Alberto da Costa e Silva
Sem a África o Brasil não existiria
Revista de História
Em 1963, Alberto da Costa e Silva ouviu de um professor de Oxford, Hugh Trevor-Hopper, que não existia uma História da África subsaariana, mas somente a História dos europeus no continente, “porque o resto era escuridão, e a escuridão não é matéria da História”. Foi nessa época que o historiador, poeta e diplomata brasileiro começou a pesquisar com afinco a História do continente africano, matéria de incontáveis artigos e ensaios – e também dos monumentais A enxada e a lança e A manilha e o libambo, dois primeiros volumes de uma ambiciosa História do continente negro, aos quais logo se juntará um terceiro, que tratará do tema até o fim da Primeira Guerra, como ele revela nesta entrevista à Revista de História.
Filho do poeta Da Costa e Silva, Alberto nasceu em São Paulo, em 1931. Formado pelo Instituto Rio Branco, no ano de 1957, serviu como diplomata em Lisboa, Caracas, Washington, Madri e Roma, antes de ser embaixador na Nigéria e no Benim, em Portugal, na Colômbia e no Paraguai. Foi chefe do Departamento Cultural, Subsecretário-Geral e Inspetor-Geral do Ministério das Relações Exteriores. Membro da Academia Brasileira de Letras, é o mais importante estudioso brasileiro das relações entre o Brasil e a África negra. Para essa entrevista, Alberto abriu o seu apartamento no Rio, cercado de máscaras, estátuas, tapetes e toda sorte de objetos que recolheu ao longo da vida: um pedaço da África no coração do bairro de Laranjeiras.
REVISTA de HISTÓRIA Vamos falar um pouco da sua história.
ALBERTO DA COSTA E SILVA Nasci numa biblioteca. Sou como Baudelaire, meu berço ficava na biblioteca. Sou um homem de letras, um poeta, cresci entre livros. Meu avô materno era um comerciante de borracha na Amazônia, mas tinha uma enorme biblioteca jurídica e filosófica. O hobby dele era estudar Direito. De certa maneira, o mundo sempre me chegou pelos livros. Desde menino tive essas duas paixões: a poesia e a História. E tenho a impressão de que o poeta ajuda o historiador – o poeta intui esse muito de imaginação de que você necessita para tentar restaurar um tempo que já passou – e que, de certa forma, você jamais pode dissociar a História das artes literárias, pois a História surge como um gênero literário e é um gênero literário até hoje. Não importa muito se você aceita inteiramente o que está em Gibbons, Michelet, Burckhardt ou Huizinga. O fato é que você continua a lê-los porque eles apresentam o retrato pessoal do que eles achavam que era o passado, e esta visão pessoal é o poeta quem a dá. Num certo sentido, eles eram poetas. Nasci em São Paulo, criei-me em Fortaleza, e, aos 13 anos, vim para o Rio de Janeiro. Meu pai era do Piauí, mas se encontrava em São Paulo como alto funcionário do Governo Federal quando houve a Revolução de 32, e precisou abandonar a cidade. Pouco depois ele teve um problema neurológico e perdeu o uso da razão. Tinha 42 ou 43 anos. Passou o resto da vida sentado, lendo seus livrinhos. Às vezes ele lia em voz alta para mim, foi o meu grande companheiro de infância. Lia Walt Whitman em inglês. Eu não sabia inglês, mas sabia que aquilo era bonito, tinha a noção de que as palavras possuem valor musical próprio, independente do significado. Então me criei com um homem enfermo, mas que me abriu muitos horizontes. Vim para o Rio de Janeiro aos 13, 14 anos. Estudei no Colégio São José e no Instituto Lafayette. Quando, mais tarde, entrei para a Faculdade de Direito, fui trabalhar na Biblioteca Nacional, na seção de Manuscritos, com José Honório Rodrigues. Trabalhei na catalogação e identificação da coleção de Alexandre Rodrigues Ferreira, e também na coleção do Visconde do Rio Branco. Aí, como era normal entre os adolescentes, eu tive a minha tuberculose e fui para Campos do Jordão, onde fiquei três anos. Lá, tive um companheiro de quarto, um alemão chamado Rolf, que era filho de Waldemar Wreszinski, professor de História Antiga na Universidade de Königsberg e autor de três volumes monumentais sobre a medicina no Antigo Egito. O Professor Wreszinski morreu no início do nazismo, desgostoso com a evolução dos acontecimentos na Alemanha, e o filho imigrou para o Brasil. Rolf me abriu muitos horizontes, porque era um homem de uma amplidão cultural como existem poucos no Brasil.
RH O senhor já pensava em seguir a carreira diplomática?
ACS De volta ao Rio de Janeiro, resolvi fazer concurso para o Itamaraty. Na realidade, o que eu queria era ser antropólogo, mas com a doença a antropologia foi descartada. Resolvi ser diplomata para tirar a desforra do Barão do Rio Branco, que selecionava os diplomatas num almoço no Itamaraty. Ele chamava os jovens para almoçar e depois decidia se o sujeito entrava ou não. Ao que parece, ele era bom examinador, pois na época o nível da diplomacia brasileira era muito alto. Mas acho que com o meu pai ele foi injusto, porque, depois do almoço com meu pai, disse-lhe: “Da Costa – era como meu pai era conhecido –, você é muito inteligente, fala francês muito bem, conhece inglês, alemão, espanhol, mas você é muito feio.” Meu pai não era bonito, mas também não era tão feio assim, era um nordestino franzino, e era estrábico. O Barão continuou: “Já dizem que o Brasil é o país dos macaquinhos, e se você for lá para fora vão verificar que isso é verdade.” O Pedro Nava narra essa impiedade do Barão do Rio Branco em O Balão Cativo, mas eu já conhecia o episódio por tradição familiar. Então pensei: eu sou menos feio que meu pai, e o Itamaraty não tem mais esses critérios, então vou fazer o exame para o Instituto Rio Branco. E deu certo.
RH Que lembranças o senhor tem do tempo em que morou na África?
ACS A primeira impressão que tive foi a de entrar num mundo culturalmente rico. O colonialismo na África tinha sido de superfície, pelo menos foi essa a impressão quando nela estive pela primeira vez. A cultura africana continuava viva e bem de saúde. Foi uma impressão que já tinha tido, curiosamente, anos antes, durante negociações com os japoneses, no Itamaraty. Tudo que era ocidentalizado neles era de superfície, a cultura era diferente da nossa, embora sempre participando da cultura humana que é a mais geral de todas. Há duas coisas na África Ocidental que são muito marcantes: os valores familiares e o respeito à idade. Ninguém se aproxima de uma pessoa mais velha sem uma postura de respeito, a olhar o mais velho na mesma altura dos olhos, mas sempre de joelhos ou de cócoras. São marcas da maneira de viver, assim como o respeito imenso que se tem pelas crianças, que são tratadas de igual para igual. Na verdade, a África, como unidade, não existe, é uma invenção nossa. O que existe são numerosos povos de culturas diferentes, que, da mesma maneira que os europeus, possuem alguns elementos culturais básicos comuns. Não há nada mais diferente culturalmente que um espanhol e um escandinavo, ou um inglês e um russo.
RH Fale sobre o seu apego à África.
ACS Foi a partir dos meus 15, 16 anos, que comecei a me interessar pela África. Li Casa Grande e Senzala e foi um deslumbramento. Logo ficou muito claro para mim que não se podia entender o Brasil e não se podia escrever sobre o Brasil sem conhecer a África. E nós tínhamos uma História que era uma transposição lusa para o continente americano. Nós nos víamos como portugueses exilados nos trópicos. E não éramos exatamente aquilo, éramos muito mais do que portugueses exilados nos trópicos. Tínhamos um componente africano que era nítido, e mais tarde eu pude compreender isso quando vivi na Nigéria. Notei que os movimentos brasileiros são, em grande parte, movimentos africanos. A maneira de sentar dos brasileiros não é portuguesa, eu vivi em Portugal oito anos, conheço muito Portugal. Você só vê gente deitada em cima do muro em dois lugares do mundo, no Brasil e na África, em qualquer outro lugar o sujeito cai. E eu vi isso em países africanos: na Nigéria, no Benim, no Congo, o sujeito deitadinho em cima do muro e dormindo sem cair. No Itamaraty, entre 1958 e 1960, li tudo o que me chegava sobre a África das Embaixadas em Londres, Paris, Bruxelas, Lisboa e Nações Unidas. E me embrenhei na biblioteca do Itamaraty, onde havia muita coisa sobre o continente. Lá encontrei o Valentim Fernandes, o Ramusio (Giovan Battista) na primeira edição, que era do Barão. Li Leão Africano, o Relato do Piloto Anônimo, o Esmeraldo de situ orbis, do Duarte Pacheco Pereira, João de Barros... Comecei a procurar a África nos antigos autores portugueses e descobri uma riqueza espantosa, até mesmo em Camões, no Canto V dos Lusíadas, que é uma visão extraordinariamente poética e real da costa africana. Ele mostra um espanto semelhante ao que tive ao chegar à Nigéria em 1960, o espanto que tomou Vasco da Gama ao chegar a Moçambique, Quiloa, Mombaça, Zanzibar, quando topou com aquele mundo de barcos, aquele comércio enorme que a África Oriental tinha com a Índia, com a China e com a Indonésia. Então fui para Portugal e meu chefe, que era Negrão de Lima, me pôs a cuidar dos assuntos africanos e a acompanhar o que se passava na África Portuguesa. Os anos 60 marcam o início da renovação dos estudos africanos, que vinham numa perspectiva diferente, mais antropológica, mais etnográfica do que histórica. Nos anos 60 os estudos históricos foram impulsionados pelo processo de descolonização da África, e foi nessa época que o Itamaraty começou a me mandar para lá: Nigéria, Etiópia, Daomé, Togo, Gana, Camarões, Angola, Serra Leoa, Libéria e Senegal. Conheci esses países todos à custa do erário público. Estou devolvendo um pouco do que investiram em mim.
RH E quando o senhor decidiu escrever sobre a História africana?
ACS Um dia, numa discussão com Carlos Lacerda a respeito da guerra civil angolana, mencionei coisas históricas relativas ao passado de Angola e Carlos me disse: “Alberto, você sabe tudo isso sobre a África e guarda para si? Você tem a obrigação intelectual de pôr isso no papel, de publicar, de transmitir o que sabe!”. Fui para casa e decidi escrever sobre a África. Foi quando comecei a trabalhar no livro A enxada e a lança, em 1975 ou 1976. Eu tinha pouco tempo para escrever, estava em Madri e comecei a juntar minhas notas. Depois de Madri eu fui para Roma, na época do seqüestro de Aldo Moro, das Brigadas Vermelhas, da crise da democracia cristã, um momento complicado. Depois fui para a Nigéria, continuei escrevendo, e vim para o Brasil para ser chefe do departamento cultural do Itamaraty e subsecretário geral do Ministério. Eu escrevia todos os dias de manhã, das seis às oito. Passei dez anos escrevendo A enxada e a lança. Curiosamente, o livro teve uma boa aceitação. Foi praticamente o primeiro livro sobre História africana que se publicou no país. Imediatamente comecei a escrever a continuação, A manilha e o libambo, e agora quero dedicar-me ao terceiro volume.
RH Como será esse livro?
ACS Será sobre os séculos XVIII e XIX na África, quando ocorre o verdadeiro impacto europeu. Até 1700, o comércio de escravos foi bastante reduzido e estava localizado em determinadas áreas da África, pouco extensas. No século XVIII começaram a ser trazidas para a América grandes massas de escravos, na maior migração forçada da história da humanidade. Foi então que a Europa começou a entrar de verdade na África. A história do colonialismo, no entanto, só começa no fim do século XIX, quando a Europa consegue romper a casca da África. A África era como uma laranja, e os europeus foram picando a casca. Só a partir do século XVIII eles começaram a entrar na polpa branca da laranja. E foi somente no fim do século XIX que eles entraram nos gomos da fruta. Eu quero mostrar como os reinos africanos, como as estruturas políticas africanas, desde as mais elaboradas até as mais simples, de aldeias-estados e de microestados, reagiram à entrada dos europeus, como se opuseram aos europeus, como se organizaram e como surgiram, em resposta ao desafio europeu, novas estruturas políticas. Este é o aspecto mais fascinante da História da África, aquele que sempre mais me seduziu, mas eu não podia tratar dele sem tratar antes dos outros. Eu tinha que começar pela pré-história da África, para dar sentido ao que eu estava fazendo. Eu mostro como os europeus chegaram lá como hóspedes e como foram tratados como tal. Antes do século XIX, não havia impérios nem inglês, nem francês, nem português. Os portugueses tinham pequenos enclaves ao redor de Luanda, ao redor de Benguela, da ilha de Moçambique, na Zambézia, em Cachéu e em Bissau. Os ingleses possuíam um enclave na Serra Leoa. E ingleses e descendentes de holandeses e franceses dominavam espaços na África do Sul, a partir da colônia no Cabo. Fora disso, todo o domínio do continente era africano e, mesmo em alguns desses enclaves, pagavam-se tributos aos reis locais. Até que começou o lento processo de intromissão dos europeus, de desarticulação dos reinos africanos, embora alguns deles ainda sobrevivam até hoje. É um pouco a história de tudo isso, até 1918. Não pretendo entrar no processo de descolonização, que já é outra história. Eu só espero viver tempo suficiente, pois passei dez anos para escrever um livro e cinco anos para escrever o outro.
RH O senhor também escreveu Francisco Félix de Souza, Mercador de Escravos...
ACS Era um pesadelo que me acompanhava há muito tempo, desde a juventude, esse meu interesse por Francisco Félix de Souza, o Chachá. Eu tinha de escrever a biografia dele, e esta teve um destino ótimo para um livro de História: vendeu seis mil exemplares.
RH Como é possível comparar a relação com o sagrado na cultura africana e no Brasil?
ACS A relação com o sagrado está em todas as culturas. Não há cultura que não se ampare no sagrado, quer seja ele religioso ou não. Mesmo os laicos do Ocidente europeu estão na realidade ligados ao sagrado: o sagrado da igualdade, da liberdade e da fraternidade. Em povos com tradição monárquica, a força do sagrado também é muito forte. Entre os antigos estados africanos, a presença do divino era permanente. Era o divino que explicava o presente.
RH Que outras trocas ocorreram entre esses dois lados, Brasil e África?
ACS Desde o século XVI, existiu um movimento de fluxo e refluxo. De trocas de vegetais, por exemplo. Os africanos trouxeram o inhame, a malagueta, o dendê e a maconha. Para a África foram a mandioca, a batata-doce, o caju, o abacaxi.
RH A maconha não é nativa da América?
ACS Não. A maconha vem do Oriente, passa pelo Egito, desce até Angola e vem para o Brasil. Na época colonial era usada para fumar, exatamente como hoje. Em Angola era fumada normalmente. Não sou um expert no assunto, mas o que se sabe é que a maconha veio de Angola para o Brasil, talvez já no século XVI ou XVII. Os escravos a conheciam e a trouxeram como tantas outras coisas.
RH Fale sobre a importância da diplomacia em sua vida.
ACS A diplomacia, se me tirou muito das minhas ambições intelectuais, que retomei praticamente às vésperas de me aposentar, me abriu horizontes que eu não teria conhecido se tivesse ficado permanentemente no Brasil. Servi em Portugal, por duas vezes, na Venezuela, nos Estados Unidos, na Espanha, na Itália, na Nigéria, no Benim, na Colômbia e no Paraguai, viajei por quase todo o continente africano, por boa parte das Américas e pelo Oriente Médio. O ofício de diplomata ampliou a minha visão do mundo e me fez perceber que é impossível entender os países isoladamente. Você não pode escrever História do Brasil sem ter uma perspectiva de fora, uma perspectiva portuguesa, uma perspectiva africana, uma perspectiva espanhola, e italiana, e alemã. A diplomacia me deu essa abertura. Além disso, como diplomata presenciei muitos fatos históricos: no 25 de abril, eu estava em Portugal, saí às ruas às 5h da manhã para ver a Revolução [dos Cravos]. Eu estava em Roma, na Itália, durante o seqüestro de Aldo Moro, estive em Luanda em 1961, início da rebelião, e fui à frente de batalha. Nos Estados Unidos, assisti ao movimento contra a Guerra do Vietnã, e estava em Madri durante a morte de Franco e início da monarquia constitucional. Ser testemunha da História, ver a História com meus próprios olhos, ver a História se produzindo, foi a diplomacia que me permitiu isso.
RH E o papel da memória?
ACS Quando, na mocidade, fazia entrevistas para a revista A Cigarra, não havia gravador. Tinha de prestar atenção e guardar na memória, para depois escrever. Todo mundo tinha que ter memória ou não conseguia fazer entrevista. A memória é muito importante na vida das pessoas, não há aprendizado sem memória. Se não guardar, não adianta entender. Antes, tudo dependia da memória, você tinha que guardar tudo o que via e o que ouvia, e isso era extraordinário nos viajantes dos séculos XVIII e XIX. Lendo os livros deles, você tem a impressão exata de estar vendo o que eles viam. Eles não estavam escrevendo naquele momento. Eles viam, iam para casa e faziam seus diários, seus textos, mas conseguiam guardar na retina, conseguiam guardar o que eles realmente tinham observado com muita precisão, pois não tinham máquinas fotográficas nem gravador. Eram obrigados a observar com acuidade, com cuidado e atenção os pormenores. Os viajantes eram preconceituosos, eram cheios das más noções do seu tempo, mas sabiam ver. Eram fantasiosos, mas a fantasia ajuda. Coleridge fez aquela distinção entre fantasia e imaginação: a fantasia pode ser prejudicial, mas a imaginação é a fantasia organizada.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
Nenhum comentário:
Postar um comentário