domingo, 8 de fevereiro de 2009

O herói desconhecido - Jorge Caldeira


01/09/2007

REVISTA DE HISTÓRIA O senhor, que trabalhava como jornalista, escreveu um livro de enorme sucesso sobre a história do barão de Mauá. Os historiadores ficaram com muito ciúme?
JORGE CALDEIRA Acho que meu livro sobre o Mauá causou um certo susto na época. Agora que os historiadores fazem biografias, não causa mais; acho que o que escrevo tem sido bem aproveitado por todos, tem sido bom para os dois lados. Sempre estive no meio. Embora tenha formação acadêmica, fui treinado como escritor, produzindo todo dia para públicos amplos, durante 25 anos.

RH Veio do berço esse interesse?
JC Desde pequeno. Minha mãe era formada em História, embora não lecionasse. Nos anos 1970, quando entrei para a Faculdade de Ciências Sociais, comecei a trabalhar como pesquisador para aquelas enciclopédias da Editora Abril. Fiquei três anos fazendo pesquisa sobre a história da MPB, biografias de compositores que saíam a cada quinzena. Essa foi minha área inicial de estudos. Depois da minha graduação, ainda continuei trabalhando em enciclopédias por um tempo. Em seguida, fiz pós-graduação em Sociologia da Comunicação e um mestrado sobre a formação do samba, publicado em 2007 no livro A Construção do Samba.

RH E sua ligação com tecnologia?
JC É, comecei a lidar com tecnologia em 1995. Fiz um CD-Rom de História do Brasil, “Viagem pela História do Brasil”, um CD-Rom interativo, o primeiro do gênero lançado no Brasil. A partir daí, fundei uma empresa que se dedica à pesquisa de História, em profundidade, e ao desenvolvimento de tecnologia eletrônica para acesso à documentação histórica, ou seja, o uso intensivo de ferramentas eletrônicas para estudo e processamento de documentação histórica.

RH Qual é a obra mais recente?
JC Bom, eu acabei de escrever um livro chamado O banqueiro do sertão. É a biografia de um padre e banqueiro chamado Guilherme Pompeu de Almeida, que viveu entre 1656 e 1713 numa cidade chamada Araçariguama, então em pleno sertão de São Paulo. Ele acumulou uma fortuna inicial a partir de uma siderúrgica herdada do pai. Depois juntou isso com a atividade bancária e formou uma grande fortuna. Quando morreu, deixou a maior herança que a ordem dos jesuítas recebeu em todo o Império português. O que pretendo mostrar no livro é a lógica dessa sociedade que se forma aqui em 1600, no sertão, muito mais próxima da cultura tupi do que da cultura portuguesa. Foi o começo da idéia de que a riqueza redime o homem, que ela pode ser um objetivo na sua vida. A América era o lugar onde quem estava inserido no mundo feudal, europeu, preso pelas cadeias do Antigo Regime, que tinha que viver a vida inteira na posição em que nasceu, sai e vai construir um destino pelo seu trabalho e pela sua aventura.

RH Pelo visto, o senhor tem atração especial por personagens. Guilherme Pompeu, Diogo Feijó, Noel Rosa... No caso do barão de Mauá, o que ele tinha em comum com o José Bonifácio?
JC Acho que, como José Bonifácio, Mauá estava além do que se enxergava naquele momento, a primeira metade do século XIX. Ambos tinham confiança na potencialidade do Brasil. E ambos, de certa forma, vão contra crenças da época e atuais. A teoria vigente diz que aquele seria um período de recessão imensa, porque se situava entre o fim do ciclo do ouro e o do café. E Mauá conseguiu ficar muito rico exatamente nesse meio. Nunca investiu em café, como muitos outros fizeram, mas investiu em um monte de outros negócios importantes que estavam em volta. Foi colocar a estrada de ferro onde estavam os tropeiros, e não onde estavam as fazendas de café. Ele tinha uma percepção diferente do Brasil. Neste sentido, tinha alguma coisa a ver com o José Bonifácio.

RH Como surgiu seu interesse por José Bonifácio, especialmente?
JC Em 1999, fui organizar o volume do José Bonifácio de Andrada e Silva para a coleção Formadores do Brasil. Percebi muito depressa que não dava, realmente, para fazer um grande estudo sobre ele com a documentação disponível.

RH Por quê?
JC Porque a documentação sobre o José Bonifácio tem duas características. Primeira, ele escrevia de modo fragmentado. É muito bilhete, muita anotação, muito pequeno pensamento. Segunda, a obra se espalhou por um número muito grande de instituições no mundo inteiro. Ele passou 43 anos da vida no exterior, e foi deixando documentação em arquivos de Portugal, da França, e um pedaço ainda não pesquisado na Escandinávia. Então, o que acontece? Nenhum historiador, até hoje, teve condições de ver toda a obra de José Bonifácio, sequer para fazer uma biografia intelectual. Então decidi tentar reunir os documentos e torná-los de acesso público e gratuito.

RH Como está o projeto?
JC Já avançou muito. Conseguimos colocar num site 10 mil páginas de documentos. É o maior número de textos de José Bonifácio que se conseguiu reunir até hoje. É material suficiente para dezenas ou até centenas de teses, e um material quase original. Acho que nenhum biógrafo passado do José Bonifácio teve acesso a um conjunto deste porte. Ainda não é tudo, mas já é um caminho no sentido de permitir que a gente entenda a obra dele.

RH Isso significa que a obra de José Bonifácio ainda está por ser descoberta?
JC Exatamente. Oito anos depois de ter começado esse trabalho, percebo que o José Bonifácio é ainda uma pessoa a ser conhecida. Para juntar esta documentação que juntamos, só o pedaço que está no site, foram 50 pessoas trabalhando durante três anos. E não é um material que estivesse ao alcance de uma pessoa comum. A última biografia do José Bonifácio foi escrita por Otávio Tarquínio em 1943. Quer dizer, faz 64 anos. Não é por acaso que desde então nada se acrescentou a ela.

RH Onde está o material inédito mais importante?
JC O período português é, certamente, o mais importante, porque entre 1800 e 1819 José Bonifácio ocupou altos cargos no governo de Portugal e escrevia bastante. É bem provável, portanto, que exista em Portugal uma documentação inédita relevante. Em outros países também deve haver, pois ele era membro de dez ou doze sociedades científicas européias na época, com as quais se correspondia. Mas é preciso ir lá, levantar, localizar os arquivos dessas sociedades. A gente está pegando alguma coisa ainda na França.

RH Documentos do tempo do exílio...
JC É, do tempo do exílio; nunca foram publicados, estão no Arquivo Nacional da França. São documentos da polícia francesa – o dossiê José Bonifácio da polícia francesa, de 1823 a 1829. Tem direitinho o que ele fez, data a data; é uma cronologia clara, porque os documentos foram guardados em ordem. Melhora muito a pesquisa, porque corresponde a um período em que muito pouco se sabia sobre a vida de José Bonifácio.

RH O senhor acha que essas sociedades científicas guardam também uma documentação importante?
JC Ah, sim, é a face do José Bonifácio que os brasileiros desconhecem. Porque todo mundo vê o José Bonifácio Patriarca da Independência, mas essa parte dele como cientista é pouco conhecida. A figura de Patriarca da Independência corresponde a dois anos de vida de um homem que viveu entre 1763 a 1838 –, quer dizer, é muito pouco. Ele estava formado e preparado para aquele momento de um jeito que a gente ainda hoje, pelo que se sabe, não pode descrever. Eu, pelo menos, que estou há oito anos estudando José Bonifácio, não ousaria dizer que sei. Há muitos buracos na vida dele ainda a serem cobertos.

RH O que se pode dizer de concreto sobre ele a partir do que já foi levantado?
JC Que ele tinha uma formação renascentista, se a gente pode dizer assim. Tinha uma formação muito completa, em muitas áreas do conhecimento. A especialidade dele era Mineralogia, mas se formou em Filosofia, em Direito, e, além disso, entendia de política. Conheceu o mundo inteiro, esteve na Revolução Francesa, em 1789, assistiu àquilo ao vivo, conheceu os dirigentes, falou com eles. Tinha contatos políticos. A viagem dele não era só para estudar Mineralogia, mas para ser também um representante de Portugal. Conheceu as cortes, conheceu os dirigentes do mundo inteiro na época, além de conhecer as minas. Enfim, falava, traduzia grego, traduzia latim...


RH E sobre sua vida privada?
JC Não há novidade, quase tudo já está nas biografias: teve várias amantes e vários filhos fora do casamento; era um homem animado, alegre, dançarino, falastrão...

RH Dançarino?
JC É, dançava o lundu em casa.

RH Há documentos sobre isso?
JC Sobre a vida privada dele? Há. Bilhetes pedindo para um amigo ver se certo rapaz em Paris poderia mesmo ser seu filho, coisas desse gênero. Mas isso já é coisa conhecida. Acho que a menos conhecida é essa documentação francesa de que falei.

RH Qual é a recepção do site Obra Bonifácio?
JC Em menos de um ano já recebeu 42 mil visitantes, que é um número bastante expressivo. Destes, 23% são de fora do Brasil, principalmente de Portugal (17%), seguido dos Estados Unidos (entre 4% e 5%). Há interessados até no Japão.

RH Será que isso confirma que José Bonifácio era de fato um personagem cosmopolita?
JC Era uma grande figura cosmopolita. Se você compará-lo a qualquer um dos pais da pátria americanos, os estadistas que estavam naquele momento lidando com o problema de criar sistemas políticos a partir de princípios racionais do Iluminismo, era, sem dúvida, um dos mais preparados. Ele conhecia a fundo os principais pensadores iluministas franceses e conhecia bem os ingleses. Sabia das experiências que estavam sendo feitas no mundo inteiro quanto à aplicação dos princípios iluministas no governo, e ele fez isso aqui no Brasil. Teve esse papel central, de institucionalizar o Brasil. O que era a Independência para ele? Era fundar uma nação cujas leis seguiriam os princípios iluministas. Foi isso o que ele fez.

RH A experiência norte-americana não influenciou mais José Bonifácio do que aquilo que ele viu, por exemplo, na Europa?
JC Mais ou menos. José Bonifácio era antifederalista ao extremo, ao contrário dos americanos, que eram radicalmente federalistas no começo. Ele queria um Executivo funcionando com comando unitário sobre todo o território, sem fragmentação. Já os americanos achavam que quanto menos o Estado central estivesse próximo do cidadão, melhor era o regime.

RH Ele também queria a abolição, ao contrário dos americanos...
JC Não só a abolição, mas a transformação do escravo em cidadão, em cidadão probo, e o senhor, que era violento e ocioso, em trabalhador. Neste sentido, ele era muito mais avançado do que os americanos. E olhe que José Bonifácio chegou aqui muito mais como um burocrata que serviu ao rei, em Portugal, em cargos de direção, do que alguém que estava vivendo o que acontecia no Brasil. Mas ele, muito rapidamente, começou a adaptar as idéias políticas dentro dos princípios iluministas.

RH Aplicar esses princípios a uma ex-colônia dos trópicos devia ser uma tarefa difícil, não?
JC É, havia outras pessoas que liam os teóricos franceses ou americanos e tentavam copiar o possível para o Brasil. Mas com José Bonifácio foi diferente. Ele tinha um conhecimento bastante profundo dos costumes dos brasileiros, coisa rara na época. Ele achava que as instituições que ele estava criando tinham que ser adequadas aos costumes já existentes no Brasil. Tinha uma visão muito peculiar de quais eram os costumes fundamentais que poderiam sustentar um país independente. Basicamente, o que ele adotou naquela época foi que o Brasil era um país que tinha distâncias econômicas e sociais imensas por causa da escravidão.

RH Ele já apontava essas distâncias como um problema para a nação?
JC Sim, e um problema, aliás, que até hoje não foi resolvido. Na percepção de José Bonifácio, esta era uma característica central da sociedade brasileira, mas, ao mesmo tempo, ele achava que tinha um contraponto para isso, que era a facilidade com que pessoas de culturas e etnias diferentes mesclavam-se entre si. E considerava isso, a miscigenação, um instrumento fundamental para construir liberdade civil e igualdade social. As leis não deveriam proibir isso, deveriam incentivar, na medida do possíve,l esse costume, para que ele, progredindo, criasse uma nação democrática, com uma sociedade civil forte.

RH Mas isso tinha a ver com aquelas teorias de “embranquecimento”?
JC Não, não, ele falava de “amalgamento”. “É tempo de irmos nos amalgamando”, dizia. A idéia era misturar o diverso para formar uma liga única. Amalgamento era uma metáfora de mineralogista. José Bonifácio achava que o que resultaria na unidade nacional era exatamente a dissolução das idéias de raça, de diferenças culturais etc. Então, “serão igualmente brasileiros os adoradores do sol, os cristãos, índios e negros”. Não era, por sinal, o que os iluministas achavam. Ao contrário, Rousseau dizia que nos trópicos não podia haver democracia por causa dos negros, e coisas desse gênero. Os pais da pátria americanos montaram uma nação onde os negros livres não tinham direitos civis. José Bonifácio pensava diferente.

RH O senhor estava pensando em Thomas Jefferson, não?
JC Jefferson era traficante de escravos, tinha oito filhos com uma escrava que era mulata e sete deles foram escravos que ele só libertou quando ia morrer. Então você vê que o José Bonifácio era radicalmente mais avançado do que os pares dele – franceses, ingleses, portugueses etc.

RH Um pensamento mais original...
JC Muito mais original. E é difícil entender o fundamento disso num homem que, no momento em que fez a proposição, havia passado 37 anos no exterior. Em geral, o brasileiro que vai para a Europa volta cheio de preconceitos em relação ao Brasil.

RH O que muda no pensamento de José Bonifácio quando ele retorna ao Brasil, em 1819?
JC Há documentos pessoais que relatam a emoção dele de ver de novo o Brasil, de ver de novo a chuva em São Paulo. Ele descreve uma viagem que fez com o irmão até Araçoiaba da Serra, no interior paulista, para estudar Mineralogia. Voltou mais observador do que era peculiar no comportamento brasileiro. Interessante foi a forma como ele concebeu as instituições que poderiam sustentar a nova nação. Até as vésperas da Independência, ele era contra o Congresso e o Parlamento. Ele tinha visto a Revolução Francesa e considerava essas instituições elementos de turbulência. Depois mudou de idéia. Chegou rapidamente à conclusão de que o Brasil precisava de um Parlamento, coisa que ele nunca tinha achado boa em 50 anos de vida.

RH Foi por isso que ele se tornou também tão incompreensível para os seus pares políticos, como o Gonçalves Ledo?
JC É, era um personagem muito complexo. Embora pregasse a moderação e a negociação, não era a pessoa mais adequada para aplicar na prática as próprias idéias. Era muito orgulhoso e se meteu em muitas brigas políticas; não era tão tolerante quanto a gente imagina que deveria ser alguém que vem ao Parlamento e precisa escutar os outros para acomodar as coisas... Era muito firme nas suas posições. Mas é preciso lembrar também que havia um sentido de urgência muito grande naquele momento. Junto com a negociação política, ele tinha de comandar uma guerra contra Portugal: comprar armas, expulsar os portugueses que estavam em Salvador, organizar a expedição do Cochrane... Porque a Independência não foi uma coisa que veio de uma vez só. O 7 de setembro só valeu imediatamente para São Paulo, Rio e Minas Gerais.

RH Olhando sua carreira, parece que o senhor já faz jus à condição de historiador.
JC Sou apenas um escritor. Acho que conhecer História não é só um problema da academia, é um problema de todo cidadão. Ao contrário de outras histórias, como a história francesa, por exemplo, a História do Brasil ainda está por ser escrita no básico. É por isso que uma revista de divulgação como esta é fundamental. Só a pesquisa acadêmica não resolve a questão do conhecimento básico de História para a cidadania, para todo cidadão.




BIBLIOGRAFIA DO AUTOR

Noel Rosa, de costas para o mar. São Paulo: Brasiliense, 1981.

Mauá: empresário do Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Viagem pela História do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

A nação mercantilista: ensaio sobre o Brasil. São Paulo: Ed. 34, 1999.

Diogo Antonio Feijó. São Paulo: Ed. 34, 1999. (Coleção Formadores do Brasil)

José Bonifácio de Andrada e Silva. São Paulo: Ed. 34, 2002. (Coleção Formadores do Brasil)

O banqueiro do sertão. São Paulo: Mameluco, 2006.

A construção do samba. São Paulo: Mameluco, 2007.

Revista de História da Biblioteca Nacional

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