sábado, 17 de setembro de 2011

Mário Corso e Diana Lichtenstein Corso


Thaís Furtado

Até que ponto a mídia interfere na formação das crianças? Qual é o papel do professor e da escola na atual sociedade, cada vez mais midiatizada? Estas perguntas, que muitos pais e educadores se fazem constantemente, foram o ponto de partida da entrevista realizada com o casal de psicanalistas Mário Corso e Diana Lichtenstein Corso, membros da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Além de experientes no atendimento a pacientes de todas as idades, os dois são autores do livro Fadas no Divã: psicanálise nas histórias infantis, lançado pela ARTMED em 2005, que trata da produção de ficção para crianças e seus efeitos subjetivos. Leia a seguir a entrevista completa.

Contos de fadas em versão digital

Considerando as mudanças que a nossa sociedade tem vivenciado, especialmente transformando-se em uma sociedade midiática, como os desenhos da televisão têm substituído os contos de fada no imaginário infantil?

Diana - É indiscutível que existe uma mudança de fonte. O que originalmente era uma fonte oral, hoje passa a ser uma fonte que precisa do apoio da imagem. Quando a gente conta uma história de um livrinho para uma criança de hoje, ela vem para o colo da gente e diz: "Deixa eu ver?". E, se a gente está contando uma passagem da história que não tem figura, ela pergunta: "Onde?". Ela parte do pressuposto de que tudo tem uma imagem associada, porque ela já cresceu em um sistema no qual a palavra e a imagem sempre são associadas. Isso não é bom nem ruim. Houve quem dissesse que isso empobrecia as crianças no sentido de que elas não construíam as suas próprias imagens. Elas passariam a usar preguiçosamente imagens que a mídia lhes oferecia. Só que a gente não se dá conta de que toda a imagem, toda a fantasia que a gente tem é construída a partir de outras imagens. Nada se cria, tudo se transforma. Um indiozinho, por exemplo, que imagina uma história que está sendo contada vai usar imagens que ele colheu na floresta. Ele vai usar o acervo que tem, como os milhões de variantes de verde que ele conhece e que a gente não sabe identificar. O acervo de uma criança da cidade que porventura tenha crescido sem nunca ter visto televisão ou ter ido ao cinema vai incluir os outdoors de rua, os modelos de carro ou o colorido das roupas das pessoas, uma série de dados e imagens a partir das quais ela vai construir suas fantasias. Por que não, então, essas imagens serem providas por filmes, por programas de televisão, nos quais se pode, inclusive, ousar em termos de imagem? O que temos observado nos desenhos animados contemporâneos é que as imagens são criativas. Pode-se representar algo de forma estilizada, de forma caricatural. Isso já é arte, já é brincar com a construção de uma imagem, de uma fantasia. Então, não estamos vendo uma preguiça estética produzida nas crianças a partir da enorme oferta de imagens da TV, do cinema e da internet. Estamos vendo um enriquecimento de possibilidades.

Mário − Há algo mais sutil, mas que também é importante comentar. O conto de fadas, de alguma maneira, é artesanal. Se você conta um conto de fadas para o seu filho, mesmo que seja de um livro, tem a sua entonação. Na TV, existe algo massificado. Faz diferença? Faz. As duas formas são complementares, mas o conto de fadas é rico, porque coloca um familiar, por exemplo, ao lado da criança desdobrando a história. A gente não consegue contar uma história sem acrescentar alguma coisa nossa, dando ênfase a algo. A própria escolha da história é nossa. Há um diálogo maior com a criança, que não existe na TV. Esta fica passando uma história o tempo inteiro.

Existe diferença entre uma criança que assiste à televisão acompanhada dos pais, por exemplo, que comentam o que está passando, e aquela que assiste sozinha?

Mário - Existe. O pai que está acompanhando a criança pode falar sobre o que eles estão assistindo. Pode dizer se o desenho vale ou não vale. O outro caso é de crianças largadas, que ficam com uma babá eletrônica. Uma babá de péssima qualidade.

Diana - A criança que assiste à televisão com seus pais não vai assistir à mesma televisão que uma criança que assiste à televisão sozinha. Os pais atuam de alguma forma nas escolhas, dizendo o que gostam, questionando: "Por que você gosta disso?". Ou comentando: "Ah, mas que cara chato! Eu não gosto que você assista a esse programa porque é só pancadaria". Eles estão opinando e, assim, mostrando para a criança que é possível elaborar algo a respeito do que está sendo visto, que se pode opinar, escolher, discordar do pai, que a criança pode dizer que não acha chato, por exemplo, os Power Rangers. "Mas eles fazem sempre a mesma coisa", o pai pode dizer. "Não, não fazem", o filho pode argumentar. Então, abre-se uma possibilidade para a criança não só pensar suas escolhas, mas também formar opiniões. Passa a ser uma relação mais ativa. O pai ajuda a criança no recorta-e-cola da relação com os objetos culturais.

Power Rangers é um programa direcionado aos meninos. Por que meninos gostam desse tipo de conteúdo, com lutas e violência, e meninas não?

Diana - Para começar, nos Power Rangers há mais meninos do que meninas. Numericamente, então, os homens já estão em maioria. Isso não quer dizer necessariamente que um desenho que tenha meninos não seja para meninas, mas podemos pensar que, no programa, os fatos de que os heróis sejam garotos e que tenha bastante luta vão ajudar para que os meninos gostem. Assim como o fato de as bruxinhas Witch, por exemplo, serem garotinhas vai dificultar que um garotinho goste das personagens. Já nos Padrinhos Mágicos, e em muitos outros desenhos, o personagem principal é um garoto e tanto meninos quanto meninas gostam.

Mário - Uma das razões do sucesso dos desenhos japoneses é que eles são monotemáticos em um assunto que interessa muito aos meninos, que é a luta por prestígio. A disputa é para ver quem tem mais virtudes para poder vencer o outro. Virtudes morais. É um embate entre dois egos para ver qual sai vencedor. Isso é uma questão muito mais masculina do que feminina. Disputar espaço e hierarquia pesa mais entre dois homens do que entre duas mulheres.

Diana - Os desenhos japoneses têm algumas outras vantagens. Eles trabalham o crescimento do personagem com etapas bem marcadas. Quem lê mangá percebe que não só o personagem é retratado em várias etapas da vida, como existe o mesmo personagem retratado como pequeno, como regressivo. Ele tem o alter-ego infantil, que aparece no momento em que perde o controle, tem ataques de raiva, ou quer muito algo. Eles trabalham muito bem algo que é caro ao romance moderno: a construção do personagem. Essa construção às vezes é difícil de apreender, pois é repleta de conflitos de crescimento, dolorosos, que vão sendo superados. Nos desenhos japoneses, os personagens vão crescendo, porque vão ficando menos burros, porque vão aprendendo, porque vão aumentando sua capacidade de superação. Isso é muito demarcado, assim como o bem e o mal. E esses desenhos trazem para a estética ocidental a contraposição entre a ordem e o caos, que passa a ser importante para nós. Além disso, há a contraposição entre o mundo estruturado e o mundo desestruturado.

Mário - Enquanto o nosso mundo é maniqueísta, o deles não tem essa mesma lógica.

Diana - Como nós estamos lidando cada vez mais com construção e destruição, para as crianças ecológicas de hoje esse é um tema que encontra mais apoio na cultura japonesa do que na nossa.

Já que algumas crianças passam muito tempo assistindo à televisão, como o conteúdo dos programas pode interferir no seu comportamento?

Mário - Se uma criança passa muito tempo diante da TV, o problema não é o que a TV está passando, e sim o porquê de ela estar sozinha. Onde está o adulto que a acompanha? Essa é a primeira questão que deve ser colocada. Trata-se de uma criança solitária, sem opções. O dramático da vida de agora é o esvaziamento do espaço público. As crianças perderam a rua. Na minha geração, a calçada, o vizinho, o andar por aí, em terrenos baldios, eram comuns. Hoje a possibilidade de ficar à toa procurando gente acabou. Isso coloca as crianças dentro de casa. E aí elas vão fazer o quê? Ver TV, que às vezes até não é tão ruim, mas o dramático é o que elas estão deixando de fazer, o esvaziamento do contato entre as crianças e com os adultos.

O computador, com o MSN, por exemplo, tornou-se uma alternativa de os adolescentes se corresponderem. Esse é o um novo espaço de contato?

Mário - Nesta época, a possibilidade de retomar o contato de rua é via internet, embora não seja a mesma coisa. Os efeitos a gente vai saber depois, mas é melhor do que nada. Há uma interação, uma troca. Para os inibidos é mais fácil, pois o corpo fica de fora. É por isso que a sexualidade corre à solta na internet, porque o corpo não entra. É uma sexualidade de fantasia. É o paraíso do neurótico obsessivo: ninguém toca nele.

Diana - Talvez essa "epidemia de hiperatividade" que está acontecendo hoje se deva ao fato de que as crianças não sabem mais onde encaixar seu corpo. O único espaço público que resta às crianças da classe média, que têm mais possibilidade de proteção familiar e mais recursos culturais, é o shopping center. Um lugar aonde não se pode ir de short e blusinha manchada, comendo bolacha recheada e ficando com o recheio entre os dentes, porque se deve estar lá basicamente para ser olhado. Então, nos espaços públicos que nos restam, a imagem é muito controlada. O próprio corpo acaba sendo trabalhado até nisso: deve ser trabalhado na definição dos músculos, no sentido da força. E é uma força que não é para usar, que não serve para brincar. O corpo é modelado para ser apenas visto, não usado. E mesmo os embates do sexo estão cada vez mais públicos do que privados. Fica-se no shopping, na festa, na frente de todo mundo. Sempre em lugares muito controlados. É a grande vitória do chá de pêra. Nem para brincar, para nada se está sozinho. E, quando se está em público sozinho, o corpo está fora de ação, porque estamos sendo olhados. Ou estamos sozinhos de modo virtual. Então, o que fazer com o corpo, com a vitalidade que ele tem para ser desengonçado, para bagunçar?

Mário - Enche o saco do professor!


Como vocês apontam no livro Fadas no Divã, a escola para todos é uma conquista recente, portanto essa temática não é tradicional no campo da ficção. Dois sucessos recentes entre as crianças e adolescentes se passam em uma escola: Harry Potter, apresentado primeiro em livro, depois no cinema, e High School Musical, filme para a televisão da Disney. Por que as histórias em que o cenário principal é a escola fazem tanto sucesso hoje?

Mário - É simples. A escola hoje é tudo para as crianças. Elas não têm o vizinho, elas quase não têm parentes, que normalmente estão longe. Não crescemos mais em clãs, com primos. Com o rumo que as famílias e os espaços públicos estão tomando, sobra o quê? A escola. Quem tem sorte vive em condomínio, mas é um espaço ainda muito menor do que aquele que a minha geração tinha. A escola passou a ser a vida pública. E isso só atrapalha a escola, porque ali a criança precisa se realizar enquanto aluno e como alguém na sociedade. Ela vai buscar prestígio de outras formas. Antes, a escola era só para estudar. Você podia ser um péssimo aluno na escola, mas ser o melhor jogador de futebol da rua. Então, havia um outro lugar de reconhecimento. Agora, se você é um perdedor na escola, é um perdedor na vida. Fica difícil. Existem poucos lugares alternativos.

É por isso que hoje algumas questões que deveriam ser tratadas em casa, com a família, acabam sendo levadas para a escola, para o professor?

Mário - Está ocorrendo uma terceirização da função educativa. A pobre da escola tem que fazer mais isso também. Nas séries iniciais, as crianças descobrem que o mundo existe, que a mãe não é só delas. O professor acaba fazendo a função paterna ou materna. Com a quantidade de filhos únicos que se tem hoje em dia, quase sem contato com outras crianças, eles acabam descobrindo que o mundo não é só deles na escola. A escola, então, está educando em sentido amplo, que é o que os pais deveriam estar fazendo. Por isso, as escolas ficam um caos, porque as crianças vão testar limites lá. Haja paciência dos professores!

Diana - Outra situação é que está difícil para as crianças separar o seu espaço do espaço dos pais. Uma das vantagens da rua é que ela era "fora de". Era o lugar em que se ouvia, em uma determinada hora, a voz da mãe chamando: "Fulano! Vem pra casa, vem tomar banho!". Então, havia uma idéia clara de que se estava fora e de que se era chamado de volta para dentro. Podia-se até apanhar por alguma coisa que se tivesse aprontado na rua, mas era algo que acontecia lá fora. Essa diferença entre o espaço de dentro e de fora está começando a desaparecer e, junto com ela, a falta de liberdade. Por exemplo, com qualquer folga de dinheiro que uma família tenha, mesmo sendo de classe média baixa, ela vai tentar escolher uma escola para seu filho, porque ela supõe -corretamente - que nessa formação que ela conseguir subsidiar para o filho reside o futuro dessa grande aposta que ela faz que é a sua cria. Então, ela vai tentar pagar tudo o que consegue por um serviço de boa qualidade, pensando que assim garantirá o futuro da criança. Então, ela vai tratar a escola como uma prestadora de serviço para a família. Isso faz com que as escolas fiquem à mercê das exigências dos pais, que são clientes pagantes e que vão para a escola com muita ansiedade relativa ao que a escola pode fazer para garantir o sucesso da educação dessa criança. Os pais pagam e querem garantias de futuro, de que o filho vai passar no vestibular, de que vai ser melhor que os outros. Isso faz com que os pais acabem ficando presentes naquele que seria o único lugar "fora", que é a escola.

No caso específico do Harry Potter, como vocês analisam as relações que se estabelecem entre os professores, os alunos e as famílias?

Diana - Uma das vantagens que tem o Harry Potter - e que tinham as Chiquititas, que eu acompanhei com as minhas filhas - é que ele é órfão. São casos em que ou os heróis são órfãos, ou existe uma travessia entre o mundo das crianças e o mundo dos adultos. Tanto que a escola é interna. Eles moram na escola e, quando os pais querem se comunicar, precisam mandar uma carta. No caso de Harry Potter, ele grita a sua mensagem. Porém, na maior parte do tempo, eles estão realmente longe do olhar dos pais, como se estava na rua. A rua era o lugar onde aconteciam coisas que os pais não estavam enxergando. Hoje em dia, algumas crianças até têm suas andanças na rua, são assaltadas, fazem trajetos que não combinaram com os pais, mas muitas chegam à puberdade sem nunca ter pego um ônibus, sem nunca ter caminhado sequer nos arredores da sua escola. Passam do carro da mãe para o próprio carro e continuam enxergando o mundo enlatado, saindo de uma garagem e entrando na outra. Quanto mais abastado o jovem é, mais isso acontece. Que possibilidade de circulação existe hoje? Essa a que ficamos expostos quando estamos na rua, expostos ao vento, à luz, à violência? Isso elas não conhecem. Em algumas escolas, os pais chegam a ficar no pátio da escola, determinando quem vai ser amigo de quem.

E como vocês vêem a figura do professor sendo retratada na mídia hoje para as crianças? As bruxas quase não aparecem mais, mas os professores às vezes são extremamente malvados ou rígidos. Existe um resgate das tradições?

Mário - O Harry Potter tem um resgate da tradição. Ele é muito nostálgico em relação ao lugar do saber. Há velhos, uma geração dos que sabem, e isso causa um grande conforto. A nossa contemporaneidade está com muita dificuldade de assumir um lugar do saber. Vivemos uma geração de pais desnorteados. Eles não conseguem ser afirmativos na questão dos valores, nem se posicionar claramente, porque não sabem mesmo o que fazer.

Diana - Não é à toa que Harry Potter foi uma história escolhida pelas crianças e na qual nenhuma editora apostou no início. Porque os editores são adultos, e os adultos investem na sua fantasia do que são as crianças e os adolescentes. A fantasia que os adultos atuais têm é de que as crianças estão fadadas à irreverência que nós sonhamos para elas. Supunha-se que os filhos dos pais pós-hippies teriam mais problemas com a autoridade do que eles verdadeiramente têm. Porque os pais tiveram que conduzir uma grande cruzada em prol da flexibilização que levou a descobertas pedagógicas modernas extremamente importantes. Como, por exemplo, levar em conta o processo de aprendizagem da criança para poder ensinar a ela conforme o jeito que ela tem condições de pensar. Isso é pedagogicamente uma revolução, que tem tudo a ver com a revolução dos costumes. Assim como a liberação sexual, que permite que hoje a iniciação sexual seja menos traumática, que os jovens não estejam aprisionados por tabus como a virgindade, ou como a iniciação sexual obrigatória do menino. Claro que tudo isso ainda existe, mas de forma muito mais amainada. Houve ganhos a partir da revolução de costumes conduzida a partir das décadas de 1960 e 1970. As gerações de adultos presentes supuseram que as crianças frutos dessa educação, que sonhamos para eles, seriam selvagens rebeldes. Livre de tudo e de todos. E, na verdade, as crianças continuam precisando de adultos nos quais se apoiar para crescer. E elas fazem o quê? Escolhem uma forma de ficção saudosista, que já vinha sendo preservada pelos cultuadores de Tolkien, autor de O Senhor dos Anéis. Uma ficção em que as hierarquias e as iniciações, como acontece em Guerra nas Estrelas, são muito claras, em que a figura do mestre é bem marcada. A cultura sempre foi mantendo e reafirmando que a relação entre mestre e discípulo é algo que as crianças precisam, idealizam e consomem, como está se repetindo com Harry Potter.

Mário - O pai da minha geração diria: "Eu quero que você seja médico". O pai da geração de agora diz: "Eu quero que você seja feliz nas suas escolhas". Existe uma diferença muito grande nessas duas afirmações, porque ser feliz nas suas escolhas é intransitivo, serve para qualquer coisa. Na verdade, não diz absolutamente nada. O pai anterior tinha certezas. Claro que isso era um peso, mas era mais fácil ter um peso para se contrapor, dizendo: "Eu não vou ser o que meu pai quer". Era um ponto sólido de referência positiva ou negativa. Hoje o que os pais dizem é: "Eu não sei o que é o futuro". Os pais de hoje estão perdidos do ponto de vista da capacidade de educar os filhos. Não é que eles não queiram, eles não conseguem ser afirmativos em relação a nenhum valor. É lamentável, mas é assim que funciona.

Hoje, as crianças estão expostas a programas como Big Brother Brasil e novelas, que apresentam temáticas adultas. Vocês acham que os pais devem proibir os filhos de assistir a esses programas?

Mário - Se na cultura da família todo mundo vê novela, porque dizer para criança não fazer aquilo? Se você diz para o seu filho que a novela não é um programa para ele, vai estar sublinhando: "Ahá! Aqui estão as coisas verdadeiramente importantes!". Acho essas restrições impossíveis. Ao proibir, você cria um subproduto do desejável. Uma das coisas que é importante para as crianças é elas poderem conversar com todo mundo. Se tiver alguma coisa que todo mundo está comentando, mesmo que seja um lixo, é bom para a criança ter assunto.

Diana - A gente confunde preguiça com democracia. Não é pelo fato de que as crianças estão podendo ver a mesma programação que os pais que se está sendo democrático, no sentido de incluir as crianças na vida dos adultos, de dar espaço para elas. As crianças precisam ter uma separação de seu mundo, a sua rotina. E, muitas vezes, ficamos com preguiça de pensar. Por exemplo, o horário de descanso dos pais não vai começar às oito horas da noite, quando chegaram em casa e vão sentar para assistir à sua novela. O horário de descanso dos pais vai começar às dez horas, ou até mais tarde, quando eles já chegaram e escutaram o que os filhos têm para dizer, vão perguntar e se envolver com algo que eventualmente a criança quer mostrar e compartilhar. Cada vez mais, os adultos precisam postergar seu momento de ensimesmamento. Então, pensar que as crianças estão ali assistindo à novela por alguma coisa que seja interessante para elas é falso. Elas estão assistindo à novela porque os adultos estão com preguiça de se ocupar delas. O que não tem nada de condenável, porque às vezes a pessoa está realmente exausta.

Mário - E às vezes esse é o único momento em que a família se encontra, de noite, em casa, na frente da televisão. Ver novela é a única coisa que eles fazem juntos. Há uma tradição cultural no Brasil em relação a isso, o que não é um problema muito grande. A novela acaba enchendo a cena familiar. Como você vai excluir alguém disso?

Mas também faz diferença quando os adultos comentam criticamente os conteúdos da novela?

Mário - A conversa, a crítica, ajuda.
Diana - Os pais expõem seus valores.

Mário - A novela faz as pessoas falarem. E as crianças estão ali ouvindo. É uma educação de péssima qualidade, mas é uma educação.

E em relação ao Big Brother, qual a opinião de vocês?

Diana - O Big Brother é a pobreza ficcional.

Mário - É a saudade da cidade pequena, da fofoca, onde todo mundo sabe de tudo o que aconteceu. Então, todos têm assunto. O Big Brother proporciona isso. São vidas conhecidas das quais compartilhamos para poder discutir valores. O Big Brother não é o que vemos, mas sim a discussão que faz surgir. Nesse sentido, as pessoas fazem trocas e se aprende algo. É um meio bastante pobre, mas é um meio de troca.

Diana - A revista Caras é o Big Brother das pequenas celebridades. Um comentar da vida alheia. Na fofoca de uma comunidade pequena, existe tão pouca verdade humana quanto no Big Brother ou na revista Caras. Só que, em tudo isso, vemos a pobreza ficcional. Quando as pessoas se aglutinam em torno de alguma forma de arte, como a música, por exemplo - qualquer tipo de música - é melhor do que se aglutinar em torno do Big Brother ou da revista Caras. Qualquer tipo de ficção é melhor do que a concretude do Big Brother, na qual temos uma pequena poetização do cotidiano, permitindo que ele seja visto de um ponto de vista mais rico do que na simples concretude de saber se uma pessoa tomou banho, trocou de roupa, comeu, transou. É uma pena que a vida seja reduzida a tão pouco. Somos muito mais do que isso.

Aquilo que as crianças e os adolescentes escrevem no Orkut não tem nenhum controle por parte das escolas. No entanto, muitas vezes os alunos usam o Orkut para criar comunidades contra um colega, ridicularizando-o ou expondo-o. Quando isso acontece, a escola deve ou não interferir com seus alunos ou com seus pais?

Mário - O que se faz hoje na internet ou no Orkut não é diferente do que se fazia antigamente. Se alguém que não gostava de uma menina, resolvia chamá-la de galinha e criava uma fofoca sobre ela, que ficava marcada. Não mudou essa lógica dos pequenos conflitos gerados por fofocas. O meio é novo, mas o fato é antigo. Um grupo de alunos contra outros é um fato muito antigo na escola, com exemplos clássicos na literatura, inclusive. E historicamente a escola nunca conseguiu resolver essas questões, por isso eu não tenho muitas esperanças de que ela consiga fazer isso hoje. A única vantagem da internet é que fica mais claro o que está sendo falado.

Mas a comunidade pode ser anônima.

Diana - A internet é um dos lugares menos anônimos. Para os adolescentes, é possível rastrear tudo. Nós é que não temos todas as ferramentas para isso, porque não temos a intimidade que eles têm com o meio, mas para eles não existe tanto mistério nisso.

Mário - Já se pede tanto da escola! Acho difícil que ela consiga regrar ou intervir nesse caso.

Diana - Acho que isso também é um reflexo das escolas. As panelinhas, por exemplo, são um grande fenômeno das escolas. Que grande novidade tem aí? Antigamente, os alunos também se dividiam em grupos raciais, sociais, etários ou relativos ao posicionamento sexual. Sempre existiram grupos, porque, entre os jovens, é necessário definir claramente qual a cara do grupo de pares a que se pertence como forma de definir a identidade. "Diga-me com quem andas e eu te direi quem és". A tendência é que, como nós temos uma estetização exacerbada, que decodifica quem é quem, vai haver grupos mais definidos, com imagens mais variadamente estereotipadas. Nem eles se entendem bem em relação a quem é nerd, quem é emo, quem é gótico, quem é lolita, e eu poderia ficar citando dezenas de nomes de grupos. Eles precisam ficar criando categorias como meio de tentar definir e apresentar uns aos outros a sua identidade. Isso é próprio da juventude. Nasce com a adolescência e vai existir enquanto ela existir. Entre as crianças existe também, mas já como uma premunição da adolescência que virá. São lampejos da tentativa de construção de uma identidade pessoal, que se desenvolve mais propriamente na juventude. A utilidade desses grupos existe também como modo de garantir a diferença entre uns e outros. Garantir que se eu sou emo eu odeio roqueiros, se eu sou roqueiro eu detesto os nerds, se eu sou nerd eu tenho horror das patricinhas, e assim vai. É preciso definir uma identidade em contraposição à do outro. Isso é banal na psicologia de grupo. E em relação à agressão, desde que existe gurizada, existe briga de rua. A grande diferença que eu vejo talvez seja que, com os avanços das conquistas feministas, as meninas fizeram uma conquista coisa "fantástica", que é a possibilidade de brigar a tapas e unhadas. As meninas se contentavam com agressões mais orais.

A linguagem que as crianças e os jovens utilizam no MSN e no Orkut é incompreensível para muitos adultos. Várias letras são suprimidas ou usadas de forma pouco usual. Na opinião de vocês, essa nova linguagem on-line que foi criada pode influenciar negativamente a aprendizagem da língua portuguesa?

Mário - Eu acho que é um outro código, que não atrapalha. É uma neotaquigrafia. Eles sabem separar muito bem um código do outro. Não creio que empobreça. É um código utilizado para um determinado momento. É como usar uma gíria. A gente sabe quando pode usar e quando não pode.

Diana - O erro está em pensar que aquilo é linguagem escrita. Não é. É uma linguagem falada de forma escrita. Então, pensar que as crianças vão escrever mal porque escrevem internetês é o mesmo que pensar que elas vão falar mal porque usam gírias. Elas têm a capacidade total de discernir um meio do outro: vão se comunicar de um jeito entre si, mas sabem perfeitamente que não é da mesma maneira que vão escrever um trabalho de colégio. Assim como na linguagem oral existe essa diferença, digamos que a linguagem escrita se sofisticou e passou a ter um território coloquial, um território onde as regras de português não funcionam, assim como não funcionam em muitas outras ocasiões.

Mário - A internet ressuscitou um meio que estava quase morto, que eram as cartas. A internet propiciou a retomada da escrita, no sentido bom, de deixar coisas registradas. Só que existem alguns vícios orais no meio. Não vejo problema algum nisso.

A mídia está sempre estimulando o consumo e vendendo padrões de beleza praticamente inatingíveis, principalmente nos anúncios comerciais. Como a escola pode ajudar a despertar um olhar mais crítico em seus alunos quanto a essas questões?

Mário - Está se colocando a escola no lugar que se esperaria da família. Eu não consigo imaginar uma escola que tenha esse pensamento. Na escola dos meus sonhos haveria isso, mas nas escolas que vemos na rua não acontece isso. Elas não têm espaço para conseguir transmitir valores.

Diana - A escola faz isso, por exemplo, quando estabelece um uniforme. Ajuda as crianças a baixar um pouco a guarda relativa a essa questão da imagem, mas não faz muita diferença. Se uma menina acorda às cinco da manhã para conseguir fazer chapinha e se maquiar antes de ir para o colégio, tanto faz se ela vai usar a blusinha do uniforme ou da butique X.

A mídia acaba ficando fora do conteúdo de muitas escolas. Seria importante que a escola se preocupasse com essa questão de fazer uma crítica da mídia?

Diana - Eu sempre me enfadei muito de as escolas reproduzirem o banal. A escola deve trabalhar justamente num território de criação, de questionamento, de construção de crítica, mas é como o Mário disse: essa é a escola dos nossos sonhos. Não vejo problema nenhum em as crianças assistirem a filmes da Disney em aula e discuti-los, mas seria interessante se elas pudessem discutir as várias versões do mesmo conto de fadas que é narrado por Disney e vissem a obra de arte como ponto de vista. Eu sempre fiquei muito brava quando as professoras de escola, principalmente quando as minhas filhas eram pequenas, ficavam fazendo anedotas no quadro a respeito de personagens de novelas ou de programas de auditório banais. As crianças não precisam que a escola promova esse tipo de cultura. Isso elas fazem se for o hábito da família. Lembro que eu tive uma grande briga em uma das escolas em que as meninas estudaram, porque era época em que veio para Porto Alegre uma belíssima exposição sobre o mundo de Monteiro Lobato. Na mesma época, essa escola organizou uma grande excursão para o espetáculo Disney no gelo. E eu fui discutir, porque Disney no Gelo é ótimo para quem quer ir no domingo com a família. Seria mais interessante a escola propor algo que seja mais difícil para as crianças, que é transitar no mundo do Monteiro Lobato, que até tem sua versão televisiva. Mas ele não é tão óbvio, ele não se vende sozinho.

Mário - Seria interessante que os professores não usassem os personagens e as citações da mídia. Ela não precisa de promoção. O ideal seria trabalhar a resistência, oferecendo aquilo que as crianças não vêem normalmente. Mas as professoras assistem a esses programas, então a gente estaria pedindo para pessoas que não façam algo que elas mesmas consomem. Acho difícil que isso seja possível, mas seria o ideal.

Diana - Isso deveria ser trabalhado na formação dos próprios professores, numa reciclagem cultural.

Mário - Deveria haver uma reciclagem cultural permanente, que fizesse com que os professores tivessem essa crítica à mídia. Assim, eles passariam tal postura automaticamente para os alunos. Se deixassem de dar exemplos da TV já seria uma grande coisa.

E o adulto que age como criança?

Diana - Há algo errado, por exemplo, em pensar que um pai continue jogando bola? Até é bom. Os jovens adultos de hoje cresceram com uma intimidade com os games e com os desenhos animados que se aproximam do campinho de jogar bola dos adultos de antigamente. Não há problema em carregarmos junto conosco restos da nossa infância, e isso passa a ser possível a partir do momento em que a infância ganha um estatuto de valorização na nossa sociedade. Se uma pessoa que hoje tem 60, 70 anos fizesse coisas de criança na idade de jovem adulto, ela seria ridicularizada, porque há algumas décadas o abismo entre as faixas etárias deveria ficar bem delimitado. Em segundo lugar, a infância não tinha a valorização que ela tem hoje, quando é estetizada como algo interessante. Ser infantil é uma qualidade, porque as crianças são criativas, ingênuas, puras, irreverentes. Então, utilizar algo que nos identifique com essa idealização da infância é um recurso para parecer bonito, como qualquer outra coisa. Se pensamos tão bem das crianças hoje, por que nós, adultos, não podemos nos parecer com elas? Além disso, acabamos trazendo coisas da nossa infância. Isso não ruim, pois às vezes cria uma possibilidade de camaradagem entre pais e filhos. Eu tenho muito prazer em compartilhar coisas da minha infância com as minhas filhas. Por exemplo, fiquei muito triste quando elas me disseram que Perdidos no Espaço é insuportável, assim como fiquei muito contente quando elas gostaram de Johnny Quest. Quando surgiu o canal de televisão Boomerang, começamos a compartilhar programas de televisão. Isso é uma infantilidade da minha parte? Provavelmente. Só que, hoje em dia, continuamos trabalhando com cultura infantil, e eu achei que eu gostava de cultura infantil porque eu era meio débil mental. Agora que as minhas filhas cresceram e eu me sento em frente à televisão para assistir a programa infantil, tem sido bem difícil, porque eu não estou mais identificada com a infância delas. A possibilidade de não cortarmos a ponte que nos separa da nossa infância faz com que tenhamos facilidade de transitar por ela quando nossos filhos são pequenos.

Nesse caso, estamos falando de uma mãe que está compartilhando sua infância com as filhas. Mas não existem aqueles adultos que nem têm filhos, mas que continuam fazendo coisas de criança?

Mário - Nós estamos vivendo uma época de nostalgia, com livros que retomam as décadas de 1970 e de 1980. Essa nostalgia precoce está acontecendo porque o mundo tem uma aceleração tão grande que logo nos sentimos defasados. Há um abismo entre cada geração em relação ao que é consumido pelos pais e filhos. Cada geração tem o seu consumo, os seus brinquedos. Uma das razões que fazem os contos de fadas persistirem é que eles têm uma linguagem comum. Hoje, o computador permite que o brinquedo seja uma categoria um pouco mais séria. Seria estranho, por exemplo, eu convidar um outro homem adulto para brincar de forte apache. Mas hoje os forte apaches são virtuais, as pessoas podem brincar com ele sem parecer que têm um brinquedo. Há uma facilidade na infantilização. A tecnologia ajuda a se reencontrar com a infância. É um fenômeno sobre o qual precisamos parar para pensar, mas ele de fato acontece. Eu posso ligar a TV agora e ficar assistindo a programas de quando eu tinha 10 anos. Haveria uma conexão comigo mesmo? Eu não sei. Essa é uma pergunta ainda em aberto. A única coisa óbvia que poderíamos dizer é que o adulto que está fazendo isso está precisando brincar. Está difícil ser adulto, então.

Diana - É que adulto é chato.

Em alguns desenhos, como Padrinhos Mágicos, os adultos são retratados como desajeitados, negligentes, incapazes. Por que as crianças gostam de assistir a desenhos que apresentam os adultos dessa forma?

Mário - Muitas vezes a escola herda dos pais a cisão de personagens. O desenho Padrinhos Mágicos é fantástico por isso. Existem os pais da realidade, que são uns bobos, e os mágicos, que são um pouco melhores. A criança faz isso para lidar mais facilmente com a vida, usando essa ambivalência da bruxa e da fada madrinha. É muito comum ela trazer essa ambivalência para a escola e achar que um professor é muito bom ou muito ruim, mesmo que ele não seja. Infelizmente, as crianças projetam nos professores uma maldade que eles não têm. Os professores acabam sofrendo com isso. Às vezes, elas também se apaixonam pelo professor.

Diana - É preciso diferenciar entre a infância e a adolescência. Na infância, os professores herdam uma espécie de rigidez que as crianças já não vêem mais nos seus pais. Os pais, com poucas crianças e nas poucas horas que ficam com elas, conseguem ser mais flexíveis. A escola, com muitas crianças e mais horas, precisa se ater a mais regras. Por exemplo, em muitos desenhos, os pais são vistos como bobos e os professores como rigorosos. Para os adolescentes, a figura do professor como uma possibilidade de identificação alternativa aos pais acaba sendo mais importante. Então, o professor não precisa encarnar tanto aquela figura autoritária, porque absorve mais a figura flexível. Em Hogwarts, a escola de Harry Potter, há professores muito velhos, que carregam uma tradição, mas que têm uma cumplicidade grande com as travessuras e com as transgressões necessárias de um grupo de jovens para combater o verdadeiro mal, que está no totalitarismo nazista de Voldemort. Os pais de Harry Potter, na verdade, são aqueles tios babacas. E os pais que não são bacanas são chamados de trouxas. E os pais bacanas são os bruxos.

Mário - Não dá para esquecer isto no Harry Potter: há um bocado de professores homens, que a sociedade brasileira não tem. A escola é um território das mulheres, o que acarreta um grande drama. Acho que as escolas deveriam ser como o mundo é. Atrapalha muito o fato de os meninos pequenos estarem sempre dominados pelas mulheres. Na China, é o contrário. O saber passa a ser uma coisa feminina na cabeça de alguns meninos. Então, eles não querem saber.
Revista Patio

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