segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Bertha Becker - Um projeto para a Amazônia


Pela janela do apartamento da geógrafa Bertha Becker, na avenida Atlântica, zona sul da cidade do Rio de Janeiro, a imensidão azul do mar de Copacabana escorre pelo horizonte como um tapete sem fim. A vista descansa os olhos, mas se engana quem pensa que é com o olhar no mar que Bertha faz suas análises sobre a Amazônia. Há 30 anos, a pesquisadora percorre todos os estados da região, e é em campo que aprimora uma visão única do que está ocorrendo na floresta, do processo de ocupação e devastação.

Bertha é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutora honoris causa pela Universidade de Lyon III, na França, e integrante da Academia Brasileira de Ciências. Difere de muitos intelectuais, por ser incisiva em suas opiniões ao sugerir a economia como solução essencial para a preservação. Aos 72 anos, lançou recentemente, ao lado de Claudio Stenner, o livro Um Futuro para a Amazônia. "A proposta é abrir a cabeça dos jovens, despertar neles o interesse pela região com foco na ciência e na tecnologia", diz ela.

Como aliar preservação ambiental com qualidade de vida das populações locais e ainda desenvolver a Amazônia?
A região tem imensa riqueza de patrimônio natural, mas ela precisa ser tratada com cuidado. Por exemplo, o Brasil necessita da energia gerada por hidrelétricas, que é renovável e limpa, e o país possui enorme quantidade de água. Porém, as hidrelétricas não podem ser construídas como no passado. A Amazônia é uma região sofisticada em termos de natureza, e temos de cuidar dela com a mesma sofisticação. Assim, existem tecnologias avançadas para evitar que as usinas tenham desníveis de barragem muito altos, inundem áreas de grande extensão. Mas o principal, sobretudo, é que a Amazônia não pode mais ser vista como o almoxarifado de recursos naturais de outras regiões do Brasil. No projeto de hidrelétricas, deve haver um planejamento integrado com atividades que gerem benefícios locais A mesma coisa deve acontecer com relação às unidades de conservação, que devem ter manejo adequado para criar cadeias produtivas de cosméticos e fármacos que gerem emprego e renda para a população local. O potencial na Amazônia é fantástico, mas nunca é aproveitado.

Como aproveitar esse potencial de forma a ser transformado em desenvolvimento econômico local?
A Amazônia é sempre utilizada para extrair recursos e manda-los para fora, como se fosse um almoxarifado sem fim. Nada sobra para a região. A posição que defendo é que se implante outro modelo de exploração do patrimônio natural, uma nova perspectiva que tenha como base a ciência e a tecnologia. O que sempre ocorreu historicamente foi a exportação de recursos naturais, sem agregação de valor. Primeiro, para o mercado europeu. Depois, para o americano, como o que houve com a borracha. Isso não cabe mais no século 21. Mas o problema é que a região ainda vive a forma de produção do século 19, em que companhias de mineração queimam a mata para fazer carvão. Precisamos de empresas modernas, de tecnologias avançadas e de grandes investimentos. Mas sempre articulados com a questão ambiental e, sobretudo, social. Existem mais de 20 milhões de pessoas que moram lá e vivem mal, porque os recursos são sempre explorados de forma a mandar as riquezas para fora da região onde é produzida.

É um desafio atribuir valor aos recursos naturais e ao mesmo tempo preservá-los. Como isso é possível?
Existem múltiplas formas de agregar valor aos recursos naturais. O mundo já está mudando, no sentido de sair da "indústria fordista" - megaindústria, megafábricas - para outras mais flexíveis, que utilizem recursos de forma mais eficiente, sem desperdício. Esse é o verdadeiro desenvolvimento sustentável - e não deixar a Amazônia fechada, sem mobilizar seus recursos, como muita gente defende. A questão é moldar novo modelo de desenvolvimento em que ciência e tecnologia definam modos adequados de uso, sem destruição, com distribuição equitativa da riqueza gerada no próprio local.

Como a produção pode contribuir para a preservação?
A Amazônia não entrou na fase fordista de desenvolvimento que afetou São Paulo e o Sudeste do Brasil. Ela ficou à margem desse processo, foi atingida pelas beiradas, pela expansão da fronteira. Podemos, então, implantar uma indústria madeireira moderna, que não explore a madeira apenas para queimá-la ou exporte toras em estado bruto, sem valor agregado. É possível organizar uma indústria decente? Sim, e madeira é o recurso mais ostensivo da floresta. Outro ponto é a biodiversidade. O Brasil tem problema sério de saúde pública, e o potencial em biodiversidade é imenso. A floresta possui muitas espécies que podem ser utilizadas para fármacos. No momento servem para produção de cosméticos, óleos essenciais, xampu. Nós temos um mercado doméstico de saúde pública que é carente. Outro potencial é a pesca. A riqueza de peixes é inigualável, e possuem um sabor maravilhoso. Mas não existe cadeia produtiva organizada de pesca, apenas iniciativas embrionárias e dispersas.

De que forma é possível organizar a cadeia produtiva para que os produtos da floresta cheguem aos centros urbanos?
A Amazônia tem poucas cadeias produtivas organizadas. O que se produz efetivamente lá é uma quantidade mínima. O nosso modelo de desenvolvimento sempre foi monopolista - na riqueza, na produção e no acesso ao mercado. A circulação fluvial não é organizada com o objetivo de desenvolver a região. A cadeia produtiva sempre foi voltada à exportação. Nunca se deu atenção para beneficiar o povo. É preciso organizar a cadeia de produção desde o âmago da floresta, envolvendo as populações locais, até os setores que oferecem os serviços. Os empresários se interessam muito mais em exportar o produto, sem agregar valor ao local, e isso nunca gerou desenvolvimento. Organizar a cadeia produtiva é tarefa que exige serviços especializados e indústria. Daí vem a minha segunda tese: há que se fortalecer as cidades da Amazônia, porque é lá que se concentram serviços, indústria e comércio. O município tem de ser o nó da cadeia produtiva em que os produtos da floresta são processados e comercializados. Isso não apenas em Manaus e Belém mas em cidades médias. Os serviços são um dos fatores-chave do desenvolvimento da Amazônia.

Quais tipos de serviço podem ser fomentados?
Aqueles que atendam às necessidades básicas de educação e saúde e sirvam para processar a produção. E também têm de existir serviços avançados especializados, de alto valor agregado - jurídico, gestão, produção de conhecimento, contabilidade, marketing. Na Amazônia, eles têm de dar conta do grande potencial que é o capital natural: os serviços ambientais. Antes se valorizava apenas o estoque de recursos dos ecossistemas: ferro, madeira. Hoje já se atribui valor às funções da natureza. Essa é uma mudança qualitativa: a natureza é transformada em capital natural e oferece múltiplos meios de produção. Um exemplo é o mercado de carbono, que está a pleno vapor e que é essencialmente de serviço ambiental. Temos novo e imenso potencial na transformação da natureza em capital natural. Mas é preciso ter ciência e tecnologia.

Como fazer com que esses serviços sejam prestados nas próprias cidades amazônicas e não no exterior?
Eu sugiro transformar Manaus numa cidade mundial, com base na organização da prestação de serviços ambientais. Isso é uma bomba. Uma hipótese e sugestão únicas. Mas, para tanto, é preciso rechear as cidades na Amazônia de conhecimento científico e tecnológico ligados ao meio ambiente, como advogados que entendam da questão ambiental. Eu proponho uma bolsa de valores em Manaus para negociar o carbono de serviço ambiental. Por que tem de ser em Chicago ou na Europa? Essas informações fazem parte da minha pesquisa atual, e que estou encaminhando ao governo federal.

Problemas básicos, como o caos fundiário, ainda não foram resolvidos. Doar títulos pode ser uma solução?
Eu acho que é preciso encarar de frente esse problema de falta de títulos de terra e resolver a questão fundiária de uma vez por todas. Vivemos numa sociedade capitalista; se não existir defesa da propriedade, sempre ficará a sensação de que é possível avançar sobre terras alheias. Mas não acho que as áreas desmatadas devam ter a mesma regulamentação fundiária que os locais de floresta densa. Nesse caso, penso que não se deveria simplesmente fornecer títulos definitivos de terra, sem custo, para quem tem a posse. O melhor a fazer seria um sistema de concessões públicas a investimentos e projetos que atuem nessas áreas preservadas e contribuam para sua sustentabilidade.

A Amazônia é uma terra sem lei? Falta a presença do Estado?
Esse é um tema interessante, porque não se trata propriamente de ausência, e sim de omissão. Em alguns momentos o Estado é presente, mas omisso porque lhe interessa. É um jogo geopolítico de poder, uma ambiguidade. Faço muita pesquisa de campo e escuto a população reclamar da falta do Estado. Mas isso não significa dizer que ele está totalmente ausente. Em algumas áreas o Estado não está omisso, mas é tolerante e deixa passar situações que não deveria permitir. Já em outras ele está presente como dono das terras dos antigos territórios que se transformaram em governos estaduais, como Tocantins e Amapá.

A senhora sempre vai a campo para suas pesquisas. O que tem observado com base nessa visão interna da região?
Sempre chamei a Amazônia de fronteira. Não apenas como limite territorial mas no sentido de ser fronteira com os mais novos acontecimentos globais. Lá é possível observar as tendências mais recentes em curso no mundo. As grandes transformações mundiais são mais fáceis de ser percebidas na Amazônia do que no Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo, em que a complexidade da vida social, econômica e política é tão grande, entremeada de tantas informações, que é difícil captar algum rumo novo. Novidades que estão começando a acontecer no mundo podem ser sentidas logo lá. O local é ponta-de-lança de ideias inovadoras no que diz respeito às mudanças que o sistema capitalista está tomando, às tendências da economia mundial.

Além da diversidade ecológica, a Amazônia possui igualmente variedade de culturas tradicionais. Como é possível preservar essas culturas amazônicas no mundo contemporâneo?
É um enorme dilema. Temos a obrigação de preservar as culturas da Amazônia, o que não significa deixá-las isoladas. No caso dos índios, que conheço melhor, é preciso estabelecer um programa de atividades que permita obtenção de renda às comunidades para que elas possam preservar sua cultura. Sem formas de manter-se economicamente, nenhuma cultura sobreviverá.
National Geographic Edição 107

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Documento


Banquete na casa de Levi, óleo sobre tela, Paolo Caliari Veronese, 1573, Galleria dell 'Accademia, Veneza
Veneza, Sábado, 18 de julho de 1573
O senhor Paolo Caliari Veronese, morador da paróquia de São Samuel, foi convocado ao Santo Ofício, diante do Tribunal Sagrado, e foi perguntado o seu nome. Ele respondeu como escrito acima.

Foi perguntada sua profissão.
Veronese: Eu faço pinturas.

Tribunal: Você sabe a razão da sua convocação
Veronese: Não, meus senhores.

Tribunal: Você pode imaginar?
Veronese: Sim, claro que sim.

Tribunal: Diga-nos porque você acha que foi chamado.
Veronese: Pela razão que foi contada para mim pelo reverendo, cujo nome eu não sei, que me disse ter estado aqui, e que os ilustríssimos senhores tinham encarregado-o de fazer me substituir a figura do cachorro pela de Maria Madalena. E eu respondi a ele que faria espontaneamente isso, ou qualquer outra coisa para melhorar a pintura, mas que eu não achava que a figura de Madalena ficaria bem ali, por várias razões que eu posso argumentar em qualquer oportunidade.

Tribunal: A que pintura se refere?
Veronese: A da última ceia que Jesus Cristo fez com seus apóstolos na casa de Simão.

Tribunal: E onde está essa pintura?
Veronese: No refeitório do convento de São Paulo e São João Batista

Tribunal: Nessa ceia você pintou outros comensais?
Veronese: Sim, meus senhores

Tribunal: Diga quantos e o que cada um está fazendo
Veronese: Primeiro, tem o senhor da casa, Simão. Depois, abaixo dessa figura, eu pintei um mordomo, que veio ver como as coisas estavam se desenrolando na mesa. Há vários outros, que, desde que coloquei o quadro, não me lembro.

Tribunal: Você pintou outras ceias além dessa?
Veronese: Sim, meus senhores

Tribunal: Quantas, e aonde?
Veronese: Eu fiz uma em Verona para o Reverendo de São Nazaro, que está no seu refeitório.

Ele disse: Eu fiz uma no refeitório dos sacerdotes em São Jorge, aqui em Veneza.

A ele foi dito: Isso não é uma ceia. Você está sendo perguntado sobre a Santa Ceia.
Veronese: Eu fiz uma no refeitório dos Servos de Maria em Veneza, outra no refeitório da São Sebastião, também aqui. E eu fiz uma em Pádua para os Pais de Madalena. Não me lembro de ter feito outras.

Tribunal: Nessa ceia que você pintou em São João Batista e São Paulo, qual o significado da figura do homem com o nariz sangrando?
Veronese: Eu o fiz como um servo, cujo nariz, por conta de algum acidente, estaria sangrando.

Tribunal: Qual o sentido desses homens armados, vestido a moda alemã, cada um com uma alabarda (uma lança germânica)?
Veronese: Aqui eu precisaria dizer algumas palavras.

Tribunal: Diga
Veronese: Nós, pintores temos a mesma liberdade dos poetas e dos loucos. E eu pintei esses dois alabardeiros, um bebendo e outro comendo perto da escada, que estão ali para talvez executarem alguma ordem, porque parecia me apropriado que o mestre da casa, que era rico e poderoso, de acordo com o que eu soube, tivesse tais servos.

Tribunal: Esse sujeito com um papagaio no seu punho, qual é o propósito dele na tela?
Veronese: Ornamento, como é comum se fazer.

Tribunal: Quem está sentado ao lado do Nosso Senhor na mesa?
Veronese: Os doze apóstolos

Tribunal: O que São Pedro está fazendo, quem é o primeiro?
Veronese: Ele está cortando o carneiro, para passar ao outro no fim da mesa.

Tribunal: O que o outro está fazendo?
Veronese: Ele segura um prato para receber o que São Pedro está lhe dando.

Tribunal: Diga-me o que o seguinte está fazendo?
Veronese: Ele tem um palito, com o qual está limpando seus dentes.

Tribunal: Quem você realmente acha que estava presente na Santa Ceia?
Veronese: Eu acho que Cristo e seus apóstolos estavam presentes, mas se em uma pintura eu tenho espaços vazios, eu os adorno com figuras da minha imaginação.

Tribunal: Alguém encomendou que pintasse alemães, comediantes e tais coisas no quadro?
Veronese: Não, meu senhor. Mas eu fui encarregado de adornar a pintura como achasse melhor, e para mim ela é grande e tem espaço para muitas figuras.

Ele foi questionado pelos ornamentos que ele, o pintor, tem o hábito de introduzir em seus murais e pinturas, seja na maneira de fazê-las apropriadas ao assunto das figuras principais, ou se ele as pinta pelo seu próprio prazer, sem discrição ou critério.
Veronese: Eu faço minhas pinturas considerando o que é adequado, e como minha mente as compreende.

Ele foi perguntado se achava apropriado que na Santa Ceia de Nosso Senhor houvesse bêbados, alemães, anões e semelhantes obscenidades.
Veronese: Não, meus senhores.

Tribunal: Você não sabe que na Alemanha e em outros lugares infestados de heresia, há o costume de usar pinturas estranhas e obscenas para zombar, abusar e ridicularizar a Santa Igreja Católica, com o objetivo de ensinar falsas doutrinas aos analfabetos e ignorantes?
Veronese: Sim, meus senhores. Isto é malvado. Mas eu devo repetir o que disse antes, que eu sou obrigado a seguir o que meus predecessores fizeram.

Tribunal: O que seus predecessores fizeram? Eles algumas vez fizeram algo assim?
Veronese: Michelangelo, em Roma, na Capela Pontifícia. Ele pintou Nosso Senhor Jesus Cristo, sua Santa mãe, São João, São Pedro, a corte do Paraíso, todos nus, da Virgem Maria para abaixo, com pouca reverência.

Tribunal: Você sabe que ele estava pintando o Juízo Final, no qual vestimentas ou tais coisas não devem existir, não há necessidade de se pintar roupas, e nesses quadros não há nada que não seja espiritual, como cachorros, armas, ou tais bazófias? E você acha, citando esse ou qualquer outro exemplo, que agiu corretamente fazendo esta pintura assim? E você pretende se defender dizendo que esta pintura é correta e apropriada?
Veronese: Meus ilustres senhores, não. Eu não pretendo me defender, mas eu pensei que estava agindo corretamente. E eu não considerei muitas coisas, pensando que eu não estava fazendo nada irregular, ainda mais que os comediantes estão fora do recinto onde está Nosso Senhor.

Depois disso, os senhores decidiram que o acima citado Sr. Paolo deveria ser requisitado e obrigado a corrigir e emendar a pintura em questão, arcando pelos custos disso, em três meses, a contar do dia da sentença, sob as penas que o Sagrado Tribunal pode impor.
Revista História Viva

Depois das reformas neoliberais


Por Brunna Rosa - Novembro de 2008
Assim como em outras áreas de responsabilidade do poder público, a educação passou por reformas instauradas sob “recomendações” de organismos multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (Bird), em toda a América Latina nos anos 90. Os impactos dessas medidas em quatro dos países nos quais foram aplicadas – Argentina, Brasil, Chile e México – é o objeto de estudo de duas pesquisadoras, uma da área da Educação e outra da área de História.
Nora Rut Krawczyk e Vera Lucia Vieira publicaram o livro A Reforma Educacional na América Latina. Uma perspectiva histórico-sociológica (editora Xamã), para avaliar as especificidades e impactos da reforma educacional no período.
Em entrevista à Fórum, Nora Rut Krawczyk sustenta que as “recomendações” concretizaram idéias que já vinham tomando corpo desde os períodos de ditaduras militares, avançando pela desregulamentação do Estado e de suas funções perante a educação.

Fórum – O que há de comum nas reformas educacionais dos anos 90 na América Latina?
Nora Rut Krawczyk – Existem várias análises sobre o tema, mas não existia uma a respeito das especificidades das reformas educacionais em cada país latino-americano. Foi isso que motivou nossa pesquisa. Partimos do princípio de que a reforma educacional nesta região teve um processo de indução externa de organismos internacionais, em que estava embutida a idéia de que tanto os problemas quanto as soluções – e, portanto, as políticas – deveriam ser comuns e, mais que isso, homogêneas em toda a região. De fato, a reforma foi conservadora, mas as diretrizes não se transformaram em uma agenda política tal como previsto pelos organismos internacionais. Isso não se concretizou devido ao sentido histórico dos processos de reforma e às mudanças do papel do Estado em cada um deles.
[Para o estudo,] escolhemos Argentina, Chile, Brasil e México devido a sua centralidade na América Latina. Os pontos em comum são a perda do sentido da universalidade e gratuidade da educação pública, assim como da exclusividade do Estado como provedor. Porém, o redimensionamento das funções públicas é distinto em cada um dos países. Além disso, se valoriza a gestão privada em detrimento da gestão pública e ganha força a idéia de que a educação tem um poder transformador sem necessidade de outras medidas estruturais. Por fim, se estabelece a lógica de formulação de política a partir das conciliações de poucos setores da sociedade.
A principal alteração é a descentralização. No caso da Argentina, isso significou completar a provincialização, a transferência [da responsabilidade] iniciada no governo militar a todas as províncias. No caso do México, ainda que também tenha ocorrido, esse processo se deu em conjunto com um forte corporativismo vinculado a uma forma histórica de relacionamento entre Estado e sociedade mexicana.
No caso do Chile, um país unitário e não-federalista, descentralização é, de fato, a privatização subsidiada pelo Estado, iniciada na ditadura de [Augusto] Pinochet. Quanto ao Brasil, acontece o processo de municipalização que segue o modo como o sistema educacional foi conceituado historicamente, salvo na ditadura militar.

Fórum – Como essas especificidades determinaram as reformas educacionais nos países da América Latina?
Krawczyk – Gerir a educação é distribuir responsabilidade a diferentes setores da sociedade e do Estado. Então, as diferenças de concepção de espaço público interferem na concretização da reforma.
Na regulamentação propriamente dita também há diferenças. Por exemplo, na Argentina, ao passar a responsabilidade para as províncias, o financiamento passa a ser clientelista e partidário, dependente da relação entre o governo central e o da província. No caso do Brasil, há uma forte regulamentação por meio do Fundef [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério], em que se define claramente o que cada esfera de poder tem de destinar à educação. São formas muito diferentes.
A explicação para isso é o modo como se constituíram os embates políticos e econômicos na lógica de federalização de cada país. Outra questão é o discurso que justifica a abertura da educação para setores privados. Passa-se a dar responsabilidades para o mercado, para a família. O discurso oficial está vinculado às características próprias do setor privado em cada país. No caso do Brasil, o discurso foi principalmente o da responsabilidade social sobre o bem público. No Chile, era “a educação e a escola é uma empresa como qualquer outra e, portanto, o setor privado tem obrigações sobre ela”. A privatização é muito mais forte e aguda. Discursos distintos também produzem diferentes reformas educacionais. Em comum há a retirada de responsabilidade do Estado. Mas quanto menor a presença histórica do setor público, mais fácil foi convencer a sociedade dessa “corresponsabilidade”.

Fórum – No decorrer da reforma educacional, como a figura do professor foi atingida?
Krawczyk – A reforma educacional tem como centro as mudanças no interior da escola. Uma das características comuns a todos os países é a burocratização do cotidiano de cada escola, que recebe funções antes concentradas [nas secretarias de governo]. Isso significa um aumento do trabalho administrativo e da gestão financeira para os professores e para a equipe de direção. Esse aumento da responsabilidade significa que os professores têm de procurar outras fontes de recursos além do financiamento público.
Tanto para essa finalidade quanto para o financiamento público não-obrigatório, a distribuição é feita a partir de projetos que cada unidade elabora. É preciso gerar projetos sistematicamente para ter acesso a financiamento, isso produz o “ativismo institucional”, além da forte relação de competitividade entre as escolas.
Outra via de aumento de responsabilidade dos docentes são as avaliações externas. O professor passa a ser responsável pelo aprendizado dos alunos e pela melhoria dos indicadores nos rankings de avaliação. Além disso, há uma forte desvalorização da carreira do funcionalismo público, por meio da mídia e dos governos. Há uma insistência em atribuir os problemas do rendimento educacional à necessidade de desregulamentação da carreira, para incorporar o salário por desempenho, contratos sem via de concurso público etc.
E, de modo geral, não houve muitas mudanças provocadas por pressão dos docentes. Uma greve de professores nos anos 90 na Argentina foi chamada de “La carpa blanca” [A barraca branca], pois foram montadas barracas pelos professores do país inteiro em frente ao palácio do governo, na Praça de Maio. A questão central era o salário e a sociedade se solidarizou muito. Essa manifestação aconteceu porque a descentralização fragmentou a negociação salarial. Desde a década de 80 os docentes foram tentando reverter essa situação com mobilizações nacionais para discussão do Piso Salarial, que só foi instituído no Brasil, não existe nos outros países da América Latina.


Fórum – Com a ascensão de líderes mais à esquerda ao poder, como a senhora avalia a educação na América Latina?
Krawczyk – A reforma educacional, ao menos nesses quatro países, produziu mudanças estruturais importantes, vinculadas à perda do sentido do Estado como único provedor da educação. O que não estava claro era qual seria o papel do Estado.
Esse é o ponto de partida dos governos que você citou. Não desconstroem o que ocorreu na década de 90, mas tentam “regulamentar a desregulamentação”. Em outras palavras, tentam deixar claro como vão ser distribuídas as responsabilidades de cada instância em um novo modelo de gestão pública da educação. É uma forma diferente do que se propunha nas décadas de 80 e de 90, mas com resquícios fortes.
No caso do Chile, por exemplo, a lógica de financiamento é totalmente distinta. Os docentes têm seus salários baseados em desempenho desde a época de Pinochet. Ainda que existam políticas comuns a todos os professores, o sistema está privatizado e os salários sofrem diferenças devido às instituições escolares. A tensão de setores que querem desregulamentação maior é muito forte.
No México, desde a década de 90, o PAN [Partido Acción Nacional] se tornou hegemônico, porém a reforma demora a se consolidar justamente pela resistência dos docentes. Então [Vicente] Fox assume o governo em 2001 e de fato se dá a reforma neoliberal.
No Brasil, o que faz o governo Lula, principalmente na segunda gestão, com o [Fernando] Haddad, é reformular algumas funções da União, vinculadas a garantir organicidade ao conjunto da educação. Tenta-se construir novas funções, mas nada no sentido de voltar à idéia do Estado como o único provedor de recursos.

Fórum – Isso quer dizer que a idéia de Estado como único responsável pela educação é ultrapassada?
Krawczyk – Não, pelo contrário. O sistema capitalista tem como uma de suas características estruturais a desigualdade e só o Estado pode impedir que ela cresça sob o ritmo dos interesses do capital. O melhor exemplo é o que está acontecendo agora com a crise financeira e a atuação do Estado, o único ator social que pode se contrapor, por mais que esteja permeado pela própria lógica do capitalismo. Mas é apenas nesse âmbito que se dá a luta por projetos distintos, porque no mercado não há espaço de disputa de projetos sociais distintos. Quando se reduz o espaço público, se diminui a possibilidade da disputa política, social e econômica. Uma reformulação de política nesse contexto é resultado da negociação e conciliação de alguns setores da sociedade, porque é muito mais fácil negociar com um segmento do que com a sociedade como um todo. E negociar quer dizer lutar por espaços de poder.
Revista Forum

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Operário de Memórias - Vitor Serrão


Ele percebeu cedo que jamais seria um artista brilhante. A falta de dom foi o seu “pecado original”, como define. Mas a paixão incondicional pelo patrimônio artístico o levaria a abraçá-lo de outras maneiras. Seria um dos desbravadores da História da Arte em Portugal, disciplina que começou a ganhar força no país a partir dos anos 1970. Apesar de dedicar-se principalmente ao estudo do passado, Vitor Serrão se define como “intérprete político comprometido com o futuro”.

Quando era adolescente, militou nos movimentos estudantis contra o salazarismo. O marxismo e o forte comprometimento ideológico se fariam notar em sua postura acadêmica ao longo dos anos. Remando contra a corrente dentro da academia, contrapôs-se aos que desprezavam uma parte do patrimônio histórico-artístico português considerado menos importante. Sempre inquieto, afirma que “não há temas de Histórias da Arte menores”: obras mortas e expressões consideradas periféricas merecem a mesma dedicação por parte do pesquisador.

De passagem por Ouro Preto para participar do IV Congresso Ibero-Americano sobre o Barroco, Serrão desfrutou as obras e monumentos da cidade histórica mineira e conversou com a Revista de História. Observando as peças de Aleijadinho e Athayde, lamentou a falta de entrelaçamento que existe entre o estudo da História da Arte no Brasil e em Portugal: “Como é que podemos estudar o barroco mineiro hoje ignorando a arte transmontana, da Beira Alta ou do Minho ou de Lisboa?”

Revista de História Como surgiu o seu interesse pela História e pela Arte?

Vitor Serrão Meu pai, Joaquim Veríssimo Serrão, era um importante historiador português, e foi, até pouco tempo atrás, mentor da Academia Portuguesa de História. Tive o privilégio de nascer no meio de livros, em contato com problemas da cultura. Meu amor pela arte tem a ver, creio, com uma falha, um pecado original, que é o de não saber criar arte. Gostaria muito de ter pintado, e tentei pintar; cheguei a aprender algum rudimento de técnica, mas não tinha qualidade mínima. Com oito, nove, dez anos, fui capaz de afinar o meu poder autocrítico e descobrir que não era aquele o caminho. Mas, por outro lado, haveria um patrimônio extraordinário em Portugal por estudar. Os livros que via na estante só apresentavam os grandes monumentos. O patrimônio que eu via nas igrejas e museus era ignorado e, por vezes, maltratado.

RH Dez anos? Tão cedo assim?

VS No final dos anos 60, ainda na escola, adolescente, o primeiro artigo que publiquei foi sobre uma tela que identifiquei e achei importante demais. Como é que ninguém tinha olhado para aquele quadro do Pedro Alexandrino que estava na Igreja da Misericórdia de Santarém? E como é que ele estava ignorado e abandonado em uma capela? A partir daí foi intervindo também a minha postura política de combate antifascista. Muito novo, em plena ditadura ainda, fui militante formado nos movimentos estudantis.

RH Sua leitura da Arte, nesse momento, estava infiltrada pelo marxismo.

VS E continua. Continuo a ver a obra de arte como um produto multicolor, ideologicamente comprometido, transcontextualmente veiculado para o futuro e que retrata e testemunha, de uma maneira global, os comportamentos, os conflitos, a vida real, no momento em que foi elaborada.

RH O marxismo sempre gosta de enquadrar as coisas...

VS Não era uma prioridade dentro do Partido Comunista português ao qual estive filiado, e até com algum destaque no setor intelectual, por muito tempo. Mas o que aprendi com Walter Benjamin e depois com a iconologia, que tem uma raiz de esquerda militante e operativa, contava muito. O papel da esquerda em Portugal antes, com a ditadura, e depois, com o regime democrático, foi importante para alavancar também a prática da disciplina; não havia História da Arte, e a que havia, francamente...

RH Falando dos anos 70, como era esse campo de conhecimento e de pesquisa antes e depois da Revolução dos Cravos?

VS A História da Arte que existia em Portugal era uma parente pobre da História, que não tinha autonomia. Os historiadores de arte do regime eram preocupados com um formalismo deformado e deformador da própria História. Tanto que, em Portugal, o que contava era o estilo manuelino, porque remetia ao momento da glória do império, e a época de Dom João V, que é a do ouro mineiro. Enfim, a perspectiva dominante era que não valia a pena estudar o patrimônio. Uma atitude de auto-menoridade que ainda existe. Ainda há muito a combater. Há muita gente em Portugal, e aqui também, que define certo patrimônio como menor. Há o Aleijadinho, claro. Pois há uma miríade de Aleijadinhos, no barroco e no rococó mineiro, que não foram estudados. Há um Ataíde, entre tantos que nunca foram estudados. Porque havia uma perspectiva de que não vale a pena, de que é menor, que não é digno.

RH Qual é a importância do historiador da Arte?

VS É uma função não de mera testemunha dos fatos e bens da memória, mas, fundamentalmente, de um intérprete político comprometido com o futuro. Isto é, um técnico dotado de utilidade pública. Ele pode ajudar a defender corretamente os bens patrimoniais arquitetônicos, ambientais, pictóricos, arquivísticos e outros. Ele tem o poder de corrigir uma barbaridade, um erro, pode intervir, pedagogicamente e objetivamente, para recuperar o que seria a memória do patrimônio comum, e de salvaguardar, explicando. O meu trabalho é um trabalho de operário de memórias.

RH Mas nem todos se interessam pela proteção do patrimônio, não?

VS Há historiadores de arte que colaboram na venda e na dilapidação de obras no mercado antiquário e em projetos de denegrimento do patrimônio. Há grandes interesses especulativos envolvidos e a falta de uma consciência de cidadania. Há historiadores de arte que vendem a obra de arte e a sua dignidade por prebendas e por migalhas; há ovelhas negras em cada disciplina.

RH O seu trabalho é sempre permeado por um forte comprometimento ideológico...

VS Preocupa-me estudar não só o autor, a matéria da obra, a temática, a iconografia, mas também o porquê da obra, o programa que ela tem, o que desejou comunicar, por que ela foi importante em um determinado momento e hoje é importante para quem a vê. A obra de arte tem uma memória. Uma obra da arte pode ir para o futuro e intervir, gerando sempre novos públicos. É inesgotável. O meu trabalho, o levantamento de um pintor, um arquiteto, nunca vai chegar ao fim, ainda bem. Haverá amanhã outros públicos, outros críticos, outro olhar. Eles vão naturalmente ampliar o meu, alterá-lo, modificá-lo. Portanto, o fascínio que a obra provoca é efetivamente transcontextual e inesgotável.

RH Qual é o poder da imagem?

VS O poder das imagens, como símbolos, é transcontextual e infinito. Ontem, hoje e amanhã a imagem incomoda. Ela é promovida, de fato, por estruturas de poder, contra-poder, com objetivos poderosos: afirmar a religião, o poder, a ritualidade, a magia, o amor, o desejo de imortalidade. Tem um papel tão ou mais forte do que mil tratados políticos retóricos porque cria memória, legitima pessoas, poderes, dinastias, lógicas, partidos, correntes de opinião. É tanto mais forte quanto mais a obra é inovadora, vanguardista e de qualidade estética. Por isso, podemos falar de obras de arte não como fato histórico, como meros documentos, mas objetos de fascínio que vão encantar, hoje e amanhã, outros públicos e novos olhares.

RH Poderia citar alguns casos significativos em que a imagem foi apropriada ou foi, de alguma forma, central para determinados processos?

VS O caso de Diogo Pereira, que na Restauração serviu à corte de D. João IV, e é um modelo de pintor político, famoso por retratar fomes, tragédias, caprichos, e que pintou muitas vezes a história da Guerra de Tróia. Descobri que aqueles quadros tinham a marca legitimadora da nova dinastia política que Dom João IV vinha inaugurando contra o domínio espanhol. Eram verdadeiros panfletos de resistência! A metodologia aplicada tornou os códigos de leitura dessas telas ininteligíveis para quem olhava para eles buscando recuperar a sua memória perdida. Ela volta a recuperar hoje tal prestígio justamente porque há o trabalho dos historiadores de arte que olham as obras não apenas como iconografia, mas no conjunto de problemas que reúnem.

Revista de História da Biblioteca Nacional

O herói desconhecido - Jorge Caldeira


01/09/2007

REVISTA DE HISTÓRIA O senhor, que trabalhava como jornalista, escreveu um livro de enorme sucesso sobre a história do barão de Mauá. Os historiadores ficaram com muito ciúme?
JORGE CALDEIRA Acho que meu livro sobre o Mauá causou um certo susto na época. Agora que os historiadores fazem biografias, não causa mais; acho que o que escrevo tem sido bem aproveitado por todos, tem sido bom para os dois lados. Sempre estive no meio. Embora tenha formação acadêmica, fui treinado como escritor, produzindo todo dia para públicos amplos, durante 25 anos.

RH Veio do berço esse interesse?
JC Desde pequeno. Minha mãe era formada em História, embora não lecionasse. Nos anos 1970, quando entrei para a Faculdade de Ciências Sociais, comecei a trabalhar como pesquisador para aquelas enciclopédias da Editora Abril. Fiquei três anos fazendo pesquisa sobre a história da MPB, biografias de compositores que saíam a cada quinzena. Essa foi minha área inicial de estudos. Depois da minha graduação, ainda continuei trabalhando em enciclopédias por um tempo. Em seguida, fiz pós-graduação em Sociologia da Comunicação e um mestrado sobre a formação do samba, publicado em 2007 no livro A Construção do Samba.

RH E sua ligação com tecnologia?
JC É, comecei a lidar com tecnologia em 1995. Fiz um CD-Rom de História do Brasil, “Viagem pela História do Brasil”, um CD-Rom interativo, o primeiro do gênero lançado no Brasil. A partir daí, fundei uma empresa que se dedica à pesquisa de História, em profundidade, e ao desenvolvimento de tecnologia eletrônica para acesso à documentação histórica, ou seja, o uso intensivo de ferramentas eletrônicas para estudo e processamento de documentação histórica.

RH Qual é a obra mais recente?
JC Bom, eu acabei de escrever um livro chamado O banqueiro do sertão. É a biografia de um padre e banqueiro chamado Guilherme Pompeu de Almeida, que viveu entre 1656 e 1713 numa cidade chamada Araçariguama, então em pleno sertão de São Paulo. Ele acumulou uma fortuna inicial a partir de uma siderúrgica herdada do pai. Depois juntou isso com a atividade bancária e formou uma grande fortuna. Quando morreu, deixou a maior herança que a ordem dos jesuítas recebeu em todo o Império português. O que pretendo mostrar no livro é a lógica dessa sociedade que se forma aqui em 1600, no sertão, muito mais próxima da cultura tupi do que da cultura portuguesa. Foi o começo da idéia de que a riqueza redime o homem, que ela pode ser um objetivo na sua vida. A América era o lugar onde quem estava inserido no mundo feudal, europeu, preso pelas cadeias do Antigo Regime, que tinha que viver a vida inteira na posição em que nasceu, sai e vai construir um destino pelo seu trabalho e pela sua aventura.

RH Pelo visto, o senhor tem atração especial por personagens. Guilherme Pompeu, Diogo Feijó, Noel Rosa... No caso do barão de Mauá, o que ele tinha em comum com o José Bonifácio?
JC Acho que, como José Bonifácio, Mauá estava além do que se enxergava naquele momento, a primeira metade do século XIX. Ambos tinham confiança na potencialidade do Brasil. E ambos, de certa forma, vão contra crenças da época e atuais. A teoria vigente diz que aquele seria um período de recessão imensa, porque se situava entre o fim do ciclo do ouro e o do café. E Mauá conseguiu ficar muito rico exatamente nesse meio. Nunca investiu em café, como muitos outros fizeram, mas investiu em um monte de outros negócios importantes que estavam em volta. Foi colocar a estrada de ferro onde estavam os tropeiros, e não onde estavam as fazendas de café. Ele tinha uma percepção diferente do Brasil. Neste sentido, tinha alguma coisa a ver com o José Bonifácio.

RH Como surgiu seu interesse por José Bonifácio, especialmente?
JC Em 1999, fui organizar o volume do José Bonifácio de Andrada e Silva para a coleção Formadores do Brasil. Percebi muito depressa que não dava, realmente, para fazer um grande estudo sobre ele com a documentação disponível.

RH Por quê?
JC Porque a documentação sobre o José Bonifácio tem duas características. Primeira, ele escrevia de modo fragmentado. É muito bilhete, muita anotação, muito pequeno pensamento. Segunda, a obra se espalhou por um número muito grande de instituições no mundo inteiro. Ele passou 43 anos da vida no exterior, e foi deixando documentação em arquivos de Portugal, da França, e um pedaço ainda não pesquisado na Escandinávia. Então, o que acontece? Nenhum historiador, até hoje, teve condições de ver toda a obra de José Bonifácio, sequer para fazer uma biografia intelectual. Então decidi tentar reunir os documentos e torná-los de acesso público e gratuito.

RH Como está o projeto?
JC Já avançou muito. Conseguimos colocar num site 10 mil páginas de documentos. É o maior número de textos de José Bonifácio que se conseguiu reunir até hoje. É material suficiente para dezenas ou até centenas de teses, e um material quase original. Acho que nenhum biógrafo passado do José Bonifácio teve acesso a um conjunto deste porte. Ainda não é tudo, mas já é um caminho no sentido de permitir que a gente entenda a obra dele.

RH Isso significa que a obra de José Bonifácio ainda está por ser descoberta?
JC Exatamente. Oito anos depois de ter começado esse trabalho, percebo que o José Bonifácio é ainda uma pessoa a ser conhecida. Para juntar esta documentação que juntamos, só o pedaço que está no site, foram 50 pessoas trabalhando durante três anos. E não é um material que estivesse ao alcance de uma pessoa comum. A última biografia do José Bonifácio foi escrita por Otávio Tarquínio em 1943. Quer dizer, faz 64 anos. Não é por acaso que desde então nada se acrescentou a ela.

RH Onde está o material inédito mais importante?
JC O período português é, certamente, o mais importante, porque entre 1800 e 1819 José Bonifácio ocupou altos cargos no governo de Portugal e escrevia bastante. É bem provável, portanto, que exista em Portugal uma documentação inédita relevante. Em outros países também deve haver, pois ele era membro de dez ou doze sociedades científicas européias na época, com as quais se correspondia. Mas é preciso ir lá, levantar, localizar os arquivos dessas sociedades. A gente está pegando alguma coisa ainda na França.

RH Documentos do tempo do exílio...
JC É, do tempo do exílio; nunca foram publicados, estão no Arquivo Nacional da França. São documentos da polícia francesa – o dossiê José Bonifácio da polícia francesa, de 1823 a 1829. Tem direitinho o que ele fez, data a data; é uma cronologia clara, porque os documentos foram guardados em ordem. Melhora muito a pesquisa, porque corresponde a um período em que muito pouco se sabia sobre a vida de José Bonifácio.

RH O senhor acha que essas sociedades científicas guardam também uma documentação importante?
JC Ah, sim, é a face do José Bonifácio que os brasileiros desconhecem. Porque todo mundo vê o José Bonifácio Patriarca da Independência, mas essa parte dele como cientista é pouco conhecida. A figura de Patriarca da Independência corresponde a dois anos de vida de um homem que viveu entre 1763 a 1838 –, quer dizer, é muito pouco. Ele estava formado e preparado para aquele momento de um jeito que a gente ainda hoje, pelo que se sabe, não pode descrever. Eu, pelo menos, que estou há oito anos estudando José Bonifácio, não ousaria dizer que sei. Há muitos buracos na vida dele ainda a serem cobertos.

RH O que se pode dizer de concreto sobre ele a partir do que já foi levantado?
JC Que ele tinha uma formação renascentista, se a gente pode dizer assim. Tinha uma formação muito completa, em muitas áreas do conhecimento. A especialidade dele era Mineralogia, mas se formou em Filosofia, em Direito, e, além disso, entendia de política. Conheceu o mundo inteiro, esteve na Revolução Francesa, em 1789, assistiu àquilo ao vivo, conheceu os dirigentes, falou com eles. Tinha contatos políticos. A viagem dele não era só para estudar Mineralogia, mas para ser também um representante de Portugal. Conheceu as cortes, conheceu os dirigentes do mundo inteiro na época, além de conhecer as minas. Enfim, falava, traduzia grego, traduzia latim...


RH E sobre sua vida privada?
JC Não há novidade, quase tudo já está nas biografias: teve várias amantes e vários filhos fora do casamento; era um homem animado, alegre, dançarino, falastrão...

RH Dançarino?
JC É, dançava o lundu em casa.

RH Há documentos sobre isso?
JC Sobre a vida privada dele? Há. Bilhetes pedindo para um amigo ver se certo rapaz em Paris poderia mesmo ser seu filho, coisas desse gênero. Mas isso já é coisa conhecida. Acho que a menos conhecida é essa documentação francesa de que falei.

RH Qual é a recepção do site Obra Bonifácio?
JC Em menos de um ano já recebeu 42 mil visitantes, que é um número bastante expressivo. Destes, 23% são de fora do Brasil, principalmente de Portugal (17%), seguido dos Estados Unidos (entre 4% e 5%). Há interessados até no Japão.

RH Será que isso confirma que José Bonifácio era de fato um personagem cosmopolita?
JC Era uma grande figura cosmopolita. Se você compará-lo a qualquer um dos pais da pátria americanos, os estadistas que estavam naquele momento lidando com o problema de criar sistemas políticos a partir de princípios racionais do Iluminismo, era, sem dúvida, um dos mais preparados. Ele conhecia a fundo os principais pensadores iluministas franceses e conhecia bem os ingleses. Sabia das experiências que estavam sendo feitas no mundo inteiro quanto à aplicação dos princípios iluministas no governo, e ele fez isso aqui no Brasil. Teve esse papel central, de institucionalizar o Brasil. O que era a Independência para ele? Era fundar uma nação cujas leis seguiriam os princípios iluministas. Foi isso o que ele fez.

RH A experiência norte-americana não influenciou mais José Bonifácio do que aquilo que ele viu, por exemplo, na Europa?
JC Mais ou menos. José Bonifácio era antifederalista ao extremo, ao contrário dos americanos, que eram radicalmente federalistas no começo. Ele queria um Executivo funcionando com comando unitário sobre todo o território, sem fragmentação. Já os americanos achavam que quanto menos o Estado central estivesse próximo do cidadão, melhor era o regime.

RH Ele também queria a abolição, ao contrário dos americanos...
JC Não só a abolição, mas a transformação do escravo em cidadão, em cidadão probo, e o senhor, que era violento e ocioso, em trabalhador. Neste sentido, ele era muito mais avançado do que os americanos. E olhe que José Bonifácio chegou aqui muito mais como um burocrata que serviu ao rei, em Portugal, em cargos de direção, do que alguém que estava vivendo o que acontecia no Brasil. Mas ele, muito rapidamente, começou a adaptar as idéias políticas dentro dos princípios iluministas.

RH Aplicar esses princípios a uma ex-colônia dos trópicos devia ser uma tarefa difícil, não?
JC É, havia outras pessoas que liam os teóricos franceses ou americanos e tentavam copiar o possível para o Brasil. Mas com José Bonifácio foi diferente. Ele tinha um conhecimento bastante profundo dos costumes dos brasileiros, coisa rara na época. Ele achava que as instituições que ele estava criando tinham que ser adequadas aos costumes já existentes no Brasil. Tinha uma visão muito peculiar de quais eram os costumes fundamentais que poderiam sustentar um país independente. Basicamente, o que ele adotou naquela época foi que o Brasil era um país que tinha distâncias econômicas e sociais imensas por causa da escravidão.

RH Ele já apontava essas distâncias como um problema para a nação?
JC Sim, e um problema, aliás, que até hoje não foi resolvido. Na percepção de José Bonifácio, esta era uma característica central da sociedade brasileira, mas, ao mesmo tempo, ele achava que tinha um contraponto para isso, que era a facilidade com que pessoas de culturas e etnias diferentes mesclavam-se entre si. E considerava isso, a miscigenação, um instrumento fundamental para construir liberdade civil e igualdade social. As leis não deveriam proibir isso, deveriam incentivar, na medida do possíve,l esse costume, para que ele, progredindo, criasse uma nação democrática, com uma sociedade civil forte.

RH Mas isso tinha a ver com aquelas teorias de “embranquecimento”?
JC Não, não, ele falava de “amalgamento”. “É tempo de irmos nos amalgamando”, dizia. A idéia era misturar o diverso para formar uma liga única. Amalgamento era uma metáfora de mineralogista. José Bonifácio achava que o que resultaria na unidade nacional era exatamente a dissolução das idéias de raça, de diferenças culturais etc. Então, “serão igualmente brasileiros os adoradores do sol, os cristãos, índios e negros”. Não era, por sinal, o que os iluministas achavam. Ao contrário, Rousseau dizia que nos trópicos não podia haver democracia por causa dos negros, e coisas desse gênero. Os pais da pátria americanos montaram uma nação onde os negros livres não tinham direitos civis. José Bonifácio pensava diferente.

RH O senhor estava pensando em Thomas Jefferson, não?
JC Jefferson era traficante de escravos, tinha oito filhos com uma escrava que era mulata e sete deles foram escravos que ele só libertou quando ia morrer. Então você vê que o José Bonifácio era radicalmente mais avançado do que os pares dele – franceses, ingleses, portugueses etc.

RH Um pensamento mais original...
JC Muito mais original. E é difícil entender o fundamento disso num homem que, no momento em que fez a proposição, havia passado 37 anos no exterior. Em geral, o brasileiro que vai para a Europa volta cheio de preconceitos em relação ao Brasil.

RH O que muda no pensamento de José Bonifácio quando ele retorna ao Brasil, em 1819?
JC Há documentos pessoais que relatam a emoção dele de ver de novo o Brasil, de ver de novo a chuva em São Paulo. Ele descreve uma viagem que fez com o irmão até Araçoiaba da Serra, no interior paulista, para estudar Mineralogia. Voltou mais observador do que era peculiar no comportamento brasileiro. Interessante foi a forma como ele concebeu as instituições que poderiam sustentar a nova nação. Até as vésperas da Independência, ele era contra o Congresso e o Parlamento. Ele tinha visto a Revolução Francesa e considerava essas instituições elementos de turbulência. Depois mudou de idéia. Chegou rapidamente à conclusão de que o Brasil precisava de um Parlamento, coisa que ele nunca tinha achado boa em 50 anos de vida.

RH Foi por isso que ele se tornou também tão incompreensível para os seus pares políticos, como o Gonçalves Ledo?
JC É, era um personagem muito complexo. Embora pregasse a moderação e a negociação, não era a pessoa mais adequada para aplicar na prática as próprias idéias. Era muito orgulhoso e se meteu em muitas brigas políticas; não era tão tolerante quanto a gente imagina que deveria ser alguém que vem ao Parlamento e precisa escutar os outros para acomodar as coisas... Era muito firme nas suas posições. Mas é preciso lembrar também que havia um sentido de urgência muito grande naquele momento. Junto com a negociação política, ele tinha de comandar uma guerra contra Portugal: comprar armas, expulsar os portugueses que estavam em Salvador, organizar a expedição do Cochrane... Porque a Independência não foi uma coisa que veio de uma vez só. O 7 de setembro só valeu imediatamente para São Paulo, Rio e Minas Gerais.

RH Olhando sua carreira, parece que o senhor já faz jus à condição de historiador.
JC Sou apenas um escritor. Acho que conhecer História não é só um problema da academia, é um problema de todo cidadão. Ao contrário de outras histórias, como a história francesa, por exemplo, a História do Brasil ainda está por ser escrita no básico. É por isso que uma revista de divulgação como esta é fundamental. Só a pesquisa acadêmica não resolve a questão do conhecimento básico de História para a cidadania, para todo cidadão.




BIBLIOGRAFIA DO AUTOR

Noel Rosa, de costas para o mar. São Paulo: Brasiliense, 1981.

Mauá: empresário do Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Viagem pela História do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

A nação mercantilista: ensaio sobre o Brasil. São Paulo: Ed. 34, 1999.

Diogo Antonio Feijó. São Paulo: Ed. 34, 1999. (Coleção Formadores do Brasil)

José Bonifácio de Andrada e Silva. São Paulo: Ed. 34, 2002. (Coleção Formadores do Brasil)

O banqueiro do sertão. São Paulo: Mameluco, 2006.

A construção do samba. São Paulo: Mameluco, 2007.

Revista de História da Biblioteca Nacional

Decifrando a África - Paulo Fernando de Moraes


O que um médico faz acampado nas areias quentes do deserto do Saara? História, é claro! O baiano Paulo Fernando de Moraes Farias tem uma trajetória impressionante. Dividido entre os estudos de Medicina e o prazer de lecionar História nos ginásios de Salvador, descobriu o interesse peculiar pela História da África. Nos anos 1960, freqüentou o Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao), na Bahia, instituição pioneira nos estudos africanos no Brasil. Ali, dialogou com o antropólogo Pierre Verger e o carismático filósofo Agostinho da Silva. Das conversas, saiu convencido: partiria para “estudar a África como África, e não como Brasil”. Foi para Gana em 1964. Encontrou um país cosmopolita, com bibliotecas fantásticas, que em plena Guerra Fria reunia intelectuais do mundo inteiro: russos, alemães, americanos, ingleses e franceses. Suas pesquisas resgataram antigas tradições orais e escritas de famílias e grupos guerreiros, como os almorávidas. Com erudição e simplicidade, seu trabalho desvenda o etnocentrismo presente em muitos estudos que tornaram o passado da África e dos africanos “inenarrável”. Dedicado há mais de trinta anos a decifrar os grandes enigmas das terras africanas, como o seu monumental estudo das estelas funerárias da República do Mali, publicado em 2003 pela Oxford University Press para a British Academy, Paulo Fernando encontrou também fragmentos do Brasil nos lugares que visitou: ouviu um típico frevo pernambucano tocado por músicos da Costa do Marfim! Esta e outras curiosidades o leitor vai encontrar nesta entrevista, que teve a participação de Alberto da Costa e Silva.


REVISTA DE HISTÓRIA - A África deve ser lembrada apenas pelo seu passado de escravidão?

PAULO FERNANDO - Isto ocorreu, provavelmente, porque o tráfico de escravos agiu como uma tela que se interpunha entre as pessoas e os fatos, os acontecimentos da História da África. É muito mais fácil escravizar uma população a partir dessa desculpa, de que ela se encontra num degrau bastante primitivo de civilização, ou até não é nem civilização, já que não tem história. Isto criou e cristalizou, durante bastante tempo, um preconceito muito forte. Surge a idéia de uma região violenta, de passado inenarrável. Inenarrável porque atroz, mas também inenarrável porque simplesmente você não pode reduzi-lo à narração. Acho que foi o filósofo alemão Hegel (1770-1831) quem viu na África um passado sem processos, um conjunto de fatos isolados que não têm continuação. Só no século XIX, quando a Europa, movida pelos seus interesses, se aventurou a penetrar o interior da África, é que se sentiu a necessidade de conhecer e narrar esse interior. E para fazer isso era preciso aceitar a premissa de que havia lá uma existência histórica, algumas coisas que pudessem ser identificadas como História.


RH - É verdade que o senhor abandonou a Medicina para se dedicar à História?

PF - É, terminei Medicina, fiz outro vestibular e comecei a estudar História. Mas o interesse pela História da África surgiu depois, no fim da década de 1950, quando comecei a freqüentar o Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao). Dei o salto a partir de uma conversa com o Agostinho da Silva VERBETE. Alguém deve ter dito ao Agostinho que existia um professor de História, ou seja, eu, que podia ser atraído para o estudo da África. Então ele me telefonou de surpresa e marcou um encontro. Foi aí que tudo começou. O ambiente político da época também ajudou muito nessa minha “conversão”. Eu tinha minhas turras com a sociedade baiana, vivia procurando argumentos contra o racismo. Mas, no princípio, para mim foi uma espécie de tortura mental.


RH - Por quê?

PF - Porque eu não conseguia achar minha porta de entrada para iniciar esses estudos. Quem me ajudou muito foi o Pierre Verger, VERBETE que era ligado ao Ceao. Ele me deu algumas indicações de documentos que existiam no arquivo da Bahia e me recomendou a História dos Iorubas (1921), de Samuel Johnson. De início, achei esse texto absolutamente impenetrável. Lembro-me de ter passado horas no Ceao, lendo aquele livro e me perguntando quando é que eu ia começar a compreender aquilo [risos]. A partir daí é que veio a idéia de ir para a África, o que era algo possível na época, pois o Ceao recebia apoio da Unesco e também do Departamento Cultural do Itamaraty. A primeira pessoa enviada à África tinha sido o antropólogo baiano Vivaldo da Costa Lima. Depois, fui eu.


RH - Poderia falar um pouco sobre esse convívio no Ceao?

PF - A criação do Ceao é a conjunção do espírito carismático de Agostinho da Silva e da inteligência de Edgar Santos, VERBETE que percebeu que era o momento de se criar um centro de estudos daquele tipo, que não era um centro de estudos puramente africano, ele era afro-oriental. Apareciam na revista artigos sobre a Ásia e sobre a África. Havia cursos de línguas; de um lado, língua iorubá, de outro, hindi. Em teoria, ele continua sendo hoje um centro de estudos afro-orientais. Na ocasião em que foi criado, em 1959, não foi simplesmente um desejo de aproximação com a África e com a Ásia, mas também com os movimentos de independência.


RH - O senhor saiu do Brasil e foi direto para Gana?

PF - É, fui como estudante. Era a Gana de Nkrumah VERBETE, de certa maneira um pouco parecida com a África do Sul de hoje. Uma nação muito especial, com seu contexto geográfico e histórico próprio, tudo sob a grande aura do pan-africanismo, pois Gana foi a nação pioneira nos movimentos de independência do continente. Mas, ao mesmo tempo, o regime de Nkrumah se tornara fechado e autoritário, e isso criava um tipo de tensão que só fui descobrindo aos poucos...


RH - Como era esse clima?

PF - Para mim, uma fonte permanente de insegurança. Pois eu havia imaginado que Gana ia me servir como uma espécie de hospital de convalescença psicológica. Eu saí daqui em 1964, depois do golpe militar, corrido da polícia. Nesse tempo eu dormia vestido, pronto para fugir a qualquer hora, viajava de ônibus meio disfarçado. Quando cheguei à África, respirei aliviado: “Ah, até que enfim vou poder me deitar, dormir nu se quiser, sem me preocupar com perseguição política”. Depois percebi que as coisas lá não corriam tão bem, e isso me criou uma certa perturbação psicológica, semelhante à que sentia no Brasil. Mas, felizmente, havia também o lado bom de Gana.


RH - Qual era?

PF - Encontrei lá uma biblioteca magnífica, com dicionários etimológicos que eu nunca tinha visto na Bahia. O Centro de Estudos Africanos de lá era um espaço especial, nunca estive num lugar tão cosmopolita, intelectualmente. Reunia gente de toda parte: professores ingleses, americanos, alemães, afro-americanos, brancos e pretos. Era uma coisa muito rara no tempo da Guerra Fria (1945-1989). Eu me lembro de uma semana em que eu assisti, em dias diferentes, à conferência de professor americano, uma de um professor da Universidade de Moscou e outra de um professor da Universidade de Berlim. Era possível se sentar numa universidade para ouvir aquela gente toda, com pontos de vista os mais diferentes possíveis.


RH - O senhor, nessa época, já conhecia o árabe?

PF - Uma das razões pelas quais eu me meti a estudar árabe em Gana foi justamente para poder estudar as fontes em árabe. O Centro oferecia cursos de várias línguas: a língua ka, de Gana, a língua iorubá, e idiomas também da África do leste, suahili e árabe. O caminho mais normal para mim, sendo brasileiro, e sobretudo brasileiro da Bahia, seria estudar uma das línguas da costa. Por uma espécie de teimosia intelectual, decidi me concentrar no Islã. Eu tinha um interesse vago na presença da cultura islâmica na Bahia, por causa dos malês. VERBETE Mas eu acho que fui atraído mesmo para o Islã por uma espécie de desejo de estudar a África como África, e não como Brasil.


RH - Quando o senhor decidiu sair de Gana e ir para Dacar?

PF - Mais ou menos nessa época, depois que eu conheci o Vincent Monteil (1913-2005), que era um estudioso francês especializado no Islã. O estudo do Islã na África estava passando então por uma fase muito interessante. Muita gente via o Islã, e as culturas islâmicas de modo geral, como um assunto muito importante, que, no entanto, tinha sido negligenciado pelo Ocidente, pois no passado o Islã era visto como uma ameaça aos impérios europeus. Ele chegou para mim e disse: “Olha, estamos organizando uma segunda expedição à ilha de Tidra, e você vem com a gente”. A razão do convite é que eu, naquele momento, estava estudando os almorávidas, que habitaram a costa da Mauritânia e o arquipélago de Tidra. São essas felizes coincidências que acontecem na vida da gente...


RH - Vocês foram para onde, inicialmente?

PF - Para o Saara. Foi uma experiência interessantíssima... Lembro que havia eu, um arqueólogo francês e um historiador senegalês, tudo gente jovem, tudo verdinho na matéria. O chefe da expedição era monsieur Rigot, um arqueólogo que tinha saído da Argélia no momento da independência, por volta de 1962. E havia sobretudo um mauritano chamado Al-Muktar Ould Hamidin, que era um homem boníssimo, um erudito, de um saber imenso. O Al-Muktar, assim como o Agostinho, foi uma pessoa muito importante na minha vida. Era capaz de entender coisas que ele quase, pode-se dizer assim, não tinha o direito de entender.


RH - Por exemplo?

PF - Ele entendia perfeitamente as dificuldades que eu, como brasileiro, fazendo pela primeira vez na vida um trabalho de campo no Saara, podia encontrar. Ele não podia entender, mas entendia. Ele me nutria de informações na dose certa, nem mais nem menos. Não dava para me encher de repente com uma massa de informações que eu não podia absorver. Então ele dava essas informações aos poucos. Tudo o que eu perguntava, o Mukhtar respondia. Imagine os problemas que podiam surgir dentro de uma pequena tenda, com aquele grupinho internacional enfurnado nela, no meio do deserto...


RH - Saía muita briga? [Risos].

PF - Tinha de sair. Com exceção do Mukhtar e do monsieur Rigot, éramos todos novatos em trabalho de campo. Isso criava tensões psicológicas que às vezes acabavam em briga. Eu me lembro de momentos em que eu achava que aqueles tipos ali estavam me perseguindo, querendo acabar comigo, me criando as maiores dificuldades. E o Mukhtar, com aquela presença santa, agradável, apaziguava tudo, se dava bem com todo mundo.


RH - Seu trabalho sobre os almorávidas foi de grande impacto para os estudos africanos. Por quê?

PF - O movimento almorávida surgiu entre grupos guerreiros que gostavam de roubar camelos entre eles. A tendência dos autores, dentro da Mauritânia, era achar que não se podia esperar de gente daquele tipo um movimento de grandes conteúdos ideológicos. Mas a leitura das fontes dava a impressão de que eles, pelo contrário, estavam sintonizados com os debates político-ideológicos que ocorriam na época, no século XI, na Andaluzia e ao sul de Portugal, que ainda estava sob domínio muçulmano. Lisboa acabou sendo, por causa disso, uma cidade almorávida... Então, era um pouco marchar contra a corrente, era como mostrar que essa gente, que supostamente era simples demais, na verdade não podia ser estudada apenas como um movimento de pilhagem.

RH - O governo sul-africano tem reunido esforços para a preservação e o estudo dos manuscritos de Tombuctu. Qual a importância deste trabalho?

PF - O que está havendo agora em Tombuctu é a recuperação de manuscritos que estavam dispersos por vários lugares. As pessoas que habitam a região são nômades ou seminômades, então um dia estão em Tombuctu e daqui a um mês estarão num acampamento muito distante, lá no Saara. E vão deixando seus livros em vários lugares. As famílias letradas de Tombuctu estão percorrendo todos esses depósitos de livros e reunindo tudo. O resgate desse patrimônio, penso eu, passou a ser também uma questão de orgulho familiar. Cada grande família está criando uma biblioteca sua, e elas estão procurando mobilizar recursos internacionais para ajudá-las nesse trabalho.


RH - O que se descobriu até agora sobre Tombuctu?

PF - A família Kati, por exemplo, remontou suas origens até a Espanha. No passado, havia contatos entre Tombuctu e as comunidades judaicas que viviam no centro do Saara. A maioria foi exterminada no século XV, mas outras comunidades sobreviveram, e no final do século XVIII e ao longo do século XIX, muitos comerciantes judeus se estabeleceram em Tombuctu. Então, pouco a pouco, essas genealogias estão vindo a lume. Isso às vezes causa certas tensões, porque muitos islamitas não têm grande simpatia por esse tipo de revelação genealógica.


RH - A barreira religiosa para a instalação dos portugueses na África foi maior do que na América?

PF - As religiões africanas demonstraram um poder de resistência maior, se você considerar o continente como um todo. Por outro lado, no reino do Congo, em Angola, o cristianismo sempre teve uma presença bastante forte. Um fenômeno importante da vida africana atual é a absorção do cristianismo evangélico, da chamada Teologia da Prosperidade. É um movimento fortíssimo na Nigéria, por exemplo. É aí, me parece, que há uma ruptura bastante aguda com a herança portuguesa. Eu já li vários folhetos religiosos. Um deles recomenda que, caso seu pai e sua mãe sejam pagãos e se recusem a aceitar a religião evangélica, você deve romper com eles. Na minha opinião, por esse lado, a Teologia de Prosperidade trabalha contra a família africana.


RH - É verdade que o senhor dançou frevo na África?

PF - Olha, eu não me lembro se dancei, mas lembro que fiquei muito surpreso, diria até paralisado, quando ouvi um frevo na África.


RH - Como foi?

PF - Aconteceu da seguinte maneira. Uma família malinesa ia celebrar um casamento, me convidaram, e lá fui eu. Nessa festa, a música era produzida por um pessoal da Costa do Marfim. No meio da festa, de repente, começou a tocar um frevo. Não fui o único que ouviu esse ritmo lá, o Alberto da Costa e Silva também ouviu e parece que chegou a dançar frevo na África.


RH - Isso significa que o frevo, orgulho de Pernambuco, não é pernambucano?

PF - Certamente não é pernambucano. Evidentemente, sofreu uma transformação no Brasil, da mesma forma que a capoeira, mas não é pernambucano. O jeito é mandar uma equipe de musicólogos lá para decidir isso: se é um tipo de música africana que veio para o Brasil ou se, de alguma maneira, voltou para lá, e, se foi assim, como é que isso aconteceu. É um dos enigmas que restam para se resolver.


RH - O centro de Birmingham, onde o senhor trabalha agora, era totalmente voltado para a África?

PF - Era; o centro de Birmingham era parte de um movimento na Inglaterra, na Europa toda, de interesse pela África e pelos outros continentes na década de 1960. De certa maneira, assemelhava-se ao nosso Ceao, nasceu quase na mesma época. Comecei lá trabalhando com o John Fage, que foi uma figura importantíssima no campo de estudos africanos.


RH - Como resgatar a história de civilizações que não deixaram o seu passado escrito?

PF - É difícil. Bem, pelo menos pelos padrões clássicos do Ocidente, ser civilizado requer ter escrita. Então, desse ponto de vista, a África deve ter escrita, para mostrar que tem uma civilização digna desse nome. Acho isso totalmente correto desde que, é claro, não leve ao desprestígio da oralidade. Uma das conquistas importantes dos estudos africanos modernos foi justamente mostrar que as tradições transmitidas oralmente têm uma grande importância histórica. O que os almorávidas VERBETE anotaram, por exemplo, perdeu-se em sua maior parte. Mas há outras fontes importantes, como, por exemplo, as lápides funerárias, que também são objeto dos meus estudos.


RH - Em que momento surgiu seu interesse pelas estelas funerárias?

PF - Em Birmingham havia uma seção de arqueologia, e um arqueólogo chamado Colin Flight estava trabalhando sobre a cidade de Gao, no Mali. Ele pesquisava lápides árabes andaluzas e me mostrou uma que tinha fotografado no museu de Gao. Eu descobri, examinando-a com lente de aumento, que era uma lápide real. Foi uma surpresa, ninguém sabia da sua existência. “Bom, quer dizer que existem coisas novas nessa área”, e continuei trabalhando com as lápides. Até aquele momento, só um pequeno número de estelas funerárias tinha sido publicado por um pesquisador que foi uma das grandes figuras da epigrafia francesa, o orientalista e historiador francês Jean Sauvaget (1901-1950), e depois por outra epigrafista, Madeleine Virret.


RH - Como o senhor exporia para um leigo a importância dessas descobertas?

PF - A idéia corrente na época era que tudo sobre o tema já havia sido publicado. Por outro lado, a orientação de todos os epigrafistas era de focar seu interesse nas lápides reais, ou em figuras que de alguma maneira fossem conhecidas pela História através de crônicas e outras fontes. Minha pesquisa sempre foi no sentido de tentar mudar isso, passar a dar importância às inscrições de pessoas comuns. Isso muda a perspectiva da coisa. Passo a olhar as inscrições não como fonte de datas e de nomes, ainda que nomes de reis, mas como um discurso histórico.


RH - Que conselho o senhor dá para a nossa comunidade acadêmica, que ainda engatinha na área de estudos sobre a África?

PF - Não acho que esteja engatinhando; já se levantou há muito tempo e anda em pé, muito bem. Acho que seria ótimo se houvesse mais oportunidades para que estudantes brasileiros e acadêmicos jovens pudessem fazer pesquisa no continente africano. Para se conhecer a África é preciso ir à África.

SAIBA MAIS:

FARIAS, Paulo Fernando. Arabic Medieval Inscriptions from the Republic of Mali: Epigraphy, Chronicles, and Songhay-Tuareg History. Fontes: Historiae Africanae, new series,Oxford: Oxford University Press for The British Academy, 2003.

FARIAS, Paulo Fernando; DIAWARA Mamadou.; SPITTLER, Gerd (eds). Heinrich Barth et l’Afrique Cologne. Rüdiger Köppe Verlag, 2007.
Revista de História da Biblioteca Nacional

No tempo da modinha - Anna Maria Kieffer


01/12/2007
Intérprete e musicóloga, com trabalhos importantíssimos nessas suas duas áreas de atuação, Anna Maria Kieffer prefere se qualificar, modestamente, apenas como "uma cantora que faz pesquisa". Mas não se deixem enganar. Ela é, na verdade, uma das maiores conhecedoras da História da Música no Brasil. Seu interesse começou, como se verá na entrevista abaixo, quando tinha 13 anos e sentia-se atraída pela beleza das capas das partituras, muitas delas feitas por grandes artistas. Curiosa, resolveu “espiar o que tinha dentro” e encantou-se ao encontrar músicas raras e antigas, de compositores desconhecidos. Ela iniciou os estudos de musicologia na década de 1960 numa escola livre de música, a Pró-Arte, de São Paulo, que não obedecia às normas acadêmicas. Participando, como meio soprano, de turnês na Alemanha e na França, acabou concluindo que para ser uma boa intérprete era preciso saber mais do que apenas ler uma partitura. Movida pela paixão e por uma curiosidade que até hoje a acompanham, ela quis saber tudo sobre as músicas que interpretava: como eram executadas no passado, como determinado instrumento era tocado, se o músico se apresentava em um palco ou sentado, se nas ruas ou nos salões e muitos outros detalhes. Nesse processo de reconstituição, Anna Kieffer vasculhou relatos de viajantes, inventários e muitas outras fontes para reconstruir os cenários, os modos de tocar e de cantar do Brasil de outrora. É também fascinada por instrumentos musicais do passado, como a viola de arame, avó da viola caipira de hoje. O resultado de seu valioso trabalho também transparece em trilhas sonoras que recria atualmente para exposições, cinema, rádio, TV, ou ainda nos CDs que produziu, como o Teatro do Descobrimento e o Cancioneiro da imigração, entre outras preciosidades.

Revista de História – Você se considera mais uma cantora ou uma pesquisadora de música?
Anna Kieffer – As duas coisas. Costumo dizer que sou música porque tradicionalmente o músico tem de ter um instrumento. E o meu instrumento é a voz. Mas devo confessar que não me considero propriamente uma musicóloga. Sou uma cantora, uma meio soprano que faz pesquisa. O que me move é sobretudo uma imensa curiosidade, um prazer, uma vontade de saber como teria sido nosso passado musical. Em que momento determinada peça foi executada, de que jeito as pessoas encaravam os instrumento musicais, onde os guardavam, como eram tocados, e assim por diante...

RH – O brasileiro conhece a história da sua música?
AK – Bom, essa é uma pergunta difícil de responder. Eu acho que nos centros urbanos as pessoas conhecem mais ou menos a história recente daquilo que se chama de música popular, ou mesmo os grandes compositores do passado, tipo Carlos Gomes. Mas se você falar, por exemplo, no nome de um Alberto Nepomuceno, vão logo perguntar: “Quem é esse?”. E ele é uma figura importantíssima para a história da música do país. Mas o problema não é só musical. O brasileiro não conhece a sua história. Não sabe de onde vem, ou, quando sabe, muitas vezes tem informações equivocadas sobre o seu passado.

RH – Você acha que isso se deve em parte à falta de um investimento no ensino de história da música nas escolas?
AK – Atualmente a história do país interessa muito pouco. A história da música, então, nem se fala. Antigamente, a música era uma matéria que se ensinava nas salas de aula, e em algumas escolas ainda é, mas não mais na escola pública, onde ela devia estar. E não é só a música, mas o fazer artístico de maneira geral. O que é uma pena, pois as artes podiam ilustrar de forma muito criativa as aulas comuns, como as de História, por exemplo. A música, particularmente, é uma coisa que interessa a todo mundo, dos mais velhos às crianças.

RH – Quando começou seu interesse pela música?
AK – Olha, isso é uma história antiga... Quando eu tinha treze anos, comprei a minha primeira partitura de música. No passado havia artistas importantes, como o Di Cavalcanti, que eram capistas, então existem capas maravilhosas. Há capas do século XIX que estão na Biblioteca Nacional que são impressões em cobre, de um refinamento incrível. São fantásticas. Até hoje sou um pouco alucinada por isso. Foi a partir daí que comecei a tomar contato com composições antigas. Por causa das capas que acabei descobrindo o que havia dentro. E, conseqüentemente, esses compositores do fim do XIX e do começo do XX. Daí continuei a comprar outras partituras e fui aumentando minha coleção. Muita coisa que tenho ainda se encontra nos sebos. Mas também ganhei acervos de pessoas que eram muito idosas e que não tinham mais onde guardá-los, iam jogar no lixo, e eu acabei ficando com um material enorme.


RH – No ano que vem se comemora os 200 anos da chegada da corte portuguesa no Brasil. Qual foi o impacto desse acontecimento para a música feita na época?
AK – Acho que a gente podia inverter essa pergunta, pois o fato é que foram eles que ficaram boquiabertos com que se fazia no Rio de Janeiro. Havia uma verdadeira ebulição musical no período. Primeiro por causa de uma migração de alguns músicos importantes de Minas para o Rio. Havia também a Fazenda Santa Cruz, na zona oeste do Rio, onde os jesuítas ensinavam música aos escravos. O que se fazia ali, segundo relato de viajantes, era de altíssimo nível. E, para terminar, havia o padre José Maurício. Quem precisa mais do que isso?

RH – Quer dizer que já existia aqui um ambiente musical consolidado, não é?
AK – Ah, sim, havia músicos, digamos, de salão, muito populares, que faziam grande sucesso. Alguns deles já eram conhecidos pela corte, como o Domingos Caldas Barbosa, que era carioca mas tinha sido exportado para Portugal. A Maria Joaquina Lapa também. Era uma mulata fantástica, soprano, fenomenal, que fez como solista um sucesso estrondoso em Portugal. Então havia esse ir e vir antes da chegada da corte. O talento musical dos brasileiros já era conhecido.

RH – Será que naquela época havia mais cultura musical do que hoje?
AK – De certa forma, sim. Toda família, quer dizer, as famílias que tinham meios, tinham de ter um piano em casa. Era um símbolo de status, no século XIX. As que não podiam comprar piano tinham pelo menos um violão. E era comum que as pessoas soubessem ler música. Qualquer moça de classe média – estou falando do mundo urbano –arranhava o seu piano, não é? Uma senhorita que não tocasse piano não era bem educada, isso fazia parte das prendas domésticas de uma moça ou de um jovem. Mas se tocava ainda muito violão também, principalmente entre os rapazes. Era um instrumento boêmio. Existem algumas partituras para violão daquela época, mas são mais raras, o grosso da música, de casa, de salão, do século XIX, é escrita para voz e piano.

RH – Para se estudar a História da Música é preciso saber ler uma partitura?
AK – Acho muito complicado você ser historiador de música escrita sem saber ler partitura. Há até pesquisadores com trabalhos muito interessantes que de certa forma abrem caminho para os historiadores que conhecem música. Mas para fazer musicologia tem de conhecer, mesmo porque, às vezes, você precisa restaurar partituras, não é? Se não souber ler música, não consegue. Também há o caso de você querer recuperar um instrumento que hoje não é mais utilizado, como a viola de arame, por exemplo, aí também tem de saber música...

RH – Como era a viola de arame?
AK – É uma espécie de guitarra barroca, tenho aqui em casa dois exemplares. Foi um instrumento muito usado no século XVIII, em Portugal e no Brasil, embora as informações sobre ela remontem ao século XVII. Existem livros de cifra para viola de arame, como o manuscrito do Conde do Redondo, que datam de 1700, se não me engano. Era tocada às vezes em dupla, acompanhada por um violão clássico, o que deu no instrumental da música sertaneja de hoje. Você vê que a coisa vem lá de longe, não é? A viola de arame é avó da viola caipira ou sertaneja. Já o violão clássico virou o violão moderno.

RH – Mas havia uma forma de tocar que devia ser diferente. Isso é possível reproduzir?
AK – Acho que sim, por causa desses métodos que chegaram até os nossos dias, como a Nova arte das violas, do Paixão Ribeiro. Com ele você pode reconstituir exatamente como se utilizava o instrumento na época. Ele explica até como se segura a viola e como uma mulher devia se sentar para tocar...

RH – Fale um pouco de suas pesquisas.
AK – Eu trabalho com música escrita, só que mais com a música escrita profana, ou seja, música de fora da igreja. A gente tinha, no período colonial, a música de dentro da igreja, que é uma música que se pode chamar, entre aspas, de “erudita”, e a música que misturava composições do cotidiano com resquícios de música sacra. Isto acontecia porque muitos dos compositores e músicos de igreja também tocavam fora dela. Acho que é justamente essa mistura que dá à musica popular brasileira de hoje a qualidade que ela tem. Existe uma prática de música, digamos, também erudita, entre os compositores populares.

RH – É difícil achar essas partituras?
AK – É complicado. A música sacra subsistiu mais porque foi guardada pelas confrarias religiosas e se conservou, enquanto que, no caso da música do cotidiano – não posso nem chamar essa música de “popular”, na verdade ainda não encontrei a palavra certa –, não houve nenhuma instituição como a Igreja que cuidasse dela. Muita coisa foi escrita e desapareceu, mas às vezes reaparece. Foi este o caso das músicas de Rafael Coelho Machado, um português que chegou muito jovem ao Rio de Janeiro, de uma geração anterior à de Carlos Gomes. Ele integrou o primeiro ciclo de compositores românticos do Brasil do século XIX. Foi um produtor cultural fantástico – era músico, teórico, editor, tinha uma loja de instrumentos, escreveu o primeiro dicionário de música feito aqui no Brasil – e hoje ninguém lembra mais dele. Encontrei 16 canções de Rafael Coelho Machado, com texto de Gonçalves Magalhães.

RH – No Brasil há especialistas em instrumentos antigos?
AK – Há, temos o histórico desses instrumentos, como eles chegaram aqui, como se modificaram etc. Existe uma pessoa muito importante nessa área que é a Gisela Nogueira. Ela fez mestrado no Royal College, na Inglaterra, e se especializou em guitarras barrocas e outros instrumentos da família do alaúde. Para ela, é muito fácil ler esses métodos do século XVIII. Eu, a Gisela e o Edelton Gloeder nos associamos num trabalho muito interessante. Fizemos uma cópia da viola de arame e outra da guitarra clássica, e assim, pudemos ter a dupla de instrumentos que acompanhavam a música de sala no período. Tocamos, entre outras peças, Marília de Dirceu, que são as liras do Tomás Antônio Gonzaga musicadas por um contemporâneo anônimo.

RH – Esses instrumentos que você citou eram tocados mais pelo povo ou pela elite?
AK – Pois é, essa é a pergunta que a gente tenta responder a cada caso estudado. E há muitas outras: que tipo de músico executava as partituras? Ele subia num palco? Fazia isso cantando de pé ou sentado? O Museu Paulista tem uma boa documentação. Existem lá inventários mostrando que muitos instrumentos musicais passavam de pai para filho. Há por exemplo o testamento de um bandeirante importantíssimo legando uma “viola de pinho do reino” para o herdeiro. Então deviam ser objetos considerados de muito valor pelos proprietários. Uma das questões é justamente saber se determinado instrumento era totalmente de rua ou de um setor, digamos, mais culto da sociedade, pois isso faz diferença na hora que se tiver de fazer readaptações desse material. Este instrumento que você vê aqui [mostra uma viola de arame autêntica, do século XVIII] é todo feito de embutidos, de machetados, e obviamente não é um instrumento de rua, é um instrumento fino, devia pertencer a alguém da elite. Fora os documentos, existem também descrições de época, que nos ajudam muito a reconstituir os costumes musicais do passado.

RH – Por exemplo?
AK – Há, por exemplo, a descrição detalhada, feita por von Martius, de um sarau realizado em São Paulo no começo do século XIX, no qual o cientista alemão ficou tão fascinado com o que viu que descreve até as presilhas dos cabelos das cantoras e das moças que estavam presentes! Ele ouviu modinhas portuguesas e brasileiras do XVIII, com vozes de contralto e soprano. Martius, que, além de botânico, era também músico, foi depois, com seu violininho debaixo do braço, para o Amazonas, onde aconteceu uma cena fantástica. Quando viu que havia um violinista lá, um fazendeiro local mandou um emissário, um tal de João Raposo, buscar instrumentos musicais, e ele voltou com mulas carregadas de violinos e violas para um concerto ao ar livre. Tocaram um quarteto de Pleyel debaixo de um luar fantástico, em pleno sertão. Não é demais isso?

RH – A Biblioteca Nacional tem um setor de música importante. Já encontrou coisas interessantes lá?
AK – Há coisas valiosíssimas, principalmente uma grande quantidade de músicas impressas a partir de 1830, quando essa atividade começou no Brasil. O que me interessa principalmente no acervo são os compositores do período. Eles tiveram como parceiros os maiores poetas brasileiros da época, como Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Castro Alves, Fagundes Varela, Casimiro de Abreu e muitos outros. Estou tocando um projeto, que batizei de “Jardim Romântico”, exatamente sobre esses autores, com composições feitas entre 1840 e 1870. A maior parte do material eu levantei lá na Biblioteca Nacional. Outra coisa importante é uma cópia das modinhas do Brasil, obra atribuída ao Domingos Caldas Barbosa. É uma música muito interessante, brasileira, sem dúvida. Muitos lundus, modinhas que são quase lundus, lundus que são quase modinhas... Acho que a Biblioteca Nacional tem um acervo importantíssimo e que ainda não foi totalmente explorado pelos pesquisadores.

RH – É possível com o que se tem traçar todo o processo histórico da música brasileira?
AK – Agora muito mais do que antes. Esse período a que me referi, pós-1830, era considerado há até alguns anos uma espécie de buraco negro na história da nossa música. Quando a orquestra da Capela Imperial foi desfeita, porque o dinheiro acabou, seus músicos ficaram sem emprego. Foi aí que Francisco Manuel da Silva tenta, através da Confraria de Santa Cecília, reunir esses músicos que foram para a rua, a fim de formar uma orquestra para fazer bailes ou algo assim. Enfim, os músicos tiveram de se virar, uma história que se repete, não é? O fato é que o Francisco Manuel da Silva conseguiu reorganizar esses músicos e depois fez o Conservatório Nacional e participou do grupo que fez a Ópera Nacional. Só há relativamente pouco tempo que muitos desses músicos foram identificados.

RH – Quais?
AK – Há compositores como o Rafael Coelho Machado, que é super-importante. O Henriques Alves Mesquita já é um pouco mais conhecido, talvez porque tenha sido professor da Chiquinha Gonzaga. Havia o Joaquim Manuel da Câmara, um músico mulato, muito popular, que tocava magistralmente, parece que uma viola francesa. Tanto a modinha como o lundu já aconteciam no século XVIII. Mas esses gêneros se prolongam pelos séculos XIX e XX, se adaptam a novas correntes, se adequam às novas modas, e vão se modificando e evoluindo. O lundu, aos poucos, vira maxixe, depois vira samba. E a modinha vira canção.

RH – Qual a diferença entre o lundu e a modinha?
AK – A modinha é uma produção camerística, de salão. Foi música de corte no século XVIII. Aos poucos foi indo para a rua, e com a influência da ópera italiana, vira no século XIX uma romança, como eles chamavam. Há compositores como o João Francisco Manuel da Silva que escreveram romanças muito interessantes. A Biblioteca Nacional tem uma coleção importante de romanças dele. Já o nosso lundu sempre teve um jeito satírico. Você vai vendo que, historicamente, vai havendo uma apropriação de gêneros internacionais que misturados aos gêneros brasileiros vão dar em uma outra coisa, numa música realmente nossa.

RH – Além de índios, africanos e portugueses, é possível identificar a contribuição de outros povos ou culturas na formação da música brasileira?
AK – Ah, sim, existem culturas orientais que influenciaram muito nossa música, principalmente no Nordeste. Certos temas, modos de tocar, modos de cantar, certos modos musicais que estão presentes na música oriental – estou falando de mouros e judeus – estão presentes na música do sertanejo em geral.

RH – Teria um exemplo, algum registro disso?
AK – Tenho vários. Estou com um projeto que se chama justamente “Mouros e Judeus: A Tradição Musical do Brasil”. Foi uma coisa muito interessante porque eu estava procurando poetas, formas poéticas, formas poético-musicais árabes que estariam dentro do cotidiano dos povos do sertão, e encontrei muito material. Mas uma coisa que me deixou muito impressionada é a história da Donzela Teodora, um folheto muito conhecido no nordeste. Foi impresso pela primeira vez aqui, acredito, no século XIX, mas ela vinha sido publicado em Portugal desde o século XVI. Descobri que essa história está nas Mil e uma noites, e continua sendo cantada até hoje no nordeste. Há outros exemplos. Talvez a influência judaica seja menos evidente, mas ela também aparece, principalmente no ciclo do boi. Há o “boi judeu”, que é o mais enfeitado de todos. Em alguns aboios (canto com que os vaqueiros guiam as boiadas) isso aparece muito claramente.

RH - Em tempos de globalização não é estranho a busca das origens nacionais da música?
AK – Isso não é uma coisa só do Brasil. Ao mesmo tempo em que você tem uma Europa unida, por exemplo, ou que se tenta uma união latino-americana, você vê que as pessoas querem conservar dentro, digamos, a sua identidade. Estou falando de identidade consciente. Um exemplo são os afro-descententes. Durante a escravidão, pais foram separados dos filhos, mães, enfim, não se tem uma identidade familiar mesmo. Como é que era o seu avô, o seu bisavô, o seu trisavô. Isso gerou uma marca. A perda da identidade é angustiante para pessoas ou para um grupo de pessoas. Então, é importante mostrar, levantar as origens de cada cultura mesmo que ela esteja misturada a outras culturas. Sou pela integração das manifestações artísticas e de educação. Acho importante essa integração porque o mundo vive essa integração. Você vive isso o tempo todo desde que você sai na rua. Por isso não é justo apartar da vida uma determinada manifestação artística. Desde que toda esta integração não vire uma geléia geral.

Discografia:

Cancioneiro da imigração (2004)
Teatro do Descobrimento (1999)
Marília de Dirceu (1994)
Viagem pelo Brasil
Mãos dadas - Poemas da Língua Portuguesa
Mel Nacional – Centenário de Mário de Andrade (1993)
Alberto Nepomuceno – Canções (1997)
Ways of the Voice (1999), produzido na Filadélfia, com o compositor belga Leo Kupper, reunindo rezas populares do Brasil carregadas de heranças múltiplas da Ásia, da Europa e da África;

Verbetes:

Antônio Carlos Gomes (1836-1896)
Compositor brasileiro, o mais importante autor nacional de operas, teve carreira de destaque na Europa. Entre suas principais composições O Guiarani, Fosca e O Escravo.

Alberto Nepomuceno (1864-1920)
Compositor e pianista brasileiro, lutou para a utilização do idioma nacional na música de concerto. Considerado o pai da canção de câmara brasileira, foi autor também de óperas e sinfonias.

Padre José Maurício Nunes Garcia (1767- 1830)
Organista e compositor carioca, primeira personalidade de relevo da música brasileira, foi mestre da Capela Real e autor muito prolífico. O que se conhece da sua obra encontra-se na sua totalidade em manuscrito.

Domingos Caldas Barbosa (1739-1800)
Nascido no Rio de Janeiro, foi poeta e famoso tocador de viola. Transferido em Portugal, ordenou-se padre e se dedicou à composição de modinhas e lundus.

Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868)
Médico e botânico alemão, participou, junto com o zoólogo Johan Baptist von Spix, de uma expedição pelo interior do Brasil, até a Amazonia, entre 1817 e 1820. Dela resultaram as obras “Viagem pelo Brasil” e “Flora Brasiliensis”, em 40 volumes.

Ignace Joseph Pleyel (1757-1831)
Compositor austríaco, mais tarde naturalizado francês, foi aluno de Joseph Haydn. Criou um novo modelo de piano e fundou uma fabrica desses instrumentos que existe até hoje.

Francisco Manoel da Silva (1795-1865)
Compositor, regente e professor carioca, participou da fundação de muitas instituições ligadas à música em época imperial. Foi autor de muitas composições, entre as quais a música do hino nacional brasileiro.

Revista de História da Biblioteca Nacional

Retrato de um rei em movimento - Lúcia Bastos Pereira das Neves


Contaminada pelo germe da História durante o ginasial, uma viagem ao exterior fez a adolescente optar definitivamente pela disciplina. Mas o gosto pelas diferenças culturais não ficou restrito à escolha inicial de Lúcia Bastos, hoje professora titular de História Moderna da Uerj. Em obra de referência sobre a Independência (Corcundas e constitucionais, 2003), tese de 1992, ela mergulhou na opinião pública luso-brasileira da época e revelou personagens e idéias diferentes daquilo que aprendemos nas aulas de História.

Foi seu primeiro contato mais prolongado com uma figura muito peculiar: D. João VI. Agora, na biografia do monarca que está lançando pela editora Civilização Brasileira, Lúcia refaz a trajetória do governante português e rejeita clichês criados por historiadores. No livro, D. João aparece como homem de um mundo muito diferente do nosso, mas também como personagem de carne e osso. Mais carne do que osso, revela a historiadora na entrevista concedida à nossa equipe. Criado à sombra do irmão mais velho, que seria o futuro rei de Portugal, D. João teve uma formação mais inclinada à religião e às artes, com especial predileção pela música sacra. O destino o conduziu ao poder, e ele acabou protagonista do episódio que transformou definitivamente os rumos de Portugal e do Brasil: a transferência da Corte. Suas virtudes e fraquezas políticas, sua justificada fama de glutão, suas doenças, a conturbada relação com Carlota Joaquina, as intrigas e fofocas que rondavam a Corte, até mesmo uma filha bastarda do rei... nada escapou à investigação minuciosa de Lúcia Bastos, e é com ela que entramos neste mundo ao mesmo tempo íntimo e público da monarquia luso-brasileira.

Em uma casa que respira História, não poderíamos abrir mão da presença do historiador Guilherme Pereira das Neves, professor da UFF, marido de Lúcia e também estudioso da época joanina, que colaborou nesta entrevista.


REVISTA DE HISTÓRIA A biografia tem o objetivo de reabilitar a figura de D. João?

LÚCIA BASTOS Não diria reabilitar, mas traçar sua trajetória dentro do contexto em que está inserido. O papel do historiador não é construir figuras depreciativas. O filme “Carlota Joaquina”, por exemplo, não contribuiu para o conhecimento da História por um público mais amplo. Claro que popularizou D. Carlota e D. João, mas do que as pessoas lembram? De um D. João que só comia coxinha de galinha. Após o filme, em uma avaliação no ensino médio, ao ser indagado acerca de uma contribuição do período de D. João, um aluno escreveu que ele tinha criado o delivery de frangos no Rio de Janeiro!

RH Foi complicado pesquisar a vida de D. João?

LB Bastante. Imagine que no dia em que ele nasceu, 13 de maio de 1767, a Gazeta de Lisboa estava suspensa por ordem do futuro marquês de Pombal (1699-1782), talvez em represália a alguns artigos que não lhe eram favoráveis. Era o jornal que trazia o noticiário protocolar, por exemplo: “Os sinos das igrejas repicaram pelo feliz sucesso da Princesa do Brasil”. Pesquisar a vida privada dele já começa com esse obstáculo. Há pouca documentação. Os livros do historiador português Ângelo Pereira mencionam fontes de sua coleção particular, mas hoje ninguém sabe onde se encontram. De qualquer forma, podem ser consideradas informações confiáveis. Na Biblioteca Nacional, há escritos de Mello Moraes [político e historiador alagoano, ver nesta edição, pp.84-85], mas ele mesmo avisa: “Transcrição alterada de um manuscrito anônimo”. Logo, não é possível saber o quanto foi modificado, mesmo se compararmos com outros documentos. Mas há dados sobre o batizado e a infância de D. João em alguns cronistas do século XIX.

RH Pode-se dizer que ele não foi educado para ser rei?

LB Ele era o segundo filho e, de fato, todas as atenções voltavam-se para D. José, que teve uma educação esmerada por ser o provável futuro rei de Portugal. A educação de D. João, entretanto, deve ter sido semelhante à do irmão, pois pertencia a uma Casa Real. Recebeu, pelo menos, conhecimentos básicos da leitura e da escrita, bem como noções de artes, principalmente a música e a equitação. Observa-se, contudo, uma espécie de dualidade entre os dois irmãos: enquanto D. José representava as luzes em Portugal, D. João parecia representar uma sociedade do passado. Era bem da estirpe do pai, D. Pedro III: supersticioso, religioso, ligado às tradições, além de deleitar-se com uma boa mesa. O marquês de Bombelles, embaixador francês, ao visitar os aposentos de D. José, extasia-se com seu gabinete de física. Enquanto isso, D. João devia encontrar-se no convento de Mafra em companhia dos frades, rezando. Há até uns versinhos: “Nós temos um rei/ Chamado João/ Faz o que lhe mandam/ Come o que lhe dão/ E vai para Mafra/ Cantar o cantochão [tipo de música sacra]”. Como outros membros de sua família, D. João apreciava a música. Além da música sacra, gostava de alguns espetáculos, sobretudo de ópera italiana. Um mínimo de preparo para governar, é claro que tinha. Sua política e sua administração demonstraram isso. Mas viveu à sombra do irmão.

RH Até que o irmão morre.

LB Morre e não deixa herdeiros. Isso ocorreu em 1788. D. João tinha 21 anos, o que significa que passou um longo tempo de sua vida sem se preocupar em se preparar para ser rei. Mesmo quando da morte do irmão, D. João não precisou assumir o poder de imediato. Sua mãe, D. Maria I, tinha 54 anos, e ainda poderia governar por mais tempo. No entanto, ela desenvolveu uma doença mental que obrigou D. João a assumir os despachos em 1792, e, sete anos depois, tornar-se príncipe regente. Antes disso, porém, outro grave problema havia assustado o reino: um ano depois da morte do irmão, D. João adoeceu. Não há informações precisas sobre a enfermidade, mas há registros que demonstram sua gravidade. Ele já havia padecido das “bexigas” (varíola), as mesmas que mataram seu irmão e parte da família – sua irmã, seu cunhado, seu sobrinho –, e mesmo depois, seu primeiro filho homem. Se a varíola foi fatal para tantos na família real, é possível imaginar o que sucedia entre a população...

RH E a doença assustou porque ele não tinha filhos.

LB Sim. Ele estava casado com D. Carlota havia quatro anos, mas o casamento não tinha sido consumado. Em suas cartas à irmã Mariana Vitória, D. João demonstrava ansiedade em fazer daquela menina sua mulher. Mostrava impaciência porque Carlota não crescia, continuava semelhante à pequena Carlota que viera para Portugal. Isso era tema de grande discussão na Corte. Se D. João e D. Carlota não tivessem filhos, o herdeiro mais próximo seria sua irmã Mariana, casada com o infante espanhol, e que já tinha herdeiros. Assim, o soberano de Espanha poderia ser, novamente, rei de Portugal. O pavor da União Ibérica era uma constante entre os portugueses, ainda mais no momento das guerras napoleônicas. Um herdeiro era a grande preocupação do povo português, sendo notícia comentada em jornal e em escritos diversos.

RH As intimidades de alcova?

LB Sim. A consumação do casamento tornava-se assunto de Estado. Um cronista da época do Convento de Xabregas anotava: “no dia 2º deste referido mês de março do ano de 1790, se fez pública a visita mensal na Senhora Carlota Joaquina. Então, já temos esperança”. A primeira vez foi um evento marcado: na “primeira oitava da Páscoa da Ressurreição” efetuou-se o “dito ajuntamento, sendo a Princesa acompanhada ao quarto de seu marido pela Rainha e pela Princesa viúva do príncipe D. José”. O primeiro herdeiro, porém, só nasceu três anos depois – uma menina, chamada Maria Teresa. Os festejos foram extraordinários, pois estava garantida a sucessão, uma vez que não só em Portugal, como em outros reinos da Europa e depois no Brasil, não havia impedimento de uma mulher assumir o trono.

RH D. João e D. Carlota moravam em lugares diferentes?

LB Somente a partir de 1802, quando D. João autorizou a compra da Quinta do Ramalhão, em Sintra, que se transformou no Paço de Carlota. Mais tarde, ao retornar para Portugal por não querer jurar a Constituição de 1822, ela ficaria exilada no Ramalhão. Alguns dizem que Carlota ganhou o Paço não por desavenças entre o casal, mas porque tinha problemas de pulmão. Encontrei uma correspondência na Biblioteca da Ajuda, em Lisboa, em que um médico afirma que Carlota tinha acessos de tosse freqüentes e problemas pulmonares. Sintra é uma serra, local propício à sua recuperação. Mas é claro que havia intrigas e fofocas.


RH Que tipo de fofoca?

LB Naquele mesmo ano nasceu D. Miguel, que, segundo muitos, não seria filho de D. João. Afirma-se que, a partir de então, os filhos de Carlota Joaquina não seriam mais de D. João. Há, contudo, uma outra história, não comprovada, de que D. João teria uma filha bastarda. No último livro da Laura de Mello e Souza, O Sol e a Sombra (2006), há uma notinha sobre isso. A amante seria uma mulher nobre, Eugênia José de Menezes, filha do conde de Cavaleiros. Era dama de honor da câmara da rainha e das infantas. Dizem que em 1803 ela teria fugido com João Francisco de Oliveira, médico da Corte e casado. Por esse crime, D. João fez um decreto retirando todos os direitos de D. Eugênia, e outro condenando o médico à morte por ter abusado de uma nobre. E a trama desenrola-se: Eugênia foge para a Espanha e o médico, para os Estados Unidos. Parece haver uma carta dele à sua mulher afirmando que um dia ela entenderia o que realmente acontecera. Eugênia deu à luz uma filha na Espanha, também chamada Eugênia. Logo depois, D. João permite que ela volte com a filha para ficar em um convento e ainda lhe garante uma pensão de mil contos de réis anuais, e outra para a filha, de 500 contos de réis. Esse dinheiro sai de onde? Do real bolsinho. Há cartas em que ela agradece a D. João e reconhece seu pecado – o de ter uma filha natural, mas sem se referir ao pai da criança. Por isso, alguns autores afirmam que houve um caso entre os dois e que a filha era de D. João. Ele teria pedido ao médico que assumisse a criança. Ao voltar dos Estados Unidos em 1816, o médico teria passado pelo Brasil e obtido, em 1820, o indulto de D. João. Retornou a Portugal e elegeu-se deputado pela Ilha da Madeira. Mais tarde, o médico legitima D. Eugênia, a filha, que passou a morar com ele. Até D. Eugênia morrer e a filha ser reconhecida, elas sobreviveram graças à pensão real. No final dos anos 1840, a suposta bastarda conseguiu uma graça da rainha D. Maria II, que reabilitou a mãe, e com isso restituiu as honras da nobreza a seus herdeiros. Naquele momento, a história veio à tona partindo da família, que queria ver a bastarda reconhecida como filha de D. João. A questão é: por que D. João não assumiu a filha bastarda? Outros reis da dinastia de Bragança tomaram tal atitude. Afirma-se que foi uma exigência de D. Carlota, que não aceitava esse reconhecimento. Alguns duvidam da história, por ser D. João um homem feio, sem nenhum vigor ou atrativo.

RH Era gordo?

LB Desde criança: gordo, de pernas roliças, comendo demais. William Beckford, um rico aristocrata inglês que esteve em Portugal em 1787, afirmava que “os portugueses comiam demais”. Sua alimentação era muito condimentada e pesada. O serviço de um jantar lembrava-lhe uma corte feudal: inúmeros nobres servindo. Talvez por isso D. João não tivesse uma boa saúde. A sua doença, em 1789, poderia ter sido um sangramento intestinal. A história das coxinhas foi difundida em Portugal, sobretudo pela historiografia republicana, através de Oliveira
Martins, atingindo também o Brasil. Talvez porque nas contas da Real Ucharia [despensa] houvesse uma grande despesa com aves.

RH Mas gostava de cavalgar.

LB Muito, inclusive ia com sua mãe à caça em Salvaterra dos Magos, onde havia um Paço. Era costume trazer algum animal para oferecer de presente aos ministros estrangeiros ou ao núncio apostólico. Aqui no Brasil, possuía a Fazenda de Santa Cruz e a Coutada da Ilha do Governador. No entanto, afirmam que ele caçava menos por sofrer de hemorróidas, o que o impedia de cavalgar. Além disso, havia o problema de uma ferida na perna que não sarava. Em suas audiências no Palácio de São Cristóvão ou no Paço Real, e também no “beija-mão”, mantinha a perna em um banquinho. Há alguns indícios de que fosse diabético.

RH Quando se tornou regente, em 1799, que medidas tomou?

LB Reabilitou as audiências públicas, cujos dias eram assinalados no Almanaque de Lisboa. Qualquer pessoa podia entrar no palácio e fazer suas queixas e pedidos. Não eram uma novidade, mas tinham deixado de acontecer. De início, ele não ousou alterar os ministros de sua mãe, mas aos poucos modificou a composição do ministério. A grande mudança foi trazer D. Rodrigo de Souza Coutinho, um ilustrado, partidário dos ingleses. Depois, por causa de intrigas, ele seria afastado. Assumiria Araújo de Azevedo, mais tarde conde da Barca, também um ilustrado, porém favorável aos franceses. D. João evitou, contudo, ter um superministro, em função do que fora vivenciado pelo avô, D. José I, que viu seu governo ser controlado pelo marquês de Pombal.

RH Ele era generoso?

LB Era, por isso foi alcunhado de “O Clemente”. Ele atendia a todos que solicitavam alguma mercê, como a redução de uma pena ou a comutação da pena de morte. Um dos poucos que não foram beneficiados com tal graça foi Tiradentes, em 1792, mais tarde transformado em nosso herói nacional. No Brasil, ele sempre foi considerado um rei magnânimo, simpático e bonachão.

RH De onde vem a fama de indeciso?

LB Ela pode ser, em parte, atribuída à política externa de neutralidade adotada por Portugal. Era uma postura antiga, pois desde o século XVIII havia a idéia de manter a neutralidade com a Espanha, em virtude de uma preocupação com o jogo de alianças na Europa. Em 1793, Portugal entrou na Campanha do Rossilhão, contra a França. Mas depois tentou, com certa habilidade, manter-se neutro entre Inglaterra e França. A indecisão maior foi quanto a deslocar ou não a Corte para a América portuguesa. Naquela época, não era mesmo uma decisão fácil, sobretudo sendo preciso atravessar um oceano. Outros soberanos europeus — o rei do Piemonte e o rei das Duas Sicílias —, para preservar a coroa e a soberania ao longo das guerras napoleônicas, já se tinham ausentado temporariamente de suas capitais e estados. Mas nenhum cruzou um oceano.

RH A única opção era o Brasil?

LB A solução havia sido pensada por longos séculos e voltou a ser discutida no início do século XIX. Seria possível tentar um desembarque na Ilha da Madeira, porém era muito próxima. Vir para este lado do Atlântico representava a possibilidade, sobretudo, de manter o Brasil. Se Portugal fechasse seus portos à Inglaterra, como queria Napoleão, ela poderia invadir o Brasil. Além disso, começaram a surgir problemas nas colônias espanholas na América. Na Europa, o rei espanhol foi preso e obrigado a renunciar em favor de seu filho. Até o papa foi mantido prisioneiro. D. João, vindo para sua colônia na América, manteve a soberania. Não a soberania territorial, mas a soberania dos Bragança. A execução dessa estratégia foi muito interessante, e ainda tinha como objetivo fundar um novo império – o império luso-brasileiro.

RH A sensibilidade artística influiu nas medidas para o Rio?

LB Ainda em Portugal, em 1793, D. João inaugurou o Teatro São Carlos. A partir de então, o circuito de ópera, antes restrito à Corte, passou a acontecer nos teatros públicos. Em vez de o teatro vir à Corte, a Corte ia ao teatro. No Rio de Janeiro, a criação da Biblioteca, o Jardim Botânico, as escolas de cirurgia, as aulas de comércio foram tentativas de fornecer à cidade o caráter de uma sociedade de corte. A vinda para o Brasil de muitos franceses, mesmo seguidores de Napoleão, indicava também um certo clima de tolerância. Na época, a Intendência da Polícia mandava prender pessoas só por serem francesas. A presença destes, como os membros da “Missão francesa”, em 1816, reforçou ainda mais a imagem de magnânimo de D. João, “O Clemente”.

RH Que crítica se pode fazer a D. João como governante?

LB Ele continuava a pensar como um soberano do Antigo Regime. Havia a possibilidade de realizar reformas contra os abusos dos governadores das capitanias, mas ele não as executou. O absolutismo não era do rei, mas sim dos governadores. As desavenças das outras províncias com o Rio de Janeiro foram fruto dessa falta de percepção. O Rio de Janeiro acabou se transformando no grande opressor, na nova Metrópole, sobretudo quando das guerras no Sul, o problema da Cisplatina. Pernambuco, quando eclodiu a Revolução de 1817, recusou-se a pagar impostos criados para sustentar essas guerras. D. João ficou aquém do que poderia. Achou que bastava implantar as coisas essenciais para fazer daqui uma Corte, sem mudar o espírito de sua política.

RH A volta foi uma decisão difícil?

LB Ele não pretendia voltar. Sentia-se bem no Rio, tinha grande afeição pelo Brasil. Além disso, era melhor ser um rei importante no Novo Mundo do que soberano de uma potência de terceira categoria na política de equilíbrio europeu daquele momento. Aqui as pressões eram menores. Além do mais, éramos uma Corte nos trópicos, algo diferente e exótico. Nos momentos finais, ele lamentava abandonar o Brasil. E até algumas semanas antes de viajar, estava decidido a mandar o filho D. Pedro para Portugal.

RH E em vez de voltar em seu lugar, o filho proclamou a Independência do Brasil um ano depois.

LB Até meados de 1822, ninguém pensava em independência. Os escritos continuavam a falar em luso-brasileiro e brasileiro-português. Em 2000, em Portugal, na Exposição sobre os 500 anos do achamento do Brasil, havia uma chamada que afirmava que Portugal “havia concedido a Independência ao Brasil”. Isso trouxe muitas discussões acadêmicas entre lusos e brasileiros. Na verdade, o tratado de 1825, que reconheceu a Independência do Império do Brasil, cedia ao desejo de D. João VI de assumir o título honorário de Imperador do Brasil. No entanto, é interessante que em toda a documentação posterior a 1825 D. João continuou assinando “Rei de Portugal e Imperador do Brasil”. Quando ele morreu, em 1826, D. Carlota, ao fazer uma procuração para o inventário de seu marido, também assinava “Rainha e Imperatriz”. Permanecia a tradição e a possibilidade de se manterem unidos os dois reinos. Nem mesmo José Bonifácio, o “patriarca da Independência”, pensava, de início, em uma separação definitiva. Sua proposta era a de dois reinos sob uma única coroa e um único império. A grande questão era decidir quem iria ser a cabeça desse império. Havia uma disputa de poder e de hegemonia entre Brasil e Portugal.

RH Há controvérsias sobre a morte de D. João?

LB Como sempre, há uma série de “murmurações” – ele teria morrido envenenado com laranjas colhidas no palácio de Belém. Para os historiadores conservadores, foram os liberais que mataram D. João porque ele revogou a Constituição portuguesa de 1822. Para os liberais, foram D. Carlota e o filho D. Miguel, com o objetivo de dar um golpe e reestabelecer o absolutismo. Alguns anos atrás, ocorreu o exame das vísceras de D. João, enterradas em um pote de cerâmica no Mosteiro de São Vicente de Fora. Descobriu-se uma grande quantidade de arsênico, o que poderia comprovar o envenenamento. Mas isso também pode ser contestado, em função dos produtos químicos usados na época para preservar os órgãos. É um mistério. Há vários mistérios que não foram decifrados. E que, provavelmente, não vão ser...

Verbetes entrevista

Luzes: o Iluminismo
Também conhecido como “Ilustração”, é o conjunto de ações e idéias ligadas à renovação intelectual do século XVIII, que primava pela razão e pelo conhecimento científico em contraposição à tradição e à visão religiosa do mundo.

Constituição portuguesa de 1822
Primeira Constituição portuguesa, elaborada pelas Cortes Constituintes de 1821-22 e aprovada em 23 de setembro de 1822. A ela o rei D. João VI (mas não a rainha, D. Carlota) presta juramento de fidelidade no mês de outubro do mesmo ano.

Campanha do Rossilhão (1792-1795)
Campanha militar da qual Portugal participou, com 5.400 homens, ao lado de Inglaterra, Espanha e outras nações, contra a França, onde a revolução tinha instaurado o regime republicano. Encerrada pelo tratado da Basiléia, após a reação vitoriosa dos franceses.

Cisplatina
Região situada ao sul do atual Brasil, a Cisplatina fazia parte do Vice-reinado do Prata. Após uma campanha militar iniciada em 1817, foi incorporada ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve em 1820. Tornou-se independente em 1828, como República do Uruguai.

Revolução de 1817
A chamada Revolução Pernambucana eclodiu em 1817 na cidade do Recife, espalhando-se em seguida pela província de Pernambuco e por outras do Nordeste brasileiro. A tentativa de proclamar uma república independente durou apenas três meses, sendo derrotada pelas forças leais à Coroa.

Tratado de 1825
O Tratado do Rio de Janeiro foi assinado em 29 de agosto de 1825 entre Brasil e Portugal, com a mediação do Reino Unido. Por ele, Portugal reconheceu a independência do Brasil, que, em contrapartida, assumiu dívidas de Portugal no valor de mais de 2,5 milhões de libras esterlinas.
Revista de História da Biblioteca Nacional