domingo, 28 de dezembro de 2008

Michel Guibal - E a China descobriu Lacan

E a China descobriu Lacan
Por Leneide Duarte-Plon

O psicanalista francês Michel Guibal fala das dificuldades de traduzir para o chinês os textos lacanianos, cuja difusão cresce no país


A televisão francesa Arte exibiu em julho o documentário “Édipo na China”, que trata da recente implantação da psicanálise lacaniana no país. O filme é sobretudo um perfil de Huo Datong, que já foi chamado de “Freud chinês” por um jornal local. No documentário, Datong fala de seu trabalho como psicanalista formador de outros psicanalistas na universidade de Chengdu.
Huo Datong é o primeiro psicanalista lacaniano da China e fez sua análise em Paris, com Michel Guibal, que também aparece no documentário, trabalhando em Pequim e em Chengdu, onde ele vai duas vezes por ano. Em Pequim, Guibal trabalha como psicanalista com crianças autistas.
O documentário recebeu o Prêmio Minkowska 2008 no 30º Festival Internacional Video Psy, dado pela Association Françoise et Eugène Minkowski.
Em entrevista a Trópico, Guibal fala das dificuldades de traduzir Freud e Lacan para o chinês e conta como a psicanálise lacaniana vai sendo aos poucos difundida no país _até agora mais próximo da IPA (International Psychoanalytical Association) e do trabalho de psicanalistas alemães.
“A especificidade de Huo Datong é que foi o único a vir à França para fazer uma análise. Sendo assim, foi necessariamente o introdutor do pensamento de Lacan na China, o que não era evidentemente o objetivo dos membros a IPA, para quem Lacan não é uma referência”.
Apesar de não haver controle direto dos pacientes de Huodatong, a questão das liberdades individuais na China comunista ainda é um problema delicado, como Guibal conta a seguir.

O documentário "Édipo na China" mostra a implantação da psicanálise na China. Qual foi o papel de Huo Datong ?
Michel Guibal: O pensamento freudiano foi introduzido na China no início do século XX, nos anos 20, teve sua aventura, levando-se em conta todos os acontecimentos sociais e políticos da China, proibições, distorções etc.
Em 1949, houve a Revolução Comunista e todas as proibições que sufocaram a psicanálise. Mas antes disso houve traduções. Como muitas outras coisas, elas foram escondidas nas bibliotecas e proibidas, mas, como sempre, há pessoas que as descobriram. De qualquer forma, a influência que o pensamento freudiano teve no início do século desapareceu.
A especificidade de Huo Datong é que sua formação é francesa, quando o acesso a Freud na China se fazia por traduções do alemão ou do inglês. Ele havia feito psicanálise na França, foi o único chinês a ter feito isso até agora.
Ele foi introdutor do pensamento de Lacan na China, o que não era evidentemente o objetivo dos membros a IPA (International Psychoanalytical Association), para quem Lacan não é uma referência. Datong vive num mundo onde existe uma influência alemã desde os anos 20. O documentário mostra que os alemães estão lá, na China, construíram relações.

Eles também formaram psicanalistas chineses?
Guibal: Claro. Mas a questão é saber o que é formar, porque encontrei psicoterapeutas que iam a seminários feitos por um psicanalista alemão a cada seis meses e, de repente, usavam a palavra psicanalista no lugar de psicoterapeuta. Será que é isso formar? Não tenho um julgamento pejorativo com relação a isso.
Em Viena, as pessoas que vinham ver Freud não faziam uma análise e se tornavam todos psicanalistas. Aos 22 anos, Wilhelm Reich vai ao encontro de Freud, e três meses depois Freud lhe envia pacientes. Ele não fez análise, mas formou ele próprio analistas.
O filme me fez descobrir coisas. Digamos que os alemães têm uma maior integração no meio médico e psicológico chinês que Huo Datong. Eles passam pelo canal da psicoterapia e da psiquiatria e, por isso, têm relações com pessoas que detêm o poder nesses meios e acabam tendo relações com o poder chinês, necessariamente. Enquanto Huo Datong vem de outro meio, não-médico.
Essa é também a especificidade da psicanálise, que Freud quis desvincular do mundo da medicina. O que não fazem as pessoas ligadas à IPA. Mas Lacan seguiu esse fio condutor que fez com que a psicanálise saísse do mundo médico, dos psicoterapeutas ou das pessoas que querem “o bem do outro”.

Como o senhor trabalha na China e quanto tempo passa lá?
Guibal: Isso varia. Acabo de passar um mês. Vou à China duas vezes por ano, desde 2000. Agora, trabalhei em Chengdu, que é o lugar de atividade do grupo de Huo Datong. Mas trabalho também em Pequim, numa ONG para crianças autistas, como mostra o documentário. Em Chengdu, faço seminários, mas não trabalho como um psicanalista que recebe pacientes. Sendo assim, estou no discurso psicanalista, mas não na função de analista, enquanto em Pequim recebo pessoas na função de psicanalista, nessa instituição para crianças autistas.

Foi a partir da análise que Huo Datong fez em Paris com o senhor que começou seu contato com a China, ou o senhor já tinha um contato anterior com o país?
Guibal: Quando Huo Datong veio me procurar, essa busca só fez reativar coisas que já existiam desde minha adolescência e desde que conheci, mais tarde, Lucien Bodard, um jornalista que me falou muito de Chengdu, onde ele nasceu, como filho do cônsul francês.
Eu tinha esse contato e a magia do discurso de um jornalista que havia escrito vários livros sobre a China e a Ásia. Um dia, Huo Datong chegou no meu consultório e me falou de Chengdu. Quando ele terminou sua análise, recebi um convite seu para trabalhar naquela cidade. Para mim, foi como a realização de um sonho

O interesse dos chineses pela psicanálise pode ser explicado pela recente posição que o indivíduo começou a ocupar na sociedade chinesa, que antes considerava toda forma de subjetividade como uma “preocupação burguesa”?
Guibal: Evidentemente, tenho algumas idéias sobre isso, mas sou um ignorante, estou apenas descobrindo a China. Não pretendo, pois, tirar conclusões sobre os chineses e o país.
Não concordo com tudo que o filósofo François Julien diz, mas sou influenciado pela sua idéia de que o seu interesse pela China serve para trabalhar o impensado da filosofia ocidental no que concerne aos fundamentos da moral na filosofia ocidental.
Eu diria que isso me interessou muito, isso ecoou profundamente em mim e não pelo fato de minha posição de desenvolver um saber sobre os chineses ou sobre o futuro dos chineses, da China ou da psicanálise no país. Posso testemunhar como isso me permitiu trabalhar o que se chama em psicanálise “o inanalisado do psicanalista”. Pude ver grandes regiões não analisadas na minha análise.

O que é o tratamento de um autista na China?
Guibal : O que faço lá me abre horizontes para a maneira como se trata o autismo na França. É um pouco complicado, porque é um trabalho de uma ONG, o que mostra que o governo não faz grande coisa. O principal em relação aos autistas é feito por ONGs na China.
É interessante ver as diferenças. Essas ONGs têm financiamentos internacionais, de americanos, japoneses... O governo chinês não dá dinheiro. Os americanos não dão dinheiro sem ter retorno. O retorno é que eles injetam suas ideologias e seus métodos, que se chamam ABA (Applied Behaviour Analysis), análise do comportamento, que tem como um dos líderes nessa instituição um homem chamado Howard Lowas, uma espécie de ídolo do “Livro Negro da Psicanálise”.
Há um retrato dele na ONG onde trabalho. E é ele quem financia. Na França, também há grupos que trabalham segundo os métodos da ABA. A surpresa é que cheguei como psicanalista francês e pensei que eles iam me dispensar depois de alguns dias. Nada disso.
Na França, é praticamente impossível para um psicanalista trabalhar com pessoas que usam esse método, eles são totalmente contra a psicanálise. Enquanto lá, na China, exerço a psicanálise, e não trabalho com esse método ABA, evidentemente.

A psiquiatria chinesa é totalmente dominada pelo DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) e pela psiquiatria americana?
Guibal: Não falo da psiquiatria, porque essas ONG não estão na área médica.

Mas de uma maneira geral a psiquiatria chinesa é influenciada pela psiquiatria americana e pelo DSM?
Guibal: Este ano foi a primeira vez que visitei um hospital psiquiátrico, porque estamos tentando fazer com que o hospital receba estagiários que saem do grupo de Chengdu, que não são médicos. Nós os encontramos, fiz uma conferência, e eles vão aceitar estagiários que não têm formação médica num hospital psiquiátrico de Chengdu, o único que conheço.
Há quatro anos, visitei outro hospital também. Mas há internatos que não tenho o direito de visitar. Meus colegas de Chengdu me dizem que não é verdade, que não há hospitais para onde são mandados os dissidentes políticos. Me parece que li que eles existem, como na antiga União Soviética.
Na China, isso é delicado, é melhor não insistir, se a gente quer continuar a ir lá. O melhor é não perguntar muito sobre isso. Meus colegas com quem trabalho são professores universitários, e a universidade é necessariamente dirigida pelo Partido Comunista.
O fato de Huo Datong poder convidar pessoas de outros países é uma especificidade de seu trabalho. Mas não somente isso. Há lugares de liberdade, onde os dirigentes dão o direito de convidarem especialistas estrangeiros mas é uma liberdade outorgada, e ela pode ser retirada de um dia para o outro, se houver problema.

Já que o senhor fala de liberdade, pode-se fazer uma análise em total liberdade na China?
Guibal: Pelo que sei, é o que faz Huo Datong, em Chengdu. Fiz um seminário, há pessoas do grupo que fizeram uma análise com ele e não sei de nenhum tipo de inspeção. Aliás, Datong diz isso no documentário. A questão é a liberdade de expressão fora do consultório.
Até hoje, Datong não foi limitado em sua liberdade de receber as pessoas. A questão é que eu estava hospedado na universidade e fiz um grupo de trabalho com cinco ou seis estudantes sobre o ensino de Gisela Pankow, uma psicanalista da Alemanha que trabalhou sobre a psicose. Eu recebia o pequeno grupo no hotel que hospeda os estrangeiros. Os estudantes que vinham no meu apartamento para trabalhar eram obrigados a se identificarem à polícia, que controla a entrada do hotel.
Eu fiquei surpreso quando soube disso, mas finalmente aceitei. Meu primeiro reflexo foi dizer: “Não, não, nem pensar, quem vem trabalhar comigo não terá de mostrar seus documentos à polícia”. A faculdade é cercada de muros, há controles em todas as entradas. Eu estava num hotel para estudantes mas há um controle policial para que os estudantes não tragam pessoas de fora.
Tivemos autorização para que os estudantes viessem, mas o controle é para que uma chinesa não venha passar a noite comigo. Não sou paranóico, é um controle assim, porque os estudantes têm tendência a fazer esse tipo de coisas, e não somente na China. Mas para ir fazer uma análise com Datong não há policiais controlando. Que eu saiba, não há ninguém que impeça Huo Datong de receber quem ele quiser dentro da universidade. As liberdades cabem a ele conceder ou não.

Que tipo de liberdade?
Guibal: Sabe-se que há analistas que não suportam que lhes digam certas coisas. Minha analista não suportava que eu lhe dissesse que ela fumava demais. Ela não suportava, eu não podia dizer. Logo, a liberdade de falar quem dá é o analista. E então a gente se depara com o “inanalisado do analista”. Não é um controle policial. Há os que são mais ou menos inanalisados.

No estado atual da psicanálise na China, pode-se formar psicanalistas? Huo Datong forma psicanalistas?
Guibal: Ele só faz isso. Ele se vê como um formador, não como terapeuta. A maioria das pessoas que vêm vê-lo o fazem para se tornarem psicanalistas. Ele é um formador de psicanalistas. O que não deixa, evidentemente, de ser uma questão problemática quanto à finalidade da psicanálise, que não é nem curar nem formar psicanalistas. A cura vem como uma coisa a mais, mas a formação dos analistas também.
Atualmente, há cinco pessoas na França que vêm do grupo de Huo Datong e que fazem estudos universitários e eventualmente uma segunda análise em Paris. Ele promove uma formação à francesa, com a diferença de que tudo se passa na universidade, que não é nos moldes franceses.

Alguém disse, creio que o sinólogo Rainier Lanselle, que a China tem sede de novidade e que a psicanálise faz parte dessas novidades. O senhor concorda?
Guibal: Com Rainier Lanselle, concordo totalmente. Ele tem todo direito de dizer, é sinólogo, fala chinês muito bem, é muito culto, conhece a China e, além disso é psicanalista. Digo: ele é psicanalista e, além disso, é sinólogo, ponha nessa ordem.
Evidentemente eu não tenho elementos para dizer isso. Faz sete mil anos que a cultura chinesa existe. Não começou em 1949, com a Revolução Comunista. Eu dou a Lanselle o direito de dizer. A outro francês que vai à China e volta dizendo coisas sobre os chineses, eu não reconheço o menor direito de falar sobre o país. Nem mesmo eu.

Rainier Lanselle diz que as palavras chinesas do vocabulário de psicanálise fazem parte da grande família dos neologismos aparecidos na língua do país no último século. Qual é o grande desafio da tradução de Freud e de Lacan na China? A maioria dessas obras já foram traduzidas para o chinês?
Guibal: Nem a obra de Freud nem a de Lacan foram traduzidas para o chinês. Os “Escritos”, de Lacan, que já foram parcialmente traduzidos, o foram por razões estratégicas. Os seminários de Lacan não foram todos ainda transcritos em francês. Jacques-Alain Miller tenta publicá-los, mas ainda não acabou de fazê-lo. E nem mesmo Freud foi totalmente traduzido em francês.
De Freud, não posso dizer quantos livros já foram traduzidos, mas sei que a grande maioria ainda não foi. O desafio na China é o tempo.
Em 1968, o nome de Mao Tsetung foi introduzido na França. Havia idólatras de Mao na França, no momento em que ele fazia horrores na China. Agora, o nome de Lacan e sua obra começam a ser introduzidos. Mas, para algumas pessoas, isso é como o nome de Mao na França. Não é a mesma dimensão, Mao Tsetung era um líder político, e Lacan não.
Mas o que se passa por exemplo com o Tibete. Os ocidentais falam do dalai lama. Isso é um nome, o que há por trás desse nome? Oitenta por cento das pessoas que falam do dalai lama não têm idéia do que existe por trás desse nome. Trata-se da magia de um nome. Seria mais ou menos o mesmo fenômeno. Não digo que o dalai lama faz horrores no Tibete, mas poderia fazer. Introduziram esse nome e ele vende livros.
Uma maneira, pois, de introduzir a psicanálise na China é introduzir o nome de Lacan. Um outro aspecto é tentar traduzi-lo, e isso não se faz em três anos. Fizemos uma tentativa em Paris e passamos um ano numa página de Lacan, tentando traduzi-la para o chinês. Rainier Lanselle e seu grupo levaram um ano para traduzir o texto “O Estágio do Espelho”.

O senhor passou um mês na China, há pouco. O que o senhor fez lá?
Guibal: Fiz um seminário de 36 horas com gravação de áudio e vídeo sobre o seminário de Lacan que se chama “De um Discurso Que Não Seria Falso” ("D’un Discours Qui ne Serait Pas du Semblant") e que se chama também “Seminário Chinês”.

E por que ele se chama seminário chinês?
Guibal: Porque ele trabalha com a relação entre seu ensino e um clássico chinês chamado Mencius (Meng Zi, na transliteração do chinês). Lacan diz que aprendeu chinês, que escreve chinês e que lê Meng Zi em chinês. Lacan encontrou coisas em Meng Zi que são como uma antecipação de Freud e Lacan.
Ele trabalha muito a relação entre ele e Meng Zi. E como na mesma época ele trabalhava com François Cheng, este é um seminário que leva os chineses interessados pela psicanálise lacaniana a relerem Meng Zi com as questões que Lacan suscita neles ou que a análise deles suscita.
Pois Lacan coloca questões para as quais não há respostas e cabe aos chineses encontrá-las. Ele também toma frases de Meng Zi e diz o que pensa, dá suas próprias respostas. Esse seminário de Lacan é uma experiência muito rica.

link-se
Leia os trabalhos de Michel Guimal - http://www.lacanchine.com

Publicado em 11/8/2008
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Leneide Duarte-Plon
É jornalista e vive em Paris.

Revista Trópico

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