivos, que ele tomava coisas do século XIX e as utilizava para analisar o século XVI. Era uma tentativa de atacar o Gilberto Freyre, foi um erro de juventude. Pouco a pouco eu percebi que, mesmo que tenha muita coisa errada no livro, ele tinha tocado em algo muito central, que é a importância da vida açucareira na formação da sociedade brasileira. Passei muito tempo tentando entender exatamente como que se produzia o açúcar. O título do livro vem de um texto do Marx. Marx dizia que o modo de produção é a chave para entender a sociedade como um todo. Então, é tudo ligado, formam um conjunto. Minha intenção era fazer um livro que vai da plantação do açúcar à produção da riqueza na colônia européia. Só não fiz porque o material não cabia dentro do livro, que chegou a mais de 600 páginas.

RH – Que diferenças o Sr., afinal, conseguiu estabelecer com Gilberto Freyre?


SS – O que falta em Casa grande & senzala é aquela gama de pessoas que não eram nem senhores e nem escravos. O mundo dos engenhos era cheio de vários grupos sociais. Eu acho que a minha contribuição principal é essa: o reconhecimento dos lavradores de cana, as pessoas livres que viviam às margens dos engenhos, artesãos, carreiros, ferreiros, ex-escravos que viviam também no mundo dos engenhos. Tudo isso é bastante ausente no livro de Gilberto Freyre. Ele trata do mundo do senhor e do escravo como se essa fosse a única relação naquela época. Eu acho que a minha contribuição foi aumentar aquela visão do Gilberto Freyre, para incluir essa gente também.

RH – É interessante que o Sr., mesmo que discorde de Gilberto Freyre, parte de um olhar brasileiro para abordar a questão do açúcar...


SS – Exato, meus interlocutores são os historiadores brasileiros, meu trabalho sempre foi feito tendo em vista a historiografia do país. Por exemplo, aquele ensaio sobre os pequenos produtores era uma resposta ao livro do Jacob Gorender sobre o escravismo colonial. Aliás, sempre enfatizo aos meus alunos que eles têm de ler os historiadores da América Latina antes dos historiadores americanos.


RH – Nos seus livros o Sr. dá ênfase às relações raciais no Brasil. Como elas interferiam na nossa sociedade?


SS – Não há relação social de hierarquia no Brasil que não seja marcada pela raça. Uma olhada rápida no mapa da distribuição da renda hoje mostra que a idéia de que aqui não existe racismo é um mito. Então, é impossível pensar a história do Brasil sem pensar na divisão racial no país e na maneira como o país, o povo e seus vários governos trataram de superar as divisões criadas pelo legado de escravidão. É a mesma coisa nos Estados Unidos. Só que a importação de modelos americanos para resolver essa questão não é a melhor saída para o Brasil – nem para a sociedade nem para o movimento negro. O contexto social é diferente nos dois países, e isto tem que ser reconhecido.

RH – Os grupos afro-descendentes no Brasil devem então se afirmar por meio de soluções próprias?

SS – Sim, acho que a afirmação da identidade étnica é uma escolha de cada pessoa. Pessoalmente, não gosto de discriminação de qualquer espécie, sobretudo quando baseada em questões de herança, seja ela da origem nacional, da cor da pele ou qualquer outra. Talvez o problema seja mais social do que racial, é uma questão muito complicada. Veja a diferença entre as políticas americana e francesa sobre o multiculturalismo – as duas têm produzido dificuldades, não sei qual é a melhor. Isso depende do contexto de cada sociedade. Cada sociedade deve busca a saída, a maneira de resolver as desigualdades que a economia social produziu.

RH – Além da questão racial há a tradição da cultura letrada, da magistratura, das hierarquias pesando na nossa história. Como isso afetou a sociedade brasileira?


SS – Como eu digo no prefácio do meu primeiro livro, no Brasil, quando uma coisa é considerada boa, diz-se que é “legal” [risos]. Isto mostra a importância da lei, do direito. Mas, ao mesmo tempo, lembro das palavras de Rui Barbosa – de que quando a justiça falta à mentalidade do juiz, não há esperança para o país – e daquele ditado antigo português – “Para os amigos, a justiça; para os inimigos, a lei”. Então, a lei escrita, que vem da tradição romana, é muito importante, mas sua boa aplicação também, senão descamba-se para a corrupção e o personalismo. A história do Brasil sempre foi assim. Nunca faltaram boas leis, o que faltou foi o desejo de aplicá-las com justiça. Se bem que a corrupção, seguramente, não é um problema só brasileiro. Meu país, no momento, atravessa sérias dificuldades nessa área.

RH – O Sr. está escrevendo algum livro novo?


SS – Sim, já está no prelo. Intitula-se Sua lei – salvação e tolerância no mundo atlântico ibérico. É sobre pessoas que, enquanto os padres diziam que a salvação só era possível dentro da Igreja, tinham idéias próprias sobre religião, sobre o corpo, sobre o sexo. Descobri isso pesquisando documentos da Inquisição em Portugal. No final, chegando ao século XVIII, essas idéias começam a crescer, e pessoas aqui no Brasil começaram a pensar em liberdade de consciência: “Eu quero pensar o que quero e pronto”. Afinal, essas idéias ligaram-se às idéias de liberdade política, que era a grande ameaça ao Estado e ao altar.


RH – Era o pensamento radical da época...


SS – Radical, muito radical. E o mais interessante, para mim, é que isso não vinha de cima para baixo, não era idéia de humanistas, de um Erasmo, por exemplo, de um Locke ou de um Voltaire. Os dissidentes eram alfaiates, ferreiros, pessoas que podiam até saber ler e escrever mas não tinham formação universitária nem teológica. Chegavam a essas conclusões só pelo raciocínio. Não viam sentido na idéia de que o Deus misericordioso apregoado pela religião oficial pudesse mandar tanta gente para a fogueira.

RH – A tolerância de que o Sr. fala no livro se refletiu aqui, no momento em que o Estado brasileiro se organizava?


SS – Apesar do título, meu livro não é um argumento de que se tratava de uma sociedade tolerante. Pelo contrário, toda a força do governo e da Igreja era contra a tolerância. Mas, mesmo assim, o impressionante é que existiam essas idéias de tolerância, e que elas, talvez, abriram a mentalidade dos colonos que chegaram aqui, no sentido de considerar que, além do que a Igreja pregava, havia outras maneiras de chegar ao sobrenatural.

RH – Parece que ainda hoje é assim...


SS – Ah, sim... Quando eu vivia na Bahia, presenciei um caso bem interessante. Aconteceu numa repartição pública. Entrei numa sala e estava tudo desarrumado, cheia de papéis pelo chão. “Pô, que horrível isso aqui, tudo sujo, o que está acontecendo?” Aí uma amiga explicou: “É que a encarregada da limpeza às vezes não aparece, mas ninguém mexe com ela, porque ela é mãe-de-santo”. Isso não é tolerância?

RH – O Sr. continua dando aulas sobre o Brasil no seu país?


SS – Dou um curso em Yale sobre o Brasil. Um curso rápido: toda a história do Brasil, de 1500 até o presente, em um semestre! [risos]. Acho que a responsabilidade de cada geração de historiadores é fazer a próxima geração melhor, em termos de metodologia, conhecimento, produção etc. A medida do sucesso da minha carreira não é simplesmente a minha produção, mas a produção da próxima geração de historiadores.

RH – Depois de tanto tempo e tantas mudanças, o Brasil continua a lhe fascinar?


SS – Cada vez mais. Na primeira aula, projeto sempre dez minutos de Orfeu negro, com aqueles morros do Rio de Janeiro, aquele papagaio cantando Tristeza não tem fim. Meus alunos gostam muito, o que não me surpreende. Como alguém pode não gostar de um país como este?

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