domingo, 9 de novembro de 2008

João Paulo dos Reis Velloso

João Paulo dos Reis Velloso
Revista Desafios
abril de 2008
Por Jorge Luiz de Souza, do Rio de Janeiro


Desafios - Qual é a sua visão atual do desenvolvimento brasileiro?
Velloso - O Brasil teve uma geração de brasileiros que não viu o país crescer em termos de renda per capita. Ao analisar o que aconteceu nos últimos 25 anos, só nos últimos três nós começamos a apresentar taxas razoáveis de crescimento, principalmente em 2007. Digo razoáveis porque o Brasil já foi país de alto crescimento, como são hoje a China e a Índia. Houve uma desconstrução do alto crescimento. Perdemos o know-how de crescer rapidamente. Hoje, 5% é razoável, mas em 1977 ou 1978,quando tivemos que desacelerar a economia por causa da crise do petróleo, o crescimento estava em 5%, por coincidência, e a Fundação Getulio Vargas (FGV) falou: "O Brasil está em recessão de crescimento".Naquela época, 5% era recessão de crescimento e hoje a gente acha uma maravilha. Já é bem melhor do que os vôos de galinha que tivemos até os anos 1990.

Desafios - Houve uma retomada de 1979 a 1980. Foi uma descontinuidade?
Velloso - Foi, no sentido de que era para ter continuado a desaceleração. Se tivesse havido medo do abismo, mas perdeu-se o medo do abismo, e isto é perigoso. Crescemos demais no momento em que aconteceram a segunda crise do petróleo e a crise da taxa de juros. A conseqüência foi que o Brasil em 1982 foi arrastado para a crise da dívida externa. Talvez não precisasse ter acontecido. E a partir daí veio a desconstrução. Foi a destruição de instituições, a destruição de setores - o setor naval, por exemplo, acabou, e mesmo o setor de bens de capital. Houve também a destruição de organismos. Acabaram com a Carteira de Comércio Exterior (Cacex), e depois levaram 15 anos para montar uma secretaria que substituísse a Cacex, que tinha mais flexibilidade, porque era uma carteira do Banco do Brasil. Extinguiu- se o Banco Nacional da Habitação (BNH)...

Desafios - E agora, o que deve ser feito?
Velloso - O primeiro ponto é sobre as oportunidades perdidas.O Brasil precisa deixar de ser o país das oportunidades perdidas. Porque, em meados dos anos 1980, perdemos a oportunidade de voltar a crescer,uma vez que já estávamos com grandes superávits comerciais, de US$ 12 bilhões a US$ 13 bilhões, como resultado dos programas do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND). Em termos de balanço de pagamentos, a crise da dívida não existia mais para o Brasil, e tínhamos um superávit suficiente para servir a dívida, se quiséssemos pagar os juros e rolar o principal.Mas não soubemos entender isso e perdemos a oportunidade de crescer. A estratégia de desenvolvimento do I PND da Nova República, como passou a se chamar a partir de 1985, era um conjunto vazio. Cadê a estratégia de desenvolvimento? Não havia. Não existia.A perda de know-how do crescimento significou, principalmente, que se perdeu a visão estratégica, a visão dinâmica.Vamos desenvolver vantagens comparativas em novos setores, tal como se fez no II PND? Era óbvio que o Brasil tinha um potencial muito grande em setores como aqueles que no período foram desenvolvidos - siderurgia, petroquímicos, papel e celulose, alumina e alumínio, os chamados insumos industriais básicos.

Desafios - Sua história pessoal está ligada aos grandes planos...
Velloso - Fiz o Programa Estratégico de Desenvolvimento (PED), de 1967 a 1969, e, antes, a revisão do Plano de Ação Econômica do Governo (Paeg) - a primeira versão foi do ex-ministro Mário Henrique Simonsen e a versão definitiva foi nossa, no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). E depois, no Ministério do PlanejaSermento, como secretário-geral, fiz a coordenação do PED. Ao final de 1969, assumi o ministério e fiz o I PND e o II PND. Com o II PND, passamos a dominar o paradigma industrial da época, que eram metalurgia e indústrias mecânicas. Em 1983 e 1984, quando houve aqueles enormes superávits na balança comercial, o Brasil dominava o paradigma da época. E tinha começado a emergir o novo paradigma, à base da informática. Depois vieram as tecnologias de informação e comunicação. Só que o Brasil tomou o bonde errado quando fez a Lei de Informática. Primeiro, porque não se faz política econômica por lei, uma vez que, se for preciso mudar a política econômica no ano seguinte, tem que fazer uma nova lei. Segundo, porque houve a idéia errada de reserva de mercado. Não era a tradição brasileira. Tínhamos políticas de apoio à indústria nascente, temporariamente, mas não reserva de mercado. E houve até uma, digamos, "solução lusitana" para as joint ventures entre empresas nacionais e estrangeiras. Pela lei, a empresa estrangeira não podia prover nem o capital da joint venture nem a tecnologia. Então, por que o sócio brasileiro ia ter toda a chateação de ter sociedade com um gringo qualquer se não recebia nem a tecnologia nem o capital? Então, nós continuamos a perder oportunidades.

Desafios - Faltava uma política industrial?
Velloso - Nos anos 1990, o Brasil fez uma coisa muito importante - o Plano Real. A estabilização de preços passou a ser até um valor social, mas ficamos na dúvida hamletiana: vamos ou não fazer políticas positivas de competitividade, como política industrial, política tecnológica, política ativa de comércio exterior? Nessa coisa do fazer ou não fazer, terminaram a década e o século, e o Brasil com um crescimento rastejante. Veio então o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e as coisas começaram a mudar. Passou a haver mais atenção para o crescimento e desapareceu aquela dúvida hamletiana. Tanto que foi aprovada uma política de competitividade centrada na inovação. Só que vários dos programas previstos na época foram avançando devagarzinho. Acho que agora chegou o momento de se dar importância à criação e ao aproveitamento de oportunidades. Quer dizer, chega de ficar perdendo oportunidades.

Desafios - Isso continua acontecendo?
Velloso - A propósito dessa história da queda da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), é transformar em oportunidade. Arriscou-se na idéia de manter integralmente, quando havia uma saída mais viável, que era de escalonar a redução da alíquota. E nessa coisa do tudo ou nada, deu nada.Mas a perda pode se transformar em oportunidade. As mensagens da sociedade são: queremos redução de carga tributária; e queremos o ajuste pela contenção de despesas correntes, preservando os investimentos, que já estão muito baixos no Orçamento.Hoje, praticamente o Estado investe é por meio das empresas estatais. O investimento com recursos orçamentários corresponde a 3% da despesa, quando em 1987 (se tomarmos como referência a Constituição de 1988) era de 15%.

Desafios - Foi conseqüência da Constituição ou do ajuste fiscal?
Velloso - O ajuste fiscal se fez por meio do aumento da carga tributária e da queda dos investimentos, com ampliação da faixa de gastos correntes. Por isso, a primeira mensagem é contenção da carga, e a segunda mensagem, dos gastos correntes, para criar espaço para mais investimentos em geração de empregos a nível local. Porque a política de crescimento não tem mais condições de dar emprego ao acréscimo da população economicamente ativa (PEA) que se apresenta no mercado e também redução do mercado informal, que no Brasil é superior a 50% da PEA.

Desafios - E a reforma tributária?
Velloso - O sistema tributário brasileiro é um dos mais irracionais do mundo. Em 1967, com a reforma tributária que criou o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS),o Brasil foi vanguardista. Fez um imposto sobre valor adicionado antes da Europa. Isso é o tipo de oportunidade que podemos criar. A nova estratégia de desenvolvimento para o Brasil deve ser o que chamamos de economia criativa.O que é isso? Usar os instrumentos da economia do conhecimento - há uma série de livros sobre o tema - para desenvolver desde setores intensivos em recursos naturais até segmentos de tecnologia avançada.

Desafios - Começando pelo segmento de recursos naturais?
Velloso - A mais importante revista econômica do mundo, The Economist, disse recentemente que a natureza talvez tenha sido pródiga demais com o Brasil em matéria de dotação de recursos naturais. No setor de bioenergia, o Brasil tem que estar na vanguarda. Temos a melhor tecnologia, o melhor tipo de etanol, não o etanol de milho, como se faz nos Estados Unidos, é um etanol de cana-de-açúcar, não só muito mais produtivo,mas principalmente porque não vai competir com a alimentação. O biodesenvolvimento é um negócio muito mais amplo do que simplesmente bioenergia. Já se pode fazer até bioquímica. Existem projetos industriais apresentados ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) em que, em lugar de ser petroquímica, é bioquímica. E existe uma outra área nesse mesmo campo que é o aproveitamento da biodiversidade brasileira.

Desafios - É uma forma de explorar riquezas na Amazônia sem degradá-la?
Velloso - Não se pode fazer agricultura nem pecuária na Amazônia. Só se pode fazer uma coisa: aproveitar a biodiversidade para fazer biotecnologia. A riqueza da Amazônia em matéria de biodiversidade é uma coisa fantástica. Mas isso é um potencial. É preciso transformar esse potencial em produtos, por exemplo, para a indústria farmacêutica, para cosméticos, para agricultura. Tudo o mais que se tente fazer, como desenvolvimento florestal, agricultura e pecuária, destrói a floresta e gradativamente vai acabando com esse grande potencial brasileiro. Os países escandinavos começaram pelo aproveitamento dos setores intensivos em recursos naturais, mas envolveram todas as etapas da cadeia produtiva, com grande aplicação do que hoje chamamos (isto já está codificado) de economia do conhecimento. Quando se têm recursos naturais, deve-se desenvolvê-los e usar também o fruto disso para transformar a economia, para passar a novas etapas. Fazer upgrade, para depender menos deles, porque há recursos naturais que não são renováveis.Os nossos ora são não-renováveis, como petróleo e gás,mas ora são renováveis.

Desafios - E na ponta da alta tecnologia?
Velloso - Primeiro, temos que nos preocupar com os fundamentos. A modernização da infra-estrutura, agora com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), está avançando. É um progresso porque se readquire a visão estratégica, para não ter mais apagões, como tivemos, apagões de todo tipo. Como oportunidade nos segmentos de tecnologia avançada, o Brasil é muito criativo em software. Mas só exportamos US$ 500 milhões de software por ano, e a Índia exporta US$ 5 bilhões. E não é criativa como o Brasil. Levaram dez anos para construir uma estratégia, e conseguiram. Temos que construir uma estratégia.

Desafios - Do mesmo tipo?
Velloso - A Dell anunciou que seu centro mundial de controle iria ser no Brasil, com software desenvolvido aqui.Todas as operações da Dell no mundo inteiro serão controladas a partir desse centro de controle situado no Brasil.Temos que ter uma estratégia para conceder incentivos. Tudo que diz respeito a inovação,o Brasil tem um grande número de incentivos, com linhas do BNDES, incentivos fiscais e financeiros, e até subvenção - o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) pode dar um aporte de recursos a fundo perdido, em certos casos. Uma proposta é universalizar a inovação nas empresas brasileiras. Há um estudo do Ipea de poucos anos atrás mostrando que as empresas que inovam e diferenciam produtos respondem por menos de 30% do faturamento e por 2% do número de empresas do país.A idéia é disseminar para que até pequenas empresas passem a fazer inovação, para que passemos a ter pequenas empresas tecnológicas. Existem algumas...

Desafios - Por exemplo?
Velloso - Na área de biotecnologia,que é a base da biodiversidade, há a Extracta Moléculas Naturais S.A., criada pelo cientista Antonio Paes de Carvalho, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O que a Extracta vende? Moléculas.Tem um banco de moléculas. Quando recebe um pedido nacional ou estrangeiro de uma nova molécula, com tais e tais características, verifica no banco de moléculas. Se não tiver aquele tipo de molécula, ela vai pesquisar na Mata Atlântica,na Amazônia.Um trabalho altamente inovador. E é uma pequena empresa, nascida dentro da UFRJ, na incubadora de empresas. Precisamos de uma estratégia para a tecnologia baseada na biodiversidade brasileira.

Desafios - O desenvolvimento brasileiro já saiu da hesitação e encontrou um caminho?
Velloso - Sim,exatamente. Mas existem duas coisas. Primeiro, turbulências internacionais. Temos que estar atentos a isso, porque não existe essa história de dizer que estamos blindados. Fomos muito beneficiados por quase uma década de grande crescimento mundial. Com isso, chegamos a superávits gigantescos na balança comercial, de mais de US$ 40 bilhões, que já estão diminuindo, porque resultaram dos preços das commodities, que estavam elevadíssimos, devido à demanda da China, da Índia e de outros emergentes. Como o Brasil é um fornecedor de commodities agrícolas e industriais,nós nos beneficiamos muito, e com isso reduzimos muito a dívida externa, acumulamos reservas, e estamos com bons fundamentos em geral.

Desafios - Além de deixar de perder oportunidades, o que mais é preciso agora?
Velloso - Temos que superar certos obstáculos. Por exemplo, no Orçamento, temos uma espécie de camisa-de-força. O gasto obrigatório está predeterminado, e 90% das despesas são gastos correntes obrigatórios. Quando se diz que o governo e o Congresso estão discutindo o novo Orçamento, não é bem isso. Estão discutindo 10% do Orçamento. Temos que ganhar margem de manobra, que é uma coisa que ajudava muito o Brasil nos anos 1970, 60 e 50, na época do alto crescimento. Não havia camisa-de-força no Orçamento. Podia até fazer besteira...

Desafios - Como as que provocaram a inflação?
Velloso - É, em alguns momentos, sim. Quando o Fórum Nacional foi criado, em 1988, o Brasil estava com uma taxa de inflação de 80% ao mês, uma hiperinflação indexada, muito em conseqüência da indexação generalizada. Não foi igual à hiperinflação alemã de 1922, porque a de lá não era indexada, e a daqui era. Foi este, digamos, o milagre do Plano Real. Tirou de repente a indexação e a inflação... puff! Acabou! Mas o Brasil bobeou e, como diz o Delfim Netto, que é um gozador, "o Brasil quebrou em 1998, educadamente".

Desafios - Hoje a inflação é um obstáculo superado? E quais são os outros?
Velloso - O problema do câmbio. Temos um câmbio flutuante que flutua para baixo. A flutuação não pode ser excessiva, nem para cima, nem para baixo, senão perde o sentido. Daí a importância de se conter a absorção de recursos representados pelas despesas públicas, porque a demanda do setor público é para produtos não-comercializáveis em geral. Então, com isso se abre espaço para aumentar a despesa do setor privado e do consumo em geral,que é para os tais tradeables (produtos comercializáveis). Com isso se pode melhorar a situação do câmbio. É um negócio complicado tecnicamente porque estávamos com enorme superávit na balança comercial e também na conta de capitais. Quer dizer, os dois trazem fluxo de moeda estrangeira. É muito complicado lidar com isso tecnicamente. A não ser que se recorra a limitações para a entrada de capitais hot money (de curto prazo). O Brasil teve um enorme investimento externo no ano de 2007, mas em conseqüência das turbulências internacionais há a saída de capitais de curso prazo aplicados na Bolsa e em fundos de renda fixa.

Desafios - Na política econômica, o senhor corrigiria, além do câmbio, também os juros?
Velloso - É. Mas temos que atuar com cuidado porque, tecnicamente, é difícil. Se não fosse difícil, já teria sido feito. Temos que procurar o caminho indireto. No caso do câmbio, vamos diminuir o gasto público. Porque aí ajuda a resolver o problema do câmbio que flutua para baixo. E a taxa básica de juros, a Selic, foi caindo devagarzinho, mas ainda temos taxas reais entre as mais altas do mundo. Isso também é uma espécie de camisa-deforça para o setor privado, porque ele tem que ter uma rentabilidade muito alta no seu negócio.

Desafios - Não é somente por falta de decisão política que não se faz isso?
Velloso - É porque se tem que encontrar o caminho certo, que não é um caminho fácil. Há também obstáculos políticos. É que o sistema político brasileiro não é muito favorável ao desenvolvimento. Temos um sistema de partidos muito complicado... Precisamos ter uma sociedade, no caso brasileiro uma sociedade de massas ativa e moderna, para que haja uma espécie de monitoração dos poderes públicos. Veja no Rio esse boicote ao IPTU. Isso é uma demonstração de que a sociedade está querendo dizer um basta em relação ao funcionamento dos serviços básicos da prefeitura. Outro exemplo é o da França. O presidente Nicolas Sarkozy anunciou que vai haver uma auditoria externa independente para todos os ministérios. Essas auditorias, que são feitas para empresas, devem ser realizadas também para a sociedade e para entidades empresariais. A Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), por exemplo, tem um sistema de monitorar o que acontece no Estado brasileiro - Congresso, Executivo e Judiciário - para fazer cobranças. São manifestações da sociedade. A nossa sociedade pode ser chamada de ativa, mas o que funciona bem são ONGs que cuidam de assuntos específicos. Precisamos de entidades e formas de manifestação da sociedade que se refiram ao interesse público em geral.

Desafios - E com relação à gestão do Estado?
Velloso - O governo está acordando para isso. Todos esses apagões, desde o apagão elétrico, que é o verdadeiro apagão, até o apagão aéreo, são coisas de gestão do Estado. Tudo isso vem de dez ou 15 anos.Segundo o sociólogo Hélio Jaguaribe, que sempre foi adversário do regime militar, o Brasil construiu o Estado mais moderno do Terceiro Mundo de 1940 a 1970. Inclusive eu participei, porque eu trabalhei três anos com o ex-ministro Hélio Beltrão, que era o homem da gestão do Estado, fez a reforma administrativa. E depois o Estado foi perdendo a preocupação com a sua própria gestão, e temos que voltar a fazer um grande esforço nessa área. Visão estratégica e boa gestão, é isso que evita apagões.

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