Ele percebeu cedo que jamais seria um artista brilhante. A falta de dom foi o seu “pecado original”, como define. Mas a paixão incondicional pelo patrimônio artístico o levaria a abraçá-lo de outras maneiras. Seria um dos desbravadores da História da Arte em Portugal, disciplina que começou a ganhar força no país a partir dos anos 1970. Apesar de dedicar-se principalmente ao estudo do passado, Vitor Serrão se define como “intérprete político comprometido com o futuro”.
Quando era adolescente, militou nos movimentos estudantis contra o salazarismo. O marxismo e o forte comprometimento ideológico se fariam notar em sua postura acadêmica ao longo dos anos. Remando contra a corrente dentro da academia, contrapôs-se aos que desprezavam uma parte do patrimônio histórico-artístico português considerado menos importante. Sempre inquieto, afirma que “não há temas de Histórias da Arte menores”: obras mortas e expressões consideradas periféricas merecem a mesma dedicação por parte do pesquisador.
De passagem por Ouro Preto para participar do IV Congresso Ibero-Americano sobre o Barroco, Serrão desfrutou as obras e monumentos da cidade histórica mineira e conversou com a Revista de História. Observando as peças de Aleijadinho e Athayde, lamentou a falta de entrelaçamento que existe entre o estudo da História da Arte no Brasil e em Portugal: “Como é que podemos estudar o barroco mineiro hoje ignorando a arte transmontana, da Beira Alta ou do Minho ou de Lisboa?”
Revista de História Como surgiu o seu interesse pela História e pela Arte?
Vitor Serrão Meu pai, Joaquim Veríssimo Serrão, era um importante historiador português, e foi, até pouco tempo atrás, mentor da Academia Portuguesa de História. Tive o privilégio de nascer no meio de livros, em contato com problemas da cultura. Meu amor pela arte tem a ver, creio, com uma falha, um pecado original, que é o de não saber criar arte. Gostaria muito de ter pintado, e tentei pintar; cheguei a aprender algum rudimento de técnica, mas não tinha qualidade mínima. Com oito, nove, dez anos, fui capaz de afinar o meu poder autocrítico e descobrir que não era aquele o caminho. Mas, por outro lado, haveria um patrimônio extraordinário em Portugal por estudar. Os livros que via na estante só apresentavam os grandes monumentos. O patrimônio que eu via nas igrejas e museus era ignorado e, por vezes, maltratado.
RH Dez anos? Tão cedo assim?
VS No final dos anos 60, ainda na escola, adolescente, o primeiro artigo que publiquei foi sobre uma tela que identifiquei e achei importante demais. Como é que ninguém tinha olhado para aquele quadro do Pedro Alexandrino que estava na Igreja da Misericórdia de Santarém? E como é que ele estava ignorado e abandonado em uma capela? A partir daí foi intervindo também a minha postura política de combate antifascista. Muito novo, em plena ditadura ainda, fui militante formado nos movimentos estudantis.
RH Sua leitura da Arte, nesse momento, estava infiltrada pelo marxismo.
VS E continua. Continuo a ver a obra de arte como um produto multicolor, ideologicamente comprometido, transcontextualmente veiculado para o futuro e que retrata e testemunha, de uma maneira global, os comportamentos, os conflitos, a vida real, no momento em que foi elaborada.
RH O marxismo sempre gosta de enquadrar as coisas...
VS Não era uma prioridade dentro do Partido Comunista português ao qual estive filiado, e até com algum destaque no setor intelectual, por muito tempo. Mas o que aprendi com Walter Benjamin e depois com a iconologia, que tem uma raiz de esquerda militante e operativa, contava muito. O papel da esquerda em Portugal antes, com a ditadura, e depois, com o regime democrático, foi importante para alavancar também a prática da disciplina; não havia História da Arte, e a que havia, francamente...
RH Falando dos anos 70, como era esse campo de conhecimento e de pesquisa antes e depois da Revolução dos Cravos?
VS A História da Arte que existia em Portugal era uma parente pobre da História, que não tinha autonomia. Os historiadores de arte do regime eram preocupados com um formalismo deformado e deformador da própria História. Tanto que, em Portugal, o que contava era o estilo manuelino, porque remetia ao momento da glória do império, e a época de Dom João V, que é a do ouro mineiro. Enfim, a perspectiva dominante era que não valia a pena estudar o patrimônio. Uma atitude de auto-menoridade que ainda existe. Ainda há muito a combater. Há muita gente em Portugal, e aqui também, que define certo patrimônio como menor. Há o Aleijadinho, claro. Pois há uma miríade de Aleijadinhos, no barroco e no rococó mineiro, que não foram estudados. Há um Ataíde, entre tantos que nunca foram estudados. Porque havia uma perspectiva de que não vale a pena, de que é menor, que não é digno.
RH Qual é a importância do historiador da Arte?
VS É uma função não de mera testemunha dos fatos e bens da memória, mas, fundamentalmente, de um intérprete político comprometido com o futuro. Isto é, um técnico dotado de utilidade pública. Ele pode ajudar a defender corretamente os bens patrimoniais arquitetônicos, ambientais, pictóricos, arquivísticos e outros. Ele tem o poder de corrigir uma barbaridade, um erro, pode intervir, pedagogicamente e objetivamente, para recuperar o que seria a memória do patrimônio comum, e de salvaguardar, explicando. O meu trabalho é um trabalho de operário de memórias.
RH Mas nem todos se interessam pela proteção do patrimônio, não?
VS Há historiadores de arte que colaboram na venda e na dilapidação de obras no mercado antiquário e em projetos de denegrimento do patrimônio. Há grandes interesses especulativos envolvidos e a falta de uma consciência de cidadania. Há historiadores de arte que vendem a obra de arte e a sua dignidade por prebendas e por migalhas; há ovelhas negras em cada disciplina.
RH O seu trabalho é sempre permeado por um forte comprometimento ideológico...
VS Preocupa-me estudar não só o autor, a matéria da obra, a temática, a iconografia, mas também o porquê da obra, o programa que ela tem, o que desejou comunicar, por que ela foi importante em um determinado momento e hoje é importante para quem a vê. A obra de arte tem uma memória. Uma obra da arte pode ir para o futuro e intervir, gerando sempre novos públicos. É inesgotável. O meu trabalho, o levantamento de um pintor, um arquiteto, nunca vai chegar ao fim, ainda bem. Haverá amanhã outros públicos, outros críticos, outro olhar. Eles vão naturalmente ampliar o meu, alterá-lo, modificá-lo. Portanto, o fascínio que a obra provoca é efetivamente transcontextual e inesgotável.
RH Qual é o poder da imagem?
VS O poder das imagens, como símbolos, é transcontextual e infinito. Ontem, hoje e amanhã a imagem incomoda. Ela é promovida, de fato, por estruturas de poder, contra-poder, com objetivos poderosos: afirmar a religião, o poder, a ritualidade, a magia, o amor, o desejo de imortalidade. Tem um papel tão ou mais forte do que mil tratados políticos retóricos porque cria memória, legitima pessoas, poderes, dinastias, lógicas, partidos, correntes de opinião. É tanto mais forte quanto mais a obra é inovadora, vanguardista e de qualidade estética. Por isso, podemos falar de obras de arte não como fato histórico, como meros documentos, mas objetos de fascínio que vão encantar, hoje e amanhã, outros públicos e novos olhares.
RH Poderia citar alguns casos significativos em que a imagem foi apropriada ou foi, de alguma forma, central para determinados processos?
VS O caso de Diogo Pereira, que na Restauração serviu à corte de D. João IV, e é um modelo de pintor político, famoso por retratar fomes, tragédias, caprichos, e que pintou muitas vezes a história da Guerra de Tróia. Descobri que aqueles quadros tinham a marca legitimadora da nova dinastia política que Dom João IV vinha inaugurando contra o domínio espanhol. Eram verdadeiros panfletos de resistência! A metodologia aplicada tornou os códigos de leitura dessas telas ininteligíveis para quem olhava para eles buscando recuperar a sua memória perdida. Ela volta a recuperar hoje tal prestígio justamente porque há o trabalho dos historiadores de arte que olham as obras não apenas como iconografia, mas no conjunto de problemas que reúnem.
Revista de História da Biblioteca Nacional
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