domingo, 9 de novembro de 2008

Wilson Cano

Wilson Cano
Revista Desafios
Maio de 2008

Por Jorge Luiz de Souza, de Campinas



Desafios - Como o Brasil poderá passar do subdesenvolvimento para o desenvolvimento?
Cano - A saída do subdesenvolvimento é uma coisa praticamente impossivel, dado que o subdesenvolvimento nao é uma "etapa" do desenvolvimento, mas sim um processo criado pelo próprio desenvolvimento capitalista, em áreas que eram já povoadas, porém tinham relações pré-capitalistas. Celso Furtado mostra que foram muito raros os países que, além daqueles que se desenvolveram no âmbito da Revolução Industrial, trilharam o caminho do desenvolvimento: a antiga Uniao Soviética, que resolveu o problema com a coletivização dos meios de produção; a China, que, antes desse crescimento recente, conseguiu sustentar as necessidades básicas de 1 bilhão de pessoas; a Índia, que também tem 1 bilhão; e a Coréia do Sul, pela razão de ter sido um dos poucos "países convidados" pela potência hegemônica, os Estados Unidos, a ingressar no mercado internacional. Há muito poucos convidados. Depois da revolução da China, a Coréia do Sul foi tratada para servir de vitrine. O resto ficou no subdesenvolvimento. Furtado tinha o cuidado de chamar de subdesenvolvido de grau inferior e superior, e nós até que éramos os de maior grau, porque tínhamos montado um parque industrial de porte expressivo e bastante diversificado - era o oitavo parque industrial do mundo capitalista.

Desafios - O que nos mantém subdesenvolvidos?
Cano - No nosso percurso histórico, tivemos também os nossos golden years, os "anos de ouro", que grosso modo se pode demarcar de 1930 a 1980, tendo pelo meio uma ou outra crise, como o suicídio de Vargas, em 1953, ou em 1962 e 1967. Fora isso, foi uma taxa de crescimento fenomenal, uma das mais altas do mundo. O país se industrializou, diversificou a estrutura produtiva e principalmente se urbanizou. Em 1920, 80% da população vivia no mato e só 20%, nas cidades. Ao final dos anos 1980 se tinha exatamente o contrário, com 80% nas cidades e 20% no mato. Urbanizamos este país em uma velocidade ciclópica. Daí, não adianta imputar tudo ao desgoverno, à falta de planejamento, à incúria, à incompetência, à corrupção. Por melhores que pudessem ter sido os nossos governos, no que tange à urbanização, teríamos sofrido esse impacto. A urbanização aflora muita coisa boa, mas aflora também muita coisa ruim, como as deficiências de saneamento, de saúde pública, de escolas, de transporte coletivo, de habitação, e sua seqüela - a doença pública que é a insegurança. Mas é claro que muito mais coisas boas poderiam ter sido feitas por nossos governos, notadamente os do regime militar, em termos sociais.

Desafios - Urbanização rápida foi o maior obstáculo?
Cano - Fora a questão do endividamento, sim. Não estou com isso querendo livrar os governantes da época, porque houve realmente muito descaso, principalmente no regime militar, para com as questões sociais. Nos anos 1980, entramos em um verdadeiro pesadelo - crise da dívida, crescimento pífio, endividamento crescente, balanço de pagamentos explodindo, inflação crônica. E, a partir de 1990, mergulhamos no oceano da economia neoliberal, iniciada com Fernando Collor, ampliada com Itamar Franco, aprofundada com Fernando Henrique Cardoso e em grande medida mantida pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva no que diz respeito principalmente às políticas macroeconômicas. Não são governos idênticos, são semelhantes no que tange a isto, mas são responsáveis por manter uma política macroeconômica de corte neoliberal, que foi e continua sendo cruel para o Brasil. Após uma "década perdida", o país chegou ao final dos anos 1980 debilitado, enfraquecido, desmantelado. Aconteceu com as finanças públicas, o aparelho do Estado e as empresas públicas, que, para combater a inflação, foram obrigadas a aceitar preços insuficientes, o que comprometeu seus investimentos. Era como o sujeito subnutrido que pega uma gripe. Está lascado.

Desafios - Isto não está mudando agora?
Cano - Graças a Deus, parece que agora tem mais gente enxergando a nulidade dessas políticas. Na crise dos anos 1980, inicia o desmantelamento do Estado nacional, o Ministério do Planejamento se converteu em uma repartição pública que elabora o orçamento e algumas normas de gestão. O próprio Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que era um centro pensante, de certa forma se burocratizou, se individualizou em termos de produção de pesquisas. Antes, fossem planos de desenvolvimento ou programas setoriais, produzia as coisas coletivamente, e muito boas. Não estou querendo dizer que o nível de qualidade baixou, estou dizendo que se individualizou o trabalho, recortou, atomizou os esforços do Ipea. Tomara que agora eles possam ser, de alguma forma, ressuscitados, recriados, revitalizados. É preciso ter visões particularizadas, porque também são fundamentais, mas tem de haver a visão global, senão não se move o país.

Desafios - Os anos 1990 também se perderam?
Cano - Os anos 1990 foram um desastre. O fato objetivo é que as privatizações não resolveram a questão de dívida, pelo contrário. Os preços públicos não baixaram, pelo contrário, subiram de 1994 para cá, e o Estado perdeu segmentos e empresas da maior relevância para praticar a política nacional de desenvolvimento econômico e para executar parte de uma política regional de desenvolvimento. Por exemplo, a Vale do Rio Doce era uma empresa absolutamente estratégica nesses dois sentidos. Hoje, o governo não pode dizer para a Vale que faça isso ou faça aquilo porque ela é privada. Então, se perdeu um elemento. Ainda bem que a Petrobras foi salva da privatização. Imagine, nessa crise de petróleo agora, se nós também tivéssemos privatizado a Petrobras. Mas se aprofundou o desmantelamento do Estado nacional. Às vezes, temos vários ministérios fazendo exatamente a mesma coisa, propondo políticas parecidas, só que um vem para cá e outro vai para lá.

Desafios - Onde estão hoje os objetivos nacionais?
Cano - Ninguém sabe. As coisas são difusas, como "aceleração de crescimento". Enfim, não se tem uma coordenação nacional de objetivos e não se sabe o que se quer, concretamente. Pode-se ter ótimos estudos setoriais, sobre produtividade, disto ou daquilo, mas não se tem nenhuma coesão, nenhuma costura com o todo nacional. Sem pensar no contexto nacional, é impossível fazer política setorial, política regional ou política temática eficiente e séria. Seja uma política para o setor siderúrgico, seja para o Nordeste brasileiro, seja uma política temática de distribuição de renda, é preciso haver coesão nacional de idéias. Temos de regionalizar as decisões nacionais com sabedoria e responsabilidade, e não da forma como é feita agora: abre-se a fronteira de produção e subsidia-se a infraestrutura com gasto público, além do estímulo real ao desmatamento. A política regional foi simplesmente substituída ou pela expansão da fronteira agrícola e mineral - o que não tem nada a ver com decisões de política regional ou nacional porque isso é demanda internacional - ou pela guerra fiscal, que cresceu escandalosamente. Então, se desconcentraram de São Paulo mais de 40% do setor automotriz e 70% do setor eletrônico, mas foi por guerra fiscal e não por uma política eficiente.

Desafios - Conter a inflação é o objetivo nacional?
Cano - Nós passamos 20 anos cantando essa modinha. Agora, voltou, só que de forma diferente. Antes, nossa inflação era de 40% ao mês e agora é de 40% à década. E está todo mundo assustado, em polvorosa, por causa dessa ameaça de inflação. Por aí se vê como a coisa está estilhaçada. O Banco Central toma determinada decisão, o Ministério da Fazenda não gosta, mas pode menos do que o Banco Central. O Ministério do Desenvolvimento chora porque queria ver o seu projeto de desenvolvimento industrial ser implementado, mas não pode fazer nada. Os exportadores gostariam de ganhar mais dinheiro se pudessem exportar a um câmbio melhor, mas o Banco Central fixa uma política de juros e de câmbio contrária. Se existe alguma coordenação, algum controle de ordem maior, é o Banco Central, no sentido de tentar desesperadamente impedir que a inflação ressurja ou atinja determinados patamares.

Desafios - O que sucedeu?
Cano - Nós vivemos de 1989 a 2002, ou 2003, um período perverso de liquidação das instituições, de crescente promiscuidade política. O presidente Lula até foi modesto quando disse aquela célebre frase de que o Congresso tinha "350 picaretas". Acho que ele errou a conta. Não sou defensor do PT, mas já pertenci ao partido e fui membro militante durante vários anos. Agora, vi o depoimento da ministra Dilma Rousseff no Congresso e um senador da República tenta passar um pito nela porque ela mentiu durante o momento em que foi torturada. Como é que um sujeito desses pode ser senador da República, líder de um partido? Então, até 2002 ou 2003 nós tivemos a deterioração profunda do aparelho do Estado nacional e das finanças públicas. Com esse montante pesado de juros sobre a dívida pública, os municípios, os estados e o governo federal estão estrangulados. O que sobra do orçamento? Nada. O peso da folha de pagamento do serviço público federal, de 1990 para hoje, está reduzido praticamente à metade em termos de seu valor relativo. Se não tivesse feito isso, não se poderiam pagar os juros aos detentores dos títulos da dívida pública. Então, a deterioração se aprofundou, e isto está nos conformes da situação internacional.

Desafios - O que isso significa?
Cano - É justamente o predomínio do capital financeiro. Dentro de cada país, a eliminação ou a contenção de todo dispositivo regulacionista que possa colocar algum obstáculo no caminho da livre movimentação dos fluxos internacionais de capitais. Esta é a questão central. Essa política de fazer superávit fiscal de mais de 4% do Produto Interno Bruto (PIB) para baixar o peso da dívida pública é uma política de enxugar gelo. Enquanto o peso da dívida externa caiu, o da interna subiu. Com relação ao PIB, hoje é maior do que dez anos atrás. É um saco sem fundo.

Desafios - O que mudou na situação internacional?
Cano - De 2002 para hoje ocorreram fatores extremamente importantes: o prenúncio da crise americana e, de certa forma, a diminuição do peso dos Estados Unidos, a sua aliança com a China. Não vamos aqui desmerecer a China. Ela cresceu não apenas porque os Estados Unidos quiseram, mas porque tem um projeto nacional de desenvolvimento, assim como a Índia tem. E o primeiro ministro Vladimir Putin resolveu reerguer a Rússia. Os três formularam políticas nacionais de desenvolvimento e estão lutando por elas, cada um à sua maneira, com as suas forças e suas estratégias possíveis. Não por coincidência, a China e a Índia não tomaram o remédio recomendado pelo Consenso de Washington, pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial. Fizeram apenas algumas, mas, na essência, não abriram mão do controle da conta de capital do balanço de pagamentos. Na hora em que se abre mão disso e se passa a operar realmente com câmbio flutuante, vive-se ao sabor das decisões dos fluxos internacionais de capitais, e não das suas. Com essa economia desregulada, o país fica refém das próprias taxas de juros e refém do capital internacional, para manter um câmbio baixo e com isso represar a inflação. É nisso que se converteu a política macroeconômica. Na verdade, não há metas de desenvolvimento, de crescimento ou de melhoria das condições gerais da população. Há metas de inflação. E todo o restante da política macroeconômica é convertido para garantir a execução das metas de inflação.

Desafios - O país perdeu a clareza de objetivos?
Cano - Nós tínhamos objetivos claros e definidos de crescimento e expansão. Onde é que nós erramos? Com os militares, principalmente, o país descuidou por completo da questão social e acumulou problemas - má educação, analfabetismo, saúde pública, mortalidade infantil, doenças regionalizadas, que até recrudesceram recentemente, como a tuberculose no Rio de Janeiro. Nós crescemos materialmente, mas houve um descuido na ordem social, sim. A deterioração do ensino não é fácil consertar, principalmente quando se passam 20 ou 30 anos em processo de deterioração. O ensino fundamental no Brasil é uma fraude, em grande medida, porque a criança tira o diploma e não sabe ler, não sabe escrever, não sabe multiplicar. Dizem que a escola é ruim porque tem problemas de infra- estrutura, não tem computadores e o coitado do professor ganha pouco. São problemas que devem ser enfrentados conjuntamente, porque não adianta nada pagar um salário melhorzinho para o professor e não resolver o problema na casa da criança. E temos que resolver também a questão de segurança, porque se equipa a escolinha e no fim de semana os bandidos vão lá e roubam todos os computadores. Esses círculos viciosos dificilmente são rompidos porque se desmantelou o Estado nacional.

Desafios - O que é preciso para sair disso?
Cano - O Brasil precisa formular um projeto nacional de desenvolvimento econômico. Não basta dizer que temos vontade de crescer 4% ao ano, ou 5%, 6% ou 7%. Claro que sempre acaba se fixando um número, uma taxa de crescimento, que no nosso caso tem de ser alta, necessariamente. O Brasil precisa de taxas altas para ver se, por diferenciais de taxas, ele se aproxima um pouco mais "do céu", mas porque nós ainda temos um crescimento demográfico elevado e uma taxa de urbanização muito maior. Temos que resolver dois problemas cruciais de emprego: daqueles que estão desempregados e procurando emprego, e daqueles que estão no desemprego oculto. São dezenas de milhões de pessoas. Isto só se resolve com uma política de elevado crescimento e distribuição de renda.

Desafios - A prioridade deve ser crescer ou redistribuir a renda?
Cano - O projeto nacional de desenvolvimento econômico tem de considerar a possibilidade de crescimento elevado, mas se centrar na justiça social. É absolutamente prioritário no país redistribuir a renda. Um dos vetores do projeto de crescimento deveria se orientar pela expansão do mercado interno. Há inúmeros setores de atividade que se podem movimentar nesse sentido, e vou dar dois exemplos: habitação e saneamento básico. São altamente empregadores de mão-de-obra e movem todos os setores da economia. Construir casas e fazer obras públicas mexe com todos os segmentos industriais, tem forte impacto na oferta industrial. E só isso não basta. Temos de priorizar setores que minimizem o gasto cambial. Há inúmeros setores em que se podem implementar investimentos de monta sem gastar dólares. A construção civil é um exemplo por excelência. Mas tem uma série de outros: a reforma agrária e a agricultura familiar são áreas em que se podem desenvolver políticas de crescimento não consumidoras de dólares.

Desafios - Não há uma folga cambial atualmente?
Cano - Estamos vivendo uma euforia cambial, com reservas de US$ 200 bilhões, mas é preciso olhar com cuidado. Uma quantidade de dinheiro muito alta está em especulação financeira - mais de US$ 100 bilhões -, um capital que pode se mover muito rapidamente. Nós vamos passar por um teste este ano, porque o superávit comercial já declinou, está bem menor do que um ano atrás, e o saldo de transações correntes voltou a ser fortemente deficitário. Esse é um consumidor voraz de divisas. Esse cuidado significa, de um lado, priorizar setores cuja demanda cambial é baixa. Em segundo lugar, efetivamente fazer uma política de controle do sistema cambial brasileiro, de entrada e saída de fluxos internacionais. E para fazer isso temos de romper com as diretrizes neoliberais e desenvolver segmentos voltados para o mercado interno, como saneamento, habitação e bens de consumo. Temos também de priorizar determinados setores de exportação, o que eu acho muito difícil, principalmente com um câmbio desses e com esses juros suicidas que nós temos.

Desafios - E com relação à agricultura familiar?
Cano - Temos de enfrentar a reforma agrária com seriedade, e não do jeito que está sendo levado. Esse invade aqui, invade ali mostra claramente uma atitude débil perante a questão agrária brasileira, que é uma questão crucial. Cada metro quadrado que se expande na fronteira agrícola, ao colocar culturas modernas, mecanizadas, ou pecuária, como tem ocorrido nos últimos dez anos, expulsa gente de lá, é inevitável. Todo processo histórico de desenvolvimento do campo no mundo se faz com tecnologia, mas criando um mundo urbano suficiente para amparar essa gente com empregos decentes. Aqui, não. Comparando o Censo de 1991 e o de 2000, a última pesquisa que eu fiz, o emprego que mais cresceu no país foi o de trabalhadores por conta própria. Grande parte é de emprego informal, emprego precário, emprego doméstico, camelotagem, etc. O segundo que mais cresceu foram os empregados domésticos. Um verdadeiro absurdo. Nosso emprego doméstico tem aumentado em participação da População Economicamente Ativa (PEA), quando era para estar caindo. No Censo de 2000, era algo em torno de 10% da PEA total. Isto, em um país desenvolvido, é um escândalo, eles não têm nem mesmo 1% da PEA trabalhando como empregado doméstico.

Desafios - Isto pelo menos não alivia um pouco o problema?
Cano - Na verdade, são válvulas de escape, são vetores de contenção social. O sujeito arranja um emprego doméstico, come lá e resolve o problema. Ganha salário mínimo, enfim, ganha qualquer coisa, mora na periferia da cidade. São vetores de contenção social, quando se podiam estar fazendo muitas coisas. O Bolsa Família é ruim? Não, é muito bom, dá comida e um pouco de bem-estar para miseráveis, mas, cuidado, porque é um programa de caridade, não resolve problemas estruturais. Mas é barato - equivale anualmente a menos de dois meses de juros da dívida pública, uma insignificância, e atende a 40 milhões de brasileiros.

Desafios - Então, por que "cuidado"?
Cano - Fala-se assim: "vamos estudar as portas de saída" para o Bolsa Família. Porta de saída para pobre significa emprego. Se o sujeito arranjar coisa melhor, é lógico que ele vai trabalhar, para ganhar mais - ele não é idiota. Então, ou se cria emprego ou não tem emprego. E nosso problema não é apenas elevar rapidinho a taxa de crescimento de emprego, nós temos é um problema estrutural, um desemprego aberto já considerável e um desemprego oculto - os infelizes que ainda estão no campo ou os que estão nas cidades e viraram camelôs ou empregados domésticos.

Desafios - Estamos longe desse seu projeto de desenvolvimento?
Cano - Eu acho que o vetor central dele tem de ser o atendimento da justiça social, a melhoria das condições fundamentais do povo - nutrição, saneamento, educação e um aporte material. E o aporte material vem como? Através de uma política específica de habitação e saneamento, que resolve uma parte crucial, e com o aumento de emprego que se tem com isso. O cerne da proposta é centrar esforço onde o emprego seja intenso e os gastos líquidos de divisas sejam os menores possíveis, para justamente sobrar divisas para se gastar onde é necessário, como em tecnologia. Mas, ao contrário, nós estamos batendo em uma velha tecla. O governo Juscelino Kubitschek foi com o automóvel, os militares foram com o automóvel e agora o setor automobilístico é um dos grandes contemplados neste pacote de incentivos. É um escândalo comprar um automóvel em 84 pagamentos mensais. Ele não dura nem metade disso. Por que se permite a venda de automóveis em 84 meses? Isto tem um efeito pior do que o da taxa de juros. Mas nisso não se toca porque é uma reivindicação do segmento automotriz sediado no Brasil.

Desafios - Como o país pode ficar livre de uma crise cambial?
Cano - Não fica livre nunca pela seguinte razão: nós somos um país subdesenvolvido, que carrega nas costas, como pecado original, justamente o balanço de pagamentos com déficits estruturais. Como sanar o déficit? Com empréstimos e financiamentos, mas cobram juros e um dia se tem de pagar. Ou com investimento direto, que não se precisa pagar, mas se passa a remeter lucros. Com este dólar vagabundo de R$ 1,66, o aumento das remessas de lucros foi colossal, porque a mesma quantidade de reais dá quase o dobro de dólares. Então, é preciso tomar tino nisso, não fazer políticas horizontais, abrindo para todos, esperando que isto tenha resultado, mas, pelo contrário, temos de selecionar setores e, mais do que isso, selecionar empresas conforme seu tamanho.
Desafios - No governo e nas universidades há estudos nesse sentido?
Cano - Não sei. Aparentemente, no governo não tem. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) abriu linhas para pequenas e médias empresas e espera que elas respondam a esses estímulos, e abriu para software, um segmento, em geral, com empresas de tamanho modesto. Isto é bom, mas não há políticas específicas. O Ipea poderia começar a produzir uma proposta nacional de desenvolvimento econômico. Ele tem condições de fazer estimativas de fatores positivos e negativos, de gastos de divisas e investimentos, em um esforço coletivo. Nas universidades, pode-se apenas conceber individualmente. Eu tenho a minha idéia, outro colega também pode ter uma idéia, parecida ou não, mas isto aqui exige uma equipe grande. Nós criticamos os militares porque eles desdenharam a distribuição de renda, a reforma agrária, o desemprego e o salário. E vamos repetir isto agora? Está todo mundo embevecido pela expansão dos últimos anos. Ora, é o efeito China. A demanda da China por qualquer coisa, seja alimento ou matéria-prima, equivale a um quarto da demanda mundial.

Desafios - Qual é o perigo disso?
Cano - A China, habilmente, construiu uma articulação com a Ásia, outra com a Europa e os Estados Unidos, e uma terceira com os subdesenvolvidos. Aqui, ela vende bugigangas e compra o que mais precisa, que são alimentos e matérias- primas. Para os desenvolvidos, ela vende não só bugigangas e compra tecnologia - máquinas, equipamentos, etc. E a organização que ela montou com a Ásia é espetacular, significa alargamento do mercado para os vizinhos. Japão e Coréia do Sul passaram a produzir dentro da China, senão suas empresas quebrariam. Os países da Ásia detêm entre si 60% do comércio mundial deles, enquanto o Mercosul, nos anos de glória, atingiu 20% do comércio mundial de seus países-membros, ficando com 80%, portanto, dependente das demandas do resto do mundo. Sonhar que este quadro aqui vai continuar eternamente é brincar em serviço. A China, inclusive, não está quieta. Já tem mais de 100 mil chineses na África, desenvolvendo soja, petróleo, metalurgia, mineração, porque sabem que precisam alargar os mercados internacionais. E nós aqui jogando as fichas na galinha, no boi e na soja. E agora no álcool, como se isso fosse realmente resolver problemas cruciais. O Brasil fica um pouco no fácil, eu acho.

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