quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Guilherme Cassel - Qual o futuro da agricultura familiar?

Qual o futuro da agricultura familiar?

O ministro Guilherme Cassel fala de reforma agrária e propriedade rural

CARLOS JULIANO BARROS

Arte PB

Poucos temas despertam tantas paixões políticas e controvérsias ideológicas quanto a reforma agrária. Com o agronegócio participando cada vez mais ativamente da pauta de exportações da economia nacional, há quem entenda que a distribuição de terras para o fortalecimento da agricultura familiar já não faz mais sentido. Por outro lado, não se pode negar que a concentração de imensas áreas nas mãos de poucos proprietários é um dos pilares históricos que sustentam a desigualdade social no país, responsável por violentos conflitos que há décadas aparecem nas manchetes dos jornais. Para discutir essas e outras questões, como o desmatamento na Amazônia e a influência da "bancada ruralista" no Congresso, Problemas Brasileiros entrevistou Guilherme Cassel, 52 anos, titular do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), pasta que cuida especificamente da agricultura familiar e da reforma agrária no governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Engenheiro civil, Cassel ocupou o cargo de secretário executivo do MDA de 2003 a 2006, assumindo a seguir o posto de ministro em substituição a Miguel Rossetto, com quem já havia trabalhado no governo estadual do Rio Grande do Sul anos antes.

Problemas Brasileiros – O agronegócio brasileiro é o maior exportador mundial de soja, carne bovina, dentre outras commodities. Porém, segundo o próprio MDA, a agricultura familiar responde por 70% dos alimentos que consumimos no dia a dia. É possível estimular uma política de expansão do agronegócio, voltada principalmente ao mercado internacional, sem prejudicar a oferta de alimentos baratos e de qualidade para a população do país?
Guilherme Cassel – Acho que é possível fazer as duas coisas. Quando pensamos em um projeto de desenvolvimento para o país, temos de ser capazes de enunciar com clareza qual é o meio rural que queremos – com ou sem gente, só com grandes plantações e máquinas ou com comunidades, escolas e produção de alimentos? Acho que temos de escolher para o futuro um meio rural com cada vez mais gente tendo acesso à terra, com produção voltada principalmente para a segurança alimentar. Essa é uma agenda contemporânea, de futuro. O mundo não será o mesmo quando sair desta crise. Hoje é muito mais importante garantir o abastecimento interno, com alimentos de qualidade e baratos para a população, do que se preocupar com a balança comercial. É necessário continuar produzindo grãos e exportando? Sim. Só que mais ainda, inclusive como princípio de direito humano à alimentação, é garantir a segurança alimentar da população.

PB – O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão vinculado ao MDA, reduziu de 100 mil para 75 mil a meta de famílias a ser assentadas em 2009. Além disso, houve corte de mais de 40% no orçamento deste ano previsto para desapropriações e para assistência técnica. A reforma agrária não é mais prioridade no governo Lula?
Cassel – Temos de olhar o governo Lula em todo o seu período, e não pinçar um dado isolado dos outros. Por que hoje o governo pode investir mais em desenvolvimento dos assentamentos e menos em obtenção [de novas áreas]? Porque nos últimos seis anos assentamos 550 mil famílias. Isso é 59% de tudo o que foi feito no país, em toda a sua história, em termos de reforma agrária. Nunca ela andou tanto neste país como nos últimos seis anos. Quando entramos no governo, havia mais de 200 mil famílias acampadas à espera de terra. Hoje não há 50 mil.

PB – Desde o começo de sua gestão, porém, o governo Lula vem sendo acusado de contabilizar indevidamente a regularização fundiária de áreas já ocupadas por posseiros com o objetivo de inflar o número de novos beneficiários da reforma agrária. Como o senhor encara essas críticas?
Cassel – Nunca houve esse tipo de crítica. A que houve e que hoje não existe mais, inclusive, era de que estávamos retomando lotes de reforma agrária que tinham sido vendidos ou que tinham sido abandonados e colocando ali novas famílias. Isso é reforma agrária, sim. Outra crítica é de que utilizávamos terra pública para fazer reforma agrária. Fizemos isso, sim, e defendo que a reforma agrária também tem uma dimensão no norte do país. Se o governo federal dispõe de terra pública, e ela está irregularmente ocupada ou não está ocupada, vamos retomá-la para utilizar da forma mais racional possível. É preciso responder por que, nos últimos três anos, diminuiu tanto o número de conflitos agrários no país. Isso aconteceu porque a reforma agrária avançou.

PB – Uma das queixas mais contundentes com relação à política de reforma agrária é a de que, historicamente, os governos não têm demonstrado coragem para mexer na estrutura fundiária do centro-sul e do nordeste. Para amenizar a tensão, a maior parte dos assentamentos vem sendo criada na Amazônia, onde há grandes estoques de terras públicas. Como o senhor vê essa avaliação?
Cassel – A reforma agrária tem um objetivo: garantir terra para quem não tem. Para uma família que quer produzir e não tem terra, não interessa se esta é pública, se foi adquirida por compra e venda ou por desapropriação. Não é verdade que a maioria dos assentamentos fica em terras públicas no norte do país. Aquela região congrega menos de 40% de todos os assentamentos, e ali estão 60% de todo o território nacional. Mesmo na regularização fundiária, quanto mais se garante a democratização do acesso à terra, mais se mexe na estrutura fundiária. Por exemplo, os dados prévios do Censo Agropecuário do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] mostram que aumentou o número de proprietários no meio rural e que diminuiu o tamanho médio da propriedade. Por que isso está acontecendo? Porque a reforma agrária tem avançado. Primeiro, a crítica era a seguinte: a reforma agrária não está andando. Quando as pessoas começam a ter acesso à terra, muda a crítica: a reforma agrária tem de ser antilatifundiária. A reforma agrária é um processo.

PB – As entidades ruralistas costumam afirmar que não há mais fazendas improdutivas. Por outro lado, uma das principais bandeiras dos defensores da reforma agrária é a revisão dos índices que o governo utiliza para medir a produtividade dos imóveis rurais. Os índices em vigor, que datam ainda da década de 1970, vão ser atualizados?
Cassel – Espero que sim. Todo o trabalho técnico está feito já há mais de dois anos, em acordo entre o Ministério da Agricultura e o MDA. O que existe, evidentemente, é sempre uma reação muito forte no Congresso, principalmente por parte da bancada ruralista.

PB – É um problema político, então?
Cassel – Acho que é político. E a pergunta que sempre faço é: quem tem medo da produtividade? Quem produz direito não tem medo. Acho que existem áreas improdutivas no país. Muitas. E os setores que não querem a atualização dos índices são improdutivos e têm medo.

PB – O governo anunciou um projeto de regularização fundiária da Amazônia, batizado de Terra Legal, para ordenar o atual caos fundiário da região, legalizando a situação cadastral de fazendas de até 1,5 mil hectares. Porém, esse plano suscitou muitas críticas e até foi ironicamente apelidado de Plano de Aceleração da Grilagem [apropriação ilegal de terras públicas]. O governo pode garantir que não haverá regularização fraudulenta das áreas ocupadas irregularmente?
Cassel – Quem acha que esse plano é de aceleração da grilagem está do lado da grilagem. O que temos visto na Amazônia nos últimos anos é um processo de grilagem de terras públicas, de desmatamento criminoso e de exploração ilegal de madeira. O programa Terra Legal visa estancar esse processo. Creio que há pessoas que querem que não façamos a regularização fundiária e que em vez disso se proponha uma discussão sobre critérios de desmatamento. Seria um longo debate, que significaria abrir um espaço e um tempo ainda maiores para a grilagem.

PB – Mas o que alguns dos críticos do Terra Legal defendem é justamente a expansão da reforma agrária na região, porque ali há muitas fazendas de tamanho gigantesco...
Cassel – O programa Terra Legal tem dois grandes eixos. O primeiro deles é garantir a preservação da floresta e do meio ambiente. O segundo é assegurar direitos aos pequenos. Então, o programa de regularização fundiária vai nos próximos três anos regularizar a propriedade de 300 mil posseiros que têm até quatro módulos fiscais [módulo fiscal é o sítio mínimo necessário à sobrevivência de uma família, com no máximo 100 hectares]. Estamos falando de gente que tem pouca terra. Até 15 módulos fiscais, dos médios proprietários – a segunda etapa do programa –, as pessoas vão ter de pagar preço de mercado pela terra. E, acima disso, só com licitação. Ou seja, não se estão ampliando em nada as garantias que já existem. Aquelas pessoas que por acaso hoje ocupam mais de 1,5 mil hectares de terra não podem ter e não terão as áreas regularizadas. Primeiro, vamos regularizar as posses dos pequenos e, depois, identificar os grandes grileiros e retomar as áreas deles.

PB – O governo, porém, vai precisar de um aparato de fiscalização forte para impedir que um grileiro legalize vastas extensões de terra colocando títulos em nome de parentes, de "laranjas"...
Cassel – É por isso que a nova legislação não permite a venda de lotes por um período de dez anos, justamente para evitar que se faça esse trabalho com "laranjas". Agora, não podemos deixar de fazer a regularização fundiária para 300 mil agricultores familiares que estão lá, e que têm pouca terra, porque meia dúzia de bandidos podem se utilizar de artimanhas para burlar a lei. O Estado brasileiro tem de ser capaz de enfrentar essas burlas.

PB – No final do ano passado, o Ministério do Meio Ambiente divulgou uma lista que colocava seis assentamentos entre os dez maiores desmatadores da Amazônia. Estudo recente do próprio Incra mostra que 869 assentamentos contribuíram para a devastação, em 2008. A política de fazer reforma agrária na floresta deveria ser repensada?
Cassel – Acho que existe uma ânsia bastante grande em jogar a responsabilidade pelo desmatamento da Amazônia em quem não tem culpa. Todos os dados oficiais dão conta de que 18% do desmatamento está em áreas de reforma agrária e de agricultura familiar. Ou seja, há 82% do desmatamento que não têm nada a ver com assentamentos ou com a reforma agrária. É verdade que os assentamentos têm problemas ambientais? Sim. Por quê? Porque as terras que retomamos na Amazônia tinham sido griladas e devastadas. Então, os assentados, quando recebem uma área, assumem também um passivo ambiental muito grande. Eles têm inclusive a tarefa de recuperar tudo. Isso é caro e trabalhoso. É necessário repensar a reforma agrária na Amazônia? Sim. E nós já fizemos isso. Tanto que não desenvolvemos mais projetos de assentamentos comuns. Só fazemos agora assentamentos agroextrativistas, agroflorestais e de desenvolvimento sustentável. Mudamos isso a partir de uma longa discussão com ambientalistas, movimentos dos trabalhadores sem-terra daquela região e governadores estaduais.

PB – Há mais de uma década, tramita no Congresso uma proposta de emenda constitucional (PEC) que prevê o confisco de fazendas em que for constatado trabalho escravo. O senhor é a favor da aprovação dessa PEC?
Cassel – Claro que sim. Essa é uma PEC civilizatória. Sua não aprovação e o fato de ela se arrastar no Congresso há mais de 15 anos mostram de maneira muito crua e cruel um Brasil arcaico que está escondido. Em nosso país, historicamente, a propriedade da terra e o poder político sempre andaram de mãos dadas, e essa situação faz com que não se consiga superar o tema da escravidão. Onde está concentrada a grilagem, convergem também o latifúndio, o trabalho escravo e o infantil, e o desmatamento ilegal.

PB – Meses atrás, um conflito por terra em Pernambuco, em que quatro seguranças foram mortos e um sem-terra acabou ferido, e outro ocorrido no Pará, no município de Xinguara, em que militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) entraram em uma fazenda, tiveram grande repercussão na mídia. Qual é sua avaliação sobre a atuação dos movimentos sociais?
Cassel – Uma das riquezas da história contemporânea brasileira é a ação dos movimentos sociais. Aqui no MDA trabalhamos junto com eles quando elaboramos políticas públicas. Faço questão de dialogar. Mas reconheço também que eles têm um papel e o governo, outro. Mantenho discordâncias importantes com alguns movimentos sociais, mas que não me impedem de conversar com eles.

PB – Que tipo de discordâncias?
Cassel – Acho que às vezes os movimentos sociais têm uma dificuldade enorme de fazer um balanço adequado sobre o governo Lula e os avanços da reforma agrária. Verdadeiramente se começou a mexer na estrutura fundiária deste país. É muito significativo que 550 mil famílias tenham tido acesso à terra, que o orçamento do Incra tenha sido o que mais cresceu no Planalto, que a vida nos assentamentos tenha melhorado muito. Acho que alguns movimentos têm muita dificuldade em reconhecer isso e se escondem atrás de slogans, "não se está fazendo nada", "a reforma agrária não avança", quando todos os dados oficiais e não oficiais mostram que o número de conflitos fundiários, a concentração de terra e o tamanho médio das propriedades diminuíram. Isso não foi conquista do governo apenas, mas dele e da sociedade brasileira.

PB – Em maio, o senhor se encontrou com o ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), para o lançamento do Fórum Nacional para Monitoramento e Resolução dos Conflitos Fundiários, a fim de agilizar os processos que tratam de disputas por terra. Falta sensibilidade ao Poder Judiciário em relação a essa questão?
Cassel – Acho que o tema do Judiciário se insere em um âmbito maior. É importante olharmos para a Constituição de 1988. Ela tratou de todos os temas de interesse nacional, menos da questão da propriedade da terra, que ficou intocada por conta do poder político dos grandes proprietários. No Brasil, não existe limite de propriedade de terra. Ainda desapropriamos terras improdutivas pagando valor de mercado. Premia-se a improdutividade. Acho que todo o tema da propriedade da terra precisa ser revisto com um olhar mais civilizatório e contemporâneo. Não é à toa que há trabalho escravo, desmatamento, pistoleiros no meio rural. Temos um país novo, dinâmico, moderno, em pleno século 21. Contudo, convivemos também com um Brasil do século 19, que não permite que seja aprovada a PEC do trabalho escravo. Nesse ambiente, existem as dificuldades que encontramos no Poder Judiciário. Hoje, por exemplo, temos mais de 200 processos em todo o país que estão em tramitação. Isso envolve 200 mil hectares de terra, que poderiam garantir que 11 mil famílias fossem assentadas. Agora, estamos trabalhando em conjunto com o ministro Gilmar Mendes. Construímos esse fórum para agilizar com o Judiciário, o Incra e o MDA. Estou apostando muito nisso, para encontrar caminhos dentro da legislação atual que minimizem essa demora.

PB – Todos os anos acontecem negociações para a chamada "rolagem" das dívidas agrícolas, decorrentes do não pagamento dos créditos contraídos nas diversas linhas de financiamento oferecidas pelo governo. Segundo estudo do Ministério da Fazenda, a dívida total dos grandes produtores chega a R$ 74 bilhões, enquanto a da agricultura familiar atinge R$ 13,4 bilhões. De que maneira os senhor avalia esse tradicional socorro financeiro aos produtores rurais brasileiros?
Cassel – No ano passado, pela primeira vez, se fez um estudo profundo, uma radiografia da dívida rural do país. Acho que restou claro para a sociedade brasileira quem é bom pagador e quem não é. Os pequenos pagam bem e pagam sempre. E a história da República nas últimas décadas é de rolagens sucessivas de um punhado de grandes produtores que devem muito. É muito fácil ter uma boa produtividade quando se está devendo muito. No ano passado, fizemos a derradeira renegociação da dívida, em que foi possível tratar toda ela em conjunto, e penso que daqui para a frente esse tema está resolvido.

PB – Tendo em vista o peso do agronegócio, da bancada ruralista e do histórico de privilégios aos grandes proprietários de terra, qual é o futuro da agricultura familiar?
Cassel – Ela tem um vigor extraordinário, está crescendo, tem produzido cada vez mais, e o país tem se identificado com ela. Hoje, a agricultura familiar entrou no vocabulário nacional. As pessoas sabem que são os agricultores familiares que produzem 70% daquilo que elas consomem no dia a dia. Quando se estimula esse setor com crédito, assistência técnica, programas de comercialização, seguro-agrícola, ele responde de maneira rápida e muito efetiva. A agricultura familiar do Brasil é um valor que este país tem. Vivemos em uma sociedade democrática, e ela tem de escolher qual é o meio rural que deseja: com gente, produzindo alimento, ou sem gente, produzindo para exportação. Esse é o nosso dilema.

Revista Problemas Brasileiros

Nenhum comentário: