domingo, 28 de dezembro de 2008

Filósofo Franklin Leopoldo e Silva - O bem supremo


O bem supremo
Por Humberto Pereira da Silva

“Para o brasileiro, ser feliz é uma questão de orgulho”, diz o filósofo Franklin Leopoldo e Silva, que lança o livro “Felicidade”


A palavra grega “eudaimonía” encontra tradução na nossa “felicidade”. Para Aristóteles, a vida feliz, o bem viver, o bem agir, ou seja, a felicidade, é o bem ético ao qual todo indivíduo aspira. O bem ético pertence ao gênero da vida excelente, e a felicidade é a vida plenamente realizada em sua excelência máxima.
Depois de Aristóteles, antes dele e nas mais diversas culturas e sociedades, a felicidade em suas várias traduções exprime maneiras de se postar e se sentir no mundo. Muitos são os caminhos; muitas as direções.
Parte desses caminhos são abordados no novo livro do filósofo Franklin Leopoldo e Silva (“Felicidade: Dos Filósofos Pré-socráticos aos Contemporâneos”, ed. Claridade, 96 págs.).
Professor de história da filosofia contemporânea na USP, Leopoldo e Silva dedica-se a questões que enlaçam temas como a felicidade, a liberdade, o dever, a subjetividade, a alteridade, a escolha. Recentemente, participou do ciclo de palestras “Vida Vício Virtude”, com a curadoria de Adauto Novaes. Em sua palestra, ele tratou do “vazio do pensamento”.
Na entrevista a seguir, Leopoldo e Silva fala de seu novo livro, aborda a importância da fé para o Islã e discute a maneira como os brasileiros encaram a felicidade. “Para o brasileiro, ser feliz é uma questão de orgulho, o que faz com que ele se declare feliz antes mesmo de examinar com um pouco de lucidez quais as condições reais da felicidade”, afirma.
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No livro “Felicidade: Dos Filósofos Pré-socráticos aos Contemporâneos”, o sr. fez um corte circunscrito a alguns filósofos e à filosofia ocidental. Eu pergunto: que diferenças o sr. vê entre o nosso modo ocidental de conceber a felicidade e, por exemplo, o modo oriental?
Franklin Leopoldo e Silva: A idéia ocidental da felicidade está sempre comprometida com determinados pressupostos metafísicos. Eu diria que esses pressupostos podem se resumir numa pressuposição principal que é o dualismo. Dualismo, tanto no que concerne ao ser humano, quanto à relação que ele mantém com as coisas, que é sempre dividida.
Por exemplo: a alma e o corpo, as paixões e a razão, o exterior e o interior, os objetos e o sujeito. A partir daí, a filosofia ocidental se desenvolveu na tentativa de promover ou uma hierarquia ou uma conciliação. E a felicidade vai aparecer na medida em que uma determinada teoria ou um determinado indivíduo tiver êxito em realizar essa conciliação.
Essa idéia só começa a se modificar um pouco quando aparece na filosofia contemporânea uma crítica dessa divisão. Por conta disso, você tem certa aproximação com o pensamento oriental, que em geral não é dualista e considera certa integração do homem na totalidade. Na medida em que a filosofia ocidental foi criticando esse dualismo rígido, essa separação, ela foi criando certas afinidades com o pensamento oriental, não por influência, mas por meio de uma crítica aos seus próprios pressupostos.
Hoje você tem a idéia de que a alma e o corpo, o espírito e a matéria, o indivíduo e a coletividade não são coisas que se oponham e se separem tão rigidamente como se pensava. A ciência e a reflexão filosófica vêm aos poucos percebendo que esse dualismo tradicional é insustentável. Hoje a marca do dualismo no Ocidente é bem mais fraca, e isso se reflete na ética e na noção de felicidade.

Qual a diferença mais marcante entre o que os gregos concebiam como felicidade e o que nossos dias entendem por felicidade?
Leopoldo e Silva: A principal diferença, creio, está no surgimento da noção moderna de sujeito, que se torna o centro da reflexão filosófica em vários aspectos e também no que concerne à realização do indivíduo como vida feliz.
No caso dos gregos, como não se tem essa marca de subjetividade, embora se tenha a noção de indivíduo, você tem certa integração entre o indivíduo e a comunidade, principalmente no sentido ético e político. A partir daí, tem-se uma idéia de felicidade que não é centrada na busca individual, mas centrada na cidade, na comunidade ética e política, e a busca individual ficaria em consonância com a realização dessa felicidade coletiva.
Do século XVI para cá, como se tem a ética e a política centradas no indivíduo, a idéia de felicidade está comprometida com valores individuais. O que não acontecia numa civilização mais comunitária, como a dos gregos e da Idade Média.
Na sociedade medieval também não se tem essa preponderância do indivíduo. Portanto, os valores não são construídos em torno do indivíduo, mas de alguma coisa que o transcende, no sentido religioso, metafísico, ou então de alguma coisa que o transcende na direção política: a comunidade maior da qual ele faz parte e onde ele tem de se realizar na busca de uma vida feliz.

Em seu livro o sr. entende que o epicurismo –e eu creio que também o estoicismo– tem sido vitima de uma visão distorcida: exalta-se principalmente o que nele diz respeito ao prazer físico e imediato. Essa distorção não tem a ver também com uma “adaptação” da filosofia antiga para o modo de vida contemporâneo?
Leopoldo e Silva: Acho que tem a ver com o que nós falamos antes. A noção de felicidade, que está relacionada com o prazer no epicurismo, foi apropriada por meio de uma leitura moderna em que a felicidade e o prazer são individuais. E é isso principalmente que distingue a doutrina de Epicuro daquilo que nós entendemos por prazer e felicidade.
A partir daí, você tem a noção de prazer ligada a interesse próprio, voltado para questões materiais, algo próprio da civilização capitalista, e projetamos isso em Epicuro. Quando, ao contrário, a leitura dos textos de Epicuro mostra que o indivíduo não é nada sem a comunidade.
Tanto é que no inventário que Epicuro faz dos prazeres, um dos que ocupam o topo da lista é a amizade. Porque é o convívio –constantemente estar com o outro– que é motivo de prazer e felicidade. Não tem nada a ver com a realização de interesses próprios. Hoje fala-se em indivíduo “epicurista”, mas para Epicuro o indivíduo sozinho não pode ser feliz.

Essa distorção vale também para o estoicismo?
Leopoldo e Silva: Penso que para o estoicismo vale no sentido de que eles têm ainda uma integração com o universo que ultrapassa largamente a questão do convívio humano e do social: uma integração cósmica. Para o estoicismo a vida racional jamais é o indivíduo privado fazendo uso de sua razão. Quanto mais ele se integra na razão universal, na necessidade cósmica, mais racional ele é.
Então, muitas vezes ele tem de abdicar de si, de seus interesses, para poder usufruir de uma racionalidade maior e também de uma vida moral mais efetiva. Hoje em dia, para nós, isso é secundário: primeiro vem o interesse privado e depois, eventualmente, alguma coisa a mais.

Como o aparecimento do cristianismo alterou a idéia de felicidade e que reflexos dessa alteração se fazem sentir nos dias de hoje?
Leopoldo e Silva: A diferença está na noção religiosa de transcendência. Para os gregos, a religião popular não era baseada numa transcendência, como será na religião cristã.
A transcendência no caso dos gregos estava, por exemplo, na metafísica platônica, na religião órfica, que não era uma religião popular, mas ela não é encontrada na religiosidade mais comum, que era pública. E, no caso do cristianismo, você tem a transcendência muito bem estabelecida como sendo um dos conceitos fundamentais. Se há alguma coisa de que o filósofo cristão não pode abdicar é a transcendência do divino.
Tem-se, então, um investimento muito preciso dessa transcendência, que faz com que o cristão viva uma possibilidade futura de realização da felicidade. A transcendência acaba tornando-se o lugar da vida plena, da felicidade, e nessa medida ela justifica uma vida não tão feliz e uma certa incompletude, o sofrimento na vida terrena.
É a partir da projeção da felicidade na vida futura que há a possibilidade de estabelecer uma idéia completa de felicidade, coisa que do ponto de vista da vida mundana não se poderia estabelecer, porque a experiência não permite que se goze de plena felicidade na vida terrena.
O cristianismo proporcionou a possibilidade de transformar o conceito de felicidade em realidade a ser vivida no futuro. O cristianismo dá ao mundo futuro, ao outro mundo, uma realidade mais efetiva, a partir da noção de um Deus pessoal. Por conta disso, então, se tem essa outra possibilidade como uma realidade muito forte. E quanto mais forte for essa realidade futura, mais forte também é a esperança de felicidade a ser obtida.

Mas, na vida terrena, falamos em experiência mística. Uma experiência mística pode ser acompanhada de um estado feliz.
Leopoldo e Silva: A experiência mística, do ponto de vista do pensamento ocidental, está muito ligada à religião, embora ao longo da história da cultura haja alguns episódios pontuais em que ela apareça numa forma mais ampla. E, através disso, como do ponto de vista cristão, o dualismo é muito marcante, a experiência mística se torna sempre alguma coisa intermitente, porque é algo que tem a ver com certo arrebatamento: seu caráter é incontrolável. O que é diferente dos orientais, em que se pode chegar a um estado de plenitude através de certa disciplina interna.
Acho que a experiência mística do ponto de vista ocidental está muito comprometida com essa descontinuidade, que faz com que ela seja interpretada como um sinal de outra coisa. Ela não vale por si mesma. Ela vale para assinalar aquilo que se poderia usufruir e que talvez se venha a ter numa vida futura. Isso, do ponto de vista religioso. Você tem em Bergson, por exemplo, a experiência mística como integração com a totalidade, da qual a experiência religiosa é uma marca.
Veja bem, no caso de Bergson você chamaria essa experiência mística de um certo contato com a totalidade, dotada, digamos, de um teor divino. Não porque seja transcendente, mas simplesmente porque é uma experiência completa. Mas para ter essa concepção é preciso sair da representação dualista que está muito implicada no cristianismo. Quando você fala, por exemplo, do místico como uma espécie de comunicação direta com Deus, você já está assinalando certa transcendência, certo percurso na direção de alguma coisa e não uma integração na totalidade.
Eu acho que a palavra “mística”, se for tirado o seu conteúdo religioso, se nós a concebêssemos de forma mais próxima à dos orientais, seria simplesmente uma experiência da totalidade, como no caso de Bergson. E, então, essa experiência mística deixaria de ter esse caráter de transcendência religiosa, seria simplesmente uma realização maior.
Nós não compreendemos a experiência mística, do ponto de vista cultural. O que nós tentamos compreender é a experiência mística de contato com o divino, mas naquilo que ela tem de compreensível na nossa situação presente, uma vez que ela só seria de direito compreensível quando se está numa outra situação, que é a de beatitude.

O tema da “felicidade” nos leva a considerar o “Outro”. Dos filósofos que trataram da questão da alteridade, no livro o sr. dá destaque a Levinas e Habermas. Em que o sr. acredita que eles podem nos ensinar a compreender melhor os preceitos de felicidade, como os que estão embutidos, por exemplo, no islamismo?
Leopoldo e Silva: Eu acho que, no caso do Levinas, você tem a possibilidade de compreensão do “Outro” na medida em que você se depara com o mistério do “Outro”. Há algo de místico que faz com que você tente se afastar um pouco de certas características do pensamento ocidental em que o reconhecimento do “Outro” depende da compreensão, em que você tem que projetar uma inteligibilidade para compreender o mundo e o “Outro”. E eu acho que Levinas se afasta um pouco disso, quando vê na face do “Outro” um mistério no qual você se reconhece.
Nesse sentido, é condição de um auto-reconhecimento. Quer dizer, você não reconhece o “Outro”, na verdade o “Outro” é que faz com que você se reconheça; e essa mudança de paradigma –mudar do “Eu” para o “Outro”–, no caso do Levinas, permite uma abertura maior na direção da diferença.
Isso já não acontece no caso do Habermas. Nele há uma concepção tradicional de racionalidade, onde ele introduz elementos novos, como a questão lingüística e comunicacional, mas conservando aquele estilo de razão ocidental, cartesiana e kantiana. Então é nesse universo que se dá a alteridade. A idéia reguladora da relação com o “Outro” é um pleno entendimento. Habermas não deixa de ter aquele paradigma que o faz acreditar no reconhecimento por via de uma instância transcendental que permite a comunicação. A razão comunicativa é a razão transcendental posta no discurso.
A conservação desse paradigma limita o contato com a diferença. Porque nem sempre você precisa estabelecer uma inteligibilidade com o “Outro”. Enfim, há um racionalismo em Habermas, de estilo tradicional, e isso limita a experiência, do ponto de vista ético, impedindo que ela seja um fluxo real de diferenças. Na verdade, a montagem do discurso da inteligibilidade comunicativa supõe uma tradução consensual, de maneira a fazer com que as diferenças se adaptem a um certo padrão.
No caso do Islã eu vejo certa prevalência da fé. Eles discutiram esse problema, que é um problema grave para nós, ocidentais: qual é a conciliação possível entre razão e fé? De alguma forma nós chegamos a equacionar esse problema. Eles passaram por esse problema, mas a continuidade da tradição deles resultou num privilégio da fé. De tal maneira que é por isso que persiste entre eles as sociedades teocráticas, em que a fé e os preceitos religiosos assumem um caráter que para nós até parece absurdo: o de um governo e de um Estado que se podem reger por parâmetros religiosos.
Isso se justifica por uma cultura em que, na disputa entre fé e razão –eles foram inicialmente aristotélicos–, a fé conservou aquele privilégio que ela tinha, por exemplo, num primeiro momento da Idade Média ocidental Nós herdamos esse problema deles e através de certa evolução da reflexão filosófica medieval e moderna esse problema apareceu como que se fosse resolvido em favor da razão.
No caso do Islã prevaleceu certa supremacia da fé. E isso explica muita coisa do ponto de vista dos costumes e da força da tradição e de certa maneira a submissão de uma racionalidade, que deveria atuar de direito, a parâmetros que nós não compreendemos. Então nós os chamamos de fanáticos. Nós não compreendemos os parâmetros que os governam, que para nós são irracionais. Mas aí está a diferença de uma cultura que se desenvolveu sob a égide da fé.

Uma pesquisa realizada pelo Datafolha em 2006 mostra que 76% dos brasileiros se julgam felizes. A que o sr. atribui esse resultado?
Leopoldo e Silva: Em primeiro lugar, há uma característica geral do mundo contemporâneo, que é o individualismo. Quando o indivíduo pensa a felicidade como satisfação imediata de seus interesses pessoais, ou ele já se sente feliz na medida em que os realiza, de fato ou ilusoriamente, ou ele projeta a felicidade na possibilidade de satisfazer necessidades individuais e imediatas. Isso o impede de pensar na felicidade como condição social, relacionada com a política.
Nesse contexto, quem não for feliz será o único responsável pela própria infelicidade – uma espécie de incompetência que ninguém gosta de admitir, razão pela qual todos tendem a se declarar felizes, da mesma maneira que todo mundo se declara justo ou honesto sem saber muito bem o que isso significa.
Para o brasileiro, ser feliz é uma questão de orgulho, o que faz com que ele se declare feliz antes mesmo de examinar com um pouco de lucidez quais as condições reais da felicidade. Isso se reflete no conformismo e no quietismo político, que hoje proliferam.

Há algo em nossa formação histórica que explique uma "felicidade" brasileira, diferente da de outros povos?
Leopoldo e Silva: Há uma tradição ufanista que resiste à prova da realidade e que encontra muitos pretextos para se afirmar: Carnaval, futebol, musicalidade, a proverbial cordialidade, a natureza pródiga, a beleza das mulheres etc. As elites sempre souberam manipular muito bem essa tendência e reforçá-la, até às custas de uma antropologia vulgar que encoraja a alienação e uma alegre resignação.
Isso faz com que durante toda a nossa história as pessoas se tenham contentado com simulacros e espetáculos: independência, república, democracia etc. A recusa a encarar a infelicidade é a mesma que se tem em encarar a realidade histórica. Essa situação está muito bem descrita na letra da música do Chico Buarque “Vai Passar”.

No ciclo de palestras “Vida Vício Virtude” o sr. falou sobre “O vazio do pensamento”. Poderia falar sobre o tema de sua conferência?
Leopoldo e Silva: Veja que no contexto do individualismo moderno o indivíduo põe o seu interesse próprio na exterioridade, na realização da exterioridade. E, portanto, na realização das aparências úteis, na realização do empreendimento. Eu toquei na palestra do ciclo em dois pontos: a tecnociência e o empreendedorismo moderno.
Coloquei esses dois parâmetros para mostrar uma certa realização na qual o indivíduo compõe um “Eu” externo. E esse “Eu” externo é alimentado pela produção, pelo ciclo de produção e consumo. Quis mostrar também como ele é uma produção externa de certa história social e psicológica que tende para a homogeneidade.
Acho que um tema importante na atualidade é o fato de que as pessoas confundem a independência individual com a liberdade efetiva. O indivíduo é independente porque ele é o centro do mundo, mas a questão é saber se essa independência não o coloca dentro de uma série de outros indivíduos tão independentes quanto ele, o que corresponde a certo padrão social de conduta, de pensamento, de desejos. E dessa maneira você tem o esvaziamento do exercício da subjetividade, que seria uma produção singular do indivíduo por ele mesmo.
E você tem então essa construção uniforme que é muito encorajada pela sociedade, porque com isso você tem controle. A gente nunca viveu numa sociedade tão individualista e ao mesmo tempo tão controlada. Se cada um faz o que quer, como você pode controlar?
Na verdade nós vivemos uma diferença, que é a diferença da série –Bergson fala disso, Deleuze também–, quando você tem elementos separados e nem por isso os elementos são diferentes. Você pode ter uma série de coisas bem separadas uma das outras, porém iguais. Acho que o truque da sociedade contemporânea é esse: você é completamente independente do outro indivíduo e faz o que quer, desde que faça exatamente o que o outro faz.
Há padrões de produção, padrões de consumo e um controle dessa série de indivíduos separados, mas não livres no sentido de cada um viver a sua singularidade. É evidente que assim se torna muito mais fácil o controle e a administração da sociedade. Por outro lado, essa homogeneidade é ao mesmo tempo um esvaziamento da singularidade.

A seguir o que o que o sr. falou sobre independência individual, nas discussões atuais como situar a questão do aquecimento global? Haveria uma relação inversa entre bem-estar propiciado pelas inovações tecnológicas e o uso abusivo da independência individual? Penso nas conseqüências para as sociedades futuras da prerrogativa do indivíduo.
Leopoldo e Silva: É, eu acho que isso é uma decorrência de um esvaziamento do exercício subjetivo da liberdade responsável. E, nesse sentido, quem equacionou o problema de forma mais clara foi Hans Jonas. Porque a tese dele é que você tem um exercício objetivo da liberdade quando você distingue entre o que você pode fazer e o que você deve fazer. E quando você é apenas uma força da natureza você não distingue entre poder e dever, por isso o indivíduo contemporâneo é uma força cega.
Então eu acho que o avanço tecnológico e o aparecimento da razão instrumental vão um pouco na direção da questão da hegemonia do poder. Eu posso fazer, então faço! E Hans Jonas se pergunta: eu posso fazer, mas eu devo? E nesse dever fazer entra a responsabilidade; já no poder entra a liberdade, mas naturalizada, isto é, cega.
Se não há equilíbrio entre essas duas coisas, acontece o que está acontecendo agora: o uso irresponsável do poder tecnológico, que segue o caminho da destruição E a responsabilidade, no caso, consistiria em pensar não apenas na vida imediata, mas nas gerações futuras, que vão arcar com as conseqüências. O que eu acho que é uma questão ética importante, porque, quando você coloca a coisa dessa maneira, você faz um triângulo em que se tem a liberdade, a responsabilidade e a solidariedade, pensadas numa escala maior do que o puro presente.
Quando você tem uma noção mais ampla de responsabilidade e de solidariedade, tem-se um exercício de liberdade medido por isso, o que não significa restringir a liberdade, mas justamente não separá-la da responsabilidade e da solidariedade, para que o poder não se isole de outros parâmetros. A questão ecológica deveria ser discutida nesses termos, mas é muito difícil você colocar esses parâmetros dentro de um contexto social em que se tem uma mentalidade imediatista e predatória.

O sr. falou de Levinas e Habernas, para tratar da questão da alteridade. Eu gostaria que o sr. falasse sobre o tema da felicidade para um pensador atual controverso, como Peter Singer, que defende posições polêmicas sobre temas como aborto, eutanásia e matança de animais.
Leopoldo e Silva: Creio que o viés analítico do pensamento de Peter Singer o impede de colocar as questões éticas com a profundidade e o alcance necessários. A tendência a considerar a ética como uma forma de solucionar problemas torna a reflexão um tanto curta. Opções éticas não se restringem à validade de argumentos ou à simples racionalidade formal de premissas e conseqüências. A ética é uma forma de pensar e de agir mais ampla do que a lógica e a técnica.

Publicado em 5/7/2008
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Humberto Pereira da Silva
É professor de filosofia e sociologia no ensino superior e crítico de cinema, autor de "Ir ao cinema: um olhar sobre filmes" (Musa Editora).

Revista Trópico

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