A história da alfabetização de adultos em questão
Nome: Osmar Favero
Formação: Professor titular da faculdade de educação da universidade federal fluminense, na área de política da educação.
Alguns livros publicados:
- Educação nas Constituintes Brasileiras: 1823 – 1998. Editora: autores associados;
- Democracia e construção do público no pensamento educacional brasileiro. Autor(es): (org.), (org.). Editora: vozes.
A primeira campanha oficial chama-se Campanha Nacional de Alfabetização de Adolescentes e Adultos. Não se usava a terminologia jovem, a terminologia jovem é muito recente, em geral, se falava de adolescentes e adultos. É preciso lembrar que, nesse período, o ensino obrigatório era até 10 anos, era só o ensino primário de 7 a 10 anos. Então, é normal que se fale em adolescente, que é de 10 anos para cima. Essa foi uma grande campanha organizada, coordenada pelo Lourenço Filho, ela vai de 1947 até meados dos anos 50. Ela nasce primeiro porque o Governo Federal arrecada verba no fundo do ensino primário e passa a encarar a alfabetização de adolescentes e adultos não atendidos na idade normal da escolarização, de 7 a 10 anos, passa a estender uma ação educativa.
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Entrevista com Osmar Favero
Salto – Professor, como tem sido a história, a trajetória da história da educação de jovens e adultos aqui no Brasil?
Osmar Favero – Pela história oficial, pelo menos há 50 anos se discute a questão do analfabetismo no Brasil. Desde os anos 20, dos anos 30, mas na verdade, só a partir de1946-1947 é que foi oficializada essa discussão, com a 1ª Campanha Nacional de Alfabetização de Adultos, pelo Ministério da Educação. Esse é um momento de pós-guerra, um momento de redemocratização do país, depois da queda do Getúlio, é um momento da criação da UNESCO. A UNESCO influi na criação desses movimentos no mundo inteiro. A primeira campanha oficial chama-se Campanha Nacional de Alfabetização de Adolescentes e Adultos. Não se usava a terminologia jovem, a terminologia jovem é muito recente, em geral, se falava de adolescentes e adultos. É preciso lembrar que, nesse período, o ensino obrigatório era até 10 anos, era só o ensino primário de 7 a 10 anos. Então, é normal que se fale em adolescente, que é de 10 anos para cima. Essa foi uma grande campanha organizada, coordenada pelo Lourenço Filho, ela vai de 1947 até meados dos anos 50. Ela nasce primeiro porque o Governo Federal arrecada verba no fundo do ensino primário e passa a encarar a alfabetização de adolescentes e adultos não atendidos na idade normal da escolarização, de 7 a 10 anos, passa a estender uma ação educativa. Não se propõe só uma restrição de alfabetização, o mote é a chamada educação de base. A educação de base, como é definida pela UNESCO, ela é uma reposição de todo o conteúdo da escola primária, até mais sofisticada que a nossa escola primária, porque é integralizada e pautada pela experiência dos países ricos desenvolvidos. Ela é proposta para adolescentes e para crianças que não foram escolarizados em idade normal, considerada normal, de 7 a 10 anos. Ela tem alfabetização como leitura, como escrita, iniciação ao cálculo. Ela tem higiene, moral e civismo, uma série de coisas. Claro, até um pouco de extensão agrícola, que está começando no período. A grande crítica que se faz é que ela se restringe à alfabetização. Ela até é acusada como fábrica de leitores, por conta de que, no período de democratização, você, na verdade, estava refazendo a base eleitoral. Essa crítica é um pouco injusta, pelo segundo motivo, ela estende a escolarização para além das grandes cidades, ela tem uma característica de uma penetração grande, não no meio rural ¾ que é hoje meio urbano como Santa Cruz, etc. As cidades periféricas de Salvador, de Pernambuco ¾ e ela entra pelos municípios, então, na verdade, ela é um esforço muito grande de expansão de educação para aqueles que não tiveram a escolarização, claro que muitas crianças de menos de 10 anos aparecem nessas classes. Ela tem esse lado, que mais ou menos propriamente, é chamado de ruralização. É muito mais um movimento de a escola chegar até os municípios, o que é importante em 1945, o índice de analfabetismo desse período era mais de 50%, na ordem de 60%. As grandes lições dessa campanha são: primeiro, que ela é uma forma de você entender a escolaridade obrigatória como ensino supletivo, quem cunha essa expressão de ensino supletivo é o Celso Beisiegel no 1º livro dele, que é muito bom, chama Estado e Educação Popular, já esgotado, mas é importante como referência. Ele vai dizer que nesse momento é que o Estado vai se antecipar à demanda da população. A outra lição dessa campanha, embora se critique que ela tenha restringido esse grande elenco de conteúdo educativo para alfabetização, a grande lição dela é que ela já mostra, no final dos anos 50, que só ação de alfabetização não resolve, tem que ter uma ação mais ampla junto às comunidades. Dentro dela, vai se gerar uma segunda campanha, um pouquinho mais tarde, no final dos anos 40, meados dos anos 50. Essa campanha é curiosa, pouco estudada, ela também está no Ministério de Saúde, no Ministério da Agricultura. Aí ela vai trabalhar diretamente a partir de saúde, a partir de higiene com as populações, vai conseguir formar quadros médios, técnicos... Chamava, na época, o Departamento Nacional da Crianças. Todo esse grupo que trabalha com a extinção da malária, controle de endemias rurais e tal, como tem o controle ao dengue hoje. Na verdade, você tinha quadros muito bem preparados. Essa campanha fica com Artur Rios, ela praticamente tem um cunho mais sociológico; o forte dela, volto a dizer, está no grupo de sanitaristas, grupo médico, e um pouco com a introdução de algumas técnicas rurais, falando em cooperativismo. Há muito poucos dados dessas campanhas, assim concretamente, de estatísticas. Agora se acredita, se descreve que, na verdade, ela alfabetizou pouca gente. Se a gente confiar um pouco em algumas coisas que são ditas, em dez anos não chegou a diminuir 18% do analfabetismo. Só que isso é difícil de comprovar, é das coisas que eu ainda estou procurando saber direito. Depois dessas campanhas, há um momento muito importante: Juscelino, no governo dele de 1955 a 1960, ele não endossa essas campanhas. Já está um pouco na fase de, digamos, “as campanhas já deram o que tinham que dar”. As campanhas todas são assim, elas nasceram muito fortes, têm momentos de boa realização e depois elas começam a entrar na rotina, a enfraquecer. O Juscelino convoca, em 1958, um grande Congresso de Educação de Adultos, aqui no Quitandinha. É engraçado que esse congresso, na verdade, vai falar muito mais de ensino primário do que de educação de adultos. Todos esses congressos se chamavam regionais, mas eram estaduais. Todos os estados traziam relatório dos congressos estaduais ou regionais e traziam teses para ser discutidas, o que é típico desse momento, teses que os professores apresentavam. Em 1958, aparece um relatório esplendoroso do grupo de Pernambuco, relatado por Paulo Freire, dizendo que o problema não era o analfabetismo e que alfabetizar não era a solução. O problema era a miséria do Nordeste. Ou se enfrentava a miséria do Nordeste, ou então alfabetização era a mesma coisa que tentar enxergar o fim do mar. Esse momento, é o momento de virada, porque você tem dentro da discussão de educação o fato de ela estar voltada para o desenvolvimento, aquele forte desenvolvimento do Juscelino, e está voltada muito para uma formação da consciência do povo brasileiro, particularmente da população mais pobre, de participar do esforço do desenvolvimento. Isso é bem estudado por Vanilda Paiva nos dois livros dela: o primeiro longo, História de Educação de Adultos desde a colônia, e particularmente no livro de Paulo Freire. É o nacionalismo desenvolvimentista, que ela vai pegar esse período Celso Beisiegel, que chama agora de Política de Educação Popular, que é seguramente o melhor livro que a gente tem sobre esse período. Celso é um sociólogo e vai fundo nessa mudança. Bom, o que acontece aí, há uma certa parada, o Ministério da Educação questionava um pouco o grupo mais ligado a Anísio Teixeira, a Roberto Moreira, questionava um pouco essa linha de alfabetização de massa. Eles criam uma Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo, que vai criar uma expressão muito curiosa que vale até hoje “secar as fontes do analfabetismo. Pegam um município importante, por ser um município de transição para cidade grande, como Leopoldina, no Pará. Pegam alguma cidade dessas, tentam reestruturar inteiramente o sistema de ensino elementar, hoje de ensino fundamental, totalmente. Pegar as crianças, efetivamente de 7 a 10 anos, e botar na escola regular, as crianças adolescentes, até 14 anos, botar numa classe de emergência, os adultos numa classe noturna, para isso eles vão fazer construção escolar, treinamento de professores, material didático todo novo. Essa campanha ficou nisso praticamente, na experiência de Leopoldina, que está muito bem relatada pelo João Alberto Moreira, e algumas expressões nessas outras cidades: Feira de Santana, Santarém e uma outra cidade em Pernambuco, que eu não me lembro o nome. Fica por aí, essa é a grande fase das propostas do Estado através do Ministério da Educação. No momento da 2ª campanha, também com o Ministério da Agricultura e o Ministério da Saúde, é a grande intervenção do Estado nesse período dos anos 50.
Aí, há um corte pela LDB de 1961, pela primeira Lei de Diretrizes e Bases, de 1961, e pelo Plano Nacional de Educação, que vem em seguida, na época em que o Darcy Ribeiro estava na Chefia da Casa Civil e, depois, no Ministério da Educação. Começa-se a transferir para os estados e para os municípios algumas responsabilidades de educação, basicamente da educação fundamental, basicamente do ensino fundamental.
Começam algumas experiências dentro de prefeituras, particularmente da Prefeitura de Recife, com Miguel Arraes, depois com a Prefeitura de Natal, com Djalma Maranhão. A União Nacional dos Estudantes — UNE, que era muito forte naquele momento, e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, ambas também vão participar com propostas novas de alfabetização.
Esse é um período absolutamente diferente em termos de experiência, em termos de produção, em termos de perspectiva, e aí é que vai aparecer Paulo Freire, com o Sistema de Alfabetização de Adultos, que ele começa fazer em Recife, no MCP de Recife. Depois ele sistematiza, vai aplicar em Angicos, em convênio com o Estado do Rio Grande do Norte e com financiamento da Aliança para o Progresso no Brasil.
Salto– O que diferencia essa proposta de Paulo Freire das campanhas anteriores, que eram mais responsabilidades do Ministério da Educação?
Osmar Favero – Deixa eu dizer logo, Paulo Freire vai emergir de um conjunto de propostas. A grande virtude dele é ser o que melhor sistematizou e melhor fundamentou essas propostas. Se você pega até 1966, o sistema Paulo Freire é um dos sistemas, é uma das experiências, mas ele torna melhor as experiências, primeiro porque ele sistematiza um processo novo de alfabetização, de 1963 – 1964, que durou só alguns meses, porque o golpe militar cortou. Mas as campanhas são qualitativamente diferentes, elas não entram pela educação pura, elas entram pela cultura, entram pela cultura popular, isso se dá totalmente diferente. Você vai partir do que o povo conhece, do que ele sabe e vai tentar fazer um instrumental de alfabetização, que na verdade é mais do que isso, é um instrumental de educação popular que vai mexer com a cabeça das pessoas. Você vai fazer uma ação educativa que tem um movimento que parte da cultura, de como homens e mulheres vivem, na cidade e no campo, como é eles vêem essa realidade, como você pode criticar essa realidade para instrumentalizá-la para uma mudança de base estrutural no país.
Esse é um grande movimento do começo dos anos 60. Hoje, a gente fala que foi um pouco ingênuo, entende, mas na verdade nós nos jogamos de corpo e alma nisso. Quais são esses movimentos? O primeiro deles, eu já disse, é o de Recife, chama-se Movimento de Cultura Popular, quando Arraes assume a prefeitura. É curioso porque se fala muito no Movimento de Cultura Popular (MCP), hoje, como Movimento de Cultura só, mas ele tem uma base de movimento de educação muito forte, na educação dos jovens e adultos. Forte porque Recife está inchando, nesse período, com a população migrante, e você tem muita criança sem escola na periferia. Então a Secretaria de Educação propõe uma ampliação das escolas. Essas escolas são feitas com a própria Secretaria de Educação, “retreinada” com uma nova perspectiva.
Não tem escola, não tem problema, faz-se escola em salão paroquial, em clube, em Rotary da vida. Os bancos escolares são feitos, a Prefeitura dá a madeira, mas a Secretaria de Educação garante uma perspectiva nova e diferente de educação para as crianças. A grande pessoa disso, hoje com 80 e tantos anos, mas que não conseguiu escrever essa história, chama-se Anita Paes Barreto, uma das pessoas assim que merecem um quadro na parede. Isso se expande também para o lado de educação de jovens e adultos, com uma das unidades do movimento de cultura popular. E vai ter aí a grande saída que é, pela primeira vez, fazer um material didático diferente para jovens e adultos. E volto a isso daqui a pouco. Claro que o MCP tem também um lado de cultura, um lado de cultura popular, do folclore, ele mexe com a cidade de Recife toda, Recife é rica em artesanato, em festas populares. Essas festas populares são trazidas para o teatro popular, que é muito rico. Paulo Freire, nesse período, trabalha numa divisão de pesquisa com Paulo Rosas e Abelardo da Hora e já está começando a ensaiar um método de alfabetização que parta da realidade dos iletrados. A gente demorou muito para acreditar que Paulo não fez isso sozinho, desculpe a intimidade de tratá-lo de Paulo, mas fui contemporâneo dele. A Elza, primeira mulher dele, ela era uma boa professora alfabetizadora numa classe experimental. Naquele período era normal ter as classes experimentais, no sistema de ensino em que se Elza tentava sair do método “a – e – i – o – u” para o método da palavração, da sentenciação. E Paulo trabalhava no SENAI, pegando pequenos textos tirados do jornal sobre salário, sobre condições de trabalho, condições de saúde, com os operários semialfabetizados no SESI, ele era diretor do SESI. Primeira notícia que eu tenho de Paulo Freire, deve ter sido 1961, ele era um professor curioso, ele usava o epidiascópio, um aparelho enorme, hoje a gente tem o retroprojetor, mas tem também e epidiascópio, que você põe o texto debaixo, num jogo de espelhos, e projeta na parede e discute as condições de vida dos operários e tal, faz um processo educativo diferente. Ele traz isso para o processo de alfabetização, dentro do MCP.
Salto– Como é que tem sido a sua participação nos movimentos de alfabetização popular?
Osmar Favero – Eu estava falando dessa segunda fase dos movimentos de educação popular. Nesse período se cunha a expressão educação popular, no começo dos anos 60. Eu tinha falado do MCP, tinha falado do Paulo Freire no MCP, queria falar dos outros movimentos que aparecem. Normalmente ponho, nesse período, quatro movimentos o MCP, que vai puxar “De pé no chão também se aprende a ler”, com Moacyr de Góes (secretário de Educação em Natal) e com Djalma Marinho (prefeito); tem outros MCPs, em Belo Horizonte, umas coisas assim.... O segundo movimento matriz muito forte, é o movimento de Cultura Popular da UNE, chamado CPC – Centro de Cultura Popular da UNE, que se expande pelo Brasil todo, que não é um movimento de alfabetização, é um movimento de cultura e de cultura popular, sobretudo através de expressões artísticas. O grande trunfo do CPC é se apropriar de algumas linguagens populares, por exemplo o teatro, trabalhar isso para a formação de consciência, num conceito de cultura bastante diferente do que o Paulo Freire usa, de raiz marxista. A grande experiência do CPC é o teatro de onde vão surgir depois o Vianinha, Paulo Pontes, o cinema novo do Leon, do Eduardo Coutinho, toda essa turma, estão todos eles por aí. Mais tarde, ele vai ter uma expressão que será a raiz do Plano Nacional de Alfabetização.
O terceiro foi o Movimento de Educação de Base, no qual eu trabalhei. O Movimento de Educação de Base é curioso. Esse eu preciso me deter um pouquinho nele, porque ele vai dar em uma outra vertente. A igreja sempre foi aliada, parceira e aliada do Estado em várias ações, mesmo depois que ela deixa de ser religião oficial, depois da República, quando houve separação da Igreja e do Estado. A Igreja continua sendo uma boa aliada, a Igreja é muito sensível, nesse começo dos anos 60, ao problema da... não vou dizer da reforma agrária, por causa da construção de Brasília. Os bispos vêem o pessoal sair do Nordeste para construir Brasília e não voltar, desfazer família e tal e ficam preocupados com isso, numa perspectiva correta. E são sobretudo medrosos com a invasão, que eles chamam invasão, não é tão forte assim, mas com a presença do comunismo no campo, particularmente do PC, do “pecezão”, que está montando uma base que vai ser depois uma base muito forte para os sindicatos rurais. Um dos bispos mais atuantes junto à Conferência dos Bispos é Dom Helder Câmara. E Dom Távora, que é amigo, colega, eles trabalham muito juntos, em Aracaju, propõem retomar uma experiência do Ministério da Educação chamada SIRENA – Sistema Rádio Educativa Nacional, que tinha começado na Leopoldina, naquela experiência de erradicação do analfabetismo, também já em convênio com emissora católica. A Igreja está interessada nesse movimento, além do programa rural, além do medo do comunismo e aí é o rádio, não é televisão por enquanto, é rádio, nos anos 50, as suas emissoras e esse convênio, era simultaneamente um reforço para montar as emissoras católicas no Brasil inteiro, e a grande proposta é fazer uma ação de educação de base. Não se fala de alfabetização embora se reduza aí, no primeiro momento, alfabetização e catequese, com 15 mil escolas radiofônicas para o Brasil inteiro, o que depois se reduz ao Nordeste. E é feito um grande convênio. Eu estava acabando de me formar, entro para ser um dos coordenadores desse movimento, isso em comecinho de 1961, março de 1961. Assinaram o convênio, eu já estava dentro do movimento. A minha grande experiência é no movimento de educação de base dentro dessa proposta da Igreja. Na verdade, essa proposta vai retomar a perspectiva dos anos 50, ela é outra vez educação de base é outra vez escola radiofônica, claro que a escola radiofônica do MEC é muito engraçada, ela se faz com uns discos daqueles de acetado enormes, gravados em 12 polegadas, com o melhor das vozes “brodcasting” da Rádio Nacional daquele tempo. Mas não chegava, não era inteligível, para a população rural, porque eram médicos dando aula sobre micróbios, aquelas coisas todas. O material didático era muito pobre, era o material ainda da época dos anos 50, feito na campanha de educação de adultos e adolescentes e a SIRENE acaba é fazendo uma cartilha, chamada Rádio Cartilha, que na verdade é uma piada. É a cartilha mais bonita que a gente tem, colorida, mas ridícula, porque usa o “a – e – i – o – u”. O a de ave o e de ema o u de uva e tal. E tem umas lições que vão só pela fonética, que não tem nada a ver nem com a lógica e nada de educação de adultos, era uma total alienação. Claro que isso é usado pelo projeto no começo, tanto o material pobre dos anos 50 quanto esse material, do começo dos anos 60, mas é rejeitado. Então, esse processo de revisão do primeiro ano do movimento vai dar uma guinada de 180º e vai mudar — no final de 1962 para 1963, o MEB se redefine como Movimento de Educação de Base, na linha da Educação Popular. Aí se aproxima de Paulo Freire, assume a categoria de formação de consciência como conscientização, aí há um movimento que é mais ou menos simultâneo a todos os movimentos, de chegar num modo de tratar politicamente a questão da alfabetização e tratar como um instrumental para você entender a realidade, repito, mudar a realidade. Aí foi que apareceu o Paulo Freire, é muito importante. Paulo Freire conseguiu, em primeiro lugar, praticamente sistematizar, eu não falo criar não, porque o método existia, existia já nas escolas primárias, sistematizar o método de alfabetização para adultos em que ele parte da realidade do adulto. Como é que ele faz isso? Num primeiro lugar, com as famosas fichas de cultura, ele sistematiza dez situações de aprendizagem, como a gente fala tecnicamente, em que vai mostrar o homem como criador de cultura, a partir de um conceito antropológico de cultura, tudo que existe na natureza é cultura. É cultura, mas o homem modifica isso e faz cultura. Então, você fazer sapato tem o mesmo valor de fazer um livro. Essa fichas são fenomenais. Carlos Brandão, que é um dos grandes autores que a gente tem aí, trabalhou conosco no MEB, desse período, e disse: — Olha se o Paulo só tivesse inventado essas “fichas de cultura” já teria inventado o ovo de Colombo, que na verdade elas são fabulosas. E ele começa pelo processo de alfabetização. Logo em seguida dessa discussão das fichas, que coloca o jovem, o adulto, o adolescente, também, numa posição de querer ser alfabetizado. Começa com as chamadas palavras geradoras. Pega palavras, faz um levantamento do universo vocabular, basicamente um levantamento das frases que a população fala, escolhe dentro disso quinze, dezesseis, acaba ficando em dezesseis palavras, que são palavras fortes do tipo “tijolo”, porque puxa toda a questão da moradia, da construção da casa, salário... Ou bicicleta, se é um meio de transporte. Faz um conjunto de dezesseis palavras que geram um sistema de alfabetização. A partir da palavra geradora, você constrói outras palavras, a partir da palavra você forma frases, num processo não escolar. É um processo de um círculo de cultura, onde você não tem um professor, tem um animador. Essa é a grande virtude do Paulo, conseguir criar esse método, que se espalha para todos os movimentos, nesse período se espalha para todos os movimentos. Quer dizer, mesmo que não se use, por exemplo, na escola radiofônica esse processo dele ¾ não deu tempo de se adaptar isso para escola radiofônica ¾ ele é usado em todos os treinamentos. A grande massa de manobra desses movimentos era o grupo estudantil, universitário, na geração da experiência, na coordenação, e estudantes secundaristas na execução dessa experiência, junto com universitários. O Brasil, inteiro, isso é um “rastilho” de pólvora, Brasil inteiro faz isso. O Ministro da Educação era Paulo de Tarso, que convida Paulo Freire. Não sei se vocês sabem, esse sistema um Plano Nacional de Alfabetização, a partir desse sistema, ficou famoso por conta de algumas reportagens de Antonio Cândido, Antonio Cândido era articulista do Jornal do Brasil, fazia reportagens nesse período. Ele foi a Angicos e fez uma reportagem de página inteira no Caderno B do Jornal do Brasil, dizendo “em Angicos se alfabetiza em 48 horas”. Isso aí pegou. Isso pegou, pegou foi um negócio assim que explodiu no Brasil inteiro. A militância estudantil era um negócio assim esplendoroso, não precisava dizer “fecha a escola para alfabetizar não, fazia a escola e fazia a alfabetização direto, com o jeito que podia. Tudo cidade, só o MEB entrava na zona rural, esses outros movimentos entravam próximo da zona rural. Angicos hoje é relativamente perto, naquele tempo eram 2 ou 3 horas na área rural; era longe, mas era um rural de passagem para Natal. O MEB vai muito longe, o MEB vai pros confins.
Salto – O senhor teria outra campanha para destacar além dessas?
Osmar Favero – Nesse final de 1962, 1963, o Ministério de Educação propõe também uma articulação nos movimentos de cultura popular, onde a alfabetização estava dentro. Então, são dois movimentos. Nessa articulação, que é feita em nível de Ministério, onde estão algumas pessoas muito importantes, a coordenação fica na mão do Betinho, que todo mundo conhece, do Ferreira Gullar que também todo mundo conhece, um dos maiores poetas nossos vivos, e do Luiz Alberto Gomes de Souza, uma pessoa importante que hoje está trabalhando ainda, ligada à Igreja Católica no CERES – Centro de Investigação Sociológica da Igreja, e que é um dos melhores intelectuais católicos que a gente tem, então, na verdade, a gente se junta nessas campanhas e trabalha junto, troca junto, troca bastante. A fase famosa da Frente Única de Católicos e comunistas e tal, a gente vai pagar caro por isso depois em 1964, mas o mais importante aí eu acho que é a síntese que o Paulo Freire faz. Eu tinha deixado para dizer para você de onde vem a campanha da UNE. Embora nessas campanhas, quase todas do MCP, do MEB, no próprio Paulo Freire, a liderança seja quase da juventude católica ou cristã, mais ampla, que tem protestantes também, a CPC está muito mais hegemoneizada pelo pessoal marxista, não obrigatoriamente comunista, do Partido Comunista, mas marxista. Na verdade, a UNE lança uma campanha de alfabetização, que não tem muita expressão, mas que vai ser a base estratégica para o Plano Nacional de Alfabetização do Paulo Freire. Ela seria para alfabetizar, se eu não me engano, 5 milhões de pessoas, qualquer coisa assim, em 1 ano, 2 anos e tal através do método. O curioso é que o método era audiovisual, o material didático era audiovisual, o material didático era criado de acordo com as necessidades dos grupos que você alfabetizava. A única experiência que existe é no Estado do Rio, o estado do Rio de Janeiro antigo, de Niterói para lá, o treinamento era no Caio Martins e na Baixada Fluminense. Na Guanabara não, porque era Lacerda, que não permita de jeito nenhum fazer isso aqui, embora Ministério da Educação fosse aqui, e a articulação fosse toda feita no Ministério da Educação. Essa é uma história específica do Plano Nacional de Alfabetização. E depois tudo é rompido, nos primeiros dias de abril, e se perde tudo, se perde tudo. Mesmo material didático, mesmo os projetores. Paulo Freire tinha encontrado uns projetores poloneses pequenininhos, que custavam 2 dólares, que podia usar com pilha, com bateria de carro e tal, porque no interior você não tinha eletricidade. Tudo isso some, se perde a experiência, se perde a coordenação. Eu tenho trabalhado muitos anos para tentar recuperar essa história toda. O que que vai ser importante, como lições desse 50 anos? Você me perguntou sobre o MOBRAL, desculpe, deixa eu falar um pouco rapidinho sobre o MOBRAL. Depois de 1964, vai aparecer, com proteção do Estado, mas sobretudo com dinheiro dos americanos, da Aliança para o Progresso, a Cruzada ABC no Nordeste, ela volta aos anos 50, o material didático que ela vai usar ainda é o mesmo material da primeira campanha. Ela vai ser muito forte na Paraíba e vai ser definir contra o método Paulo Freire e contra os outros movimentos que vinham na linha do próprio MEB, do Paulo Freire. Nesse período, você tem algum remanescente de algum trabalho de MEB até 1966, forte ainda, já saindo um pouco da escola radiofônica para pegar um contato direto com as comunidades, chamava Animação Popular. Você ainda tem uma experiência na Paraíba de Escola Radiofônica, da SIRENA antiga, um pouco renovada, com material didático próprio, mas a cruzada ABC invade e praticamente essas coisas vão ficando residuais. E ela reina durante uns 2 ou 3 anos com muito dinheiro, mais muito dinheiro da Aliança para o Progresso. O grande chamariz dela não é alfabetização, é a distribuição de alimentos. Ela segura os alfabetizados porque distribui arroz, feijão, leite, óleo, umas coisas assim que vem daquelas doações dos americanos. Na verdade, eles fazem isso porque descarrega para a América Latina todo o excesso de produção, para garantir os preços no mercado interno deles. O Nordeste, nesse período, era tudo feito pelos americanos, como se fosse para evitar a possibilidade de uma outra Cuba, no Brasil. Lembre-se de que a Revolução Cubana foi em 1959, então havia esse medo. O MOBRAL nasce no final dos anos 60, um pouco como uma instância articuladora dos movimentos existentes. Na verdade, praticamente existem resíduos e existe a Cruzada ABC, ele sufoca a Cruzada ABC e dá uma entrada muito grande, a partir de 1970 como um grande movimento do Estado, não mais no Ministério da Educação. Aí, vai se fazer como uma fundação com o Simonsen na presidência, o Arlindo Correa na secretaria, com muito dinheiro, porque ela tem a possibilidade de 1% de desconto do Imposto de Renda das empresas para aplicar como desconto. Então, vai ser o maior movimento, ou se você quiser, a maior campanha de alfabetização que a gente vai ter durante todos os anos 70. No final dos anos 80, a campanha tenta sistematizar o MOBRAL infantil, que era praticamente estender a escolarização para as crianças de até 10 anos, no lugar do Ministério da Educação. Isso cria uma enorme crise, e a partir de 80 o MOBRAL vai se esvaziando. Em 1985/1986, com o Collor ele .... não antes do Collor, antes do Collor, eu acho que ainda no período do Sarney, ele é fechado vira Fundação Educar. A Fundação Educar só apóia transferência de verbas de governo, verbas para os municípios, apóia poucos municípios e é extinta no Collor. O MOBRAL é uma história específica, a gente teria que parar um pouco nela, eu acho que a gente vai ter que voltar a isso mais tarde Depois, eu quero tirar as lições que a gente pode tirar desse período.
Salto– Dentre essas campanhas que o senhor citou, a gente pode enumerar uma ou mais que tenham sido as maiores campanhas já realizadas no Brasil e as mais bem-sucedidas?
Osmar Favero – A maior, certamente, o MOBRAL, a maior e não sei, aí depende de a gente usar outros critérios. Aí, eu volto ao que eu estava dizendo no começo. A campanha dos anos 50, a Campanha de Educação de Adultos e Adolescentes, no período, a gente pode dizer que ela teve sucesso. Eu já destaquei a extensão da escolarização, vindo das capitais para o meio rural. O MOBRAL foi uma grande campanha de adequação, nos anos 70, da mão-de- obra que estava vindo para a cidade, particularmente para a construção civil. Ela é poderosa, porque ela entrou em quase todos os municípios do Brasil, entrou com muito dinheiro, ela criou muito material de alfabetização, a meu ver pobre, ficou na mão das editoras praticamente a Abril, a Bloch, fizeram uma transposição da pedagogia de criança para adulto. Não criou nada de novo, mas criou MOBRAL cultural, que foi bem menor, coisas muito interessantes. Por exemplo, tinha livros de história em quadrinhos da Bíblia, tinha livros de receitas usando chás e remédios populares e tal, que eram material de pós-alfabetização que a gente não chegou a fazer muito no Brasil, é uma das coisas que valeria a pena discutir com cuidado. Certamente o MOBRAL, a mais rica a mais ampla. Agora Vanilda Paiva, que se dedicou a estudar seriamente o MOBRAL, imediatamente antes da extinção dele, consegue provar que ele só conseguiu diminuir 7% da taxa de analfabetismo no Brasil, durante 10 anos de atuação maciça e massiva, se você quer usar um termo que é mais dos espanhóis. Que é mais ou menos o que a campanha também deve ter conseguido: de 7% a 10%. O MOBRAL fala em 12%. O MOBRAL teria dito que teria reduzido o índice de analfabetismo, da ordem de 30 a 40%, para até 10 ou 12%.
Na verdade, não é bem assim, a coisa é meio complicada, provavelmente na alfabetização de jovens e adultos, não alcançou mais que 7%. E essa é uma das críticas que a gente faz a campanha hoje.
Este analfabetismo não é o problema principal e alfabetizar não vai ser a solução. Quer dizer, ou se enfrenta o problema da miséria, o problema da renda, o problema do emprego ou então analfabetismo é analfabetismo a vida inteira.
Salto – Essa visão do Paulo Freire pode servir para explicar porque, mesmo depois de tantas campanhas, ou tantos movimentos, o país ainda tem índices tão grandes de analfabetismo?
Osmar Favero – Pode, claro que pode, porque a proposta do Paulo Freire é basicamente uma proposta de mudança da realidade, de mudança da estrutura social. Se você mantém estrutura social de exploração, se radicaliza essa exploração, como está acontecendo agora na fase neoliberal de 90 para cá, você vai ter a escola ruim, você tem analfabetos jovens e adultos, porque a escola não atendeu, ou porque não existia escola, ou porque quem vai à escola não se alfabetiza. Então, muita gente que é da escola rural, por exemplo, hoje é até pior, passa 8 anos na escola e sai sem saber ler. Isso é o Ministério que está dizendo nas pesquisas, a UNESCO está dizendo, então esse é que é o problema, quer dizer, só tem sentido a alfabetização de adultos como conseqüência de uma não escolarização ou de uma escolarização malfeita. É em cima disso que Paulo Freire foi. Claro que o governo está fazendo um movimento que é, até certo ponto bom, de botar todas as crianças na escola, mas em que escola ele está colocando? Há a tal defasagem da série-idade, inventaram a promoção automática e as crianças não estão aprendendo a ler. Então, você põe para fora da escola criança que não sabe ler.
Salto– Essa escola ainda está produzindo analfabetos...
Osmar – É, está produzindo analfabetos. Aí entra um conceito que está posto desde os anos 40, mas foi muito, muito badalado nos anos 60, que é a tal da alfabetização funcional. Alfabetização não é uma mera técnica de você saber ler algumas palavras e assinar o seu nome para ter um título de eleitor, “ferrar” o nome, como Paulo Freire dizia, basicamente é isso, “ferrar nome”, você substitui o polegar de tinta por uma cópia. O analfabeto funcional, ele lê coisas, entende essas coisas, traz essas coisas para sua vida, é um instrumental que permite viver numa sociedade que é letrada. Por isso ele é muito mais um iletrado do que um analfabeto. Ele sabe coisas, ele sabe identificar o veneno do remédio, linhas de ônibus. São leituras parciais, você não pode dizer que ele seja letrado, mas ele não é totalmente analfabeto. Você tem que trabalhar a partir daí para o letramento, que é uma grande perspectiva de agora. Então, na verdade, não adianta você dizer que a maioria da população hoje é analfabeta funcional, claro a escola formou analfabetos funcionais, é isso que a escola está fazendo, a escola pobre está fazendo isso, analfabetos funcionais. E aí precisaria um outro tipo de ação, você vai dizer não se alfabetiza em 4 meses, não se alfabetiza nem em 6 meses. Você tem que alfabetizar em 4 anos, essa é a primeira grande lição das campanhas: o analfabeto é produzido pela omissão da escola, pela escola ruim. A segunda lição é que não se alfabetiza em meses. Nenhuma das campanhas conseguiu alfabetizar em meses. Uma ação escolar deve ser ação muito mais profunda, uma ação de transformação da realidade. Se você alfabetiza a pessoa e ela não usa o que ela aprendeu lendo e aplicando no seu trabalho, aplicando no seu emprego, o que ela aprendeu em 4 meses, ela vai perder em 2 meses, sem dúvida nenhuma, essa é a grande crítica que a gente faz. Outra coisa: a gente perdeu a grande chance de fazer um material didático novo para jovens e adultos com o golpe de 64. A gente tinha entrado num modo de trabalhar o adulto com material novo, muito interessante, com livros de leitura, com um processo audiovisual do Paulo Freire. O MOBRAL retoma isso perifericamente, nos exemplos que eu dei. Claro que na cartilha do MCP, as primeiras lições eram sobre povo, voto, pão. O MEB fez um livro de leitura para o pós-alfabetizado, lindíssimo, chamado Viver a luta, que foi apreendido pela polícia do Lacerda, que nunca mais se retomou. Voltou-se às cartilhas feitas por professores primários, voltou-se às cartilhas paupérrimas, da Cruzada ABC pro Nordeste, nos anos 60. A gente perdeu isso e eu não vejo capacidade de hoje, a não ser nas universidades, de a gente produzir esse material. Universidade ou algumas ONGs que têm material interessante, um almanaque, que é uma das coisas que se usa. Nos anos 60 a gente produzira cartilha de cordel, textos de cordel para adulto, discutindo cooperativismo, sindicalismo, direitos da legislação trabalhista, isso aí foi tudo perdido. Devia ser recuperado. Não acho que se deva recuperar pegando romances tradicionais, por melhores que eles sejam, reduzindo para o analfabeto ler.
(Entrevista concedida em 18 de julho 2003)
http://www.redebrasil.tv.br/salto/
2 comentários:
Fávero: o MOBRAL devia ter alfabetizado você.
Uma entrevista bastante esclarecedora a respeito das primeiras campanhas de alfabetização de adultos até a formação de um método de alfabetização construído por Paulo Freire. Onde podemos observar a eficácia do método e aprender sobre a trajetória da educação brasileira ao longo dos anos.
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