O que um médico faz acampado nas areias quentes do deserto do Saara? História, é claro! O baiano Paulo Fernando de Moraes Farias tem uma trajetória impressionante. Dividido entre os estudos de Medicina e o prazer de lecionar História nos ginásios de Salvador, descobriu o interesse peculiar pela História da África. Nos anos 1960, freqüentou o Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao), na Bahia, instituição pioneira nos estudos africanos no Brasil. Ali, dialogou com o antropólogo Pierre Verger e o carismático filósofo Agostinho da Silva. Das conversas, saiu convencido: partiria para “estudar a África como África, e não como Brasil”. Foi para Gana em 1964. Encontrou um país cosmopolita, com bibliotecas fantásticas, que em plena Guerra Fria reunia intelectuais do mundo inteiro: russos, alemães, americanos, ingleses e franceses. Suas pesquisas resgataram antigas tradições orais e escritas de famílias e grupos guerreiros, como os almorávidas. Com erudição e simplicidade, seu trabalho desvenda o etnocentrismo presente em muitos estudos que tornaram o passado da África e dos africanos “inenarrável”. Dedicado há mais de trinta anos a decifrar os grandes enigmas das terras africanas, como o seu monumental estudo das estelas funerárias da República do Mali, publicado em 2003 pela Oxford University Press para a British Academy, Paulo Fernando encontrou também fragmentos do Brasil nos lugares que visitou: ouviu um típico frevo pernambucano tocado por músicos da Costa do Marfim! Esta e outras curiosidades o leitor vai encontrar nesta entrevista, que teve a participação de Alberto da Costa e Silva.
REVISTA DE HISTÓRIA - A África deve ser lembrada apenas pelo seu passado de escravidão?
PAULO FERNANDO - Isto ocorreu, provavelmente, porque o tráfico de escravos agiu como uma tela que se interpunha entre as pessoas e os fatos, os acontecimentos da História da África. É muito mais fácil escravizar uma população a partir dessa desculpa, de que ela se encontra num degrau bastante primitivo de civilização, ou até não é nem civilização, já que não tem história. Isto criou e cristalizou, durante bastante tempo, um preconceito muito forte. Surge a idéia de uma região violenta, de passado inenarrável. Inenarrável porque atroz, mas também inenarrável porque simplesmente você não pode reduzi-lo à narração. Acho que foi o filósofo alemão Hegel (1770-1831) quem viu na África um passado sem processos, um conjunto de fatos isolados que não têm continuação. Só no século XIX, quando a Europa, movida pelos seus interesses, se aventurou a penetrar o interior da África, é que se sentiu a necessidade de conhecer e narrar esse interior. E para fazer isso era preciso aceitar a premissa de que havia lá uma existência histórica, algumas coisas que pudessem ser identificadas como História.
RH - É verdade que o senhor abandonou a Medicina para se dedicar à História?
PF - É, terminei Medicina, fiz outro vestibular e comecei a estudar História. Mas o interesse pela História da África surgiu depois, no fim da década de 1950, quando comecei a freqüentar o Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao). Dei o salto a partir de uma conversa com o Agostinho da Silva VERBETE. Alguém deve ter dito ao Agostinho que existia um professor de História, ou seja, eu, que podia ser atraído para o estudo da África. Então ele me telefonou de surpresa e marcou um encontro. Foi aí que tudo começou. O ambiente político da época também ajudou muito nessa minha “conversão”. Eu tinha minhas turras com a sociedade baiana, vivia procurando argumentos contra o racismo. Mas, no princípio, para mim foi uma espécie de tortura mental.
RH - Por quê?
PF - Porque eu não conseguia achar minha porta de entrada para iniciar esses estudos. Quem me ajudou muito foi o Pierre Verger, VERBETE que era ligado ao Ceao. Ele me deu algumas indicações de documentos que existiam no arquivo da Bahia e me recomendou a História dos Iorubas (1921), de Samuel Johnson. De início, achei esse texto absolutamente impenetrável. Lembro-me de ter passado horas no Ceao, lendo aquele livro e me perguntando quando é que eu ia começar a compreender aquilo [risos]. A partir daí é que veio a idéia de ir para a África, o que era algo possível na época, pois o Ceao recebia apoio da Unesco e também do Departamento Cultural do Itamaraty. A primeira pessoa enviada à África tinha sido o antropólogo baiano Vivaldo da Costa Lima. Depois, fui eu.
RH - Poderia falar um pouco sobre esse convívio no Ceao?
PF - A criação do Ceao é a conjunção do espírito carismático de Agostinho da Silva e da inteligência de Edgar Santos, VERBETE que percebeu que era o momento de se criar um centro de estudos daquele tipo, que não era um centro de estudos puramente africano, ele era afro-oriental. Apareciam na revista artigos sobre a Ásia e sobre a África. Havia cursos de línguas; de um lado, língua iorubá, de outro, hindi. Em teoria, ele continua sendo hoje um centro de estudos afro-orientais. Na ocasião em que foi criado, em 1959, não foi simplesmente um desejo de aproximação com a África e com a Ásia, mas também com os movimentos de independência.
RH - O senhor saiu do Brasil e foi direto para Gana?
PF - É, fui como estudante. Era a Gana de Nkrumah VERBETE, de certa maneira um pouco parecida com a África do Sul de hoje. Uma nação muito especial, com seu contexto geográfico e histórico próprio, tudo sob a grande aura do pan-africanismo, pois Gana foi a nação pioneira nos movimentos de independência do continente. Mas, ao mesmo tempo, o regime de Nkrumah se tornara fechado e autoritário, e isso criava um tipo de tensão que só fui descobrindo aos poucos...
RH - Como era esse clima?
PF - Para mim, uma fonte permanente de insegurança. Pois eu havia imaginado que Gana ia me servir como uma espécie de hospital de convalescença psicológica. Eu saí daqui em 1964, depois do golpe militar, corrido da polícia. Nesse tempo eu dormia vestido, pronto para fugir a qualquer hora, viajava de ônibus meio disfarçado. Quando cheguei à África, respirei aliviado: “Ah, até que enfim vou poder me deitar, dormir nu se quiser, sem me preocupar com perseguição política”. Depois percebi que as coisas lá não corriam tão bem, e isso me criou uma certa perturbação psicológica, semelhante à que sentia no Brasil. Mas, felizmente, havia também o lado bom de Gana.
RH - Qual era?
PF - Encontrei lá uma biblioteca magnífica, com dicionários etimológicos que eu nunca tinha visto na Bahia. O Centro de Estudos Africanos de lá era um espaço especial, nunca estive num lugar tão cosmopolita, intelectualmente. Reunia gente de toda parte: professores ingleses, americanos, alemães, afro-americanos, brancos e pretos. Era uma coisa muito rara no tempo da Guerra Fria (1945-1989). Eu me lembro de uma semana em que eu assisti, em dias diferentes, à conferência de professor americano, uma de um professor da Universidade de Moscou e outra de um professor da Universidade de Berlim. Era possível se sentar numa universidade para ouvir aquela gente toda, com pontos de vista os mais diferentes possíveis.
RH - O senhor, nessa época, já conhecia o árabe?
PF - Uma das razões pelas quais eu me meti a estudar árabe em Gana foi justamente para poder estudar as fontes em árabe. O Centro oferecia cursos de várias línguas: a língua ka, de Gana, a língua iorubá, e idiomas também da África do leste, suahili e árabe. O caminho mais normal para mim, sendo brasileiro, e sobretudo brasileiro da Bahia, seria estudar uma das línguas da costa. Por uma espécie de teimosia intelectual, decidi me concentrar no Islã. Eu tinha um interesse vago na presença da cultura islâmica na Bahia, por causa dos malês. VERBETE Mas eu acho que fui atraído mesmo para o Islã por uma espécie de desejo de estudar a África como África, e não como Brasil.
RH - Quando o senhor decidiu sair de Gana e ir para Dacar?
PF - Mais ou menos nessa época, depois que eu conheci o Vincent Monteil (1913-2005), que era um estudioso francês especializado no Islã. O estudo do Islã na África estava passando então por uma fase muito interessante. Muita gente via o Islã, e as culturas islâmicas de modo geral, como um assunto muito importante, que, no entanto, tinha sido negligenciado pelo Ocidente, pois no passado o Islã era visto como uma ameaça aos impérios europeus. Ele chegou para mim e disse: “Olha, estamos organizando uma segunda expedição à ilha de Tidra, e você vem com a gente”. A razão do convite é que eu, naquele momento, estava estudando os almorávidas, que habitaram a costa da Mauritânia e o arquipélago de Tidra. São essas felizes coincidências que acontecem na vida da gente...
RH - Vocês foram para onde, inicialmente?
PF - Para o Saara. Foi uma experiência interessantíssima... Lembro que havia eu, um arqueólogo francês e um historiador senegalês, tudo gente jovem, tudo verdinho na matéria. O chefe da expedição era monsieur Rigot, um arqueólogo que tinha saído da Argélia no momento da independência, por volta de 1962. E havia sobretudo um mauritano chamado Al-Muktar Ould Hamidin, que era um homem boníssimo, um erudito, de um saber imenso. O Al-Muktar, assim como o Agostinho, foi uma pessoa muito importante na minha vida. Era capaz de entender coisas que ele quase, pode-se dizer assim, não tinha o direito de entender.
RH - Por exemplo?
PF - Ele entendia perfeitamente as dificuldades que eu, como brasileiro, fazendo pela primeira vez na vida um trabalho de campo no Saara, podia encontrar. Ele não podia entender, mas entendia. Ele me nutria de informações na dose certa, nem mais nem menos. Não dava para me encher de repente com uma massa de informações que eu não podia absorver. Então ele dava essas informações aos poucos. Tudo o que eu perguntava, o Mukhtar respondia. Imagine os problemas que podiam surgir dentro de uma pequena tenda, com aquele grupinho internacional enfurnado nela, no meio do deserto...
RH - Saía muita briga? [Risos].
PF - Tinha de sair. Com exceção do Mukhtar e do monsieur Rigot, éramos todos novatos em trabalho de campo. Isso criava tensões psicológicas que às vezes acabavam em briga. Eu me lembro de momentos em que eu achava que aqueles tipos ali estavam me perseguindo, querendo acabar comigo, me criando as maiores dificuldades. E o Mukhtar, com aquela presença santa, agradável, apaziguava tudo, se dava bem com todo mundo.
RH - Seu trabalho sobre os almorávidas foi de grande impacto para os estudos africanos. Por quê?
PF - O movimento almorávida surgiu entre grupos guerreiros que gostavam de roubar camelos entre eles. A tendência dos autores, dentro da Mauritânia, era achar que não se podia esperar de gente daquele tipo um movimento de grandes conteúdos ideológicos. Mas a leitura das fontes dava a impressão de que eles, pelo contrário, estavam sintonizados com os debates político-ideológicos que ocorriam na época, no século XI, na Andaluzia e ao sul de Portugal, que ainda estava sob domínio muçulmano. Lisboa acabou sendo, por causa disso, uma cidade almorávida... Então, era um pouco marchar contra a corrente, era como mostrar que essa gente, que supostamente era simples demais, na verdade não podia ser estudada apenas como um movimento de pilhagem.
RH - O governo sul-africano tem reunido esforços para a preservação e o estudo dos manuscritos de Tombuctu. Qual a importância deste trabalho?
PF - O que está havendo agora em Tombuctu é a recuperação de manuscritos que estavam dispersos por vários lugares. As pessoas que habitam a região são nômades ou seminômades, então um dia estão em Tombuctu e daqui a um mês estarão num acampamento muito distante, lá no Saara. E vão deixando seus livros em vários lugares. As famílias letradas de Tombuctu estão percorrendo todos esses depósitos de livros e reunindo tudo. O resgate desse patrimônio, penso eu, passou a ser também uma questão de orgulho familiar. Cada grande família está criando uma biblioteca sua, e elas estão procurando mobilizar recursos internacionais para ajudá-las nesse trabalho.
RH - O que se descobriu até agora sobre Tombuctu?
PF - A família Kati, por exemplo, remontou suas origens até a Espanha. No passado, havia contatos entre Tombuctu e as comunidades judaicas que viviam no centro do Saara. A maioria foi exterminada no século XV, mas outras comunidades sobreviveram, e no final do século XVIII e ao longo do século XIX, muitos comerciantes judeus se estabeleceram em Tombuctu. Então, pouco a pouco, essas genealogias estão vindo a lume. Isso às vezes causa certas tensões, porque muitos islamitas não têm grande simpatia por esse tipo de revelação genealógica.
RH - A barreira religiosa para a instalação dos portugueses na África foi maior do que na América?
PF - As religiões africanas demonstraram um poder de resistência maior, se você considerar o continente como um todo. Por outro lado, no reino do Congo, em Angola, o cristianismo sempre teve uma presença bastante forte. Um fenômeno importante da vida africana atual é a absorção do cristianismo evangélico, da chamada Teologia da Prosperidade. É um movimento fortíssimo na Nigéria, por exemplo. É aí, me parece, que há uma ruptura bastante aguda com a herança portuguesa. Eu já li vários folhetos religiosos. Um deles recomenda que, caso seu pai e sua mãe sejam pagãos e se recusem a aceitar a religião evangélica, você deve romper com eles. Na minha opinião, por esse lado, a Teologia de Prosperidade trabalha contra a família africana.
RH - É verdade que o senhor dançou frevo na África?
PF - Olha, eu não me lembro se dancei, mas lembro que fiquei muito surpreso, diria até paralisado, quando ouvi um frevo na África.
RH - Como foi?
PF - Aconteceu da seguinte maneira. Uma família malinesa ia celebrar um casamento, me convidaram, e lá fui eu. Nessa festa, a música era produzida por um pessoal da Costa do Marfim. No meio da festa, de repente, começou a tocar um frevo. Não fui o único que ouviu esse ritmo lá, o Alberto da Costa e Silva também ouviu e parece que chegou a dançar frevo na África.
RH - Isso significa que o frevo, orgulho de Pernambuco, não é pernambucano?
PF - Certamente não é pernambucano. Evidentemente, sofreu uma transformação no Brasil, da mesma forma que a capoeira, mas não é pernambucano. O jeito é mandar uma equipe de musicólogos lá para decidir isso: se é um tipo de música africana que veio para o Brasil ou se, de alguma maneira, voltou para lá, e, se foi assim, como é que isso aconteceu. É um dos enigmas que restam para se resolver.
RH - O centro de Birmingham, onde o senhor trabalha agora, era totalmente voltado para a África?
PF - Era; o centro de Birmingham era parte de um movimento na Inglaterra, na Europa toda, de interesse pela África e pelos outros continentes na década de 1960. De certa maneira, assemelhava-se ao nosso Ceao, nasceu quase na mesma época. Comecei lá trabalhando com o John Fage, que foi uma figura importantíssima no campo de estudos africanos.
RH - Como resgatar a história de civilizações que não deixaram o seu passado escrito?
PF - É difícil. Bem, pelo menos pelos padrões clássicos do Ocidente, ser civilizado requer ter escrita. Então, desse ponto de vista, a África deve ter escrita, para mostrar que tem uma civilização digna desse nome. Acho isso totalmente correto desde que, é claro, não leve ao desprestígio da oralidade. Uma das conquistas importantes dos estudos africanos modernos foi justamente mostrar que as tradições transmitidas oralmente têm uma grande importância histórica. O que os almorávidas VERBETE anotaram, por exemplo, perdeu-se em sua maior parte. Mas há outras fontes importantes, como, por exemplo, as lápides funerárias, que também são objeto dos meus estudos.
RH - Em que momento surgiu seu interesse pelas estelas funerárias?
PF - Em Birmingham havia uma seção de arqueologia, e um arqueólogo chamado Colin Flight estava trabalhando sobre a cidade de Gao, no Mali. Ele pesquisava lápides árabes andaluzas e me mostrou uma que tinha fotografado no museu de Gao. Eu descobri, examinando-a com lente de aumento, que era uma lápide real. Foi uma surpresa, ninguém sabia da sua existência. “Bom, quer dizer que existem coisas novas nessa área”, e continuei trabalhando com as lápides. Até aquele momento, só um pequeno número de estelas funerárias tinha sido publicado por um pesquisador que foi uma das grandes figuras da epigrafia francesa, o orientalista e historiador francês Jean Sauvaget (1901-1950), e depois por outra epigrafista, Madeleine Virret.
RH - Como o senhor exporia para um leigo a importância dessas descobertas?
PF - A idéia corrente na época era que tudo sobre o tema já havia sido publicado. Por outro lado, a orientação de todos os epigrafistas era de focar seu interesse nas lápides reais, ou em figuras que de alguma maneira fossem conhecidas pela História através de crônicas e outras fontes. Minha pesquisa sempre foi no sentido de tentar mudar isso, passar a dar importância às inscrições de pessoas comuns. Isso muda a perspectiva da coisa. Passo a olhar as inscrições não como fonte de datas e de nomes, ainda que nomes de reis, mas como um discurso histórico.
RH - Que conselho o senhor dá para a nossa comunidade acadêmica, que ainda engatinha na área de estudos sobre a África?
PF - Não acho que esteja engatinhando; já se levantou há muito tempo e anda em pé, muito bem. Acho que seria ótimo se houvesse mais oportunidades para que estudantes brasileiros e acadêmicos jovens pudessem fazer pesquisa no continente africano. Para se conhecer a África é preciso ir à África.
SAIBA MAIS:
FARIAS, Paulo Fernando. Arabic Medieval Inscriptions from the Republic of Mali: Epigraphy, Chronicles, and Songhay-Tuareg History. Fontes: Historiae Africanae, new series,Oxford: Oxford University Press for The British Academy, 2003.
FARIAS, Paulo Fernando; DIAWARA Mamadou.; SPITTLER, Gerd (eds). Heinrich Barth et l’Afrique Cologne. Rüdiger Köppe Verlag, 2007.
Revista de História da Biblioteca Nacional
Nenhum comentário:
Postar um comentário