A ética do dia-a-dia
O filósofo australiano diz que quando pessoas
normais cometem crimes bárbaros é sinal de
que a sociedade perdeu o controle de si própria
"Num primeiro momento, pequenas infrações parecem não ter importância, mas ao longo do tempo a moral da comunidade é afetada em todas as esferas"
O filósofo australiano Peter Singer, de 60 anos, especialista em ética, tornou-se mundialmente conhecido com o livro Libertação Animal, de 1975, no qual defendia que nada justifica os maus-tratos impostos aos animais pelos produtores de alimentos. Com mais de trinta outras obras publicadas desde então, Singer agora volta ao assunto em seu novo livro, A Ética da Alimentação, recém-lançado no Brasil. Nele, defende que a forma como o ser humano se alimenta hoje precisa ser reavaliada, pois tem enorme impacto não apenas no sofrimento dos animais, mas também na saúde das populações. Ao longo de sua vasta obra, Singer, hoje professor da Universidade Princeton, nos Estados Unidos, trata de assuntos como aborto, uso de embriões para pesquisas científicas, eutanásia e pena de morte. Nesta entrevista a VEJA, o filósofo comenta o assassinato brutal do menino João Hélio Vieites, de 6 anos, e destaca a necessidade de exercitar a ética diariamente para manter os valores morais de uma sociedade.
Veja – O assassinato do menino João Hélio, de 6 anos, há duas semanas, chocou o Brasil e reacendeu o debate sobre os valores éticos na sociedade brasileira. Um crime bárbaro pode ser tomado como medida dos valores morais de uma nação?
Singer – Crimes como esse se sobrepõem à imoralidade. São amorais. Essa ausência total de valores morais é geralmente percebida em atos praticados por psicopatas ou assassinos em série. Quando pessoas supostamente normais cometem barbáries como essa, tem-se um péssimo sinal. É uma prova de que a sociedade em questão perdeu o controle de si mesma, que as pessoas não têm mais a noção exata de certo e errado. Eu não conheço o Brasil e não sou criminalista, por isso não posso falar de forma específica sobre o caso. De qualquer modo, como os jovens assassinos tinham a opção de parar o carro e evitar a tragédia, o ato torna-se injustificável sob qualquer ponto de vista.
Veja – Existem valores éticos inatos ou todos resultam da vivência e do aprendizado?
Singer – Certos aspectos morais são inatos, como o respeito e o compromisso com a família, com os filhos e com os pais, assim como o senso de justiça e a reciprocidade. São valores universais, presentes em todas as sociedades. Já foi provado que eles existem também entre macacos, gorilas e chimpanzés. Mas alguns valores morais podem sofrer transformações de acordo com os traços culturais e com a realidade de cada sociedade. Essa influência da cultura e da realidade nos valores morais pode ser bem percebida quando tratamos de assuntos como aborto, eutanásia e comportamento sexual. Cada país tem uma visão diferente dessas questões.
Veja – O que pode causar o enfraquecimento dos valores éticos numa sociedade?
Singer – A ética é um exercício diário, precisa ser praticada no cotidiano. Só assim ela pode se afirmar em sua plenitude numa sociedade. Se uma pessoa não respeita o próximo, não cumpre as leis da convivência, não paga seus impostos ou não obedece às leis de trânsito, ela não é ética. Num primeiro momento, pequenas infrações isoladas parecem não ter importância. Mas, ao longo do tempo, a moral da comunidade é afetada em todas as suas esferas. Chamo a isso de círculo ético. Uma ação interfere na outra, e os valores morais perdem força, vão se diluindo. Para uma sociedade ser justa, o círculo ético é essencial.
Veja – Essa lógica pode ser aplicada a questões que envolvem criminalidade?
Singer – Sem dúvida. Bogotá é um exemplo desse círculo ético aplicado no combate à violência. Na capital colombiana, diminuiu-se a criminalidade combatendo-se os pequenos crimes diários. Foi um sucesso. Quando os cidadãos são estimulados a respeitar as leis básicas, passam a respeitar a si próprios, ao próximo e à cidadania. É o primeiro passo para mudar uma sociedade corrompida.
Veja – O senhor é a favor da pena de morte?
Singer – Definitivamente, não. A pena de morte não é moralmente aceitável e brutaliza uma sociedade. Prefiro a pena de prisão perpétua, que é mais justa.
Veja – O senhor defende o aborto e a eutanásia, mas não a pena de morte. Não é uma contradição?
Singer – Não. Tanto o aborto quanto a eutanásia não provocam sofrimento. Ao contrário. São práticas que aliviam o sofrimento. Considero o feto uma vida humana, mas não uma vida que tenha sensações e sentimentos, pelo menos na fase de gestação em que ocorre a maioria dos abortos. A eutanásia é a alternativa moral para aliviar o sofrimento de doentes terminais. Minha posição é contra a interrupção da vida de um ser, seja humano, seja animal, que deseja continuar a viver e sofrerá com a morte inesperada.
Veja – Em seu último livro, o senhor volta ao tema dos direitos dos animais. Não é contraditório justificar o aborto e a eutanásia mas defender a vida dos bichos?
Singer – Sempre fui mal interpretado nesse aspecto. Em nenhum momento disse que não devemos comer carne porque é errado matar animais. O alvo de minhas críticas é a maneira antiética como os animais são criados e abatidos para consumo.
Veja – O senhor argumenta que é preciso pensar na comida de forma ética. O que significa isso?
Singer – As pessoas precisam parar de pensar na comida apenas como algo de que se gosta ou que faz bem à saúde. O ato de comer também é uma decisão ética e moral. É necessário pensar nas conseqüências do comer, tanto para os animais que nos servem de alimento como para o meio ambiente ou para nós próprios. A forma como nos alimentamos hoje faz o animal sofrer, provoca uma epidemia de obesidade no mundo e é causa de uma série de doenças nos seres humanos. Isso tem impacto profundo no planeta e no meio ambiente.
Veja – O que há de errado na criação dos animais destinados à alimentação humana?
Singer – Os animais são criados nas fazendas industriais sem a mínima dignidade. Os porcos, que instintivamente procuram abrigo para alimentar seus filhotes, não podem sequer se mexer, porque vivem num espaço mínimo. Os filhotes são arrancados da mãe o mais rápido possível, para que possam engordar e procriar. O gado não come capim, como todo mundo pensa, mas restos de animais e seus excrementos. Os frangos criados em granja vivem em galpões que abrigam até 20.000 aves que nunca vêem a luz do dia, só a luz artificial. São abarrotadas de antibióticos e hormônios para ganhar peso. Quem não se interessa pelos bichos deve pelo menos pensar em si próprio. A doença da vaca louca é um exemplo do resultado dessa forma de criação estapafúrdia. Além disso, o confinamento de bilhões de animais, alimentados de forma excessiva para o abate, exige uma quantidade incomensurável de plantações. Em alguns anos não haverá mais terra para plantio no planeta. Isso sem falar que a China e a Índia, com suas enormes populações, começaram a reproduzir métodos ocidentais de criação de animais. Se esse processo continuar, aumentarão os danos ao ambiente, a incidência de doenças cardíacas e os casos de câncer do sistema digestivo. São bons motivos para avaliar a comida moralmente.
Veja – O que o senhor propõe para mudar essa situação?
Singer – Eu sou vegetariano, mas não acredito que parar de comer carne seja a solução para o mundo. Há maneiras mais dignas de criar os animais, respeitando sua natureza e o meio ambiente. Pode parecer contraditório, mas são os próprios produtores de alimentos que vão imprimir essas mudanças. Na primeira etapa do processo, o consumidor precisa ser educado. Esse é um dos objetivos do meu novo livro. As pessoas têm de conhecer a realidade das fazendas industriais e saber que suas escolhas têm muito peso para modificar a atitude dos empresários do ramo em relação aos animais. O mercado só produz o que o consumidor quer. O consumo de vitela, por exemplo, caiu drasticamente quando se tornou público que os bezerros são separados da mãe e transformados propositalmente em animais anêmicos, confinados em espaços minúsculos, para que sua carne fique macia e branca.
Veja – Os produtores de alimentos estão dispostos a mudar seus métodos de criação de animais de maneira drástica?
Singer – Eles não têm muita saída. No mês passado, o maior produtor de porcos dos Estados Unidos, a Smithfield Farms, anunciou uma reestruturação nos criadouros de seus animais, hoje confinados em pequenos espaços. A empresa tem 187 fazendas de porcos nos Estados Unidos e prevê que só em dez anos as mudanças serão implementadas em todas elas. Mas a simples divulgação da medida já desencadeou uma série de outras ações, inclusive de empresas menores, que conseguirão resultados mais rapidamente. Poucos dias depois de a empresa americana anunciar isso, a maior produtora canadense de porcos decidiu fazer o mesmo.
Veja – A ação dessa empresa decorre da conscientização do consumidor?
Singer – Sem dúvida. É uma reação em cadeia. A empresa americana só promoveu mudanças em sua criação de porcos porque sofreu pressão de um de seus maiores clientes, o McDonald's. E isso só aconteceu porque os clientes do McDonald's mostraram indignação com a forma como os porcos são criados. O mesmo está ocorrendo em relação ao aquecimento global. A preocupação das pessoas com o futuro do planeta é cada vez maior, o que tem pressionado as empresas a mudar suas atitudes e seus métodos de produção, criando alternativas para evitar a emissão de dióxido de carbono.
Veja – A humanidade sempre manteve laços afetivos com alguns animais. Por que oferecemos tanto amor aos bichos de estimação e às espécies em extinção enquanto negligenciamos as que nos alimentam?
Singer – Sempre fomos muito seletivos em relação aos animais com os quais queremos nos relacionar. Temos uma ligação mais profunda com bichos nos quais reconhecemos emoções e sentimentos, em particular com os cachorros, por causa do amor incondicional que eles nos oferecem. Respondemos bem a isso. As espécies em extinção, por sua vez, representam as mudanças que o planeta sofreu por causa da interferência humana. A extinção, por ser irreversível, é uma representação da perda, um processo que nos toca fundo. O mesmo não acontece com os animais que nos servem de alimento. O ser humano não tem empatia com eles nem quer mudar os próprios hábitos alimentares. É mais fácil não pensar sobre isso.
Veja – Em seu livro, escrevendo sobre a obesidade, o senhor sugere uma reflexão sobre o conceito da gula. Por que a sugestão?
Singer – Comemos demais e desnecessariamente. As religiões, de certa forma, sempre exerceram um controle sobre o que os fiéis comem. Uma leitura moral da história da alimentação revela que, de todas as religiões, a que menos conteve os excessos alimentares foi o cristianismo. Não se encontra na cultura cristã a série de restrições alimentares presente no islamismo, no judaísmo e até mesmo na tradição hinduísta. Nessas três culturas, há diversas advertências sobre o que se deve ou não comer. O que existe na tradição cristã é o pecado pelo excesso de comida, a gula, que foi esquecido ao longo dos séculos pelos cristãos. Esqueceram-se da gula e preocuparam-se com outros pecados, principalmente os de natureza sexual. O maior exemplo disso são os Estados Unidos. É um país cristão por natureza e, mesmo assim, a nação com a maior população obesa do mundo. Precisamos pensar sobre isso. Afinal, uma pessoa que come o dobro ou mais de carne do que precisa, carne proveniente de animais criados para consumo, não faz mal apenas a si mesma. Esse hábito tem impacto no planeta e, do ponto de vista moral, também é duplamente ruim.
Veja – O senhor é a favor dos alimentos geneticamente modificados, os transgênicos?
Singer – Do ponto de vista moral, não vejo mal algum nos transgênicos. Ainda mais imperioso do que combater a obesidade é acabar com a fome no mundo, e esses alimentos podem ser uma das soluções para o problema. Além disso, as plantações de transgênicos não precisam de pesticidas, o que ajuda a preservar o meio ambiente, ao contrário do que ocorre nas fazendas convencionais.
Veja – O que diria a quem deseja ser ético em relação à alimentação diária?
Singer – O que defendo no livro, e faço questão de deixar bem claro, é que não precisamos ser vegetarianos para ser éticos. Da mesma forma que não precisamos parar de usar o carro para ajudar a combater o aquecimento global – podemos mudar o tipo de energia usada para o carro funcionar. Na questão alimentar, é possível, por exemplo, evitar a carne de animais criados de forma tradicional. Uma boa opção é escolher os produtos animais provenientes das chamadas fazendas orgânicas. Já é uma tremenda mudança.
Veja – E que conselhos daria a quem quer ser ético no dia-a-dia?
Singer – Comece pelo mais simples. Cumprimente as pessoas, diga bom-dia, seja educado com quem convive.
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