segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Sidney Chalhoub - Um ‘Bruxo’ na repartição


01/09/2008

Sidney Chalhoub
Um ‘Bruxo’ na repartição

Sidney Chalhoub costuma dizer que é um historiador dos “restos”. Em boa parte da obra deste carioca – há muito radicado na Unicamp –, os protagonistas são operários, escravos, agregados, mulheres, dependentes de todo tipo. Por isso a surpresa que causou ao lançar, em 2003, um livro sobre Machado de Assis. Seria uma guinada radical em sua carreira acadêmica?
Longe disso. Nesta entrevista à RHBN, ele explica o que o maior escritor brasileiro tinha em comum com essa classe marginal. Filho de um pintor e de uma imigrante portuguesa, Machado cresceu como agregado em uma casa senhorial. E foi a visão crítica deste mundo de dependência – o Brasil do século XIX – que imprimiu em sua obra.

Já no título, o livro provoca: Machado de Assis, historiador. A idéia era suficientemente polêmica para inquietar os críticos literários. Depois de quase duas décadas dedicadas ao escritor, Chalhoub nem liga para eles: “Machado é interdisciplinar por natureza”. Suas mais recentes descobertas revelam um funcionário público exemplar, a serviço da aplicação e da ampliação da Lei do Ventre Livre e contra a proliferação do latifúndio. “Era mais do que um bom técnico. Acreditava que estava prestando serviços como cidadão”.

Hábil com as palavras, Chalhoub defende a importância de escrever bem para todo historiador, imagina o fascínio que a Internet exerceria sobre Machado e, no fim, nos cobra uma pergunta que faltava: afinal, Capitu traiu Bentinho?

REVISTA DE HISTÓRIA É verdade que você descobriu a questão das relações raciais brasileiras nos Estados Unidos?

SIDNEY CHALHOUB Isso mesmo. Estudei História na UFRJ em um período complicado, meados dos anos 70. O curso vivia sob intervenção. Pessoalmente, não tive problemas políticos, mas assim que surgiu a oportunidade de estudar no exterior, eu aceitei. Concluí o curso de graduação na Lawrence University, em Wisconsin. Foi lá que li pela primeira vez sobre o tema. Era um seminário sobre relações raciais, e o professor sugeriu que eu fizesse um trabalho sobre o Brasil. Para o trabalho de fim de curso, precisei ler a bibliografia sobre o assunto: Gilberto Freyre, Florestan Fernandes... Olhar o Brasil de fora foi muito importante para mim, decisivo inclusive para fazer aflorar meu desejo de virar pesquisador em História.

RH E já voltou de lá com a idéia do livro Trabalho, lar e botequim?

SC Não. Quando voltei, em 1979, tinha a idéia de estudar o problema do negro no Rio de Janeiro. Mas as fontes eram escassas, especialmente sobre o período pós-escravidão. Foi aí que encontrei processos criminais no Arquivo Nacional. Gostei tanto que decidi mudar meu projeto, isso já no primeiro ano do mestrado na UFF. Quis abordar um tema que me permitisse usar aqueles documentos como fonte. É daí que nasce meu primeiro livro.

RH A que você atribui o enorme sucesso do livro?

SC De fato, ele teve uma repercussão imediata. Os anos 1980 foram um período de grande efervescência política. Os movimentos sociais ressurgiam com força. Você tinha movimentos de bairro, as feministas, os homossexuais, os partidos políticos de esquerda e o novo sindicalismo. Ao mesmo tempo, crescia também a idéia de que os sujeitos sociais eram mais variados do que aqueles movimentos. Os historiadores começaram a descobrir novas fontes que permitiam examinar o cotidiano dos trabalhadores de maneira diferente. Acho que o livro despertou interesse porque fazia uma utilização sistemática dos processos criminais e de fontes judiciais para contar a história dos trabalhadores da perspectiva deles. Minha idéia era não só contar uma história a respeito de como foi organizar a vida sem trabalho escravo, mas também analisar o ponto de vista dos trabalhadores sobre o que se fazia com eles.

RH Como assim?

SC Houve um processo em que um trabalhador era acusado de roubar pedaços de carne do açougue onde trabalhava. Ele não entendia exatamente do que estava sendo acusado. Era hábito dos empregados pegar pedaços de carne, que muitas vezes nem estava mais sendo aproveitada. Os trabalhadores achavam que tinham direito àquele tipo de remuneração. E aí, de repente, ele é acusado de furto. Pensar o mundo sem escravidão era um desafio no final do século XIX. É um período em que se criminaliza uma série de condutas que até então eram ligadas aos costumes. A idéia era trazer a própria experiência do trabalhador para o centro da narrativa.

RH O uso da narrativa, por sinal, foi outra inovação daquele livro.

SC Eu acho que não há contradição entre a produção de conhecimento histórico e a construção de uma narrativa mais prazerosa. Escrever é um prazer enorme. E é tão importante quanto pesquisar. História é discurso de demonstração e prova, ao mesmo tempo ciência e arte narrativa. Boa parte do conhecimento está no próprio jeito de narrar. E isso não significa de modo algum tornar o discurso menos complexo. A questão é: não se pode complicar um tema já complexo com um texto rebuscado. Quando você pega aquela obra, lê, decora um parágrafo inteiro e ainda assim não sabe do que se trata, é melhor desistir. Está mal escrito. Não tem desculpa.

RH Mas como a narrativa pode enriquecer o texto de História?

SC A narrativa gera muitas possibilidades de explicação e de especulação sobre o sentido das coisas. Ela é aberta, menos rígida. Permite-me avançar em algumas explicações possíveis que ainda não podem ser imediatamente comprováveis. A narrativa do historiador deve abraçar as dúvidas, as incertezas, as interpretações variadas sobre um fenômeno ou processo histórico. É preciso incorporar essas dimensões da produção do conhecimento, e não varrê-las para debaixo do tapete, produzindo um texto rígido que finge ter certezas.

RH Como surgiu o interesse por Machado de Assis?

SC Aproximei-me do Machado quando escrevia Visões da Liberdade, meu livro sobre escravidão urbana no Rio na segunda metade do século XIX. Quando comecei a reler as obras de Machado, no final dos anos 1980, vi uma relação entre o que lia na literatura e o que estudava em outros tipos de fontes. Em Machado, você tem aquelas figuras senhoriais, como o Bento Santiago de Dom Casmurro e o Brás Cubas das Memórias póstumas. São personagens que enxergam o mundo como uma mera expansão da vontade deles. Em Brás Cubas, por exemplo, Machado nos mostra a maneira como o protagonista era visto pelos dependentes à sua volta. Isso é muito evidente no modo como ele se relaciona com as mulheres. Existem muitas mulheres na vida do Brás Cubas, e todas fazem gato e sapato dele. De modo algum se submetem aos seus caprichos. Em geral, a saída de Brás Cubas é humilhá-las. É o caso de Eugênia: Machado nos faz ver que, embora esteja submetida a um poder senhorial excessivo, ela é capaz de fazer uma leitura política de sua situação e trabalhar o cotidiano de modo a diminuir suas humilhações.

RH Como foi a infância de Machado?

SC As informações a respeito da vida particular são muito restritas. Sabemos que o pai dele era pintor e a mãe, imigrante portuguesa e pobre. Eles eram dependentes em uma família senhorial da Corte. Então Machado passou por essa experiência da dependência pessoal e de ser agregado.

RH Algo muito presente na obra dele.

SC Com certeza. A situação de dependência que ele viveu o ajudou a construir essa visão sobre os marginalizados da sociedade. O curioso é que era mais fácil para Machado discutir essa questão da dependência por meio de personagens femininas. As mulheres de Machado são mais sofisticadas ao lidar com a situação de poder. É interessante quando ele coloca uma mulher na posição senhorial: Valéria, em Iaiá Garcia, exerce a dominação de uma maneira mais hábil, porque, como mulher, parece entender melhor as estratégias dos agregados. Ela age com muito mais autoconsciência e malícia do que Brás Cubas ou Bento Santiago.

RH Seu livro Machado de Assis, historiador causou polêmica ao propor uma nova maneira de interpretá-lo.

SC O que digo é que os romances de Machado foram escritos de modo a fazer com que a análise histórica seja uma das dimensões possíveis de interpretação. E essa é uma contribuição que os historiadores podem trazer a Machado. Ele é coisa séria demais para ser tópico só de críticos literários.

RH Então Machado é assunto interdisciplinar?

SC Ele é interdisciplinar por natureza. A aproximação com sua obra deve ocorrer em várias frentes, sem que uma invalide a outra. Estudá-lo a partir de uma perspectiva histórica não é reducionismo. Eu também poderia facilmente dizer, por exemplo, que uma análise de Machado que se detenha exclusivamente nas relações entre a literatura dele e o moralismo francês dos séculos XVII e XVIII é muito reducionista. O historiador está aí para tornar a obra ainda mais complexa.

RH Em que obra essa interpretação histórica salta aos olhos?

SC Brás Cubas, por exemplo, nos permite fazer uma leitura da História do Brasil daquela época. A maior parte do livro se passa entre os anos 1840 e 1850. O Brás Cubas desse período representa muito das características da sociedade brasileira. Ele faz parte da poderosa classe senhorial. É curioso também o modo como o romance constrói a figura do Quincas Borba. Primeiro ele é descrito como um amigo de infância. Depois, Brás Cubas tem a impressão de que ele é um pouco maluco. Quincas Borba insistia em algumas idéias filosóficas e na questão do humanismo. Idéias então estranhas para o protagonista. Na verdade, o que Machado projeta no Quincas Borba é a visão cientificista, ideologia da moda nos anos 1880. Ao escrever seu romance depois de morto, Brás Cubas passa a adotar essa ideologia e a ver Quincas Borba como um gênio sofisticado, uma espécie de darwinista social avant la lettre.

RH Por que decidiu estudar o funcionário público Machado de Assis?

SC Simples: vi ali uma maneira de articular suas convicções políticas e sua literatura. Uma literatura que me parecia comprometida em expor uma ideologia senhorial arbitrária e violenta. À primeira vista, essas conotações políticas pareciam improváveis em função do que se dizia sobre Machado. Por isso fui atrás do trabalho dele como servidor. Lá a militância era possível e evidente. Primeiro pesquisei a trajetória dele no Ministério da Agricultura. Depois localizei os papéis das seções, das repartições ministeriais nas quais ele trabalhou como funcionário e como chefe.

RH Em que consistia o trabalho dele?

SC Machado lidava com duas questões fundamentais: a política de terras e a escravidão. A repartição em que trabalhava recebia pedidos de concessão de terras e de reconhecimento de titularidades. O papel do ministério era fazer com que fossem respeitadas as regras que existiam e controlar em alguma medida a expansão do latifúndio. No caso da escravidão, o desafio do governo imperial era fazer cumprir a Lei do Ventre Livre, de 1871. Além de estabelecer a liberdade dos filhos de escravos, a lei também determinava que, quando fizessem 8 anos, essas crianças deveriam ser entregues ao governo imperial. Os senhores podiam escolher entre receber uma indenização ou ficar com as crianças até elas completarem 21 anos. As instituições organizadas para ficar com os filhos dos escravos eram obrigadas a dar educação primária a elas. Então, a seção do Machado encaminhou uma consulta pertinente: se as crianças entregues aos estabelecimentos públicos iriam receber instrução primária, os senhores que resolvessem ficar com elas também não deveriam ser obrigados a educá-las? O trabalho de Machado era esse: impor as regras da lei a qualquer custo e, na medida do possível, expandi-las.

RH Ele era um servidor dedicado?

SC Muito. Era um funcionário exemplar. Não tinha faltas e era muito elogiado pelos superiores. Tudo passava por ele. A maioria dos documentos que encontrei não era assinada, mas de vez em quando havia um bilhete do Machado, uma coisa ou outra assinada por ele. Ele participava da interpretação dos problemas relatados e ajudava a encontrar uma solução. Tinha um enorme conhecimento de jurisprudência administrativa e sabia mobilizar as leis existentes para apoiar essa ou aquela solução. Alguns de seus pareceres chegavam a ser estudados pelos demais servidores. Mas Machado era mais do que um bom técnico. Ele acreditava que estava prestando serviços como cidadão. Na percepção dele, o Estado imperial, com todos os seus defeitos, era a única fonte possível de civilização contra a barbárie senhorial.

RH Você está preparando uma nova edição das crônicas de Machado. Qual é a diferença em relação às que já existem?

SC É importante entender que a literatura brasileira do século XIX acontecia pela imprensa. Isso é ainda mais evidente no que se refere às crônicas. Eram textos que, de modo geral, dependiam da relação que estabeleciam com o jornal ou a revista em que eram publicados, a circunstância do momento, os eventos da semana. O próprio Machado nunca reuniu suas crônicas em um volume, pois achava muito difícil fazer isso. As crônicas eram narrativas escritas de modo que o leitor entendesse e identificasse os acontecimentos diários aos quais elas remetiam. Por isso é importante fazer edições comentadas. Minha idéia é tornar estas crônicas frescas de novo, destacando o que havia no entorno delas. Assim podemos analisá-las para investigar as opiniões do Machado sobre os mais variados fatos históricos.

RH Também é importante lembrar que os romances eram publicados aos poucos?

SC Claro. Se uma pessoa olha uma reprodução de Van Gogh, sabe que está vendo uma reprodução de Van Gogh. Mas quando essa mesma pessoa pega a versão em livro de Brás Cubas, acredita estar com a obra na mão. Não está: Brás Cubas foi primeiro publicado em capítulos, na Revista Brasileira.

RH É justa a crítica de que Machado se omitiu diante da escravidão?

SC De modo nenhum. Ele atua em relação ao problema de duas maneiras: primeira, quando é funcionário público e faz cumprir a Lei do Ventre Livre. Naquela época, fazer aplicar esta lei era uma batalha política cotidiana. Outra forma de engajamento se dá por meio da crítica às ideologias que balizavam a escravidão e que depois vão sustentar a reprodução das desigualdades por meio do racismo. Machado era muito cético e criou várias alegorias e histórias satirizando as pretensões da ciência do século XIX.

RH Em que obras isso é mais evidente?

SC Em Brás Cubas, por exemplo, a personagem Eugênia é uma alegoria da desqualificação da ciência racial. Ela é bem-nascida, mas coxa. Machado fazia uma crítica radical às pretensões cientificistas porque percebia que a ciência racial vinha substituir a política de domínio da escravidão. Ele, inclusive, lutou contra o esquecimento da escravidão, já no início do século XX. “Pai contra Mãe” é um conto de 1906, quase 20 anos depois da abolição. Machado começa descrevendo os horrores do tempo da escravidão e depois conta a história de um cara cuja profissão era ser apresador de escravos. Ele localiza e prende uma escrava, grávida de muitos meses, que vivia escondida na cidade. É um conto feito para chocar.


RH Os jovens lêem Machado na escola e, em geral, costumam detestar os romances. Existe uma idade certa para ler Machado?

SC Não é uma questão de maturidade. Na verdade, toda essa aceleração da informação no mundo hoje me parece ter prejudicado a leitura, ou melhor, o tempo dedicado à leitura. O estudante parece ter dificuldade para se concentrar em uma coisa só. Ele vai para a biblioteca com o celular no bolso. E para ler os clássicos, não só Machado, são necessários tempo e atenção. Não estou preocupado, por exemplo, com a Internet. Leio muita coisa no computador, bem devagar, prestando atenção. Um bom leitor se aproveita bem da Internet. A questão é como formar este bom leitor.

RH O que Machado acharia destes tempos de computador e Internet?

SC Acho que ele adoraria ter acesso a esses milhares e milhares de obras disponíveis na Internet. Embora não tenha conhecido a Europa nem os Estados Unidos, Machado era um grande leitor de jornais estrangeiros. Para uma pessoa como ele, a Internet teria sido uma coisa absolutamente fascinante. Poder ler o New York Times todo dia, o Guardian, o Le Monde, jornais africanos, espanhóis... É por isso que digo: a questão não é o suporte, mas o modo de ler. Vocês só não me fizeram a pergunta do senso comum: se Capitu traiu Bentinho. Se tivessem me perguntado, eu teria uma resposta. Perguntem.

RH Capitu traiu Bentinho?

SC Machado não sabia. Essa é a resposta. E por que não sabia? Porque Dom Casmurro é uma especulação, um exercício de interpretação dos sentidos da história. Dom Casmurro é um momento de reflexão sobre a indeterminação da História. O protagonista é aquele membro da classe senhorial, falido no sentido moral, que reflete sobre a experiência da derrota. A indefinição sobre se o adultério aconteceu ou não é uma maneira de Machado sublinhar um futuro aberto. O livro pode ser lido como uma especulação a respeito do futuro daquela sociedade.

Saiba mais - obras do autor:

Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano de trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. Campinas: Editora da Unicamp, 2001 (2ª. edição).

CHALHOUB, S.; PEREIRA, Leonardo A. de Miranda; NEVES, Margarida de S. (orgs.). História em cousas miúdas: capítulos de história social da crônica no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2005.


Saiba mais - Verbetes:

Florestan Fernandes (1920-1995)
Sociólogo e político brasileiro. Na USP, foi professor de intelectuais como Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso. Cassado pelo regime militar em 1969, deixou o país e lecionou em universidades nos EUA e no Canadá. Entre suas obras destacam-se A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá (1952) e A integração do negro na sociedade de classes (1964).

Moralismo francês
Referência a um grupo de pensadores franceses dos séculos XVII e XVIII que escreviam críticas de costumes. Entre os mais destacados se encontram François de la Rochefoucauld, Jean de La Fontaine, François-Marie Arouet (Voltaire) e Henry Bayle (Stendhal).

José Veríssimo Dias de Matos (1857-1916)
Jornalista, educador, historiador e crítico literário. Editor da Revista Brasileira, seus estudos foram influenciados pelo evolucionismo e pelo determinismo, evidentes nos escritos sobre a Amazônia, publicados em Estudos brasileiros (1889-1904) e Estudos de literatura (1901-1907).
Revista de História da Biblioteca Nacional

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