domingo, 30 de novembro de 2008

Nei Lopes

Na pluralidade do samba


Nome: Nei Lopes

Formação: Autor e intérprete de música popular. Pesquisador do samba e do choro, escritor, militante desde a juventude no movimento negro brasileiro.

Obra: Em seu legado para a cultura brasileira incluem-se as composições como Gostoso Veneno, Coisa da Antiga, Senhora Liberdade, Goiabada Cascão e Samba de Irajá. Atualmente, além do seu trabalho com o Samba, trabalha na elaboração da Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, sobre verbetes do universo do Samba e do Choro.


Olha, eu tenho todo um campo de reflexão sobre a participação do elemento africano e afro-descendente na cultura brasileira. Então, evidentemente, que eu teria que passar pelo samba, que é o segmento mais visível em termos da musicalidade brasileira, é o segmento mais visível dessa participação. Então, eu tenho estudado, ao longo dos anos, a questão do samba, a questão das escolas de samba. Só que, em relação às escolas de samba, como é um fenômeno, no meu entender, já absolutamente comprometido com a indústria cultural, já extrapolou os limites da criação popular, então, eu já abandono um pouco as minhas reflexões sobre a escola de samba. Prefiro me centrar hoje no samba enquanto gênero de música popular brasileira, enquanto matriz da grande música que se faz nesse país.


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Entrevista com Nei Lopes

Salto – Há quanto tempo você tem se dedicado à música, como cantor e compositor?

Nei Lopes – Olha, eu tenho uma carreira profissional iniciada em 1972, já se vão 32 anos. Então, eu acho que são três décadas dedicadas à cultura popular brasileira em duas vertentes: na vertente do compositor, de criador e na vertente de crítico, pessoa que procura refletir sobre a realidade da música brasileira. Vou falar sobre a primeira: refletir sobre a realidade da música brasileira. A primeira gravação minha como compositor profissional foi em 1972 e a primeira reflexão publicada foi em 1981, num livro em que eu, exatamente, procurava analisar questões envolvendo basicamente as escolas de samba do Rio de Janeiro e fazendo até um certo exercício de futurologia com relação às coisas que estão acontecendo hoje, isso em 1981. É uma caminhada.

Salto – E essas coisas estão acontecendo?

Nei Lopes – Estão acontecendo, a minha reflexão primeira foi em cima da questão das escolas de samba que sofreram uma transformação muito grande, a partir de meados da década de 70. E as transformações se refletiram, exatamente, num privilégio do espetáculo em detrimento do fazer cultural, propriamente dito. Quero dizer, a questão do mercado, a questão da indústria sobrepujou a questão da criação coletiva, no meu modesto julgamento. Isso em termos de escola de samba, que é uma coisa, o samba é outra coisa diferente, são duas instituições que, em certo momento histórico, se cruzam, mas são duas coisas diferentes e eu procuro enfatizar a diferença entre uma coisa e outra. Quando a escola de samba foi criada no Rio de Janeiro, a Instituição Escola de Samba, na década de 20, o samba já existia há muitas décadas antes. Muito antes.

Salto – Como tem sido pesquisar a origem do samba?

Nei Lopes – Olha, eu tenho todo um campo de reflexão sobre a participação do elemento africano e afro-descendente na cultura brasileira. Então, evidentemente, que eu teria que passar pelo samba, que é o segmento mais visível em termos da musicalidade brasileira, é o segmento mais visível dessa participação. Então, eu tenho estudado, ao longo dos anos, a questão do samba, a questão das escolas de samba. Só que, em relação às escolas de samba, como é um fenômeno, no meu entender, já absolutamente comprometido com a indústria cultural, já extrapolou os limites da criação popular, então, eu já abandono um pouco as minhas reflexões sobre a escola de samba. Prefiro me centrar hoje no samba enquanto gênero de música popular brasileira, enquanto matriz da grande música que se faz nesse país.

Salto – Essa pesquisa tem contribuído para o Nei Lopes artista, que canta, que compõe?

Nei Lopes – Esse trabalho, esse estudo tem me embasado no sentido de me fortalecer cada vez mais nas minhas convicções. Eu tenho uma percepção clara de que existe toda uma estratégia internacional hoje, da indústria cultural, no sentido de pasteurizar, no sentido de nivelar, no sentido de desnacionalizar a música em nível planetário. Criou-se um padrão musical que interessa ao mercado, esse padrão é imposto em todos os países, em todos os quadrantes do planeta Terra. Então, esse conhecimento, essa consciência me embasa para procurar fazer um samba, uma música popular brasileira que seja, cada vez mais, resistente a essa estratégia, e é isso que eu tenho feito ao longo dos anos. Quer dizer, há todo um contexto que é contrário a essa afirmação da nacionalidade, da música popular brasileira contra o qual eu me insurjo. E como é que eu me insurjo? Me insurjo fazendo uma música que procure ser, cada vez mais brasileira, cada vez mais peculiar e, cada vez mais múltipla, é isso que eu procuro fazer.

Salto – O senhor acredita que o samba ainda é visto de maneira preconceituosa?

Nei Lopes – Absolutamente, completamente preconceituosa. O samba é sempre associado, primeiro por suas origens negras, o samba é sempre associado à escravidão, associado à pobreza, é associado à favelização, associado à criminalidade, e essa é a grande estratégia que é usada pela indústria cultural globalizante, no sentido de colocar o samba numa condição subalterna sempre. E é também uma estratégia que compõe todo esse complexo de dominação e de colonização cultural. Uma das estratégias também é taxar o samba como uma coisa imóvel, como uma coisa velha, como uma coisa que não se renova. Eu escrevi um livro, há uns dois anos, chamado Samba b – a – ba, o samba que não se aprende na escola. Esse livro mereceu oito páginas de uma revista elegante, uma revista finíssima que é editada em São Paulo, editada, inclusive com muito patrocínio do Governo. Então, é uma revista muito bonita, de altíssimo nível, ela tem papel couchê, custa caríssimo nas bancas... Essa revista se ocupou do meu livro, num artigo altamente tendencioso, usou 8 páginas para falar do meu livro, acusando o livro de coisas: que o livro era passadista, era reacionário. O título da chamada de capa dessa crítica, veja bem, dizia assim: “Nei Lopes – O samba em formol”. Eu absolutamente não advogo que o samba tenha que ficar “museificado”, tenha que ficou imóvel, nada disso, eu sou uma das pessoas que mais propugnam pela visibilidade, pela diversidade, pela multiplicidade do samba. Agora mesmo, estamos aqui no estúdio, estou concluindo mais uma produção, mais um disco meu, um disco em que eu procuro evidenciar essa diversidade, por exemplo. É um disco de samba com algumas informações afro-cubanas, porque eu acho que os universos do samba são irmãos. São muito semelhantes, são duas coisas que se cruzam a todo momento, o que não acontece, por exemplo, com a música afro norte-americana, em relação à brasileira. Os negros americanos não usaram tambor, foram historicamente despossuídos do tambor pela colonização, pela evangelização dos protestantes. Enquanto que os negros da América-hispânica, da América portuguesa, como, nós, usaram sempre o tambor. Então, você pega a música de Cuba, a música de Porto Rico, a música da República Dominicana, a música do Haiti, até o próprio Prata, do Uruguai até a Argentina, há uma similitude entre essas músicas, porque elas têm origens comuns, a origem na grande civilização Banto, lá do Congo, Angola e adjacências, o que não ocorre com a música dos Estados Unidos. Então, você pega um samba e o associa com a música afro-hispânico, a música centro-americana, é absolutamente coerente, não é colonização, nem coisa nenhuma. Você está promovendo o encontro entre parentes que foram, de uma certa forma, dispersos pela escravidão e etc. e tal. Então, eu procuro no meu trabalho, sempre que posso, chamar o samba para essas associações e exatamente por isso. Para mostrar que o samba é plurifacetado, o samba é um gênero musical altamente rico, não é velho, porque ele se renova a cada momento, desde o primeiro samba, registrado como samba, que foi “Pelo telefone”, a gente observa que, a cada década, há uma renovação da expressão dessa pluralidade do samba, que também está vivo até hoje por causa disso. E, às vezes, até é meio difícil perceber essa diversidade, inclusive em sub-gêneros, que às vezes são mostrados como gênero, como por exemplo, a Bossa Nova, é um samba, é uma forma de fazer samba. O choro como forma instrumental de se tocar o samba, o chamado sambop, o samba jazz surgido aqui no Rio de Janeiro no contexto da Bossa Nova, o samba de piano, baixo e bateria. Aí está um dos poucos momentos em que a tradição norte-americana e a tradição brasileira se encontram. Mas se encontram por via do jazz primeiro, mas o jazz tocado com um acento de samba e por aí vai. Então, o samba é essa diversidade, inclusive essas formas mais modernas, supostamente mais modernas, que emanam da Bahia com muita sensualidade, com muita, o chamado samba-axé, ou samba de quebradeira, são tradições também bastante arcaicas do Recôncavo Bahiano, das quais indústria cultural se apropriou. Então, o que eu procuro fazer sempre, é mostrar essa diversidade, essa pluralidade e mostrar que o samba está vivo aí, não está velho e não está no formol.

Salto – Por que o senhor acredita que o conceito de pluralidade cultural ganha tanta importância no mundo hoje?

Nei Lopes – Eu acho que há uma dualidade de pensamento aí, eu acho que os intelectuais, os intelectuais “do bem” (risos), procuram enfatizar a questão da pluralidade e procuram valorizar essa questão. Ao passo que outras expressões intelectuais que não são tão “do bem” assim, que estão visando muito mais o capital, são expressão de um capitalismo bastante perverso, bastante massacrante, já não valorizam a pluralidade do jeito que a intelectualidade do bem valoriza. Porque não interessa... o mundo hoje é comandado por corporações, cada vez menos corporações. Digamos que hoje você tem conglomerados, uns 4 ou 5 conglomerados comandando a cultura no mundo inteiro. Então, evidente, que quanto mais se concentra o poder nas mãos desses conglomerados, menos a pluralidade interessa. Você tem, para dominar o mercado, você tem que ter um mercado homogêneo. Então, essa homogeneidade é contra todo tipo de pluralidade. Eu acho que quem valoriza a pluralidade somos nós, eu, você (apontando para a equipe do Salto), os espectadores aí que estão assistindo ao nosso programa, mas o grande, o Big Brother que manda nessa história toda, eu acho que ele não gosta de pluralidade não.

Salto – O senhor acredita que a música popular brasileira retrata a pluralidade cultural do país?

Nei Lopes – Olha, existem duas músicas populares brasileiras, dois escaninhos de música popular brasileira. Existe a música popular brasileira que é espontânea, de criação popular mesmo e essa você vai encontrar onde? Nas produções independentes, nos centros mais afastados. E existe outra música imposta por essa indústria de que nós estamos falando, cujos porta-vozes são os meios de comunicação atrelados a essa indústria. A gente teve, dias atrás, a entrega de um prêmio, que é supostamente o prêmio mais importante da música popular brasileira, em que não houve nenhuma premiação para o gênero samba, houve para o hip hop, para o universo pop, mas no entanto, numa estratégia, aquela coisa do álibi, numa espécie de álibi, o que os organizadores do prêmio fizeram? Pegaram o Jamelão, o nosso grande José Bispo Clementino dos Santos, nosso grande mangueirense, botaram lá e fizeram um grande final da premiação com Jamelão, mais a Escola de Samba da mangueira. É sempre assim! Efetivamente o samba não tem nada a ver, não participa do mercado, isso na visão deles, mas aí como álibi, para não dizer que são anti-samba, ou antinacionais, o que que fazem? Pegam alguém que representa alguma coisa do samba e bota num “gran finale”, num oba-oba e etc e tal. Quer dizer, então o que a gente vê é isso. Apesar disso tudo, existe hoje uma produção musical independente muito forte, no Brasil inteiro. Existe uma rede natural e espontânea de troca de informações, a internet inclusive veio facilitar muito isso. Os artistas do samba estão trabalhando e muito bem, eu inclusive, em todo país, sempre sendo prestigiado, sempre sendo chamados, independente de qualquer coisa, Evidentemente que ninguém do samba, pelo menos o que eu conheça, à exceção de uns dois ou três, que merecidamente está lá no pódio, à exceção de um ou dois que a indústria cultural admitiu. Nenhum sambista está andando de BMW, tendo jatinhos, etc e tal... Mas, pelo menos, os que estão trabalhando estão conseguindo, como trabalhadores, ter uma remuneração condizente dentro dos padrões nacionais. Isso é importante, nós somos trabalhadores da música, não somos? Ninguém nasceu para ser “superstar”, ser “popstar”. Então, a gente tendo a remuneração condigna, tendo a possibilidade de cuidar direitinho da saúde, tendo a possibilidade de aos 62 anos ter essa aparência bonita, modéstia à parte, então tudo bem, está tudo certo, está tudo legal.

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