segunda-feira, 25 de julho de 2011

Murillo Constantino

foto Murillo Constantino

“João Gilberto 
é um bom malandro”
O musicólogo José Ramos Tinhorão afirma que a canção morreu e diz que “As Rosas Não Falam” , de Cartola, foi tirada de um jazz americano
04 de julho de 2011

Daniel Silveira

No YouTube, José Ramos Tinhorão reencontra gravações clássicas. No acervo virtual de seus mais de 6 mil discos, disponível na internet, ele descobre que a melodia de “As Rosas Não Falam” foi tirada de um jazz norte-americano. Aos 83 anos, o musicólogo lembrado sobretudo por suas brigas com a bossa nova e a academia mantém uma mente ativa e ferina.
Um dos mais importantes historiadores da música popular brasileira, ele já prepara seu 30º livro, sobre a congada e a “invenção” dos reis do Congo pelos portugueses. Enquanto isso, está lançando agora no Brasil As Origens da Canção Urbana, publicado originalmente em Portugal em 1997.
Tinhorão já havia decretado o fim da canção. Agora, volta ao século 16 para rastrear as origens históricas do gênero e defender que a jornada da música cantada sempre foi a crônica de uma morte anunciada. “A canção nasceu com data para acabar”, afirmou o crítico, que recebeu a reportagem da CULT em seu apartamento na região central de São Paulo.
E claro que a bossa nova, seu alvo predileto, não escapou da entrevista.

O senhor diz que a canção está acabando. Qual é a relevância do gênero hoje em dia?
José Ramos Tinhorão – Quando se pensa em canção, pensa-se em alguém acompanhado por um instrumento, cantando versos, geralmente de caráter sentimental. A canção é isso, e está acabando. Ninguém se senta mais para ouvir música. Hoje, a música é de massa, vista de pé em estádios.
Ela não vai desaparecer, é claro, e continua viva e relevante, mas em nichos. Até hoje existe música de câmara, por exemplo. A canção acaba porque deixa de ser aquela coisa dos séculos 18 e 19. As formas novas predominam para o grande público.
As Origens da Canção Urbana diz que a canção surgiu com a popularização da música, que depois iria se tornar a indústria cultural. Ela surgiu com data para acabar?
Faz sentido. Se ela nasce com o individualismo burguês, no momento em que o individualismo perde o sentido, ela também perde. Antes, o individualismo criava o artista, que era muito importante, mas o artista está deixando de existir e não tem mais nenhuma importância. Quem cria a música hoje? Sintetizadores que já têm música arquivada. Hoje o artista se dilui na massa. Toda forma está presa a um conteúdo. Quando mudamos o conteúdo, é preciso mudar a forma. Tudo evolui.
Por que o livro levou 14 anos para ser lançado no Brasil? O que achou da obra após tanto tempo?
Demorou porque eu achava que seria deselegante da minha parte lançar aqui um livro que não estava esgotado em Portugal. Mas, com a idade, começo a pensar que não sou eterno. Já estou “na marca do pênalti”, com 83 anos, e acho que este livro, que é bom, poderia vender melhor e sair mais barato se fosse editado aqui. Meus livros vendem sempre, mas vendem pouco. É o chamado pinga-pinga. Não sou e nunca serei um best-seller.
Digo de forma muito direta que a canção popular deriva em linha reta dos antigos cantos épicos, que depois se transformaram nos chamados romances, que viraram romances líricos e que se transformaram na canção.
Um dos personagens históricos centrais para o surgimento da canção no século 16 é Domingos Caldas Barbosa, que também é personagem citado no clássico Formação da Literatura Brasileira (1959), de Antonio Candido. Qual a relação ente canção e literatura?
É verdade que havia essa aproximação, mas Candido boiou em um ponto. Ele tentou interpretar Caldas Barbosa apenas como poeta de seu tempo – e, se for comparado com 
poetas convencionais, Caldas Barbosa perde. Em que ele foi bom? Como ele tocava viola, foi para Portugal, ficou sem dinheiro e virou uma espécie de trovador a soldo dos colegas mais ricos. Ele ia para a casa dos caras e, em troca de uma boia, cantava.
Há dois Caldas Barbosa. Um é aquele que Candido considera inferior, com toda razão, e há o que tocava viola, sem preocupação com verso medido. A grande novidade dele é que ele cantava o que os caras do povão da época cantavam. E ele introduziu em Portugal dois gêneros de música declaradamente popular urbana que resistem até hoje: as modinhas e o lundu.
O senhor também fala de música contemporânea, como o rock e o rap. Gosta desses estilos?
Sou obrigado a ouvir. Essas músicas entram pelos ouvidos mesmo que eu não queira. Como tenho interesse em entender o fenômeno e a evolução, preciso conhecer. O rap eu acho interessante, e fui o primeiro a falar em nível elevado sobre a importância do fenômeno. Ele é a volta da palavra, como o cantochão da igreja, só que ainda mais puro. É interessantíssimo, um canto falado, que no início era pura reivindicação de forma falada. O cara encontrou uma forma de se expressar que não era mais a de fazer discurso em cima de um caixote.
A tecnologia está alterando a forma de fazer e ouvir música. Que relação o senhor tem com ela?
Ah, o Google, por exemplo, é uma grande salvação na hora em que a memória falha. É só ir lá, digitar, e aparece tudo. O YouTube é uma beleza. Ali dá para encontrar Judy Garland cantando o “Samba de Uma Nota Só”, em 1942, com o nome de “Mr. Monotony”. É uma bela ferramenta, mas precisa procurar. O grande problema da moderna tecnologia é que ela traz a mesma informação, em grande volume, mas não dá formação.
Seu acervo, com mais de 6 mil discos, foi digitalizado recentemente. Costuma usar o material que está lá?
O acervo digital na internet tem 90% de tudo que foi produzido no Rio de Janeiro em disco de 1902 até a década de 1960. De vez em quando entro lá, pois tenho necessidade disso para descobrir coisas novas. E já descobri muitas! Tenho uma grande lista de referências anteriores a melodias de Tom Jobim, como saber que “Chega de Saudade” vem do tema do filme Sob o Domínio do Mal, de 1962, de John Frankenheimer. “Desafinado” é igual a uma canção de Gilberto Alves, e “Eu Sei que Vou Te Amar” é a mesma melodia de “Dancing in the Dark”.
Mas fiz uma descoberta que me deixou muito triste. Descobri que a melodia de “As Rosas Não Falam”, de Cartola, na verdade é de dois caras do jazz. A melodia vem de “La Rosita”, de Coleman Hawkins e Ben Wester.
Meu ouvido é foda. Quando eu ouço, eu lembro.
Mas o senhor já deu entrevistas em que diz que isso não significa necessariamente plágio.
Pode ser um plágio involuntário, mas que ele ouviu isso, não há a menor dúvida. Fiquei muito chateado, pois tenho muita admiração pelas coisas do Cartola.
O que achou das homenagens aos 80 anos de João Gilberto?
João Gilberto é um bom malandro. Ele inventou uma coisa, inegavelmente. Aquela batida de violão, o aproveitamento dos contratempos dentro do [compasso] dois por quatro. Em vez de ser uma coisa metronômica, batida certinha, ele vai e volta. Como é uma batida que permite a superposição de uma harmonia de música norte-americana, acabou dando certo.
Ele é um cara meio fora de esquadro. Não é um sujeito de ligar muito para as pessoas, e foi malandro, aproveitou-se dessa fama e cultiva o folclore em torno disso, do atraso, da dúvida sobre ele ir ou não aos shows. E aí todo mundo o chama de gênio. O mérito dele é inegável, mas esses caras viram elefantes brancos. Coitado, já viu como está a voz dele? Nem consegue mais articular direito. E a culpa é do ar condicionado. Esse eu admiro, é um espertalhão.
A bossa nova sempre apareceu como referência de música brasileira para o resto do mundo. Isso é bom?
O pessoal da bossa nova todo é representante de uma classe média carioca ligada ao jazz. Quando aparece o violão de João Gilberto, toda a harmonia da música norte-americana, pela qual esse povo era fanático, se encaixa perfeitamente. Ali, monta-se uma harmonia norte-americana tão disfarçada que parece música brasileira. Isso não é uma vitória da música brasileira. Os brasileiros ofereceram aos norte-americanos uma nova visão da sua própria música. É mais fácil para o norte-americano ouvir. Por que Frank Sinatra canta Tom Jobim e não Nelson Cavaquinho? Porque não casaria. Sinatra canta Jobim porque aquilo casa com o que ele já fazia nos Estados Unidos.
Seu livro demonstra grande rigor na pesquisa. Que tipo de relação tem com a academia?
Neste livro é possível ver, pela bibliografia, a minha preocupação com a pesquisa. O que fico grilado é que dão muito espaço e atenção para os livros de acadêmicos, mas ninguém diz assim: “Pô, o Tinhorão pesquisa muito”. Sou sempre tratado como “inimigo da bossa nova” e blá-blá-blá. É a incapacidade de chegar e dizer: “Esse cara pode ser um chato, mas o livro dele tem base”. Se quiser contrariar o que está escrito ali, tudo bem. O que sinto falta é de base.
Meu lado pesquisador, de garimpar, até é reconhecido, mas só sou citado pela academia como “apud”, direto da origem. Eles tentam me ocultar. Já fiquei sabendo que há um professor na Bahia que proíbe livros do Tinhorão. Isso é a coisa mais irracional. Julguem o livro. Se quiserem, me chamem de idiota, mas o digam com base. Mas não, só me ignoram, e isso me incomoda, eu admito.
Mas o senhor voltou para a academia recentemente, para fazer mestrado na USP.
Voltei, mas voltar para a academia não foi bem uma volta. O que acontece é que eu descobri um tema que achei interessante: a imprensa carnavalesca, editada por clubes durante o Carnaval e que nunca ninguém tinha notado. Mas vi que, para fazer um trabalho sobre isso, precisaria ficar um tempo no Rio e em Pernambuco para pesquisar, recolher material. Aí minha mulher me deu a ideia de pedir uma bolsa. Então, na verdade, fui parar na academia por interesse na bolsa para fazer um mestrado. Assim que o mestrado foi aprovado, peguei o texto e lancei como livro.
Como era a convivência na USP?
Foi tranquila na maior parte do tempo. Mas uma das professoras da banca reclamou que eu me colocava muito pessoalmente em minha dissertação. E eu respondi que claro, afinal eu sou a fonte. Porque os caras já estão tão acostumados com trabalhos em que ninguém pesquisa nada direto na fonte. A bibliografia dos caras é formada quase que só por franceses, e ninguém ousa se colocar; ficam sempre atribuindo, seguindo alguém.
Que pesquisa está realizando agora?
Acabei de voltar de Portugal e estou cheio de material para meu novo trabalho. Comecei a estudar a congada, que talvez seja a festa mais popular do Brasil. Ela vem da cerimônia de coroação dos reis do Congo, que era feita em Pernambuco desde o século 17 e até mesmo em Portugal, no século 16. E aí descobri que, na verdade, nunca houve rei no Congo. Os reis do Congo são uma invenção portuguesa para facilitar a colonização da África, transformando o Congo em uma espécie de “Europazinha negra”.
Como é sua rotina?
Eu sou uma besta saudável. Não tenho nada de colesterol, diabetes, nada. Trabalho todos os dias, e há muitos anos que não tenho essa coisa de feriado. Não tenho praticamente vida social. Meu negócio é sentar aqui, ler, ler, ler, pesquisar.
As Origens da Canção Urbana
José Ramos Tinhorão
Editora 34
224 págs.
R$ 37
OUTRAS OBRAS DE TINHORAO
Pela ed. 34
Os Sons dos Negros no Brasil
Os Sons que Vêm da Rua
O Rasga – Uma Dança Negro-Portuguesa
Domingos Caldas Barbosa
Música Popular – Um Tema em Debate
As Festas no Brasil Colonial
A Revolução Popular que Surge na Era da Revolução
História Social da Música Popular Brasileira
A Música Popular no Romance Brasileiro (3 vols.)

Pela Hedra
A imprensa carnavalesca no Brasil
Pela Duas Cidades
Os romances em folhetins no Brasil
Pela Art Editora
Pequena História da Música Popular
Pelo Empório do Livro
Crítica cheia de graça

Revista Cult

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