Falta fazer a lição de casa
O ambientalista diz que ser país em desenvolvimento
não serve mais de desculpa para o Brasil descuidar
do próprio ambiente
"Nenhuma nação pode ficar o tempo todo cobrando compromissos dos outros se não assume nenhum"
28 de fevereiro de 2007
O ambientalista Fabio Feldmann ganhou projeção nacional quando instituiu o rodízio de veículos na cidade de São Paulo, em 1996. A reação dos paulistanos à obrigatoriedade de deixar o carro em casa um dia por semana foi tão intensa que o então secretário estadual do Meio Ambiente sofreu ameaças de morte e precisou andar com guarda-costas. A oposição ao rodízio também lhe custou a reeleição em 1998, depois de três mandatos como deputado federal pelo PMDB e pelo PSDB. Hoje filiado ao Partido Verde, Feldmann, de 51 anos, não pretende voltar a disputar eleições. Advogado, sua principal atividade é a de consultor sobre ecologia para empresas e ONGs. Com a experiência de ter participado de delegações brasileiras nos encontros sobre clima da ONU e de ter sido secretário executivo do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, diz que "há um enorme descompasso entre o que propomos aos outros nos fóruns internacionais e o que realizamos dentro de casa". Feldmann concedeu a seguinte entrevista a VEJA.
Veja – Como o senhor vê a atuação do Brasil nas negociações internacionais de mudanças climáticas?
Feldmann – A diplomacia brasileira é bem preparada e eficiente, mas opera num paradigma obsoleto. Em vez de nos sentirmos cidadãos do mundo e de agirmos segundo valores mais grandiosos, continuamos defendendo nossos interesses nacionais imediatos. Essa posição vem de longo tempo. Desde a conferência da ONU em Estocolmo, em 1972, o Brasil assumiu a tese de que não aceitaria controlar a poluição para não afetar o seu crescimento econômico, considerado um mecanismo fundamental para reduzir a miséria. O problema é que essa postura, que considero excessivamente defensiva, tem sido mantida desde então. Foi graças a ela que o Brasil escapou de ser obrigado a adotar medidas para reduzir a emissão de gases que provocam o efeito estufa, enquanto os países industrializados tiveram de se enquadrar em metas ambiciosas. Há quase vinte anos a humanidade conhece sua responsabilidade no aquecimento global. Mesmo após todo esse tempo, o Brasil nada fez para controlar suas emissões de poluentes. Manter essa posição – de país em eterno desenvolvimento – tornou-se uma estratégia extremamente frágil, insustentável. Nenhuma nação pode ficar o tempo todo cobrando compromissos dos outros se não assume nenhum. É o que fazemos: há um enorme descompasso entre o que propomos aos outros nos fóruns internacionais e o que realizamos dentro de casa.
Veja – De que forma o Brasil poderia reduzir as emissões?
Feldmann – Em primeiro lugar, é preciso conter o desmatamento na Amazônia. Somos um dos quatro países que mais emitem gases de efeito estufa. Cerca de 70% de todos os gases emitidos pelo Brasil vêm do desmatamento. Isso faz com que nossa situação seja ainda mais insustentável do que a da China e a da Índia. Esses países poluem o ar fundamentalmente porque sua matriz energética é baseada em combustíveis fósseis, e qualquer redução nas emissões implicaria a redução da atividade econômica. Não é o nosso caso. Não temos nenhum argumento para justificar esse enorme crime ambiental, daí haver tanta pressão internacional em cima do Brasil. Alguns ficam espantados com isso e afirmam ser uma afronta a nossa soberania. Esses críticos precisam entender que soberania é um conceito que se exerce na prática, e não com bravatas públicas. A preocupação internacional com o desmatamento da Amazônia é legítima porque o efeito estufa afeta todo o planeta. Bastaria que o Brasil se mostrasse um bom gestor da região para esvaziar a pressão que vem de fora.
Veja – Que medidas deveriam ser tomadas na Amazônia?
Feldmann – É preciso impor um freio definitivo na expansão da fronteira agrícola sobre o ecossistema amazônico e permitir o aproveitamento da área degradada com tecnologias que assegurem o crescimento da produção agropecuária. Com vontade política é possível, sim, controlar o desmatamento da Amazônia. Uma das maneiras de fazer isso seria bloquear o escoamento da madeira, como tem mostrado o Greenpeace. Algumas coisas vão ocorrer, mesmo sem a participação do Estado brasileiro. Consumidores americanos e europeus estão exercendo forte pressão sobre as redes de fast-food e de supermercados, exigindo que a produção dos alimentos vendidos por elas seja feita de maneira sustentável, sem agredir o ambiente. O consumidor, esteja onde estiver, será um personagem cada dia mais importante na preservação do planeta.
Veja – Quais foram os pontos positivos conquistados pelas delegações brasileiras nas negociações sobre mudanças climáticas?
Feldmann – Tivemos acertos principalmente no que se refere a iniciativas que partiram do Ministério da Ciência e Tecnologia. O Brasil foi um dos grandes responsáveis pelo Tratado de Kioto, e é importante lembrar que a criação do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, o MDL, foi uma proposta originalmente brasileira. Com ela, empresas de países desenvolvidos que poluem além da conta podem comprar créditos de carbono, que são investidos em iniciativas ecológicas em países em desenvolvimento. Outro ponto alto ocorreu no ano passado, quando o Brasil levou a proposta do desmatamento evitado. Consiste em beneficiar financeiramente países que reduzam a queima de florestas. A proposta, na realidade, apresentou-se de maneira muito débil, já que não especificava de onde viriam os recursos. Falou-se em um fundo internacional. A questão é encontrar qual país, de boa vontade, daria dinheiro para esse fundo. Às vésperas da ECO-92, os países ricos do G7 ofereceram milhões de dólares para conter o desmatamento, mas o resultado foi insignificante. Mesmo assim, a proposta do desmatamento evitado chamou atenção porque, finalmente, o Brasil pareceu reconhecer o papel do desflorestamento no aquecimento global. Falta ainda provar ao mundo que é possível fazer isso.
Veja – Os políticos brasileiros estão preocupados com o aquecimento global?
Feldmann – Há um enorme descompasso entre a atuação do Brasil nos fóruns internacionais e o que é feito dentro do país. Nos últimos dois anos, apesar de a comunidade científica e a sociedade civil estarem mais atentas ao tema, o aquecimento global continua ausente da agenda dos políticos. Os candidatos a presidente na eleição do ano passado não discutiram com movimentos ambientalistas. Foi uma grande falha. As ONGs não conseguiram demonstrar que o aquecimento global era um tema importante e também não tiveram força suficiente para pressionar os candidatos a mergulhar no assunto.
Veja – Por que o movimento ambientalista brasileiro não tem influência política?
Feldmann – O ideal seria que as organizações que se preocupam com o ambiente tivessem maior número de filiados. Isso ampliaria muito a sua capacidade de influenciar os políticos e de pressionar para que as leis sejam efetivamente cumpridas. O movimento ambientalista também precisa de uma radical transformação em termos de ação e de agenda, em razão de seu próprio sucesso. As estratégias de hoje devem levar em conta que as crianças conhecem muito melhor os assuntos do que a minha geração, e espera-se da sociedade civil maior capacidade de proposição. Temos de ter a capacidade de promover alianças estratégicas entre o setor empresarial, a sociedade civil e as lideranças políticas esclarecidas.
Veja – O governo brasileiro deveria ter projetos específicos para prevenir os impactos do aquecimento global?
Feldmann – Uma das áreas mais afetadas pelas mudanças climáticas é o regime hídrico. Alguns cientistas, como Eneas Salati, da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável, defendem que pode ocorrer uma alteração radical das chuvas em determinados locais, o que comprometeria o abastecimento de água na Região Sudeste. Há duas semanas, recebi pelo correio o Plano Nacional de Recursos Hídricos, elaborado pelo Ministério do Meio Ambiente. É a primeira vez que o Brasil tem uma política nacional de recursos hídricos, o que é louvável. Contudo, não há uma linha sequer sobre o aquecimento global. É triste, mas as autoridades ainda ignoram as previsões sobre os efeitos do aquecimento global.
Veja – O crescimento vertiginoso da economia chinesa contribui bastante para o aquecimento global. Existe a possibilidade de convencer os chineses a reduzir a emissão de poluentes?
Feldmann – Mais do que a Índia, a China tem se mostrado suscetível a controlar suas emissões de gases causadores do efeito estufa. Mas é preciso um pouco de precaução. Tenho participado de muitas reuniões internacionais e me surpreende a tolerância com que o mundo vê a China. O fascínio exercido pelo mercado chinês tem levado muitos de nós a relativizar a questão da pena de morte, bem como os problemas que esse crescimento econômico pode provocar no ambiente, principalmente com relação ao aumento das emissões chinesas de gases causadores do efeito estufa. Em uma reunião realizada em São Paulo, em agosto do ano passado, para discutir compromissos no âmbito do Tratado de Kioto depois de 2012, representantes chineses exibiram uma apresentação em Power Point para tentar nos convencer de que as suas termelétricas apresentam emissão praticamente nula de dióxido de carbono, o que sabemos ser impossível. Confesso que a falta de transparência e de democracia na China ainda me incomoda bastante.
Veja – Os impactos do aquecimento global no Brasil estão sendo bem estudados?
Feldmann – São estudos ainda preliminares. Já se falou da savanização da Floresta Amazônica, do risco que o aumento do nível do mar pode oferecer aos portos brasileiros e da redução na produção de laranja. Os estudos deveriam ser mais amplos. O Brasil teria de fazer com a Amazônia o mesmo que se fez com o Ártico, em que pesquisadores de vários países se uniram para produzir um único e vigoroso relatório. O resultado desse trabalho é hoje a maior evidência de que o aquecimento global está em andamento. Em relação à Amazônia, proponho que a diplomacia brasileira se articule com países vizinhos para fazer o mesmo.
Veja – O senhor trabalhou no governo Lula. Como avalia a atuação desse governo na questão ambiental?
Feldmann – Nos dois primeiros anos do primeiro mandato de Lula, continuei exercendo o papel de secretário executivo do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas enquanto não se encontrava um substituto. Essa instituição, criada em 2000, tinha como meta inicial preparar o presidente da República e a sociedade para enfrentar os problemas decorrentes do aquecimento global. Durante esse período de dois anos, eu me vi no pior trabalho do mundo. Eles não contavam com ninguém para colocar no meu lugar e eu não tinha poder para fazer nada. Atualmente, o Fórum de Mudanças Climáticas perdeu sua importância e é incapaz de elaborar uma agenda doméstica para lidar com o problema. O governo petista até hoje não compreendeu a urgência do aquecimento global.
Veja – Qual foi o impacto do rodízio de veículos na sua carreira?
Feldmann – Na época, sofri ameaças de morte, recebia trotes telefônicos de madrugada e precisei andar com seguranças. Tinha até usuários de ônibus, os maiores beneficiados, reclamando de mim. Minha avaliação hoje é que subestimei a indignação do cidadão com um Estado que, ao mesmo tempo que restringe sua ação, se mostra incapaz de oferecer alternativas, como um transporte público barato e eficiente. Aprendi com o rodízio que falar em ética e em direito das futuras gerações não é uma forma de assegurar sustentabilidade política em curto prazo.
Veja – O senhor ainda defende o rodízio?
Feldmann – O rodízio surgiu como uma solução de emergência para enfrentar o agravamento da poluição no inverno em São Paulo. Entre outras iniciativas, mencionava a introdução do pedágio eletrônico, a inspeção e a manutenção periódica dos veículos, o uso de combustíveis menos poluidores e de automóveis mais eficientes. A idéia seria transformar São Paulo numa espécie de Califórnia, que tem sido o estado americano mais atuante em termos de sustentabilidade. Entretanto, tais medidas não foram adiante. O rodízio municipal que está em vigor não é o meu. O de hoje existe porque há carros demais em São Paulo, e os congestionamentos se tornaram inevitáveis. Estamos diante de um dos maiores desafios do mundo moderno, que é controlar o consumo. Enquanto muitos enxergam a aquisição de bens como um direito pessoal, é preciso salientar que esse mesmo direito pode afetar a qualidade de vida de maneira geral. No fim das contas, entendo que o rodízio teve o mérito de introduzir a idéia de que parte das deficiências de infra-estrutura (no caso, no sistema viário) pode ser resolvida com mudanças de comportamento. Nos fins de semana, os paulistanos lotam as estradas em direção à praia. Se fosse feito um rodízio de carros para descer ao litoral, com horários determinados segundo as placas dos carros, a ampliação da Rodovia dos Imigrantes seria desnecessária. Milhões de reais seriam economizados.
O ambientalista Fabio Feldmann ganhou projeção nacional quando instituiu o rodízio de veículos na cidade de São Paulo, em 1996. A reação dos paulistanos à obrigatoriedade de deixar o carro em casa um dia por semana foi tão intensa que o então secretário estadual do Meio Ambiente sofreu ameaças de morte e precisou andar com guarda-costas. A oposição ao rodízio também lhe custou a reeleição em 1998, depois de três mandatos como deputado federal pelo PMDB e pelo PSDB. Hoje filiado ao Partido Verde, Feldmann, de 51 anos, não pretende voltar a disputar eleições. Advogado, sua principal atividade é a de consultor sobre ecologia para empresas e ONGs. Com a experiência de ter participado de delegações brasileiras nos encontros sobre clima da ONU e de ter sido secretário executivo do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, diz que "há um enorme descompasso entre o que propomos aos outros nos fóruns internacionais e o que realizamos dentro de casa". Feldmann concedeu a seguinte entrevista a VEJA.
Veja – Como o senhor vê a atuação do Brasil nas negociações internacionais de mudanças climáticas?
Feldmann – A diplomacia brasileira é bem preparada e eficiente, mas opera num paradigma obsoleto. Em vez de nos sentirmos cidadãos do mundo e de agirmos segundo valores mais grandiosos, continuamos defendendo nossos interesses nacionais imediatos. Essa posição vem de longo tempo. Desde a conferência da ONU em Estocolmo, em 1972, o Brasil assumiu a tese de que não aceitaria controlar a poluição para não afetar o seu crescimento econômico, considerado um mecanismo fundamental para reduzir a miséria. O problema é que essa postura, que considero excessivamente defensiva, tem sido mantida desde então. Foi graças a ela que o Brasil escapou de ser obrigado a adotar medidas para reduzir a emissão de gases que provocam o efeito estufa, enquanto os países industrializados tiveram de se enquadrar em metas ambiciosas. Há quase vinte anos a humanidade conhece sua responsabilidade no aquecimento global. Mesmo após todo esse tempo, o Brasil nada fez para controlar suas emissões de poluentes. Manter essa posição – de país em eterno desenvolvimento – tornou-se uma estratégia extremamente frágil, insustentável. Nenhuma nação pode ficar o tempo todo cobrando compromissos dos outros se não assume nenhum. É o que fazemos: há um enorme descompasso entre o que propomos aos outros nos fóruns internacionais e o que realizamos dentro de casa.
Veja – De que forma o Brasil poderia reduzir as emissões?
Feldmann – Em primeiro lugar, é preciso conter o desmatamento na Amazônia. Somos um dos quatro países que mais emitem gases de efeito estufa. Cerca de 70% de todos os gases emitidos pelo Brasil vêm do desmatamento. Isso faz com que nossa situação seja ainda mais insustentável do que a da China e a da Índia. Esses países poluem o ar fundamentalmente porque sua matriz energética é baseada em combustíveis fósseis, e qualquer redução nas emissões implicaria a redução da atividade econômica. Não é o nosso caso. Não temos nenhum argumento para justificar esse enorme crime ambiental, daí haver tanta pressão internacional em cima do Brasil. Alguns ficam espantados com isso e afirmam ser uma afronta a nossa soberania. Esses críticos precisam entender que soberania é um conceito que se exerce na prática, e não com bravatas públicas. A preocupação internacional com o desmatamento da Amazônia é legítima porque o efeito estufa afeta todo o planeta. Bastaria que o Brasil se mostrasse um bom gestor da região para esvaziar a pressão que vem de fora.
Veja – Que medidas deveriam ser tomadas na Amazônia?
Feldmann – É preciso impor um freio definitivo na expansão da fronteira agrícola sobre o ecossistema amazônico e permitir o aproveitamento da área degradada com tecnologias que assegurem o crescimento da produção agropecuária. Com vontade política é possível, sim, controlar o desmatamento da Amazônia. Uma das maneiras de fazer isso seria bloquear o escoamento da madeira, como tem mostrado o Greenpeace. Algumas coisas vão ocorrer, mesmo sem a participação do Estado brasileiro. Consumidores americanos e europeus estão exercendo forte pressão sobre as redes de fast-food e de supermercados, exigindo que a produção dos alimentos vendidos por elas seja feita de maneira sustentável, sem agredir o ambiente. O consumidor, esteja onde estiver, será um personagem cada dia mais importante na preservação do planeta.
Veja – Quais foram os pontos positivos conquistados pelas delegações brasileiras nas negociações sobre mudanças climáticas?
Feldmann – Tivemos acertos principalmente no que se refere a iniciativas que partiram do Ministério da Ciência e Tecnologia. O Brasil foi um dos grandes responsáveis pelo Tratado de Kioto, e é importante lembrar que a criação do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, o MDL, foi uma proposta originalmente brasileira. Com ela, empresas de países desenvolvidos que poluem além da conta podem comprar créditos de carbono, que são investidos em iniciativas ecológicas em países em desenvolvimento. Outro ponto alto ocorreu no ano passado, quando o Brasil levou a proposta do desmatamento evitado. Consiste em beneficiar financeiramente países que reduzam a queima de florestas. A proposta, na realidade, apresentou-se de maneira muito débil, já que não especificava de onde viriam os recursos. Falou-se em um fundo internacional. A questão é encontrar qual país, de boa vontade, daria dinheiro para esse fundo. Às vésperas da ECO-92, os países ricos do G7 ofereceram milhões de dólares para conter o desmatamento, mas o resultado foi insignificante. Mesmo assim, a proposta do desmatamento evitado chamou atenção porque, finalmente, o Brasil pareceu reconhecer o papel do desflorestamento no aquecimento global. Falta ainda provar ao mundo que é possível fazer isso.
Veja – Os políticos brasileiros estão preocupados com o aquecimento global?
Feldmann – Há um enorme descompasso entre a atuação do Brasil nos fóruns internacionais e o que é feito dentro do país. Nos últimos dois anos, apesar de a comunidade científica e a sociedade civil estarem mais atentas ao tema, o aquecimento global continua ausente da agenda dos políticos. Os candidatos a presidente na eleição do ano passado não discutiram com movimentos ambientalistas. Foi uma grande falha. As ONGs não conseguiram demonstrar que o aquecimento global era um tema importante e também não tiveram força suficiente para pressionar os candidatos a mergulhar no assunto.
Veja – Por que o movimento ambientalista brasileiro não tem influência política?
Feldmann – O ideal seria que as organizações que se preocupam com o ambiente tivessem maior número de filiados. Isso ampliaria muito a sua capacidade de influenciar os políticos e de pressionar para que as leis sejam efetivamente cumpridas. O movimento ambientalista também precisa de uma radical transformação em termos de ação e de agenda, em razão de seu próprio sucesso. As estratégias de hoje devem levar em conta que as crianças conhecem muito melhor os assuntos do que a minha geração, e espera-se da sociedade civil maior capacidade de proposição. Temos de ter a capacidade de promover alianças estratégicas entre o setor empresarial, a sociedade civil e as lideranças políticas esclarecidas.
Veja – O governo brasileiro deveria ter projetos específicos para prevenir os impactos do aquecimento global?
Feldmann – Uma das áreas mais afetadas pelas mudanças climáticas é o regime hídrico. Alguns cientistas, como Eneas Salati, da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável, defendem que pode ocorrer uma alteração radical das chuvas em determinados locais, o que comprometeria o abastecimento de água na Região Sudeste. Há duas semanas, recebi pelo correio o Plano Nacional de Recursos Hídricos, elaborado pelo Ministério do Meio Ambiente. É a primeira vez que o Brasil tem uma política nacional de recursos hídricos, o que é louvável. Contudo, não há uma linha sequer sobre o aquecimento global. É triste, mas as autoridades ainda ignoram as previsões sobre os efeitos do aquecimento global.
Veja – O crescimento vertiginoso da economia chinesa contribui bastante para o aquecimento global. Existe a possibilidade de convencer os chineses a reduzir a emissão de poluentes?
Feldmann – Mais do que a Índia, a China tem se mostrado suscetível a controlar suas emissões de gases causadores do efeito estufa. Mas é preciso um pouco de precaução. Tenho participado de muitas reuniões internacionais e me surpreende a tolerância com que o mundo vê a China. O fascínio exercido pelo mercado chinês tem levado muitos de nós a relativizar a questão da pena de morte, bem como os problemas que esse crescimento econômico pode provocar no ambiente, principalmente com relação ao aumento das emissões chinesas de gases causadores do efeito estufa. Em uma reunião realizada em São Paulo, em agosto do ano passado, para discutir compromissos no âmbito do Tratado de Kioto depois de 2012, representantes chineses exibiram uma apresentação em Power Point para tentar nos convencer de que as suas termelétricas apresentam emissão praticamente nula de dióxido de carbono, o que sabemos ser impossível. Confesso que a falta de transparência e de democracia na China ainda me incomoda bastante.
Veja – Os impactos do aquecimento global no Brasil estão sendo bem estudados?
Feldmann – São estudos ainda preliminares. Já se falou da savanização da Floresta Amazônica, do risco que o aumento do nível do mar pode oferecer aos portos brasileiros e da redução na produção de laranja. Os estudos deveriam ser mais amplos. O Brasil teria de fazer com a Amazônia o mesmo que se fez com o Ártico, em que pesquisadores de vários países se uniram para produzir um único e vigoroso relatório. O resultado desse trabalho é hoje a maior evidência de que o aquecimento global está em andamento. Em relação à Amazônia, proponho que a diplomacia brasileira se articule com países vizinhos para fazer o mesmo.
Veja – O senhor trabalhou no governo Lula. Como avalia a atuação desse governo na questão ambiental?
Feldmann – Nos dois primeiros anos do primeiro mandato de Lula, continuei exercendo o papel de secretário executivo do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas enquanto não se encontrava um substituto. Essa instituição, criada em 2000, tinha como meta inicial preparar o presidente da República e a sociedade para enfrentar os problemas decorrentes do aquecimento global. Durante esse período de dois anos, eu me vi no pior trabalho do mundo. Eles não contavam com ninguém para colocar no meu lugar e eu não tinha poder para fazer nada. Atualmente, o Fórum de Mudanças Climáticas perdeu sua importância e é incapaz de elaborar uma agenda doméstica para lidar com o problema. O governo petista até hoje não compreendeu a urgência do aquecimento global.
Veja – Qual foi o impacto do rodízio de veículos na sua carreira?
Feldmann – Na época, sofri ameaças de morte, recebia trotes telefônicos de madrugada e precisei andar com seguranças. Tinha até usuários de ônibus, os maiores beneficiados, reclamando de mim. Minha avaliação hoje é que subestimei a indignação do cidadão com um Estado que, ao mesmo tempo que restringe sua ação, se mostra incapaz de oferecer alternativas, como um transporte público barato e eficiente. Aprendi com o rodízio que falar em ética e em direito das futuras gerações não é uma forma de assegurar sustentabilidade política em curto prazo.
Veja – O senhor ainda defende o rodízio?
Feldmann – O rodízio surgiu como uma solução de emergência para enfrentar o agravamento da poluição no inverno em São Paulo. Entre outras iniciativas, mencionava a introdução do pedágio eletrônico, a inspeção e a manutenção periódica dos veículos, o uso de combustíveis menos poluidores e de automóveis mais eficientes. A idéia seria transformar São Paulo numa espécie de Califórnia, que tem sido o estado americano mais atuante em termos de sustentabilidade. Entretanto, tais medidas não foram adiante. O rodízio municipal que está em vigor não é o meu. O de hoje existe porque há carros demais em São Paulo, e os congestionamentos se tornaram inevitáveis. Estamos diante de um dos maiores desafios do mundo moderno, que é controlar o consumo. Enquanto muitos enxergam a aquisição de bens como um direito pessoal, é preciso salientar que esse mesmo direito pode afetar a qualidade de vida de maneira geral. No fim das contas, entendo que o rodízio teve o mérito de introduzir a idéia de que parte das deficiências de infra-estrutura (no caso, no sistema viário) pode ser resolvida com mudanças de comportamento. Nos fins de semana, os paulistanos lotam as estradas em direção à praia. Se fosse feito um rodízio de carros para descer ao litoral, com horários determinados segundo as placas dos carros, a ampliação da Rodovia dos Imigrantes seria desnecessária. Milhões de reais seriam economizados.
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