terça-feira, 13 de outubro de 2009

Mino Carta - Teclas capitais


Teclas capitais
Para Mino Carta, o país tem inúmeras soluções e um único problema: uma elite medieval, diante da qual o presidente Lula amarelou. Aos 74 anos, depois de comandar publicações ousadas e criativas, ele ainda quer escrever um livro chamado “O Brasil”


Por: Paulo Donizetti de Souza e Vander Fornazieri

Publicado em 01/04/2008

(Foto: Jailton Garcia)

Mara Lúcia da Silva é coordenadora de produção da Carta Capital. Tinha 18 anos quando começou como secretária na redação da IstoÉ. “Secretária” costuma ser eufemismo para designar a faz-tudo do pedaço. Aos poucos, foi absorvida pelo então diretor de redação da revista, Mino Carta, que nunca mais lhe deu alforria. Vinte anos depois, Mara é a sua “escrava” preferida. É a encarregada, em meio às pesquisas iconográficas para os fechamentos semanais, de contornar o pavor do chefe a tecnologias. Hoje, pelo menos, já conta com ajuda de companheiros de redação para dividir o fardo de passar para o computador os textos que o veterano digita, ou melhor, datilografa, como se dizia antigamente. Até as respostas aos e-mails, acessados e impressos pelos escravos, são feitas a mão pelo chefe e digitalizadas pelos destemidos “escravos”, como Mino chama os intermediários entre ele e a vida real movida a computador – do qual não se aproxima para não ser devorado. Seria um sinal de conservadorismo? Afinal, além da secretária de duas décadas, há 40 anos o mesmo motorista o leva para cima e para baixo – sim, o criador de Quatro Rodas conta que nunca dirigiu nem sabe distinguir um Fusca de um Mercedes.

Enquanto alguns o acusam de ser chapa-branca, ele puxa sem dó as orelhas do presidente Lula, que diz ser um sintoma de que alguma coisa começou a mudar no Brasil, mas de quem guarda uma sincera decepção pela falta de ousadia. “Para que agradar tanto aos banqueiros?”, reclama. Nesta entrevista, que por uma questão de espaço está mais recheada de detalhes no site, Mino Carta fala do preconceito do mercado publicitário contra quem critica o pensamento único. Fala das origens da passividade do povo, da selvageria do capitalismo, de cinema, gastronomia e de amor. Conservador nas miudezas e anárquico no atacado, ele não tenta se explicar, mas será facilmente entendido.

Aqui é o lugar onde você mais gosta de trabalhar de todos os que já passou?
Talvez seja onde a margem de criação é maior. Mas cada coisa se encaixa no seu tempo e à moldura das possibilidades oferecidas. Eu lancei o Jornal da Tarde, foi uma empreitada valiosíssima, mas estava trabalhando no Estadão. A autonomia que tive foi muito grande em termos de criação, paginação, texto, o jornal foi até bastante revolucionário, mas politicamente a margem de manobra era mínima. Você tinha de se adaptar aos pensamentos da casa. Na Veja eu contava com patrões idiotas, e isso ajuda um bocado. Os Civita não sabiam onde estavam, e foi fácil fazer uma revista que mereceu censura, que foi perseguida violentamente.

Você já contou várias vezes a história da sua saída da Veja, em 1976. Isso é algo que o marcou, não?
Certamente, e positivamente. É problema você no Brasil lidar com a mídia, ela não quer saber de quem nada contra a corrente. A mídia está toda compactada nos patrões, em seus sabujos da redação, que giram em torno de uma idéia única. A idéia é reagir a qualquer tipo de ameaça, porque não se aceita a possibilidade de que o sistema possa ser interrompido, posto em risco, em xeque. Espanta o comportamento dos jornalistas brasileiros; não têm noção do que é ser jornalista. O jornalismo decaiu muito.

Por que o jornalismo hoje não se compara com o que se fazia na década de 60, 70...
Ou mesmo antes. Rubem Braga e Joel Silveira cobriram a campanha dos pracinhas na Itália, na Segunda Guerra Mundial, de forma impecável, com textos dignos do melhor jornalismo contemporâneo do mundo. Se você pensa que o jornalismo brasileiro já teve esse tipo de herói, você põe as mãos nos cabelos! Cláudio Abramo...

Perseu Abramo...
Perseu era mais notável não como jornalista, mas como político, como intelectual, que transmitia integridade, sem dúvida. Era sobrinho do Cláudio, embora a diferença de idade não fosse assim tão grande (seis anos), e filho do Athos, o segundo da estirpe (Lívio, Athos, Fúlvio, Lélia, Beatriz, Mário e Cláudio). O primeiro era o Lívio, grande gravurista, artista extraordinário. Entre o Lívio e o Cláudio tinha 20 anos de diferença. O Athos era o segundo. Com a Lélia eu trabalhei. Meu pai arranjou um emprego para ela. Ótima atriz, muito talentosa. Quando voltou da Itália, já era quarentona, trabalhou numa companhia amadora de teatro. Fez de tudo, teatro, cinema, e era engajadíssima.

Dessa geração que você viu, com a qual trabalhou, conviveu esses anos todos, quem você destacaria?
Ah, tem muitos. Eu não gostaria de cometer injustiças. Quando eu voltei da Itália, em 1960, fui lançar a Quatro Rodas – sem saber dirigir, até hoje não sei, e não distingo um Volkswagen de um Mercedes. Tive ali repórteres extraordinários. Trabalhei com Zé Hamilton Ribeiro e Paulo Patarra, depois veio o Sérgio de Souza. O Hamilton Almeida, que foi um excelente repórter, Tão Gomes Pinto. Estive em contato com gente de altíssima qualidade, jornalistas como hoje não se fazem mais.

E o Reali Jr.
O Reali é ótimo, é um grande sujeito. Eu acho que ele vai escrever coisa para a Carta Capital agora, de Paris. Já estamos engatilhando algo para que o Reali escreva pra gente. Meu pai era amigo do pai dele, é uma coisa muito, muito antiga.

Recentemente houve dois importantes “não-acontecimentos”: a batalha de Luis Nassif com a Veja e a saída de Paulo Henrique Amorim do IG. Como vê esses dois episódios?
Isso se encaixa exatamente na lógica do que eu disse. No Brasil você tem uma situação muito peculiar, que não existe em outros lugares que já saíram da Idade Média. Uma mídia compactamente unida apenas em torno da defesa dos interesses piores, aqueles da minoria branca, para usar a expressão do Cláudio Lembo. É muito simples: quem de alguma forma põe em xeque, critica a minoria branca e identifica esses interesses, que são os dela apenas, e não os do país, da sociedade brasileira, do povo brasileiro, quem faz isso é ignorado. E a técnica é a de sempre, antiqüíssima, usada inescapavelmente em todas as situações: “Ignore, porque aí não acontece, ninguém vai saber”. A estratégia, do ponto de vista deles, é extremamente eficaz. Saiu nesses dias um estudo em que você verifica que 58% da população brasileira não lê jornal, não lê livro, não vai ao cinema, não vai ao teatro. Alimenta-se só de TV, quem se alimenta. Há um distanciamento brutal em relação às notícias, à existência de fatos. Isso é muito claro no Brasil. E eles se aproveitam disso.

O que nasceu primeiro: a indiferença do povo ou a péssima qualidade da mídia?
Nada acontece por acaso e certas situações são inescapáveis. O povo brasileiro é um povo que traz no lombo a herança do chicote e da escravidão. Que seja um povo paciente, resignado, é indiscutível. É um povo que vive no limbo, isso não é nem o inferno, nem o purgatório. O Brasil sofreu desgraças terríveis. Foi uma terra predada como colônia, antes pelos portugueses, depois pelos ingleses, depois submetida ao superpoder americano. Essa foi a primeira desgraça. A segunda foi a escravidão, pela qual pagamos até hoje. E a terceira o golpe de 1964, o golpe da minoria branca. Hoje me surpreende a mídia falar em ditadura; antes falavam em revolução. Agora falam em ditadura, mas acrescentam “militar”. Isso me deixa num estado de profunda irritação: os militares foram os gendarmes que executaram o serviço sujo dos seus patrões brancos. Quem fez esse golpe senão a mesma mídia que agora decidiu mudar o nome de “revolução” para “ditadura militar”? Neste país, onde é muito fácil manipular a opinião pública, a chamada classe média estava convencida de que o golpe era absolutamente indispensável porque havia a “marcha da subversão” que batia às portas. Vocês viram a marcha da subversão? Eu espero até hoje... O golpe deu-se em uma hora, sem que fosse derramada uma única e escassa gota de sangue nas calçadas. Que golpe é esse? Era assim: amanhã tem o golpe. Vamos programar para amanhã porque é um dia bom, parece que vai ter sol.

Que arma a sociedade tem para enfrentar uma elite golpista?
Eu não tenho muitas esperanças em relação ao Brasil, infelizmente. E vocês vejam: país extraordinário, recursos absolutamente fantásticos, mais fértil do mundo, muito mais que a China. Onde você plantar, dizia o Pero Vaz de Caminha e é verdade, a coisa dá. Não tem cataclismo, o subsolo é rico em minérios, metade do ferro do mundo está aqui, agora descobrimos também petróleo onde não imaginávamos que houvesse. E temos a pior elite do mundo! A elite (desculpe a referência chula e mesquinha, talvez) da Daslu, de exibicionistas, cafajestes, cheios de si próprios, se acham notabilíssimos, inteligentes, elegantes, brilhantes. É um bando! É o país onde se fala mais palavrões na rua, desbocado, vulgar. Eu não tendo a enxergar o pecado no povo, o povo é o que pode ser. Os que mandam são os que não fizeram esforço algum para ser diferentes, para pensar em todo mundo, em vez de pensar somente neles próprios.

Mas o povo não tem uma responsabilidade por não reagir a isso?
Aí é que está. O golpe de 1964 é uma desgraça porque interrompe um processo, que não se realizaria no dia seguinte. Ia se realizar no espaço de 10 ou 15 anos, paulatinamente. Surgiria inevitavelmente aquilo que foi bucha de canhão dos grandes partidos de esquerda europeus: um operariado mais consciente. Os operários que não queriam ser operários, queriam ser burgueses. Hoje efetivamente a questão esquerda e direita tem de ser dimensionada de forma diferente, mas não no Brasil, ao contrário do que supõe o senhor Gabeira. Eu nasci na Itália, ela não vive um momento excelente – eu diria muito ao contrário –, mas apesar disso a Itália que saiu da guerra em escombros, muito atrasada, conseguiu superar-se graças ao Partido Comunista Italiano, que foi um grande partido, graças à presença de um proletariado que começou a ter consciência de sua força, e cuja força era de pretender ser burgueses. Eles eram proletários, mas queriam ser burgueses. Esse sonho todo de uma certa esquerda de que o operário adora ser operário é uma bobagem inominável. Isso encanta porque normalmente é uma esquerda mais ou menos intelectual, que gosta da companhia do operário porque depois diz: “Olha aí como eu sou generoso”. Não tem nada disso: o operário é ótima bucha de canhão. Eles querem ser burgueses. Na Itália, sindicatos fortes faziam greves gerais de um dia para o outro, paravam tudo. A elite brasileira que viajava para a Europa ficava desesperada, descia do avião e não tinha carregador para as malas; desciam dos trens e cadê os carregadores? Se queixavam muito. A greve parava mesmo, não tinha trem, você ficava preso em um lugar, tinha programado uma visita no dia seguinte e não podia viajar. Era muito triste.

E a imprensa noticiava isso?
A imprensa não funcionava se a greve envolvesse a categoria dos jornalistas, não funcionava e havia uma parte conspícua da imprensa que apoiava os trabalhadores. O jornal de maior tiragem na Europa era o L’Unità, do partido comunista. Estou falando dos anos 50. Havia três edições do L’Unità, em Roma, em Milão e em Turim, cada uma com sua redação. Hoje seria possível fazer um jornal só e mandar para qualquer lugar, mas nesse tempo não. Eram três redações distintas que tiravam 1,5 milhão exemplares por dia juntas. Portanto, era uma outra coisa.

O capitalismo brasileiro, depois dos estragos da passividade colonial, da escravidão e do autoritarismo na formação do país, não aprendeu com esses erros? Não amadureceu a ponto de querer construir um país menos concentrador?
Acho que eles estão pensando como sempre. Embora possa haver alguns sintomas de mudanças em cantos afastados das metrópoles. Rondonópolis (MT), me dizem que é um exemplo de lugar muito álacre e muito bem-sucedido, que avança à revelia dos padrões do Brasil que aparece mais. Eu acredito que possa acontecer uma espécie de revolução, não política, mas de hábitos relacionados inclusive com a produção na periferia do Brasil. Isso é possível e seria bom.

Mas os grandes centros ainda determinam os rumos do país, não?
Não sei. Sou bastante decepcionado com o governo Lula de vários pontos de vista, mas a eleição do Lula – e, muito mais que ela, a reeleição – mostra que uma mudança se dá. Talvez sem clara percepção por parte da maioria, mas os senhores do poder sabem perfeitamente da gravidade dessa mudança para eles. Tanto que malham o Lula automaticamente – não que ele não mereça, até porque ele faz tudo para agradá-los, sem conseguir, aliás. Mas eles sabem o significado da eleição de alguém que é igual ao povo brasileiro. Essa é a grande novidade. O povo brasileiro, que achava que o presidente da República tinha de ser bacharel e dormir de gravata, de súbito decide eleger um igual a ele, um operário, um tosco, despreparado, como diz a minoria branca. O Lula, a meu ver, não entendeu. Se tivesse entendido, teria ido bem mais longe do que foi. Por que agradar tanto aos banqueiros?

O que lhe desagrada mais?
Tem duas coisas que para mim têm importância e são positivas. Uma, muito claramente, é a política exterior. A segunda, a verificar os efeitos em longo prazo, é a expansão do crédito, que a meu ver é mais importante que o Bolsa Família, que é melancólico. Não porque eu ache que é uma medida assistencial, uma espécie de esmola. Não. É porque é triste. Um povo que se contenta com 50 paus a mais é porque realmente estamos mal. Agora, continuamos a ser exportadores de commodities.

Há quem diga que se Lula não tivesse cumprido os compromissos assumidos na Carta aos Brasileiros teria caído.
Eu duvido. Quem dá o golpe se o povo elegeu e reelegeu esse cara da forma como o elegeu e, sobretudo, como o reelegeu? A mídia compactamente contra ele, todo dia soltando informações sobre corrupção, envolvimentos terríveis com o que há de pior etc. etc., e assim mesmo ele foi reeleito. Quer dizer, a estratégia da minoria branca, que normalmente dá certo, desta vez falhou. Não acho que havia condições para nenhum tipo de golpe. Os grandes estadistas têm coragem. Claro, se ele me ouvisse dizer essas coisas, diria: “Ah, o Mino é um iludido, um anárquico”. Conheço o Lula há 30 anos, sei o que ele pensa. Em inúmeras vezes percebi que ele me achava incômodo. Sou amigo dele e gosto muito dele, o acho um sujeito extremamente dotado, além de tudo tem um QI muito bom. Mas falta peito, falta coragem.

Não acha que agora, no segundo mandato, ele está participando mais da política e sendo um pouco mais claro nas questões ideológicas?
Acho que o segundo mandato está pior que o primeiro. Fiz uma longuíssima entrevista com ele – 13 páginas – em novembro de 2005 e ele me disse: “Você sabe, Mino, que eu nunca fui de esquerda...” É um erro grotesco dos países de hoje, contemporâneos, dizer que a esquerda e a direta não existem mais. Como, se num país onde 5% vivem entre razoavelmente e bem demais e 95% vivem mal ou tragicamente? Como é possível dizer “aqui não existe esquerda e direita”? Tem uma metáfora magnífica que é a do metrô paulistano: se São Paulo tivesse um metrô digno de uma grande capital, como Londres, Paris, você teria muito menos carros na rua. O metrô é um transporte fantástico. Não! Eles cuidaram de construir túneis. Agora tem a ponte Espraiada e uma prefeita do PT chamou aquilo de Conjunto Viário Roberto Marinho, um salteador que infelicitou o Brasil, uma vergonha mundial, “jornalista”... Este é o único país que eu conheço onde jornalista chama o patrão de colega e o patrão consegue com o sindicato uma carteirinha de jornalista. Isso é Idade Média. Uma vergonha! Aqui temos diretores de redação por direito divino.

E como o país caminha para 2010?
Mal. Acho que se o Lula não se convencer de que não consegue fazer seu candidato, que não tem chance, que ele não transfere seu prestígio pessoal – e o Aécio já está dizendo isso –, ele vai optar por essa solução (mostra capa da Carta Capital de 2/4/2008, com reportagem abordando a possibilidade de Aécio Neves sair para presidente com Ciro Gomes de vice). E essa dupla (Aécio e Ciro) vai fazer as mesmas coisas que estão sendo feitas agora. Não imagine mudanças.

Como você vê o PT nessa história?
Há no horizonte claramente esboçada uma crise do PSDB, mas há também uma crise do PT, que no fundo já está em andamento. Já houve uma primeira fratura e haverá inevitavelmente outra. Eu sei que o Luiz Dulci (ministro da Secretaria-Geral da Presidência e liderança do PT de MG) não concorda com essa aliança mineira (do PT e do PSDB em torno do candidato do PSB à Prefeitura de BH). O Lula está feliz da vida com essa pax mineira. Há dentro do PT quem perceba que o partido está sendo de alguma forma diminuído, está perdendo peso, prestígio e importância.

Mas você vê um futuro com o Lula rompido com o PT?
Não posso crer. Acho que os partidos brasileiros não existem, são clubes recreativos para a minoria branca. Mas eu cheguei a achar que o PT tinha algo diferente. Nunca fui ligado a partido, mas apoiei muito o PT no seu nascimento, dentro das minhas modestíssimas possibilidades, porque sempre entendi que um partido forte de esquerda no Brasil, com coragem e determinação, poderia ter um papel muito importante. Mas o PT, em última análise, no poder, mostrou-se igual aos outros. É claro, o Brasil está crescendo no momento, mas está crescendo em cima de commodities, vamos ser claros! Isso é um futuro maravilhoso? Eu diria que não.

O que o governo deveria fazer para mudar isso?
É uma questão mundial. O deus-mercado é o pior dos deuses que o homem já conseguiu inventar. É uma desgraça. As bolsas do mundo – aliás, o Brasil cogita criar a terceira maior – são cassinos. Privilegiou-se a produção de dinheiro, em lugar da produção de bens. E eu me pergunto: isso leva a quê? O Brasil está nessa.

Tem alguém no mundo que não esteja?
Não, acho que o mundo está submetido a essa idéia. E estamos vendo que o mundo piora a cada dia. Temos por exemplo a “arte moderna”, uma prova da imbecilidade do mundo.

O Caio Túlio o procurou quando você deixou o IG em solidariedade a Paulo Henrique Amorim?
No próprio dia em que o Paulo Henrique caiu fora ele (Caio Túlio Costa, diretor do IG) ligou um monte de vezes, e eu acabei falando com ele à noite. Ele queria colocá-lo dentro de um fato consumado, deu as razões dele (por tirar Amorim do IG sem prévio aviso, meses antes de terminar o contrato). “Eu não quero perder você, pelo amor de Deus”. Aí a questão é de princípios. Eu não tenho dúvidas que o Caio Túlio agiu porque foi autorizado a tanto.

Você costuma navegar pelos blogs ou não se rendeu ao computador?
Não, tenho medo de computador. Computador me engole, ele tem uma bocarra que esconde os dentes, é coisa pior que tubarão. Se chegar muito perto, ele me engole. Já engoliu um monte de gente, principalmente a garotada, que vai pagar caro por isso.

Mas como você faz para responder aos seus leitores?
Tem aí uns escravos (risos, apontando para a redação).

Você compartilha da opinião de Paulo Henrique de que a internet como meio de comunicação é o “must”?
Eu diria que o instrumento é uma coisa e o homem que usa é outra. É como a televisão. Não é um instrumento fantástico? Você pode usá-la com os piores propósitos ou com os melhores. Idem a internet.

Paulo Henrique define a internet como o último reduto do jornalismo independente, pois o meio impresso, o rádio e a TV já estão dominados.
Isso no Brasil, nas nossas circunstâncias. Certamente não é na Europa. No Brasil é inevitável que ela também seja controlada, está sendo, o Brasil é medieval. A Europa não me parece que seja assim. Não que a internet não tenha uma razão de ser também lá. Mas se você pensar na mídia européia, por mais que existam lá os murdoch e os berlusconi, há uma diversidade muito grande. De alguma maneira, todas as tendências possíveis estão representadas na mídia. Na Itália tem um jornal extraordinário, o Il Manifesto, com paginação brilhantíssima, e de esquerda razoavelmente radical, não brinca em serviço.

De que jornais você gosta?
Il Manifesto é excelente. Não gosto muito do El País, aos espanhóis falta senso de humor, eles levam tudo muito a sério. A mídia americana já foi excelente, hoje está muito mal, como os Estados Unidos. La República é um jornal muito bom, muito melhor que o El País. Guardian, Independent são excelentes, de centro-esquerda, não de esquerda, mas muito bons. O Le Monde acabou, hoje é um jornal claramente comprometido. Já foi importante, até pela tentativa de criar ali uma cooperativa de jornalistas, de passar por cima e eliminar a figura do patrão. Infelizmente, e isso é cada vez mais claro, qualquer empreendimento editorial tem de ser encarado como negócio. Precisa ter retorno, senão você fecha.

Esse seu posicionamento em relação à elite branca gera algum problema comercial, de captação de publicidade para sua revista?
Gera. Tem muito publicitário que se submete à manipulação da Globo, da Veja, que repete as frases feitas da moda. É uma categoria muito alcançada por esse tipo de estratégia da minoria branca. Ela própria pertence à minoria branca. Ali tem um monte de gente que descobriu o vinho faz alguns meses e toma vinho nos restaurantes, e o ficam girando no copo e olhando e tal, e tem gravatas amarelas dessa largura, que são um símbolo dessa gente que está por dentro.

Você não tem gravata amarela?
Em princípio, não tenho nada contra, depende de como você a usa. Num tom não muito agressivo, usada com um paletó de tweed irlandês, por exemplo, eu diria até uma gravata de lã, é aceitável. Mas eles usam com terno azul marinho! (risos)

O que o anima? Cozinhar?
Sim, claro, cozinhar, comer.

Você come aqui no seu vizinho, o Massimo?
Nas noite de quinta, mas vai mal o Massimo. Houve uma briga entre os dois irmãos. Morreu a mãe, que era o tecido conectivo, e desandou. O Massimo propriamente dito já saiu, está aí o irmão. Mas não está indo bem.

Onde se come bem em São Paulo?
Dizem que é uma capital gastronômica do mundo... Mas come-se muito mal. É possível que aqui se possa comer comida japonesa muito bem – acho uma comida muito bonita, bem apresentada, uma arte, mas a comida em si, confesso, não me diz nada. Comida árabe eu acho muito saborosa, eu acho um quibe cru ótimo, uma abobrinha recheada ótima, é uma comida agradável, mas acredito que aqui a comida árabe no sentido completo da palavra não existe, porque sei de árabes que comem de uma forma bem mais criativa e com um cardápio muito mais amplo. A comida italiana em São Paulo é uma piada, dá para rolar de dar risada. A francesa também. Eu gosto de comer no Rufino porque tem um peixe muito fresco que eles fazem no vapor, temperam com azeite limão e sal, e está perfeito. Tem um restaurante engraçado, o La Frontera, do lado leste do cemitério da Consolação. De lá, eu olho para o canto onde está o Cláudio Abramo e isso facilita a minha digestão. É um restaurante engraçado, espirituoso, ambiente legal.

Você deu uma boa receita de bacalhau no blog.
Aquele bacalhau é um bacalhau à siciliana, não é único. Eu entendo que há três pratos de bacalhau que são imbatíveis. À portuguesa clássico, com legumes cozidos na água com bastante azeite, e o próprio bacalhau cozido na água com azeite, no fogo lento, por oito minutos mais ou menos, com dentes de alho que depois você retira, ovo duro, azeitona preta. Você sente o bacalhau, não é encoberto por molho ou coisa assim. Depois tem o bacalhau à espanhola, aquele em camadas: batatas, cebolas, pimentão, tomate, bacalhau. É excelente. E o outro é esse à siciliana, que faço com molho de tomate.

Você vai ao cinema, teatro?
Ao cinema eu não vou muitíssimo, mas vou. Infelizmente, São Paulo não recebe todos os filmes que eu gostaria de ver, mas recebe alguns, como esse filme dos irmãos Cohen (Onde os Fracos Não Têm Vez), extraordinário. Gostei desse Oscar. O Sangue Negro, eu gostei menos, está clara a metáfora do capitalismo e eu acho que essa idéia está perfeita, mas a realização e a interpretação do ator, que é endeusado, esse Daniel Day-Lewis, eu não gostei. E a culpa nem é dele, é do roteiro, você não entende direito o que é aquele cara. Aí você diz “é um louco”, e no que um louco representa o capitalismo? O capitalismo é outra coisa, tem de ser um cara muito esperto, muito egoísta, muito violento.

Você viu Jogos do Poder, em que Tom Hanks faz o papel de um deputado republicano que abasteceu a guerra do Afeganistão?
Um grande filme com o Tom Hanks é o Forrest Gump, que é uma metáfora dos Estados Unidos muito boa. (Sobre os Estados Unidos na guerra) assisti no último fim de semana em CVD, CDV...

DVD!
(Risos) Vê como eu sou tecnológico? Aliás, alguém tem de colocar o disco para mim, porque até agora eu não entendi como vai... Assisti ao No Vale das Sombras, com uma interpretação magistral de um ator chamado Tommy Lee Jones, que está no filme dos irmãos Cohen. É história de um marine cujo filho é chamado para a guerra no Iraque. É um bom filme, um pouco lento para o meu gosto também, mas a figura é perfeita, ao contrário do Sangue Negro, que não me entusiasmou. Gostei muito dos dois filmes do Clint Eastwood. Mas os dois são um pouco compridos. No que descreve o lado japonês (Cartas de Iwo Jima), à certa altura eu começo a sentir os glúteos em estado de letargia. Aí é ruim. O do lado americano (A Conquista da Honra) eu achei mais fácil de ver, e o outro, mais bonito. Mas o mais bonito nem sempre é o que você prefere, porque acontece que os glúteos se manifestam.

Falando em glúteos que se manifestam, você pensa em se aposentar?
Não, não tenho idade.

Depois de Quatro Rodas, Jornal da Tarde, Veja, IstoÉ, Jornal da República, Carta Capital, qual é a próxima cartada?
Não, não tem próxima. Eu estou pensando em escrever um livro, o terceiro, que seria “O Brasil”, falando do Brasil, o que é o Brasil para mim. Mas não escrevi nada ainda.

Quem vai passar para o computador?
A Mara.

A Mara é sua escrava?
É uma das.

E quem conserta a máquina?
A Mara chama o técnico. Às vezes encavala a fita.

Ainda se faz fita para máquina de escrever?
Faz, acho que estão pensando em mim. É uma regalia. Eu tenho uma Olivetti Lettera 32 em casa e esta (Linea 88) aqui no escritório. Não me largam.

Nós ainda pegamos essa fase da máquina de escrever, pegamos a transição.
Você é muito novo.

Tenho 43.
É surpreendente. O meu filho (Gianni) tem 44.

Você tem mais filhos.
Tenho também uma filha (Manuela) e um enteado. Casei duas vezes. O primeiro casamento foi um episódio discutível, mas produziu dois filhos, e tem uma grande ligação entre nós. Depois tive um segundo casamento, muito bem-sucedido, muito feliz. Foram 29 anos de vida em comum. Infelizmente ela (Angélica) morreu, faz 11 anos, de câncer. Foi um baque. Era um casamento muito bom, mesmo. Eu tive, de certa forma, essa sorte e também padeci dessa desgraça. A sorte confrontada com esse momento é um golpe. Até hoje tomo todo dia remédio para estabilizar os humores. Eu sempre tive uma saúde de ferro. Nunca tinha tomado nem remédio para dormir, e durmo pouquíssimo. Aí eu comecei a querer me atirar pela janela. Faz 11 anos que eu tomo esse remédio.

Você chegou a parar de trabalhar?
Ela, durante anos, sempre venceu as paradas muito bem. Você olhava para ela e dizia “ela está ótima, não tem doença alguma”. Mas a partir de setembro de 1996 a coisa começou a ficar muito feia e eu me dediquei muito a ela (muito emocionado). Ela foi a melhor pessoa que eu conheci na vida. Além de ser a mulher que me despertava, era certamente a pessoa mais importante.

Seus filhos são casados?
Minha filha é divorciada, meu filho é muito bem casado, mas ele é um rapaz esperto, casou-se com 36 anos. Os dois são jornalistas. O meu enteado é casado e o filho dele do primeiro casamento, que está completando 16 anos, vive comigo. Era muito ligado à avó. A casa dele, para ele, é a nossa casa. Meu filho mora fora do Brasil desde os 15 anos. A minha filha é publisher disso aqui, é a única da família que lida com dinheiro. Eu me mantenho o mais possível longe, porque posso causar estragos absolutamente inimagináveis.

Onde você economiza?
Economizo na idéia de que é melhor você ter uma equipe pequena e bem paga – isso é muito claro para mim desde que saí da Veja, porque a partir daí tive de inventar outros empregos. Isso, além de tudo, cria uma afinação entre as pessoas, um entendimento, uma harmonia e um ambiente muito produtivo.


Você poderia posar para umas fotos?
Mas como? Eu sou um velho ridículo... Onde você quer?


Revista do Brasil

Augusto Capelo - Coliseu pós-moderno

(Foto: Maurício Morais)

Coliseu pós-moderno
Reality show: verdade ou mentira? O psicanalista Augusto Capelo põe no divã o mundo Big Brother. Para ele, ao penetrar na privacidade e nos podres dos “gladiadores”, o telespectador compensa os próprios defeitos

Por: Flávio Aguiar

Publicado em 01/01/2008

Um dos momentos de maior audiência na televisão são aqueles chamados de “reality shows” – o Big Brother Brasil é o mais famoso. Existem outros programas, em que noivas flagram noivos caindo em tentação, famílias em conflito, espetáculos religiosos com descarregos. No limite, toda a vida pode se tornar a busca frenética de um show, dos 15 minutos de fama nessa lareira das imaginações, o fogo sagrado ou seu simulacro, que é a televisão, ou melhor, a empresa televisiva. Os atuais reality shows nasceram em 1999, na TV holandesa. Ganharam a Europa, a América do Norte, o mundo. Estão presentes em mais de 40 países. Baseados em mecanismos psicológicos complexos e por vezes violentos, têm suscitado polêmicas sobre seus efeitos sobre o público e os próprios participantes. Houve casos, em outros países, em que perdedores e até vencedores tentaram suicídio ao “cair na real”. O psicanalista Augusto Capelo, junguiano, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, é “por obrigação” um espectador assíduo.

Qual a origem desse tipo de programa, do estilo Big Brother?
Vou responder como analista de formação junguiana (de Carl Gustav Jung, 1875-1961, precursor de uma linha de psicanálise), que leva em consideração que existe um inconsciente coletivo. Temos um ego, uma identidade. “Abaixo” dessa identidade tem o que o Freud já tinha postulado, o inconsciente. Um inconsciente pessoal, que chamarei de um “fichário”, em que se depositam experiências – boas, más, conflitos, repressões. Jung postulou que “abaixo”, ou além do inconsciente pessoal, existe um inconsciente coletivo. Isso explica os rituais, certos comportamentos comuns a culturas diferentes. Existem símbolos, arquétipos, com que todo ser humano comunga, seja de que cultura for. A maioria das culturas tem o símbolo do dragão, e nunca ninguém viu um. Um programa do tipo Big Brother talvez seja o último de uma série de entretenimentos que a humanidade tem praticado durante seu percurso. Já houve programas como No Limite. Antes tinha as famosas “gincanas”, grupo contra grupo. Não deixa de ser um ritual, expressão de um comportamento. Voltando no tempo, você chega ao Coliseu, na antiga Roma. Muita gente assistiu a esse filme Gladiador, que conta algo sobre aqueles espetáculos. Eles tinham etapas, e a apoteose era a luta de todos contra todos, como no Big Brother, embora possa haver pactos momentâneos, como no filme, quando o herói faz pacto com o gladiador negro.

O senhor os vê regularmente?
Não tenho vergonha de dizer que assisto ao BBB. Chego em casa e minha família está vendo, compartilho. E sou psicanalista, profissional da área do comportamento. Sou quase obrigado. Programas desse tipo são expressões do inconsciente coletivo. Milhões de pessoas os acompanham, pelo seguinte: todos nós somos um pouco voyeurs. Todos temos uma fatia da personalidade que chamamos de “sombra”, que fica entre o consciente e o inconsciente. Essa sombra a gente nunca reconhece como sendo da gente. Nessa instância da nossa personalidade estão depositadas certas coisas que são nossas, tais como você ser avarento, chato, impertinente, que você acha que não é. Aí mora o perigo. E quem é especialista em sombra? As crianças e os inimigos da gente. É preciso escutar o que as crianças falam de você, e também o que os inimigos falam. Eles dão apelidos, “fulano é muquirana”. Quando isso me chega aos ouvidos fico brabo. Por quê? Porque sou mesmo! (risos) Todos temos uma parte sombria. Normalmente ela não é bem-vista socialmente.

Mas qual é a relação desse mundo pessoal com a organização social, o coletivo?
Na penúltima edição do BBB houve uma menina, chamada Grazi, que se mostrou esplendorosa, parecendo ser uma promessa da nova casta de atrizes. Ela é bonita, é boa gente... Mas no programa mostrou partes da intimidade, chegou a falar sobre como ia ao banheiro. A gente sabe que ela falou porque as câmeras captaram. Quando você, ou eu, um simples mortal, vê uma pessoa como ela, na TV, falando aquilo, essa pessoa fica mais confortada. “Ah”, ela se diz, “o ’outro’ também tem falhas.” O Alemão, vencedor do ano passado, ao ser grosseiro, ou mentir, dá um certo alívio pra gente. Voltamos ao Coliseu. É claro que um Estado como Roma, guerreiro, não ia organizar um ritual zen. Faz um ritual guerreiro, por todos os motivos do mundo. Imagine: para um cidadão romano comum, era uma catarse ver pessoas se matarem na arena. E há uma catarse quando se vê um programa desses. Funciona. Na verdade verdadeira, as pessoas que estão nesse tipo de programa não são um recorte da sociedade brasileira. E tem mais: todos são bonitos. O menos bonito ainda é bonito. É preciso dar esse desconto todo. Mas, ainda assim, nós vemos esses programas porque eles falam para a nossa “sombra”. Eles dizem que os semideuses da tela também têm defeitos grandes.

Cria-se uma relação metafórica, não só para cada espectador, indivíduo, mas para o conjunto deles?
Na verdade, é isso mesmo que acontece na vida. É muito duro isso... Eu podia usar palavras mais poéticas. Mas é isso mesmo que está sendo traduzido: todos contra todos. Existe uma palavra na nossa área, a psicanálise, que se chama “complacência”. Para usar outra metáfora, se você for apertando o parafuso de uma instituição, algumas pessoas começam a espanar, como se diz. Se você aperta o parafuso um pouco mais, bota mais pressão, o cidadão sai da cidade para o bairro, depois para a rua, depois para a casa, para a família e ali ele pega alguém: onde falta pão, sobra bofetão. Às vezes vira mesmo todos contra todos. A gente conhece a história de grupos étnicos perseguidos em que uns viraram carrascos de seu próprio grupo. Você vê nos dias de hoje famílias sendo carrascas dos próprios filhos, às vezes de uma forma mais ou menos velada, às vezes de forma literal, às claras. Tem filho dando tiro em pai. O fundo do inconsciente coletivo pode nos deixar muito próximo dos animais.

Parece ser uma sociedade na qual todos os pactos são frágeis, os contratos são apenas degraus que levam até o momento em que se possa trair o outro.
Temos de ter um pouco de cuidado, senão se começa a olhar para o futuro vendo só muita nebulosidade, muita turvação. Sou otimista profissional. Antes era assim também, só que maquininhas como o computador e a televisão deram a isso tudo uma visibilidade muito maior. Li no ano passado uma biografia do Leonardo da Vinci. Fiquei impressionado com a história da família dos Médici, seus contemporâneos (que governaram a cidade de Florença, um dos berços do Renascimento). Dos dois irmãos, um (Juliano) foi assassinado e o que sobreviveu (Lourenço) mandou prender a família adversária. Mandou jogar os membros dessa família – todos – de cima da torre do Palácio da Senhoria. E proibiu que os corpos fossem recolhidos. Esse homem foi um príncipe do Renascimento... Homens como ele patrocinaram Da Vinci, Michelangelo e tantos outros.
Aqui no Brasil, há 120 anos, éramos “donos” de gente, ou podíamos ser escravos. Isso era aceito! Isso me leva a pensar no seguinte: vou defender o futuro. O Big Brother é uma forma sublimada do Coliseu. Eu me pergunto: o que será o Big Brother do futuro? Não sei, mas sei que esse que aí está é melhor do que o Coliseu. Se você tivesse uma máquina do tempo, e pudesse ir ao Coliseu, iria. Passaria um mês deprimido, mas não perderia a oportunidade. Temos de reconhecer o seguinte: a cultura, o futuro têm suavizado as relações. Hoje tem o imbróglio do capital faturando em cima de tudo isso, mas também havia quem faturasse no tempo dos Césares. A grana está aí nessa parada toda, mas essa só funciona porque o ritual tem função, traz para quem vê um certo alívio psicológico. E há ainda os paradoxos nesses programas. Nem sempre quem ganha vai melhor depois. É como na vida: nem sempre o primeiro da classe tem o melhor desempenho depois.

Até que ponto o que se vê nesses programas, as personalidades, não são construções, simulacros?
Mas na vida real nós construímos as nossas também. Freud dizia que a mentira era um lubrificante da cultura. É claro que há gradações, há mentiras grandes e pequenas. Mas todos nós temos o que os antigos chamavam de persona. Ou seja, as máscaras do teatro antigo, personare, “falar através de”. Ninguém agüenta ficar exposto o tempo inteiro. Eu tenho uma curiosidade muito grande: que tipo de contrato essas televisões fazem com as pessoas? Para mim, deve ser um calhamaço. E eles devem ter uma assessoria muito boa. Porque o risco de alguém ter um surto psicótico dentro de uma casa como a do Big Brother é muito grande. Num confinamento daqueles, com aquele tipo de competição, de estresse, de desorientação, tudo pode acontecer. É uma câmara de tortura.

Mas o senhor parece estar descrevendo mais do que uma câmara de tortura. Está descrevendo um escritório de uma empresa atual.
Sim, até mesmo uma universidade, uma instituição financeira. Mas acontece que num programa desses tudo fica compactado. Agora você entendeu a função do rito. Obviamente aquilo tudo é glamorizado, com as cores e o poder da televisão, mas é por isso mesmo que ele traz uma sensação de esvaziamento. Você “se refresca” vendo aquilo. Por que a gente conta contos de fadas para as crianças, à noite? O lobo mau que devora a vovozinha é uma imagem duríssima. Hoje em dia tem a solução: o caçador tira a vovó da barriga do lobo. Mas, mesmo que no conto original não fosse assim – o lobo devorava a Chapeuzinho também e ficava por isso mesmo –, a historieta tem uma função hipnótica e sonífera, “outra pessoa passou por isso”. A criança vai e dorme. E, no caso de programas como reality shows, há ainda a edição, por menor que seja. A gente sabe que na vida não tem edição, não tem como voltar atrás, rebobinar. O Big Brother termina proporcionando às pessoas algo como um “genérico” − você até encontra tragédias ali, mas suavizadas, um “genérico de tragédia”, vamos dizer.

Mas há todo um universo por trás desses programas, as pessoas que ganham com isso, que agem por detrás...
Existe esse universo paralelo que fatura e ganha em cima. Voltemos ao Coliseu: havia os treinadores de gladiadores, os traficantes que iam buscar as feras, que dizimavam os animais, houve noite em que se mataram 20 mil feras. Eu falei que a gente tem sombras individualmente, mas veja bem: uma família tem sombra, uma cidade tem sombra, uma cultura tem sombra. Um acontecimento dessa ordem, um reality show, também tem sua sombra. A gente não sabe nem metade da missa. Por isso é difícil comentar. Tem sempre um editor, que é quem decide o que a câmera vai mostrar, se o choro de um ou o riso do outro, ou os dois fazendo uma combinação sacaninha...

Revista do Brasil

Nicolau Sevcenko


Nicolau Sevcenko
A história como missão

Poucos têm uma história de vida como a do historiador Nicolau Sevcenko. Filho de imigrantes russos, da região da Ucrânia, fugidos da perseguição bolchevique, Sevcenko nasceu no Brasil, mais especificamente em São Paulo, em 1952. Dividiu a infância entre o trabalho, o esporte e, é claro, o estudo. “Cada uma dessas atividades me deu uma percepção do mundo bastante diferente, bastante significativa.” Depois de escorregar para o lado da bioquímica, decidiu-se pela história. Graduou-se em 1976, na Universidade de São Paulo, onde é professor titular desde 1999. Hoje, circula entre São Paulo e Londres, onde é membro do Centre for Latin American Cultural Studies, da Universidade de Londres. É também editor-associado de The Journal of Latin-American Cultural Studies, importante publicação da Universidade de Cambridge, Estados Unidos. Autor de obras pioneiras que contribuíram para consolidar o estudo da história da cultura brasileira – como Literatura como missão –, sua obra reflete um intelectual interessado por diversas áreas do conhecimento e um historiador interessado em se comunicar com o grande público, por isso escreve freqüentemente na imprensa, nacional e estrangeira.

Nicolau Sevcenko encontrou a equipe da Revista de História para uma entrevista na capital paulista: falou com emoção da família, de seu percurso intelectual e de suas pesquisas, também de história e de historiadores. Por fim, como pensador de seu tempo, analisou os rumos do Brasil e os aspectos do novo cenário mundial. “É preciso tirar a tecnologia do plano estrito da economia e colocá-la também, de forma mais ampla, como um dos fundamentos de transformação no campo social”, observa Sevcenko, fazendo história no presente.

Revista de História – O que o levou ao estudo da história?
Nicolau Sevcenko – É sempre difícil dizer que caminho nos leva a determinada opção, que em grande parte tem elementos subconscientes. Na juventude eu tinha mais inclinação para uma carreira na área das ciências aplicadas, pensava em medicina. Depois fui percebendo que não tinha muita habilidade para tratar com as condições patológicas do corpo humano, percebi que na biologia o que mais interessava era a parte estrutural e, portanto, bioquímica. Curiosamente, foi a partir desse ponto, quando eu já estava decido a fazer uma opção na área da bioquímica, que na última hora acabei decidindo por uma carreira na área das ciências humanas, e dentro das ciências humanas a que mais me atraía era a história.


RH – Houve alguma influência familiar?
NS – De certa forma, sim, é o outro lado da questão. Minha família tinha uma situação obscura. Eram refugiados políticos. Meu avô era refugiado militar. Fora oficial do exército russo e lutara pelos tsaristas contra os bolcheviques. Obviamente, todos os problemas da minha família decorreram dessa atuação dele, pois ela foi vítima de uma perseguição implacável que acabou tirando a vida da maior parte dos meus parentes.

RH – Inclusive seu avô?
NS – Não, milagrosamente meu avô e seus filhos conseguiram escapar, e eu descendo dessa linhagem restante, desse resíduo de uma grande família. O assunto sempre foi para todos nós tão traumatizante que era praticamente tabu falar sobre o passado na minha família, porque quando isso acontecia as pessoas se alteravam, tremiam, lacrimejavam, ficavam profundamente deprimidas. Então no fundo eu tinha uma imensa curiosidade sobre uma dimensão secreta da minha família, da minha origem, da minha ascendência, que me foi tolhida por esse processo profundamente impactante na história do século XX – especialmente as revoluções, as guerras civis –, do qual eu sou uma espécie de subproduto.

RH – Sabe-se que sua infância foi dura, marcada por uma batalha pessoal muito prematura. Como foi esse período?
NS – Tive de enfrentar a circunstância bastante difícil de ter perdido meu pai muito cedo, aos cinco anos. Pouco tempo depois, antes de completar sete anos, minha mãe perdeu o emprego. Por causa disso, antes de entrar na escola comecei a trabalhar com meu irmão. Puxávamos uma carroça de metal pela periferia de São Paulo, recolhendo e vendendo sucata.


RH – A necessidade de trabalhar não prejudicava os estudos?
NS – Não. Por qualquer que seja a razão, tive uma atuação bem sucedida no meu desempenho escolar, e por isso recebi uma significativa atenção de professores. Eles me motivaram a ter uma carreira voltada para a pesquisa, por que sempre tive paixão. Acho que é relevante considerar nesse percurso também a situação excepcional de eu, por um lado, trabalhar o tempo inteiro para ajudar a minha família e, por outro, fazer cursos, me dedicar às atividades escolares. Além disso tinha também uma atividade esportiva – vôlei, basquete e especialmente handebol. Participei da consolidação do handebol como esporte, aqui em São Paulo, o que me levou à seleção brasileira.

RH – Uma vez o Sr. disse que tinha dificuldades em falar português. Como superou isso?
NS – Eu na verdade sou disléxico e dislálico, e ainda tenho uma série de outras disfuncionalidades psicológicas. A razão disso tudo é que eu nasci canhoto. De onde a minha família vem, era pecado ante a igreja, e uma transgressão ante o Estado, ser canhoto. Por isso minha mãe se viu obrigada, contra a vontade dela, a amarrar minha mão esquerda nas minhas costas para me forçar a usar a direita. Isso, só vim a descobrir muito tarde, quando já era adulto, provoca uma descompensação entre os hemisférios cerebrais. Causa uma espécie de curto-circuito, que é irreversível e produz essas disfuncionalidades todas. É por isso que falo assim, meio gaguejante, e não tenho muito fluência. Às vezes esqueço palavras fundamentais e simples, como “mesa” e “janela”.

RH – E no entanto escreve muito bem...
NS – Mas a linguagem sempre foi um problema pra mim. E claro, mais complicado ainda pelo fato de que a minha língua original, minha língua materna, é o russo. Quando fui para a escola a experiência foi traumatizante. Eu não entendia nada. Sentei onde eu entendi que me mandavam sentar, e fiquei ali, constrangido, por um longo tempo, esperando que a aula acabasse e eu pudesse ir correndo para casa, pra dizer à minha mãe que haviam cometido um grande equivoco, haviam me colocado numa escola estrangeira. Pela primeira vez minha mãe me disse isso: “Não, estrangeiros somos nós”. Porque, como meus pais eram refugiados políticos, eles não vieram para o Brasil como imigrantes, com pretensão de se assimilar aqui. Eles sempre ficaram na expectativa de que a situação na Rússia mudasse e que eles pudessem voltar para lá.


RH – O que as suas pesquisas revelaram especificamente em relação a esse tema?
NS – A importância da geração de 1870. Esses escritores lançaram a questão da mudança do Brasil monárquico, numa perspectiva republicana que implicasse, em primeiro lugar, a abolição da escravatura. Eles foram os primeiros a perceber que nenhuma saída política ou econômica seria viável se não previsse em primeiro lugar a incorporação dessa enorme massa de excluídos que compõem a sociedade brasileira. Você vê essa idéia desde Joaquim Nabuco, passando por Machado de Assis e Capistrano de Abreu. É esse legado que constitui a base da qual parte a primeira geração de republicanos, representada, no âmbito da minha pesquisa, por Euclides da Cunha e Lima Barreto.

RH – Quer dizer, o projeto da geração de 1870 ainda está por ser realizado...

NS – É, no passado, Euclides e Lima Barreto talvez foram os que melhor articularam essa grande decepção. Mantiveram a convicção da geração de 1870 de que, uma vez mudado o regime, se instalaria aqui uma república de natureza democrática, com uma orientação equalizadora, redistributiva e de promoção social fundamentando o seu projeto político. Mas isso não aconteceu. O que estava voltando à tona, na época da abertura, ainda na ditadura militar, era exatamente a retomada desse debate de base social e humanística: cobrar uma promessa não cumprida por sucessivas administrações. Cada uma trouxe um lote de esperanças, cada qual prometeu uma ênfase no social, mas todas abortaram o mesmo legado. Todas, de algum modo, se desviaram daquela linhagem democratizante e humanista.

RH – Depois de Lima Barreto e Euclides, quais foram os principais representantes dessa linhagem?
NS – Caio Prado Junior, por exemplo. Sérgio Buarque de Holanda. Raimundo Faoro. Acho que essa é ainda a grande promessa de um Brasil capaz de responder ao desafio do resgate dessa dívida social. Enquanto isso não for feito, o país continuará patinando à deriva no contexto internacional com o qual quer se encontrar, pois renega aquele que é o seu compromisso fundamental.


RH – Pergunta inevitável: se a elite não promove o resgate da nossa dívida social, porque um operário, uma vez no poder, também não o faz?
NS – A gente está naquela posição de denunciar uma promessa antiga que não se cumpriu. E agora, com o Brasil comandado por alguém que devia ser o representante direto dessa demanda, vemos que ela é mais uma vez abortada. E é nesse sentido que a questão que eu coloquei em Literatura como missão se mantém aberta até hoje. Na reedição recente do livro, da editora Companhia das Letras, comento no posfácio exatamente como Machado de Assis fez num conto célebre. Ele assinalou esse processo de patinação como uma espécie de estratégia dos grupos dominantes para manter o sistema de privilégios nos quais estão encastelados praticamente desde o período colonial. Essa denúncia está no Machado, está no Euclides, está no Lima Barreto. E continua ainda hoje estampada nos jornais e nos nossos rostos.

RH – Sua experiência na Inglaterra foi importante para compreender melhor o Brasil?
NS – Sem dúvida. Quando cheguei à Inglaterra, em 1986, me vi de repente envolto numa enormidade de trabalhos da maior relevância, de autores e de teóricos com os quais eu nunca tinha trabalhado, com uma perspectiva incrivelmente diferente de tudo o que conhecia sobre temas como o cotidiano, a vida privada, a cultura imaterial etc. Para um historiador que trabalha voltado para uma sociedade como a brasileira, esse conjunto de ferramentas intelectuais e conceituais era extraordinariamente privilegiado.

RH – Por quê?
NS – São autores que revelam uma sensibilidade aguçada para as sociedades ágrafas, isto é, sociedades cuja comunicação fundamental não é por escrito, mas basicamente oral ou imagética, ou musical ou coreográfica, como é o caso da sociedade brasileira. Poder trabalhar com essas linguagens extra-verbais, com a mesma versatilidade com que um historiador trabalha com documentos escritos, é o gabarito que me trouxe esse novo repertório de fontes e referências. Deu-me uma possibilidade de ampliação dos meus instrumentos de trabalho, das minhas experiências de pesquisa e do meu próprio trabalho como professor e orientador junto aos meus alunos.


RH – O Sr. teve o privilégio de conviver com dois historiadores excepcionais: Sérgio Buarque de Holanda, na USP, e Eric Hobsbawm, com quem o Sr. dividiu uma sala na Universidade de Londres. O que guardou dessa experiência?
NS – Eu diria que os dois são muito diferentes entre si, mas é uma diferença que não exclui. São duas formas diferentes de riqueza, que fazem o seu tesouro se enriquecer ainda mais. Eric Hobsbawm, evidentemente por causa da sua formação marxista predominante, tem essa visão universalista. Ele entende o mundo contemporâneo como uma espécie de grande dinâmica articulada pelo ciclo do capitalismo – partes que respondem de maneiras diferentes a essa espécie de interativo comum. A sensibilidade mais distinta do modo de trabalhar do Hobsbawm é exatamente essa: a de marcar, por um lado, essa espécie de energia integradora e submissora; por outro, expor os elementos de resistência, autonomia e confronto que de toda parte se manifestam, tentando resistir a esse processo integrador.

RH – E Sérgio Buarque?
NS – É muito mais voltado para o historicismo alemão, com o qual teve contato direto quando esteve na Alemanha. Ele explorou com sensibilidade a singularidade única dos contextos históricos, e nesse sentido é que ele diverge significativamente do professor Hobsbawm. Ao invés de ver o mundo a partir de uma dinâmica dominante, submissora, Sérgio Buarque o enfoca a partir dos elementos contingentes que constroem dinâmicas próprias. Ele vê mais do pequeno para o grande, de baixo para cima, de uma perspectiva de microcontextos de situações contingentes e de deliberações tomadas em condições de resolução, criadas pelas características singulares que cada pessoa, cada grupo, cada sociedade experimentam como sua dimensão concreta de experiência.

RH – E é possível, como historiador, conciliar Sérgio Buarque de Holanda e Eric Hobsbawm?
NS – Se você conseguir de algum modo trabalhar costurando entre uma e outra posição, acaba produzindo um efeito de ampliação do horizonte de pesquisa, do micro pro macro, do macro pro micro, o tempo inteiro sem perder esse vigor da palpitação da vida, da riqueza do concreto e da grande dinâmica do conjunto como um sistema articulado.


RH – Esse seu interesse pela questão da tecnologia. Quando começou?
NS – De meados ao final dos anos 70, ainda vivíamos aqui no Brasil uma situação de defasagem em relação a outros países, mas já se manifestava a idéia de que o futuro seria decidido no campo das aplicações tecnológicas. Era preciso, claro, atualizar urgentemente o debate. Quando eu fui para a Inglaterra, a questão já estava na ordem do dia, porque se vivia um período de consolidação da revolução da microeletrônica. Esse foi um tema que eu trouxe para o Brasil, e foi crucial para minha pesquisa sobre São Paulo, particularmente sobre o diferencial do processo histórico urbano paulista.

RH – Qual a importância da tecnologia no mundo contemporâneo?
NS – É crucial, desde que não seja considerada como panacéia ou mistificação, e sim como um recurso que sirva tanto ao crescimento econômico como à inclusão social, à promoção social e à democratização. É preciso tirar a tecnologia do plano estrito da economia e colocá-la também, de forma mais ampla, como um dos fundamentos de transformação no campo social.

RH – Em que setores, especialmente?
NS – Passa pela educação e até pelo modo como ela pode nos dar as respostas necessárias para o reajuste do equilíbrio ambiental. Graças a essas tecnologias você pode ter um alcance muito maior na sua atuação educacional, pode incluir muito mais amplamente diferentes camadas hoje excluídas da população. Por outro lado, pode pô-las em contato direto com diferentes dimensões não só da nação brasileira, mas do mundo contemporâneo. Porque a tecnologia é mundial, não tem fronteiras nacionais. Tem também esse potencial de trazer recursos para avaliar e defender o patrimônio e os recursos ambientais do planeta.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Luís Henrique Dias Tavares


Luís Henrique Dias Tavares
As histórias regionais são a história do Brasil


A Bahia é, desde o nascimento, um tema permanente na vida e pensamento do historiador Luís Henrique Dias Tavares. Praticamente todos os temas históricos ligados ao seu estado natal passaram por sua análise nesses mais de 50 anos de ofício: o comércio de escravos, a Conjuração Baiana de 1798, as lutas pela independência e as transformações experimentadas ao longo do século XX. Autor de uma celebrada História da Bahia, já na décima edição, Luís Henrique defende a necessidade de se pesquisar os aspectos regionais de nosso passado para valorizar a diversidade que caracteriza nosso país. “As histórias dos estados fazem parte da história do país. As nossas histórias do Brasil, em destaque as que são didáticas, não dão atenção a importantes acontecimentos históricos ocorridos nos estados”, afirma ele.

Professor aposentado da Universidade Federal da Bahia, Luís Henrique recebeu a Revista de História em sua casa em Salvador, com a hospitalidade característica dos bons baianos. Nessa entrevista, ele ensina que a Bahia, além de ser de todos os santos, é também de muita história e tradição. Sobre a Conjuração Baiana, tema polêmico da historiografia brasileira, acredita que tenha ocorrido em duas fases distintas: a primeira contando com a participação de proprietários; a segunda, mais radical, contando com libertos e cativos. “O objetivo dos conjurados era fundar naquela terrivelmente pobre e miserável capitania da Bahia a primeira república no Brasil: a República Bahiense.”

Ao falar do país hoje, aponta para um atraso crônico, atribuído por ele à escravidão. Por conta disso, afirma, ainda que com humor, que “o Brasil só será o Brasil em 2050”.


Revista de História – Quando o senhor começou a se interessar por história?
Luís Henrique Dias Tavares – Desde o curso colegial. Tive um grande professor chamado Luís Adolfo. Era um professor de excelentes qualidades, muito tímido, muito simples, muito inteligente e muito lido. Suas aulas eram encantadoras. Foi em grande parte por influência dele que fiz vestibular para o curso de história, na Faculdade de Filosofia, em 1948.

RH – Antes disso tinha outros interesses?
LHDT – Tive uma pequena experiência humana, digamos assim, como jornalista. Era repórter do jornal O Momento, do Partido Comunista Brasileiro. Cheguei a cobrir o último comício dos deputados comunistas estaduais, que teve como destaque o deputado Giocondo Dias, na praça da Sé, em São Paulo. Este comício foi disperso à bala. Fui preso com um colega, Henrique Lima Santos, que na época também era jornalista. Fomos levados para a Secretaria de Segurança, apanhamos, levamos muitas bordoadas, muitos pontapés. Três dias depois fiz o vestibular, ainda meio tonto por causa das pancadas.

RH – O senhor atuava na imprensa comunista e ao mesmo tempo cursava o segundo grau, é isso?
LHDT – Isso. Mais tarde iria viver uma outra fase de jornalista, no Jornal da Bahia, entre 1958 a 1963. Mas aí eu era só cronista, foi quando passei a explorar o meu lado ficcionista.

RH – Durante a sua militância política, o PCB estava na legalidade...
LHDT – Estava, mas também pegamos a ilegalidade, a partir de 1947. Sou um dos que colocam que o Estado Novo não terminou em 1945. Na verdade, perdurou no governo Dutra, quando se encontraram novas formas para não acabar com a repressão política. Por outro lado, tenho posições extremamente críticas em relação ao Partido Comunista Brasileiro, quanto à sua atuação e aos jornais que conseguiu fundar e manter em todos os estados do Brasil, incluindo O Momento.


RH – Voltando à sua atividade de cronista, essa vivência influenciou o seu trabalho de historiador?
LHDT – De certa maneira, sim. Meu trabalho de historiador começou com a primeira edição de História da Bahia. Foi um colega mais velho e mais experiente, o professor Luís Monteiro da Costa, que pediu que eu fizesse esse trabalho. Essa disciplina, história da Bahia, existia no ensino médio da Bahia. Não sei bem em qual governo, um secretário de Educação decidiu tirá-la da programação obrigatória.

RH – O senhor acha importante o ensino de histórias regionais no Brasil?
LHDT – Acho. As histórias dos estados fazem parte da história do país. As nossas histórias do Brasil, em destaque as que são didáticas, não dão atenção a importantes acontecimentos históricos ocorridos nos estados. A história conhecida pelos alunos é a história do Sul do Brasil, muito mais Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Muito dificilmente Bahia, Pernambuco, Paraíba, Sergipe, Alagoas, Maranhão, Pará e Amazonas aparecem nesses compêndios e nos programas de história do Brasil das escolas dos diferentes estados. Isso resulta num enorme buraco no conhecimento de fatos históricos relevantes. Para não ficar só na Bahia: os brasileiros não conhecem a chamada Confederação do Equador, porque o episódio está muito confinado a Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará – o que é totalmente errado. O nosso colega Evaldo Cabral de Mello, um historiador exemplar, publicou este ano um livro, A outra independência, que procura colocar a Confederação do Equador, com toda a sua importância, dentro da história do Brasil. Desejo muito que o texto seja conhecido e lido. Ainda assim, o importante mesmo é conseguirmos que as histórias didáticas do Brasil que circulam nos colégios de ensino médio relatem os fatos acontecidos nesses estados.

RH – Que episódio o senhor destaca na Bahia, especificamente?
LHDT – A história da independência da Bahia, por exemplo, sempre foi para mim razão de grande preocupação. Tanto assim que tempos atrás, muito às carreiras, atendi a uma solicitação do falecido editor Ênio Silveira, da antiga Civilização Brasileira, e, numa ocasião em que estávamos comemorando mais um aniversário da Independência, preparei A independência do Brasil na Bahia, livro que teve alguma aceitação entre os colegas, mesmo porque começou a colocar novos problemas.


RH – O assunto continua a lhe interessar?
LHDT – Ah, sem dúvida, muito. No ano passado, ainda com o tema me martelando a consciência, sentei para reescrever A independência do Brasil na Bahia. Essa nova edição está agora programada pela editora da Universidade Federal da Bahia e provavelmente vai ser entregue ao público leitor em dezembro deste ano. O livro está pronto, falta apenas imprimir, mas imprimir custa dinheiro, e a universidade não tem como absorver os custos. A editora vive do que pode produzir e do que ela vende, mas ultimamente tem passado por algumas dificuldades. O livro ainda não está nas livrarias porque faltam recursos para a impressão.

RH – O senhor reescreve muito seus trabalhos?
LHDT – Reescrevo. Faço um esforço muito grande para torná-los mais claros, a cada publicação. O propósito é que minhas colocações sejam mais bem entendidas pelos leitores – não só pelos colegas profissionais de história, mas por todos aqueles que se interessam pelos assunto que abordo.

RH – O senhor ainda escreve obras de ficção?
LHDT – Escrevo mas não publico. Nesses últimos três anos andei fazendo umas experiências na área da dramaturgia. Escrevi duas peças, que foram publicadas pela revista da Academia de Letras da Bahia. Mas posso, se for possível, voltar às novelas. Quero retomar uma novela que comecei e não terminei. Ficou apenas no primeiro capítulo, e isso já tem cinco anos.


RH – É difícil conciliar a mente sonhadora do ficcionista com a realidade dos fatos históricos?
LHDT – Tenho conseguido separar as duas coisas. Tive um professor de história na Faculdade de Filosofia que me deu a seguinte coordenada: só se faz história pesquisando nos arquivos. De modo que por isso mesmo todos os meus livros de história são muito mais resultados de pesquisas do que de leituras sobre o tema. Por exemplo, o tráfico de escravos. Tem uma bibliografia extensa, muito extensa, e toda ela indispensável. Mas o meu livro Comércio proibido de escravos é calcado, principalmente, nas pesquisas que fiz sobre o assunto no Foreign Office, em Londres.

RH – Um outro assunto, a Conjuração Baiana de 1798. Teria sido a primeira tentativa de revolução no Brasil?
LHDT – Não vou a tanto. Estou convencido de que esse movimento, ocorrido no final da década de 1790 na capitania da Bahia, tem duas fases distintas. A primeira, em 1797, reúne baianos de situação, que tinham propriedades no Recôncavo. Estes estavam presos aos comerciantes portugueses. Pagavam as suas compras, principalmente escravos, com dolo de agiotagem: cada escravo comprado era pago com juros de três, quatro, cinco por cento ao mês, o que tornava qualquer compra, sobretudo a de escravos, extremamente cara. Eu estou certo de que, em 1797, essa categoria de proprietários e também jovens militares baianos brasileiros estiveram conversando sobre a possibilidade de tirar a capitania da Bahia do Império português, da ordem e do domínio da monarquia absolutista portuguesa.

RH – Nessa fase tudo não passou da conversa?
LHDT – Ainda não tenho elementos para afirmar que em 1797 ocorreu mais do que conversas, e se estas se encaminhavam para uma rebelião ou revolução. É importante destacar que o movimento reunia, nesse período, personalidades baianas, militares e proprietários com fazendas de cana e engenhos de açúcar no Recôncavo. Eram os elementos que formariam depois a classe dominante brasileira, ou as classes dominantes brasileiras. Essa fase da conspiração foi denunciada ao então governador, Fernando José de Portugal, e ele tomou providências que são muito difíceis de serem entendidas. Em vez de coordenar prisões, ele avisou aos que estavam mais indicados como conspiradores militantes – é o caso de Cipriano José Barata de Almeida – que diminuíssem as suas atividades, para que se acautelassem, porque ele teria de agir.


RH – E 1798?
LHDT – Foi diferente. Havia toda aquela inquietação de sentido político. A capitania da Bahia necessitava de ampla e total liberdade de comércio para vender seus produtos a quem pagasse melhor. Defendia-se uma identificação baiana, independente de Portugal. Mas também se pregava a completa destruição do trabalho escravo. Da conjuração de 1798 participaram brasileiros livres descendentes de escravos e brasileiros escravos.

RH – Como é que o senhor compara ou aproxima essa experiência rebelde baiana de 1797 e 98 – para aproveitar sua divisão – das outras inconfidências ocorridas no Brasil?
LHDT – Além do traço de crítica religiosa, introduziu questões como a liberdade de escravos e contou com a participação de setores subalternos. Isso trouxe para a Bahia, digamos, a nota mais radical da crítica contra a colonização, que não teve nas outras. Lucas Dantas de Amorim Torres, Manoel Faustino, João de Deus, Luís Gonzaga das Neves, que participaram do movimento, tinham antepassados escravos. Filho de escravo não esquece que foi escravo. Descendente de escravo não esquece que tem ascendente escravo. Aqueles quatro mártires – Lucas, Manoel Faustino, João de Deus, Luís Gonzaga – foram escolhidos para serem enforcados e esquartejados para que a repressão não atingisse outros brasileiros que eram igualmente contra a situação de colônia da capitania da Bahia e também desejavam libertar os escravos. O objetivo dos conjurados era fundar naquela terrivelmente pobre e miserável capitania da Bahia a primeira república no Brasil: a República Bahiense.

RH – Por que a memória nacional esqueceu esses mártires ou sentenciados do movimento da Bahia e não esquece os inconfidentes de Minas Gerais?
LHDT – É fácil de entender. Os inconfidentes mineiros, direta ou indiretamente, fossem mais ou menos ricos, e até mesmo o nosso sagrado Tiradentes, todos eles pertenciam às classes dominantes. Mas aqui na Bahia havia filhos de escravos e até escravos. É isso que diferencia grandemente a sedição baiana da mineira. Aproveito para repelir aqui, com o mestre Hélio Vianna, essa denominação de inconfidentes. A palavra inconfidente é injuriosa. Eles são, na verdade, nossos heróis.


RH – Saltando um pouco no tempo, de 1798 para 1822, quais foram as particularidades da luta pela Independência travada aqui na Bahia?
LHDT – A situação que se instalou na cidade de Salvador no início de 1822 colocou forçosamente a Bahia numa situação bem diferente da das outras províncias do Brasil. A luta armada começou aqui muito antes de a Bahia ser informada de todas as vinculações e circunstâncias que estavam encaminhando o Brasil a se separar de Portugal, com o príncipe d. Pedro transformado em rei do Brasil. Não que os baianos tenham sido mais avançados politicamente que os fluminenses, os paulistas, os mineiros e os gaúchos. É que aqui eclodiu, antes da Independência proclamada por d. Pedro, uma luta armada para impedir a posse do brigadeiro Madeira de Melo, nomeado por Portugal governador de Armas da Bahia. A nomeação não foi aceita pelos baianos em nenhum instante, e muito especialmente pelos grandes proprietários de engenhos, plantações de cana, gado e escravos.

RH – O senhor já dirigiu o Arquivo Público do Estado da Bahia. Como foi essa experiência? Fale um pouco dos tesouros que podem ser encontrados lá.
LHDT –Toda a documentação que está no Arquivo Público do Estado da Bahia é indispensável para conhecer o Brasil. Mas a instituição tem graves problemas, como todos os outros arquivos do Brasil. Digo também que é impossível estudar qualquer tema da história da Bahia sem conhecer o arquivo da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Só que hoje a Biblioteca Nacional é uma fundação, e como tal carente de pessoal para cuidar dela como um bem único no país. Na minha opinião, os arquivos têm de estar sob a responsabilidade direta do Poder Executivo. Os arquivos dos estados devem estar ligados aos governadores dos estados, ao Poder Executivo, e devem ter recursos não só para manter a enorme e valiosa documentação que possuem, mas para completá-la e continuar recolhendo material.

RH – Qual é a riqueza, a potencialidade e a história que o Brasil ainda não conhece da região do Recôncavo?
LHDT – É a história do açúcar, é a história do fumo. A desgraça da Bahia é que não teve lucidez e condições para avançar tecnicamente.


RH – Quando o senhor elabora a sua história da Bahia, o que encontra de mais específico, de mais particular, no passado do estado?
LHDT – A continuidade do atraso. A antiga capitania foi produtora de artigos de grande circulação no comércio externo, como o açúcar e o tabaco, mas não sustentou essa sua aparente riqueza, não teve suficiente lucidez para caminhar no sentido do desenvolvimento. Acredito que a manutenção do trabalho escravo tenha sido um dos motivos desse atraso. A história da escravidão no Brasil é terrivelmente tocante. Por causa dela todos os brasileiros, ao se cumprimentarem, deveriam acrescentar o seguinte: “Nós tivemos trabalho escravo até 1888, estamos pagando esse terrível atraso”. E vamos continuar pagando, acredito eu, ainda nesse chamado novo século XXI.

RH – Além da escravidão, que outras causas do atraso o senhor. enumera?
LHDT – No século XX, as diferenças regionais acentuaram-se com o Estado Novo e o período chamado de ditadura militar, mas que não foi ditadura só dos oficiais militares, seja do Exército da Marinha ou Aeronáutica. Foi uma ditadura da qual participaram intimamente os grandes empresários nacionais – paulistas, cariocas, mineiros etc. Foi também a ditadura dos capitalismos norte-americano, inglês, francês e assim por diante. Não estou querendo dirimir a responsabilidade dos militares brasileiros naquele período negro – negro no sentido de atraso, de total atraso do nosso país. Essa última ditadura que o Brasil sofreu vai nos custar este século XXI. Sou amigo fraternal de Leslie Bethel e conversamos muito sobre o Brasil. Outro dia eu lhe dizia: o Brasil só será o Brasil em 2050. Ele deu uma bonita risada e me disse: “Ilusão sua, meu querido Luís Henrique. Em 2080 ainda estaremos pagando o nosso atraso”.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Maria Odila da Silva Dias


Maria Odila da Silva Dias
“O historiador precisa de surpresas”

Aspectos da Ilustração no Brasil e A Interiorização da Metrópole. Que historiador brasileiro nunca leu esses artigos? Sua autora, Maria Odila da Silva Dias, trata em ambos os textos de um problema comum: a continuidade das elites coloniais após a Independência, que teriam implementado seu projeto de nacionalidade através da consolidação da hegemonia do Rio de Janeiro sobre as demais províncias do Brasil, retomando o processo colonizador, as relações de nepotismo e a confusão entre o público e o privado. “Nós nos colonizamos a nós mesmos, como país. Então, a exploração não veio do outro, do imperialismo, da metrópole, não veio de fora. Nós nos oprimimos entre nós”. Análise perspicaz de uma historiadora que se tornou referência para a historiografia em temas que vão do inglês Robert Southey à luta das mulheres por seus direitos na cidade de São Paulo.

Entre samambaias e seus três cachorros Daschund (Bibi, Nina e Popoldo), Maria Odila recebeu a Revista de História em seu apartamento no bairro de Higienópolis, em São Paulo. Na estante, uma foto de Sérgio Buarque de Holanda, professor e amigo que levou Maria Odila a lecionar na USP quando tinha apenas 21 anos. “Era uma presença privilegiada, mas que também me intimidava muito”. Professora militante, retornou recentemente às salas de aula, ensinando e encantando uma nova geração de estudantes com suas idéias sobre o trabalho do historiador: “Eu acho que tem razão esses hermeneutas que dizem que a história é muito afim à arte, à poesia, à pintura”.

Revista de História: A senhora muito nova começou a lecionar História na USP, junto com o professor Sérgio Buarque de Holanda. Como foi essa experiência?

Maria Odila: Eu tinha 21 anos e as pessoas, em geral, naquela época, faziam curso mais tarde. Então, tinha alunos de 30, 40 anos que não me levavam muito a sério. Eu ficava absolutamente séria para poder me impor. Fazia os seminários do curso do professor Sérgio de História do Brasil. Ele me chamava em casa, despencava uns livros da parede e me dizia qual o texto ia ser trabalhado. Ele não apenas me indicava bibliografia, me dava os livros na mão. Como professor, Sérgio falava baixo, “pra” dentro, muito enrolado. Mas tive com ele uma convivência realmente privilegiada, convivência que também me intimidava muito. Hoje nem sei como consegui escrever os meus primeiros trabalhos, porque levar para ele ler era sempre um drama.


RH: O professor Sérgio dizia que o historiador é uma espécie de taumaturgo e um exorcista. E para a senhora, o que é o historiador?

MO: Eu tenho a impressão que durante muito tempo o historiador tinha que ver de novo as mesmas coisas. Parecia que a gente tinha que redescobrir os temas. Acredito que exorcista a gente sempre tem que ser, porque senão fica fazendo aquela história apologética, lá do Instituto Histórico. Isso, ninguém quer fazer. O professor Sérgio tinha uma militância contra o Instituto Histórico, contra os memorialistas, contra aquele amor do passado pelo passado. Acho que o historiador precisa de surpresas, do novo. Foi essa a idéia que tive quando escrevi Cotidiano e poder. Tive que largar quase tudo que eu tinha aprendido, uma erudição excessiva, e seguir um caminho que me parecia novo.

RH: Qual é o lugar da intuição no trabalho do historiador?

MO: O historiador não pode interpretar com conceitos racionais, intelectualísticos. Isso, de certa forma, limita e faz com que ele deixe de traduzir as temporalidades. Essa relação, esse diálogo entre o presente e o passado deixa de existir se você se prende a conceitos muito racionais e permanentes. Acho que o trabalho do historiador deve ser descobrir entre os pormenores, o sentido que eles fazem. Não é seguir um planejamento. Se você parte muito do geral para o particular é alguma coisa que não é História, porque não está interpretando o movimento do tempo, os personagens no tempo. Eu acho que tem razão esses hermeneutas que dizem que a História é muito afim à arte, à poesia, à pintura. Não é um trabalho muito intelectual.

RH: Como foi para a senhora voltar a dar aula para graduação?

MO: Voltei há dois anos. Hoje vejo os estudantes muito restritos. Você não pode indicar um livro em francês, inglês, que há reclamações. É um pouco frustrante. Se bem que sempre existem os quatro ou cinco futuros historiadores. Esses estão sempre lá e podemos identificar de cara, são aqueles que têm interesses específicos, questões já formuladas.


RH: E o que a senhora recomendaria, hoje, aos jovens orientadores?

MO: Que pergunta mais difícil! Eu sempre me pergunto o que é orientar. Sobretudo, quando eu tenho problemas. Eu já cheguei, agora na PUC, a escrever um breviário [risos] das relações orientando-orientador. Antes acho que isso não precisava ser escrito, mas, agora, precisa. E eu acho que essa relação é alguma coisa dessas que não se define. O professor Sérgio citava Nietzche, dizendo que tudo o que é História não se define. Essa é uma relação de afinidade que ocorre mesmo por acaso.

RH: Essa afinidade existiu entre a senhora e Caio Prado Júnior?

MO: A relação com Caio foi muito importante para mim. Ficamos juntos por quatro anos. Mas havia uma diferença grande de idade, trinta anos. Tenho páginas e páginas de conselhos dele, dizendo como eu devia fazer minha tese, como é que eu devia escrever. Não pude aplicar nenhum. Porque interpretação é uma coisa muito pessoal, não é? Nem o orientador tem esse papel. Mas o Caio era uma personalidade fascinante. Vivemos momentos muito difíceis. Ele foi preso e eu tinha que levar o almoço todo dia para ele na prisão e, com isso, fiquei em contato direto com os torturados, que via chegando na Tiradentes sem conseguir andar porque o pé estava completamente escangalhado. Então, iam arrastando as pernas. Era muita gente conhecida, Frei Beto, um aluno meu dominicano, boa parte da faculdade de filosofia estava lá. Caio ficou quase um ano preso. Era uma rotina de pesadelo e um clima muito pesado. Enquanto eu conversava com o Caio, os soldados ficavam apontando a baioneta para nós dois. Eu era esquentada e dizia: “o senhor abaixa isso. Não tem motivo para estar apontando uma arma”. E os soldados foram fazer queixa com o coronel.


RH: E como que o Caio reagia diante disso?

MO: Acho que ele estava acostumado a ser preso. Eu não estava acostumada com aquela perseguição dentro da sala de aula, uma porção de gente da Polícia Militar ouvindo a aula. Dentro da prisão, Caio foi procurado para dar um curso de marxismo para seis sargentos. Eram oficiais que estavam interessados em saber o que era o marxismo, saber exatamente contra o que estavam lutando. Acompanhei boa parte desse período ao lado dele, até que às tantas tive que ir embora do país, porque não agüentava mais aquilo, o contato com a tortura. Entrei numa crise imensa e fui terminar o meu doutorado lá fora, nos Estados Unidos, onde o Caio não podia ir.


RH: A relação de afinidade foi mantida?

MO: Ah, sim. Quando eu terminei Cotidiano e poder, fui visitá-lo com o livro. Mas ele já tinha sofrido um aneurisma. Lia e não entendia o que estava lendo. Foi o começo de um fim muito triste que ele teve.

RH: Apesar da senhora, obviamente, ter um posicionamento político, nunca se filiou a nenhum partido. Por que?

MO: Tenho a impressão que a pessoa que está na universidade, estuda e produz, tem que militar através do próprio ofício. Então você escreve de uma forma militante, dá aulas de uma forma militante, tem de fazer a sua política no dia-a-dia. E essa é uma convicção que eu sempre tive. A vida política é outra esfera de atuação, porque você deixa de ser você mesmo para obedecer ou entrar nos cânones do partido ao qual está ligado. Aí, deixa de ser uma militância criativa, que é a que o professor universitário deve ter.

RH: Uma contribuição importante da senhora para a historiografia brasileira foi a análise do liberalismo. De que maneira ele marcou a trajetória do país até os dias de hoje?

MO: Esse liberalismo não passa de verniz. É na verdade um suposto liberalismo que veio sobreposto às relações que eram tudo, menos liberais. As relações com os escravos, com os forros. O liberalismo ficou marcado, portanto, como uma capa que encobre o autoritarismo, que encobre a falta de uma verdadeira democracia.


RH: Estamos falando de idéias fora do lugar?

MO: Bom, eu nunca achei que fosse fora do lugar, elas tinham o seu papel. Na Inglaterra, por exemplo, o liberalismo, se visto pela perspectiva dos operários, também era fora do lugar. Quer dizer, essa metáfora do nosso colega das Letras [Roberto Schwarz] nunca fez muito sentido. É fora do lugar dependendo do ponto de vista e da classe social a que você se refere. Era fácil ver no Brasil que as elites podiam ter apenas um jargão liberal, numa sociedade de escravos, excludente. Até hoje essa ideologia liberal se mantém como um verniz, dentro dessa política das elites, que não tem a ver com o país todo, mas que marcou a formação do estado brasileiro de uma forma um pouco perversa. [idéia repetida]

RH: E o historiador inglês Robert Southey, como foi a descoberta desse tema?

MO: Esse homem me perseguiu uns oito anos da minha vida. [risos]. Southey era muito interessante, um grande poeta romântico. Me interessei, sobretudo, pelo olhar do viajante, antes dessa moda dos estudos culturais, da crítica da cultura eurocêntrica de hoje. Eu tinha a necessidade de entender por que aquele inglês, que nunca tinha vindo ao país, quis escrever uma história do Brasil. Foi interessante, porque o tio dele morava em Lisboa e colecionava documentos. Era uma espécie de espião do governo britânico. E essa biblioteca do tio dele veio parar nas mãos dele e, assim, ele resolveu escrever sobre o Brasil no contexto das guerras napoleônicas. O primeiro volume da obra é de 1810 e, o último, de 1822. Então, ele já estava discutindo a independência e a inconfidência mineira. Southey tinha aquela idéia da missão civilizadora dos ingleses em nome de uma redenção de todo o passado católico. Southey era muito preconceituoso com os portugueses e com o catolicismo.


RH: A interiorização da metrópole é um trabalho da década de 60 e que ainda hoje suscita uma discussão muito interessante. Qual a importância desse tema para o debate sobre a História do Brasil?

MO: Eu tenho impressão de que essa consciência de que somos nós mesmos os colonizadores é fundamental. Nós nos colonizamos a nós mesmos, como país. Então, a exploração não veio do outro, do imperialismo, da metrópole, não veio de fora. Nós nos oprimimos entre nós. Acho que a questão fica mais interessante para nós se imaginamos que a metrópole era, muitas vezes, comerciantes ou autoridades da coroa que viviam aqui e que, de certa forma, se enraizavam aqui. Na época do meu estudo, existiu muito essa discussão. O Caio, na Revolução Brasileira, fala muito nisso, que o colonialismo partiu de dentro e não de fora. O título do meu artigo eu arrumei bem depois que já tinha escrito, quando me dei conta da importância da atuação dos comerciantes portugueses no Rio de Janeiro, na Bahia, em Pernambuco, o que me fez pensar nessa idéia de que as elites no Brasil não eram tanto as elites rurais, mas os comerciantes, os que realmente tinham fortunas, uma elite de comerciantes já casada com setores rurais e que foi assim desenvolvendo raízes. Essa idéia da metrópole e da colônia serve muito à fase de construção do Estado, em que é necessário ter uma referência externa para criar uma identidade própria.


RH: Isso poderia ser associado, hoje, à idéia de identidade nacional?

MO: Eu luto muito com esse termo identidade porque todo processo de construção do Estado é um processo muito elitista, marcado por essa idéia de construir e impor uma identidade nacional. Acredito que todo o autoritarismo entranhado na gente vem muito dessa vontade de forjar uma identidade nacional, onde se apagam as diferenças regionais, as diferenças locais. E a gente assiste a isso muito claramente no Estado Novo. Então, estou com Deleuze, que fala em processos de identificação, múltiplos, plurais, fugindo de ranços autoritários e elitistas.


RH: Quais os temas que interessam a senhora atualmente?

MO: A temática feminina ainda é muito carente de bons estudos. Acredito que especialmente a política de casamentos da elite é um assunto pouco abordado apesar de muitíssimo rico. Eu tenho me dedicado a um estudo das mulheres no comecinho do século XX aqui em São Paulo. A urbanização de São Paulo, os imigrantes, as mulheres forras, as mulheres de elite, as fazendeiras de café morando na cidade. Uma história social da urbanização, tendo como personagens as mulheres das diferentes classes sociais.

RH: E o que a senhora tem encontrado?

MO: Muitas mulheres que formavam fortunas enormes, apesar de fortunas sempre instáveis. São mulheres que produziram muitas memórias, em diários e cartas, onde ficam registrados os momentos em que perdem a fortuna, o status e quando têm que aprender a sobreviver em outro cenário. Então, encontramos essa figura sempre recorrente da mulher que tem que improvisar modos de vida para os quais ela não foi preparada, para fazer face à falência, por exemplo, da família. Aí, quando em geral os homens iam beber, as mulheres iam trabalhar escondidas, ou fazer trabalhos sociais. Daí vão sair as primeiras médicas, as primeiras advogadas e professoras, sobretudo, professoras. Esse é um tema que me fascina porque nós temos um tipo de instabilidade quase crônica e essas mulheres expressam esse modo perpétuo de transformar o comportamento, os modos de vida.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional