domingo, 28 de dezembro de 2008

Christian Salmon - A política como ficção

A política como ficção
Por Leneide Duarte-Plon

Em "Storytelling", o escritor Christian Salmon demonstra como o marketing político adotou técnicas da narrativa e do cinema


As técnicas da narrativa, tal como utilizadas nos romances, nas novelas e nos filmes, invadiram o marketing político, transformando a vida pública numa extensa ficção. O Poder Executivo, os candidatos presidenciais e outras autoridades passaram a ter as suas vidas "formadas" pelos profissionais de comunicação, a fim de se obter um enredo emocionante, capaz de comover os cidadãos.
Essa é, em resumo, a tese do escritor Christian Salmon no provocativo "Storytelling", livro lançado na França pela editora La Découverte).
Um dos fundadores do Parlamento Internacional dos Escritores, Salmon examina detidamente e com muitos exemplos, como os marqueteiros produzem calculadamente verdadeiros dramas e cenas grandiloquentes para suscitar medo, produzir entusiasmo e guiar o comportamento das pessoas.
. "No comando de um tele-estado que roteiriza a vida pública 24 horas por dia, o Poder Executivo se transforma em um poder de 'execução' e de 'realização” (no sentido cinematográfico) do roteiro presidencial, considerado como um encadeamento de decisões que são objeto de uma montagem permanente", diz o escritor.
A produção de uma bem elaborada e emocionante narrativa heróica teria tido, inclusive, papel fundamental na vitória de Barack Obama nos EUA.
"A narrativa de Obama contrasta com as histórias pré-fabricadas e estereotipadas de um Bush salvo do alcoolismo pela fé. Com Obama, temos uma verdadeira lenda, a de um homem da era da globalização. É a viagem do herói que torna sua vida exemplar: Havaí, Jacarta, Los Angeles, Chicago, Washington... Mas também uma viagem no tempo pontuado por referências a Abraham Lincoln ou a Martin Luther King, que o inscrevem na história americana", afirma Salmon, na entrevista a seguir.
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Segundo seu livro, a "storytelling" passou a ser adotada do marketing de produtos à comunicação política. Por que a política hoje se volta para a emoção mais do que para o intelecto ou a razão?
Christian Salmon: Apresentados sob a forma de um enredo fácil de compreender, as implicações da política mobilizam emoções como o medo, a solidão, a necessidade de proteção. Os cidadãos são jogados num universo narrativo (a cruzada contra o eixo do Mal etc.) e convidados a escolher os “bons” contra os “maus”.
Três semanas depois do 11 de Setembro, Charlotte Beers, diretora da agência de publicidade Ogilvy, foi nomeada sub-secretária de Estado para a “diplomacia pública”. Sua tarefa era vender a imagem e os valores dos Estados Unidos ao estrangeiro, como venderia uma marca. “Nós poderíamos eleger qualquer ator de Hollywood desde que ele tenha uma história para contar”, declarou James Carville em 2004. As aparições de George W. Bush durante seus dois mandatos foram realizadas por um ex-produtor de televisão.
No comando de um tele-estado que roteiriza a vida pública 24 horas por dia, o Poder Executivo se transforma em um poder de “execução” e de “realização” (no sentido cinematográfico) do roteiro presidencial, considerado como um encadeamento de decisões que são objeto de uma montagem permanente.
Um ano depois dos atentados de 11 de Setembro, George Bush fez um discurso destinado a preparar a opinião pública americana para a guerra contra o Iraque. Seu diretor de gabinete justificou a escolha da data dizendo: “De um ponto de vista de marketing, não se lançam dois produtos novos em agosto”.

No seu livro, o senhor pergunta: “Como a idéia de Roland Barthes, segundo a qual a narrativa é uma das grandes categorias do conhecimento que utilizamos para compreender e organizar o mundo, pôde se impor dessa forma na subcultura política, nos métodos de gerenciamento ou na publicidade?" Por que isto ocorreu?
Salmon: Nos anos 60, a idéia de Roland Barthes deu origem a uma nova ciência da narrativa que Tzvetan Todorov chamou de "narratologia" e que se desenvolveu na França em torno de pesquisadores como Greimas e Genette e coincidiu com o que foi chamado nos Estados Unidos de “narrative turn”: historiadores, juristas, físicos, economistas e psicólogos redescobriram o poder que têm as histórias de reconstituir uma realidade.
A explosão da internet e os avanços das novas técnicas de informação e de comunicação trouxeram amplitude a esse movimento. Ele deu origem ao que se chama hoje de “storytelling management”, uma resposta à crise das grandes organizações burocráticas e hierarquizadas. O modelo fordista deu lugar a um novo modelo de empresa descentralizada e flexível, estruturada em redes, capazes de se adaptar a uma mudança permanente. Insuflar a ideologia da mudança a uma organização supõe agora que cada pessoa se envolva e se submeta a uma ficção comum, a da empresa, como a gente se deixa envolver por um romance.
Esses usos instrumentais da narrativa comportam riscos evidentes de manipulação transformando os assalariados em cobaias submetidas a protocolos de experimentação, o que os teóricos do geranciamento chamam de “experiências traçadas”.

Em menos de 15 anos, o marketing passou do produto ao logo, depois do logo à "story". Para as empresas, a evolução fez com que passassem a produzir marcas em vez de mercadorias. Agora, elas devem produzir histórias, em vez de marcas. O segredo do sucesso de uma marca está na história que ela comunica?
Salmon: Da imagem de marca ("brand image"), que dominou o marketing dos anos 80, passou-se à história de marca ("brand story"), que se impôs a partir de 1995. Uma mudança que implica o aparecimento de um novo léxico, no qual a “audiência” substitui os consumidores e as “seqüências narrativas”, as campanhas publicitárias.
Formas literárias, como a balada, a epopéia, as metáforas e a ironia, têm uma influência crescente no marketing. Quando se tem um produto que é idêntico a outro, há diferentes modos de fazer-lhe concorrência. Seja -esta é a solução estúpida- baixando o preço, seja mudando o valor do produto, contando a sua história.
Calcula-se hoje que os consumidores nos países industrializados estejam expostos a três mil mensagens comerciais por dia. As marcas que querem “emergir” diante desse assalto publicitário devem imperativamente se distinguir. Diante da multiplicação de signos, os consumidores estão à procura de narrativas que permitam reconstituir universos coerentes. As marcas nos contam histórias que “batem” com nossas expectativas e nossas visões do mundo. Elas nos falam e nos cativam.
Quando são utilizadas na internet, elas nos transformam em “storytellers”, transportadores de narrativa, já que a fascinação que inspira uma boa história nos leva a repeti-la. Quando as marcas falam, afirma um teórico do marketing, os consumidores escutam atentamente. Quando as marcas agem, os consumidores as seguem. Então, são não apenas construção do marketing, são personagens na vida do consumidor.

O senhor escreve: “À realidade de uma concorrência cada vez mais feroz, o neogerenciamento opõe a ficção de que no trabalho em equipe moderno os empregados não são verdadeiramente em concorrência uns com os outros. A essa ficção soma-se outra, ainda mais importante, a saber que os operários e os patrões não são antagônicos. O patrão gera apenas um processo de grupo”. Isto seria um novo modelo de capitalismo e de controle?
Salmon: O “storytelling management” é considerado hoje como uma ferramenta indispensável para os que decidem. Ele é aplicado por grandes empresas, como Apple, Starbucks, Nokia, Microsoft, Levi-Strauss, Coca-Cola, Motorola e Google. Popularizado pelo lobby muito eficaz dos gurus do gerenciamento, ele deve insuflar a ideologia da mudança às organizações em reestruturação permanente.
A partir do fim dos anos 80, os autores em gerenciamento entoam o hino à mudança e à flexibilidade, o que vai se traduzir por uma aposta cada vez maior de propostas visando à mobilização emocional. Nesse contexto, o "storytelling" vai aparecer como uma forma de comunicação própria a mobilizar emoções, guiar comportamentos, “produzir sentido”.
No livro “Vigiar e Punir”, Michel Foucault mencionava a constituição de um “poder de escrita” como uma peça essencial no encadeamento da disciplina militar, sanitária, escolar etc. Pode-se ver no triunfo do "storytelling" o nascimento de um “poder de narrativa” capaz de assegurar o controle de indivíduos, uma “máquina de contar” e formatar bem mais eficaz que todas as imagens orwelianas da sociedade totalitária.
O assunto dessa nova ordem narrativa não é nem o consumidor alienado nem o trabalhador explorado, nem mesmo o cidadão doutrinado, mas um indivíduo enfeitiçado, imerso num universo, preso a uma rede narrativa que filtra as percepções, estimula os efeitos e conduz as condutas.

No seu livro, pode-se ler: “Depois da derrota democrática de 2004, James Carville, um dos 'spin doctors' artesãos da vitória de Bill Clinton em 1992 declarou: 'Acho que poderíamos eleger qualquer ator de Hollywood desde que ele tenha uma história para contar; uma história que diga às pessoas o que é o país e como ele o vê'". O senhor acha que Barack Obama estás bem posicionado para dizer às pessoas o que é a América?
Salmon: A narrativa de Obama contrasta com as histórias pré-fabricadas e estereotipadas de um Bush salvo do alcoolismo pela fé. Ele é rico em contrastes e contradições. É a narrativa de um homem dos bairros pobres e das maiores universidades americanas.
O Quênia e o Kansas, o Senado e os bairros do sul de Chicago, o educador social e o professor universitário, o pragmático e o idealista, o homem da negociação e o guardião dos princípios (sobre o Iraque e a tortura) é um espelho com facetas no qual cada um pode se reconhecer. “Obama é permanentemente engajado numa conversa interior entre as diferentes peças do seu ego híbrido. E ele divide com os outros essa conversa”, comenta o editorialista David Brooks.
Com Obama, temos uma verdadeira lenda, a de um homem da era da globalização. É a viagem do herói que torna sua vida exemplar: Havaí, Jacarta, Los Angeles, Chicago, Washington... Mas também uma viagem no tempo pontuado por referências a Abraham Lincoln ou a Martin Luther King, que o inscrevem na história americana.
Essas referências conseguem fazer de Obama, criticado por seus rivais por sua inexperiência, um presidente “histórico”. Qualquer que seja a política que possa inspirar Obama, seja você republicano ou democrata, branco ou negro, homem ou mulher, você elegeu o primeiro presidente negro americano, você escreveu uma página nova na história dos Estados Unidos... Você se tornou o próprio narrador dessa história.

Alguém disse que os democratas perdiam as eleições porque recitavam a litania “eu defendo um salário mínimo, um bom sistema escolar”, enquanto os republicanos têm uma narrativa: “Eu era alcoólatra e fui salvo pelo poder de Jesus; eu fui salvo pelo 11 de Setembro e vou proteger vocês dos terroristas de Teerã e dos homossexuais de Hollywood”. A política é simples assim?
Salmon: Não, justamente. A "storytelling" não consiste apenas em contar uma história. É um dispositivo que integra ao menos quatro funções: 1) Contar uma história capaz de constituir a identidade narrativa do candidato ("storytelling"); 2) Inscrever a história no tempo da campanha, gerar os ritmos, a tensão narrativa ao longo de toda a campanha ("timing"); 3) Enquadrar a mensagem ideológica do candidato ("framing"), isto é, enquadrar o debate, como preconiza o linguista Georges Lakoff, impondo um “registro de linguagem coerente” e “criando metáforas”; 4) Criar a rede na internet e na vida real, isto é, um ambiente híbrido e contagiante, suscetível de captar a atenção e de estruturar a audiência do candidato ("networking").
O candidato presidencial é um homem-narrativa e um “performer”. Mas isso não é o suficiente. Veja a lenda de McCain, o herói de guerra, que se desfez nos últimos dias da campanha. O que faltava a McCain era o domínio sobre o tempo, um enquadramento coerente de sua mensagem e, sobretudo, uma rede capaz de difundir suas histórias.
Nesses três pontos a superioridade da campanha de Obama foi esmagadora. McCain multiplicou os “erros” de "timing", suspendendo por duas vezes a campanha e, depois, no dia 7 de outubro, se esforçando para desviar a atenção dos eleitores, lançando ataques difamatórios contra seu rival. Dilacerado entre a imagem do “maverick” moderado em questões de moral e a escolha da ultraconservadora Sarah Palin como vice, ele se contradisse, seu programa se esfumaçou, fazendo-o aparecer como um candidato à procura de uma definição.
A crise financeira que estourou ajudou enormemente o candidato democrata, fornecendo um horizonte de espera por um tipo de intervencionismo regulador e por uma política fiscal mais favorável às classes médias... Desde as primárias de Iowa, Obama conseguiu muito bem inscrever sua história pessoal no tempo da campanha, transformando a competição com Hillary Clinton em uma viagem do herói ao encontro da América. A convenção de Denver foi o teatro desse encontro, um teatro de terceiro tipo, que se dirigia simultaneamente a três audiências diferentes: o comício, a televisão e a internet.
Graças a um hábil cenário simulando a fachada da Casa Branca, os cenógrafos do evento conseguiram fazer uma fusão das performances de natureza diferente: o happening político e a série de TV. Woodstock e "West Wing". Barak Obama encarnava ali a função e a ficção presidencial. O blogueiro Andrew Sullivan fez um elogio de seu domínio da política na era de Facebook ("Facebook politics"). Roger Cohen comparava no “The New York Times” o fortalecimento da campanha de Obama ao sucesso clássico das “start-up" da internet.
Na internet, a campanha de Obama suscitou uma participação maciça, que se constituiu pouco a pouco em um espaço de contágio para as mensagens e as histórias do candidato. Depois da era do rádio com Roosevelt, da era da televisão com Kennedy, Obama será o primeiro presidente da era da internet.

Segundo James Carville e Paul Begala, “Ronald Reagan foi o maior narrador da história política dos últimos 50 anos, mesmo que a maioria das histórias que ele contava fossem falsas”. Pode-se dizer que as histórias de Bush eram mais verdadeiras?
Salmon: Num artigo do “New York Times” publicado alguns dias antes da eleição presidencial de 2004, Ron Suskind revelou os termos de uma conversa que ele teve, no verão de 2002, com um conselheiro de Bush: “Ele me disse que pessoas como eu faziam parte desses tipos 'que pertencem ao que chamamos de comunidade realidade': 'Vocês crêem que as soluções emergem de sua fina análise da realidade observável. Não é mais assim que o mundo caminha realmente. Nós somos o império e agora, quando agimos, criamos nossa própria realidade. E, enquanto vocês estudam essa realidade como desejam, nós agimos e criamos outras realidades novas, que vocês podem estudar igualmente -e é assim que as coisas se passam. Nós somos os atores da história. E a todos vocês só resta estudar o que fazemos”.
Mesmo um editorialista conservador como William Safire, que sempre apoiou a política de George Bush, afirmou em setembro de 2005: “Nunca o direito fundamental dos americanos de conhecer e de criticar, graças a uma imprensa livre, os trabalhos de nosso governo, tinha sido tão questionado”.
O melhor exemplo foi a encenação em 1° de maio de 2003 do discurso de Bush no porta-aviões Abraham Lincoln, diante de uma bandeira com a inscrição: “Missão cumprida”. A direção era assinada por Scott Sforza, um ex-produtor do canal ABC. O presidente desceu no porta-aviões a bordo de um avião de caça, no qual podia-se ler “George Bush, comandante-chefe”. Vestido com uniforme de aviador, ele desceu do "cockpit", com o capacete na mão, como se voltasse de uma missão de uma refilmagem do filme “Top Gun”.
“Foi fantástico como teatro”, declarou o comentarista da Fox News. David Broder, do “Washington Post”, ficou fascinado pelo que chamou a “postura física” do presidente. Sforza tinha enquadrado a cena cuidadosamente, a fim de que no horizonte não se percebesse San Diego, situada a 40 milhas apenas, enquanto o porta-aviões deveria dar a impressão de se encontrar em pleno mar, na zona de combates.

Evan Cornog, professor de jornalismo da Universidade de Columbia escreveu: “É a batalha das histórias e não o debate de idéias que determina como os americanos vão reagir a uma competição presidencial”. O senhor diz que as últimas eleições francesas introduziram o "storytelling" na França. Quais as narrativas de Nicolas Sarkozy, eleito presidente, e de Ségolène Royal, a ex-candidata socialista?
Salmon: Ségolène et Nicolas são candidatos edipianos. Eles se beneficiaram ainda jovens da proteção do pai (Mitterrand e Chirac, respectivamente), cresceram no ambiente desses pais e tiveram sua proteção e se viram em condições de reivindicar o poder. Eles o fizeram e mostraram sem complexos nem tabu essa ambição: duas figuras edipianas que romperam com o pai, mas também com a imagem do “pai da Nação”, familiar aos franceses, desde De Gaulle e mesmo Pétain.
Da mesma forma que os “spin doctors” republicanos tinham construído a campanha vitoriosa de George W. Bush em 2000 a partir de sua história pessoal e de sua luta vitoriosa contra o álcool, Nicolas Sarkozy adaptou os temas do sofrimento e da redenção para elaborar sua versão francesa do conservadorismo pleno de compaixão. Eles se dirigem aos indivíduos como a uma “audiência”. Evitando o adversário, contornando os partidos, substituíram o debate pelas emoções e pelos desejos. Inauguraram uma nova era da democracia, que se poderia qualificar de “pós-política”.
Os homens políticos e a mídia, os jornalistas e os experts mudaram bruscamente a maneira de expressar, começaram a contar histórias. A imprensa tomou de assalto a "story" dos candidatos, opondo uma mulher que havia derrotado o poder patriarcal dos “elefantes” do Partido Socialista a um Sarkozy, filho rebelde que encenava há dez anos sua ruptura com o pai-presidente. Em julho de 2007, Henri Guaino, o “ghost writer” de Sarkozy fez uma confissão perturbadora ao jornal "Le Monde": “Não se transforma um país sem ser capaz de escrever e contar uma história”.

Entre Nicolas Sarkozy e Ségolène Royal o senhor descreve uma ausência de “debate de idéias” e uma rivalidade mimética. Qual a relação com o "storytelling"?
Salmon: Uma rivalidade “mimética” (um conceito de René Girard) é um conflito de narrativas entre dois desejos, duas ambições, dois sintomas narrados pela imprensa. Durante essa eleição presidencial na França, em vez de convicções, foram “valores” que se afrontaram, em vez de competências, compaixão, empatia. O que estava em jogo se concentrou em torno das vítimas: os acidentados da vida, as mulheres que apanham, os sem-teto, os deficientes físicos, pessoas com forte ressonância emocional.
O debate do segundo turno forneceu o cenário. Programa contra programa era o que os dois lados tinham previsto. Foi compaixão contra compaixão, uma luta sem tréguas pelo monopólio do coração. A escolarização dos deficientes deu a oportunidade, não que esse grupo social seja majoritário no país ou que ele detenha a chave da eleição, mas ele possui forte valor emocional. O registro das vítimas toma o lugar dos estudos de sociologia eleitoral. Política da miséria, miséria da política.

Os franceses vêem Sarkozy como se ele estivesse em permanente campanha eleitoral. Sua onipresença faz parte de sua narrativa?
Salmon: Enquanto o campo da política encolhe e os centros de poder tradicionais se afastam para outros lugares, Bruxelas, Washington ou Wall Street, a vida pessoal do presidente aumenta de importância e a mídia trata de divulgar, comentar, criticar. Todos os editorialistas, cronistas, analistas políticos, sociólogos e pesquisadores se dedicam a essa paixão bem francesa: comentar os fatos e gestos de Nicolas Sarkozy. A tal ponto que se poderia dizer que em maio do ano passado a França não elegeu um presidente, mas um assunto para todas as conversas.

O senhor escreve que “Ronald Reagan chegou à Casa Branca com a determinação de controlar a imprensa". Sarkozy quer a mesma coisa?
Salmon: Ele aplica ao pé da letra as técnicas de controle da mídia que o birô de Informação da Casa Branca aperfeiçoou desde Nixon e o caso Watergate até Bill Clinton e Georges Bush. Dick Cheney, o atual vice-presidente, que foi um dos teóricos desse birô, diz, sem problemas: “Para ter uma presidência eficaz, a Casa Branca deve controlar a agenda. Se vocês deixam a imprensa solta, eles tomam a Presidência de assalto”.
Nesse sentido, em Washington, eles fixam o “line of the day”, que se tornará nos anos 90 a “história do dia”. Ela é divulgada junto aos diferentes ramos do Executivo e da imprensa credenciada na Casa Branca, mas também através de mensagens televisadas dirigidas diretamente ao público. “Focus group” (definir o ponto essencial) e sondagens regulares são utilizados para elaborar as mensagens presidenciais. “Pequenas frases” ("sound bites") são inseridas nos discursos. As aparições públicas são encenadas para reforçar a imagem filmada.
Seja em período eleitoral ou não, a política toma a forma de um festival de narração de histórias, o qual a imprensa representa ao mesmo tempo o ator, o coro e o público. Ela retoma e interpreta a "story" do dia, utiliza as que são interpretadas pelos outros “spin doctors” políticos (majoritários ou opositores, levados de roldão na história) e satisfaz (às vezes) o apetite do público com novas narrativas.
O candidato-herói que ganha é aquele cujas histórias entram em conexão com o maior número de eleitores. Como? Propondo não uma argumentação e programas, mas personagens e narrativas, a mise en scène da democracia, em vez de seu exercício.

Quando o senhor afirma que Sarkozy e Ségolène Royal inauguraram uma era nova na democracia, que se pode qualificar de pós-política, o que quer dizer com isso?
Salmon: O sociólogo americano Richard Sennett tinha antecipado nos anos 70 o que ele chamava de “a queda do homem público”, pressentindo a chegada de uma forma profana de carisma que se enraizaria não mais na história coletiva, mas na biografia e nas qualidades pessoais do líder político: “Ele pode ser gentil, simples, caloroso ou ainda bonachão e sofisticado. Mas ele cegará e dominará as pessoas do mesmo jeito que um indivíduo demoníaco, se conseguir convencê-las a se interessar por seus gostos pessoais, as roupas de sua esposa, o amor que ele tem pelos cães etc”.
Da mesma maneira que os “spin doctors” republicanos tinham construído a campanha vitoriosa de George W. Bush em 2000 a partir de sua história pessoal de luta vitoriosa contra o álcool, Nicolas Sarkozy adaptou os temas do sofrimento e da redenção para elaborar sua versão francesa do conservadorismo empático. Seria o aparecimento de uma “razão sentimental”, no lugar da velha “razão cínica”, como anunciou Jean Baudrillard, em 1995, num artigo intitulado “Às Lágrimas, Cidadãos!” (Aux Larmes, Citoyens)? Ou não é antes uma forma nova da “realpolitik” na era da internet e das novas mídias, uma “realpolitik das emoções”, que leva os homens políticos a fazerem um uso estratégico de suas vidas privadas, de seus corpos e de suas emoções.
A exploração da credulidade pública por Sarkozy conduz a um descrédito sem precedentes dos discursos políticos. O que explica que ele possa ao mesmo tempo captar atenção e decepcionar a expectativa criada, suscitar o interesse e um certo desânimo, aparecer não mais como o soberano mas como “o lacaio Mati” de seus desejos tirânicos.
Muito mais que “hiperpresidente”, ele é um “serial president” ocupado em sincronizar o íntimo e o horário nobre. Não aquele que conta uma história sobre a nação, como queria Henri Guaino, o conselheiro do presidente, mas o “'storyteller' de si mesmo”, que faz ao país o dom de sua pessoa. Reconheçamos que ele não é o único.

Publicado em 17/11/2008
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Leneide Duarte-Plon
É jornalista e vive em Paris.

Revista Trópico

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