terça-feira, 13 de outubro de 2009

Nicolau Sevcenko


Nicolau Sevcenko
A história como missão

Poucos têm uma história de vida como a do historiador Nicolau Sevcenko. Filho de imigrantes russos, da região da Ucrânia, fugidos da perseguição bolchevique, Sevcenko nasceu no Brasil, mais especificamente em São Paulo, em 1952. Dividiu a infância entre o trabalho, o esporte e, é claro, o estudo. “Cada uma dessas atividades me deu uma percepção do mundo bastante diferente, bastante significativa.” Depois de escorregar para o lado da bioquímica, decidiu-se pela história. Graduou-se em 1976, na Universidade de São Paulo, onde é professor titular desde 1999. Hoje, circula entre São Paulo e Londres, onde é membro do Centre for Latin American Cultural Studies, da Universidade de Londres. É também editor-associado de The Journal of Latin-American Cultural Studies, importante publicação da Universidade de Cambridge, Estados Unidos. Autor de obras pioneiras que contribuíram para consolidar o estudo da história da cultura brasileira – como Literatura como missão –, sua obra reflete um intelectual interessado por diversas áreas do conhecimento e um historiador interessado em se comunicar com o grande público, por isso escreve freqüentemente na imprensa, nacional e estrangeira.

Nicolau Sevcenko encontrou a equipe da Revista de História para uma entrevista na capital paulista: falou com emoção da família, de seu percurso intelectual e de suas pesquisas, também de história e de historiadores. Por fim, como pensador de seu tempo, analisou os rumos do Brasil e os aspectos do novo cenário mundial. “É preciso tirar a tecnologia do plano estrito da economia e colocá-la também, de forma mais ampla, como um dos fundamentos de transformação no campo social”, observa Sevcenko, fazendo história no presente.

Revista de História – O que o levou ao estudo da história?
Nicolau Sevcenko – É sempre difícil dizer que caminho nos leva a determinada opção, que em grande parte tem elementos subconscientes. Na juventude eu tinha mais inclinação para uma carreira na área das ciências aplicadas, pensava em medicina. Depois fui percebendo que não tinha muita habilidade para tratar com as condições patológicas do corpo humano, percebi que na biologia o que mais interessava era a parte estrutural e, portanto, bioquímica. Curiosamente, foi a partir desse ponto, quando eu já estava decido a fazer uma opção na área da bioquímica, que na última hora acabei decidindo por uma carreira na área das ciências humanas, e dentro das ciências humanas a que mais me atraía era a história.


RH – Houve alguma influência familiar?
NS – De certa forma, sim, é o outro lado da questão. Minha família tinha uma situação obscura. Eram refugiados políticos. Meu avô era refugiado militar. Fora oficial do exército russo e lutara pelos tsaristas contra os bolcheviques. Obviamente, todos os problemas da minha família decorreram dessa atuação dele, pois ela foi vítima de uma perseguição implacável que acabou tirando a vida da maior parte dos meus parentes.

RH – Inclusive seu avô?
NS – Não, milagrosamente meu avô e seus filhos conseguiram escapar, e eu descendo dessa linhagem restante, desse resíduo de uma grande família. O assunto sempre foi para todos nós tão traumatizante que era praticamente tabu falar sobre o passado na minha família, porque quando isso acontecia as pessoas se alteravam, tremiam, lacrimejavam, ficavam profundamente deprimidas. Então no fundo eu tinha uma imensa curiosidade sobre uma dimensão secreta da minha família, da minha origem, da minha ascendência, que me foi tolhida por esse processo profundamente impactante na história do século XX – especialmente as revoluções, as guerras civis –, do qual eu sou uma espécie de subproduto.

RH – Sabe-se que sua infância foi dura, marcada por uma batalha pessoal muito prematura. Como foi esse período?
NS – Tive de enfrentar a circunstância bastante difícil de ter perdido meu pai muito cedo, aos cinco anos. Pouco tempo depois, antes de completar sete anos, minha mãe perdeu o emprego. Por causa disso, antes de entrar na escola comecei a trabalhar com meu irmão. Puxávamos uma carroça de metal pela periferia de São Paulo, recolhendo e vendendo sucata.


RH – A necessidade de trabalhar não prejudicava os estudos?
NS – Não. Por qualquer que seja a razão, tive uma atuação bem sucedida no meu desempenho escolar, e por isso recebi uma significativa atenção de professores. Eles me motivaram a ter uma carreira voltada para a pesquisa, por que sempre tive paixão. Acho que é relevante considerar nesse percurso também a situação excepcional de eu, por um lado, trabalhar o tempo inteiro para ajudar a minha família e, por outro, fazer cursos, me dedicar às atividades escolares. Além disso tinha também uma atividade esportiva – vôlei, basquete e especialmente handebol. Participei da consolidação do handebol como esporte, aqui em São Paulo, o que me levou à seleção brasileira.

RH – Uma vez o Sr. disse que tinha dificuldades em falar português. Como superou isso?
NS – Eu na verdade sou disléxico e dislálico, e ainda tenho uma série de outras disfuncionalidades psicológicas. A razão disso tudo é que eu nasci canhoto. De onde a minha família vem, era pecado ante a igreja, e uma transgressão ante o Estado, ser canhoto. Por isso minha mãe se viu obrigada, contra a vontade dela, a amarrar minha mão esquerda nas minhas costas para me forçar a usar a direita. Isso, só vim a descobrir muito tarde, quando já era adulto, provoca uma descompensação entre os hemisférios cerebrais. Causa uma espécie de curto-circuito, que é irreversível e produz essas disfuncionalidades todas. É por isso que falo assim, meio gaguejante, e não tenho muito fluência. Às vezes esqueço palavras fundamentais e simples, como “mesa” e “janela”.

RH – E no entanto escreve muito bem...
NS – Mas a linguagem sempre foi um problema pra mim. E claro, mais complicado ainda pelo fato de que a minha língua original, minha língua materna, é o russo. Quando fui para a escola a experiência foi traumatizante. Eu não entendia nada. Sentei onde eu entendi que me mandavam sentar, e fiquei ali, constrangido, por um longo tempo, esperando que a aula acabasse e eu pudesse ir correndo para casa, pra dizer à minha mãe que haviam cometido um grande equivoco, haviam me colocado numa escola estrangeira. Pela primeira vez minha mãe me disse isso: “Não, estrangeiros somos nós”. Porque, como meus pais eram refugiados políticos, eles não vieram para o Brasil como imigrantes, com pretensão de se assimilar aqui. Eles sempre ficaram na expectativa de que a situação na Rússia mudasse e que eles pudessem voltar para lá.


RH – O que as suas pesquisas revelaram especificamente em relação a esse tema?
NS – A importância da geração de 1870. Esses escritores lançaram a questão da mudança do Brasil monárquico, numa perspectiva republicana que implicasse, em primeiro lugar, a abolição da escravatura. Eles foram os primeiros a perceber que nenhuma saída política ou econômica seria viável se não previsse em primeiro lugar a incorporação dessa enorme massa de excluídos que compõem a sociedade brasileira. Você vê essa idéia desde Joaquim Nabuco, passando por Machado de Assis e Capistrano de Abreu. É esse legado que constitui a base da qual parte a primeira geração de republicanos, representada, no âmbito da minha pesquisa, por Euclides da Cunha e Lima Barreto.

RH – Quer dizer, o projeto da geração de 1870 ainda está por ser realizado...

NS – É, no passado, Euclides e Lima Barreto talvez foram os que melhor articularam essa grande decepção. Mantiveram a convicção da geração de 1870 de que, uma vez mudado o regime, se instalaria aqui uma república de natureza democrática, com uma orientação equalizadora, redistributiva e de promoção social fundamentando o seu projeto político. Mas isso não aconteceu. O que estava voltando à tona, na época da abertura, ainda na ditadura militar, era exatamente a retomada desse debate de base social e humanística: cobrar uma promessa não cumprida por sucessivas administrações. Cada uma trouxe um lote de esperanças, cada qual prometeu uma ênfase no social, mas todas abortaram o mesmo legado. Todas, de algum modo, se desviaram daquela linhagem democratizante e humanista.

RH – Depois de Lima Barreto e Euclides, quais foram os principais representantes dessa linhagem?
NS – Caio Prado Junior, por exemplo. Sérgio Buarque de Holanda. Raimundo Faoro. Acho que essa é ainda a grande promessa de um Brasil capaz de responder ao desafio do resgate dessa dívida social. Enquanto isso não for feito, o país continuará patinando à deriva no contexto internacional com o qual quer se encontrar, pois renega aquele que é o seu compromisso fundamental.


RH – Pergunta inevitável: se a elite não promove o resgate da nossa dívida social, porque um operário, uma vez no poder, também não o faz?
NS – A gente está naquela posição de denunciar uma promessa antiga que não se cumpriu. E agora, com o Brasil comandado por alguém que devia ser o representante direto dessa demanda, vemos que ela é mais uma vez abortada. E é nesse sentido que a questão que eu coloquei em Literatura como missão se mantém aberta até hoje. Na reedição recente do livro, da editora Companhia das Letras, comento no posfácio exatamente como Machado de Assis fez num conto célebre. Ele assinalou esse processo de patinação como uma espécie de estratégia dos grupos dominantes para manter o sistema de privilégios nos quais estão encastelados praticamente desde o período colonial. Essa denúncia está no Machado, está no Euclides, está no Lima Barreto. E continua ainda hoje estampada nos jornais e nos nossos rostos.

RH – Sua experiência na Inglaterra foi importante para compreender melhor o Brasil?
NS – Sem dúvida. Quando cheguei à Inglaterra, em 1986, me vi de repente envolto numa enormidade de trabalhos da maior relevância, de autores e de teóricos com os quais eu nunca tinha trabalhado, com uma perspectiva incrivelmente diferente de tudo o que conhecia sobre temas como o cotidiano, a vida privada, a cultura imaterial etc. Para um historiador que trabalha voltado para uma sociedade como a brasileira, esse conjunto de ferramentas intelectuais e conceituais era extraordinariamente privilegiado.

RH – Por quê?
NS – São autores que revelam uma sensibilidade aguçada para as sociedades ágrafas, isto é, sociedades cuja comunicação fundamental não é por escrito, mas basicamente oral ou imagética, ou musical ou coreográfica, como é o caso da sociedade brasileira. Poder trabalhar com essas linguagens extra-verbais, com a mesma versatilidade com que um historiador trabalha com documentos escritos, é o gabarito que me trouxe esse novo repertório de fontes e referências. Deu-me uma possibilidade de ampliação dos meus instrumentos de trabalho, das minhas experiências de pesquisa e do meu próprio trabalho como professor e orientador junto aos meus alunos.


RH – O Sr. teve o privilégio de conviver com dois historiadores excepcionais: Sérgio Buarque de Holanda, na USP, e Eric Hobsbawm, com quem o Sr. dividiu uma sala na Universidade de Londres. O que guardou dessa experiência?
NS – Eu diria que os dois são muito diferentes entre si, mas é uma diferença que não exclui. São duas formas diferentes de riqueza, que fazem o seu tesouro se enriquecer ainda mais. Eric Hobsbawm, evidentemente por causa da sua formação marxista predominante, tem essa visão universalista. Ele entende o mundo contemporâneo como uma espécie de grande dinâmica articulada pelo ciclo do capitalismo – partes que respondem de maneiras diferentes a essa espécie de interativo comum. A sensibilidade mais distinta do modo de trabalhar do Hobsbawm é exatamente essa: a de marcar, por um lado, essa espécie de energia integradora e submissora; por outro, expor os elementos de resistência, autonomia e confronto que de toda parte se manifestam, tentando resistir a esse processo integrador.

RH – E Sérgio Buarque?
NS – É muito mais voltado para o historicismo alemão, com o qual teve contato direto quando esteve na Alemanha. Ele explorou com sensibilidade a singularidade única dos contextos históricos, e nesse sentido é que ele diverge significativamente do professor Hobsbawm. Ao invés de ver o mundo a partir de uma dinâmica dominante, submissora, Sérgio Buarque o enfoca a partir dos elementos contingentes que constroem dinâmicas próprias. Ele vê mais do pequeno para o grande, de baixo para cima, de uma perspectiva de microcontextos de situações contingentes e de deliberações tomadas em condições de resolução, criadas pelas características singulares que cada pessoa, cada grupo, cada sociedade experimentam como sua dimensão concreta de experiência.

RH – E é possível, como historiador, conciliar Sérgio Buarque de Holanda e Eric Hobsbawm?
NS – Se você conseguir de algum modo trabalhar costurando entre uma e outra posição, acaba produzindo um efeito de ampliação do horizonte de pesquisa, do micro pro macro, do macro pro micro, o tempo inteiro sem perder esse vigor da palpitação da vida, da riqueza do concreto e da grande dinâmica do conjunto como um sistema articulado.


RH – Esse seu interesse pela questão da tecnologia. Quando começou?
NS – De meados ao final dos anos 70, ainda vivíamos aqui no Brasil uma situação de defasagem em relação a outros países, mas já se manifestava a idéia de que o futuro seria decidido no campo das aplicações tecnológicas. Era preciso, claro, atualizar urgentemente o debate. Quando eu fui para a Inglaterra, a questão já estava na ordem do dia, porque se vivia um período de consolidação da revolução da microeletrônica. Esse foi um tema que eu trouxe para o Brasil, e foi crucial para minha pesquisa sobre São Paulo, particularmente sobre o diferencial do processo histórico urbano paulista.

RH – Qual a importância da tecnologia no mundo contemporâneo?
NS – É crucial, desde que não seja considerada como panacéia ou mistificação, e sim como um recurso que sirva tanto ao crescimento econômico como à inclusão social, à promoção social e à democratização. É preciso tirar a tecnologia do plano estrito da economia e colocá-la também, de forma mais ampla, como um dos fundamentos de transformação no campo social.

RH – Em que setores, especialmente?
NS – Passa pela educação e até pelo modo como ela pode nos dar as respostas necessárias para o reajuste do equilíbrio ambiental. Graças a essas tecnologias você pode ter um alcance muito maior na sua atuação educacional, pode incluir muito mais amplamente diferentes camadas hoje excluídas da população. Por outro lado, pode pô-las em contato direto com diferentes dimensões não só da nação brasileira, mas do mundo contemporâneo. Porque a tecnologia é mundial, não tem fronteiras nacionais. Tem também esse potencial de trazer recursos para avaliar e defender o patrimônio e os recursos ambientais do planeta.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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