10/11/2009
"O principal erro do Ocidente é acreditar que venceu a Rússia", diz Gorbachev
Pilar Bonet
Em Moscou (Rússia)
Vinte anos depois da queda do Muro de Berlim, entre a Rússia e o Ocidente "se construiu um novo muro, por causa das diferentes avaliações da guerra fria". É o que afirma Mikhail Gorbachev, o homem que possibilitou aquele acontecimento. "O principal erro do Ocidente é acreditar que venceu a Rússia, e que o fez sem disparar um tiro nem gastar um centavo", declara o ex-líder da União Soviética, primeiro como secretário-geral do Partido Comunista e depois como único presidente daquele Estado, desaparecido em 1991. Do alto de seus 78 anos, o artífice do rumo da abertura e reformas conhecido como "perestroika" olha tanto para a história como para o futuro.
O outono está cheio de comemorações que, para ele, representam uma pesada carga física e psicológica, já que têm a ver não só com política mas também com sua biografia pessoal. Em setembro completaram-se dez anos da morte de sua esposa, Raísa, vítima de leucemia. Entre duas viagens, Gorbachev recebeu "El País" no escritório de sua fundação em Moscou. Ele brinca como um adolescente e está de bom humor.
El País: A reunificação da Alemanha poderia ter sido conduzida de outro modo?
Mikhail Gorbachev: No outono de 1989, os países do Leste estavam fazendo suas respectivas revoluções e escolhendo seu caminho, mas a Alemanha parecia maldita. No entanto, três meses depois que Helmut Kohl e eu dissemos que o problema da Alemanha ficaria para o século 21, tudo se precipitou. O plano de Hans Modrow [o chefe de governo da República Democrática da Alemanha, RDA] era uma confederação, e nós o aceitamos. Teria funcionado, se tivesse avançado paulatinamente, mas no final de dezembro Modrow me disse que na Alemanha queriam tudo imediatamente e que ninguém aceitava aquela colocação.
El País: Erich Honecker teria podido salvar a RDA?
Gorbachev: Honecker deixou passar o momento. Ele acreditava que já tinha feito sua "perestroika". A reunificação teria ocorrido de qualquer maneira, mesmo que progressivamente.
El País: Os conservadores na URSS e em outros países comunistas se opuseram de forma organizada à reunificação alemã?
Gorbachev: Pode ser que tenham falado muito depois daqueles acontecimentos, mas não se opuseram quando os alemães saíram à rua. Yegor Ligachov [o líder do setor conservador do PCUS] participou de todas as discussões sobre o tema. Os que colocaram suas objeções a tempo foram o presidente francês, François Mitterrand, e a primeira-ministra britânica, Margaret Thatcher, mas depois ambos assinaram todos os acordos e não se manifestaram contra. O que queriam era utilizar a União Soviética e Gorbachev para que as tropas interviessem e impusessem a ordem.
El País: O que Mitterrand e Thatcher estavam dispostos a fazer para impedir a união da Alemanha?
Gorbachev: Mitterrand dizia que gostava tanto dos alemães que queria duas Alemanhas e Thatcher tinha medo deles. Hoje a Alemanha sente sua força econômica, mas não é uma ameaça e se comporta de forma responsável na política mundial.
El País: Quando o senhor disse pela primeira vez aos dirigentes da Europa do Leste que eram livres para praticar sua própria política e que a doutrina Brejnev da soberania limitada havia terminado?
Gorbachev: Quando enterramos Konstantin Chernenko [líder da União Soviética morto em março de 1985] e depois de sessões de consulta ao Pacto de Varsóvia. Ou seja, eu disse isso duas vezes no início de 1985.
El País: Eu li que o senhor soube da queda do muro na manhã de 9 de novembro por uma ligação telefônica do embaixador soviético na Alemanha. Viu como o muro foi destruído pela CNN?
Gorbachev: Não tinha a CNN. Os acontecimentos daquela noite não foram uma surpresa. Os acontecimentos foram ganhando envergadura e estava claro que ninguém poderia disparar quando o muro foi aberto.
El País: O senhor deu ordens às tropas soviéticas para não disparar?
Gorbachev: Não foi preciso. Era um dos pontos de minha política a não-ingerência nos assuntos internos de nossos vizinhos.
El País: Há dados secretos sobre a reunificação da Alemanha?
Gorbachev: Há outras coisas que não posso contar, mas nesse tema não há nenhum segredo e considero que é um dos exemplos de maior êxito da política mundial. Discutimos muito sobre os perigos, mas tudo transcorreu de forma ideal.
El País: O outro grande artífice da "perestroika" é Eduard Shevardnadze, seu ministro das Relações Exteriores e ex-presidente da Geórgia. O senhor se relaciona com ele?
Gorbachev: Raramente. Cumprimento-o por seu aniversário e falamos ocasionalmente por telefone, mas foi um bom ministro do Exterior para a minha época.
El País: O senhor acredita que Barack Obama é um novo Gorbachev, no sentido de que traz um novo pensamento, isto é, que Obama é com relação a George Bush o que Gorbachev foi com relação a Brejnev?
Gorbachev: Os países e as épocas são diferentes. Esta é uma época que convida a trabalhar, e na minha era preciso começar a mover uma pesada pedra tanto em política interna como externa, ainda mais com relação aos EUA. Sozinho eu nunca poderia ter feito o que fiz. No partido havia gente que me apoiava. Uma das características da União Soviética era que a reforma naquele tempo só poderia partir de cima e que a sociedade precisava de mudanças. Quando Chernenko morreu, reuni os membros do birô político [o órgão máximo diretor do PCUS] às 11 da noite para dispor sobre o enterro e assim, de passagem, se colocou um tema que já havia amadurecido. Eu tive a idéia de pedir a Andrei Gromiko [ministro das Relações Exteriores da União Soviética] que nos encontrássemos meia hora antes que os outros. Haviam morrido três secretários gerais seguidos, e isso afetava o estado de ânimo da população. Eu disse a ele que não podíamos adiar as mudanças que haviam amadurecido e que devíamos unir nossos esforços e agir. Ele me disse que estava totalmente de acordo. Às vezes as coisas acontecem assim. Discute-se sobre algo dezenas de anos, inclusive séculos, e então, de repente... Há três anos, diante de milhares de pessoas, em uma dessas conferências que faço, um jovem que parecia inteligente me pediu um conselho. Eu lhe disse que achava que os EUA precisavam de uma "perestroika" americana e a sala se levantou e aplaudiu. Observei atentamente a campanha de Obama e gostei muito. Obama tem as mesmas convicções democráticas que me moviam, e para ele também as mudanças amadureceram, e nesse sentido podemos dizer que há um paralelo com a "perestroika".
El País: Sua idéia da "Casa Comum Europeia de Vancouver a Vladivostok" não pôde se realizar e a Carta de Paris, assinada em novembro de 1990 pelos países da CSCE (hoje OSCE) deu em nada. Os presidentes Medvedev e Obama hoje discutem os princípios daquele documento?
Gorbachev: Efetivamente. Alegra-me que Medvedev também discuta os temas globais europeus. Não é possível distanciar-se do que aprovamos então. Em 1989, diante do Conselho da Europa, eu disse que este continente deveria ser nossa casa comum e não um teatro de ações bélicas. Mas perdemos uma oportunidade depois da guerra fria e apareceu novamente outra linha divisória. Veja esse grupo de políticos formado por Aleksandr Kwasniewski, Vaclav Havel e outros que se dirigiram a Obama com exigências em relação à Rússia. Sinto vergonha alheia. Creio que se tiraram muitas deduções equivocadas depois da desintegração da URSS. Disseram que a Otan não avançaria para o leste e que não haveria perigo para ninguém, mas de repente começaram a aceitar outros países do leste na Otan e o justificam dizendo que o Estado ao qual fizeram essas promessas não existe mais. É um truque barato.
El País: Quando Medvedev fala da arquitetura de segurança europeia, suas palavras têm conteúdo real ou trata-se de uma fórmula retórica?
Gorbachev: Medvedev é uma pessoa inteligente, de convicções democráticas, bem educado e informado. Acredito - e eu lhe aconselharia - que não deve tentar parecer que é tão decidido e duro. Não é isso de que o país precisa, nem a Europa nem o mundo. Ele deseja uma Europa unida e democrática e que unamos nossos esforços com os americanos, porque sozinho ninguém resolverá nenhum desafio global. Parece que ainda não se compreende que não é possível uma segurança para alguns e outra para outros.
El País: Não se pode dizer que a democracia tenha avançado na Rússia sob o mandato de Putin e o de Medvedev.
Gorbachev: Talvez você tenha razão, mas o que eu digo - e saliento - tem a ver com o conteúdo essencial. Fui um democrata convicto e isso me causou problemas, sobretudo porque não quis usar métodos antidemocráticos com Ieltsin [o falecido presidente russo]. Mas todos saem as vezes de suas células. Não há ninguém ideal. Não gosto quando Medvedev põe a máscara de duro; não é preciso. O importante é a força das convicções, de suas ideias. Se as pessoas veem que você tem convicção e se esforça, o seguirão e inclusive o perdoarão se você se enganar. Putin é muito perdoado porque no começo fez muito para evitar que a Rússia se desintegrasse e depois chegou a chuva de dólares que deu possibilidade de fazer coisas. Mas em seu segundo mandato não utilizou essas possibilidades, isto é, não realizou a modernização de que o país precisava e também não fez tudo o que poderia ter feito no plano internacional. Seu discurso de Munique marca a diferença entre o primeiro e o segundo mandatos. Os democratas ocidentais ilustrados se surpreenderam e fizeram uma careta de desagrado como se fossem uma assembléia de nobres diante da qual houvesse aparecido alguém de sapatos sujos. Besteiras! Disse coisas corretas, porque esfregaram os pés na Rússia e descuidaram tanto dela que a Rússia se atrasou 15 anos. Mas os russos tiraram conclusões. Meditaram longamente, mas as tiraram. A esperança de novas relações com os EUA, com o Ocidente, aquela euforia não deu em nada. Todos desejavam que a Rússia fosse frágil para poder fazer o que quisessem. Isso ficou na memória das pessoas, por isso apoiam Putin inclusive quando ele exagera.
El País: Por acaso não contribuiu para o aparecimento de outro muro o retrocesso da democracia que começou com Putin e continua com Medvedev?
Gorbachev: A democratização está em marcha, apesar de eu ser um dos que mais criticam sua falta. O sistema eleitoral foi revisado para garantir a vitória da Rússia Unida, que é um instrumento de determinadas pessoas, e isso não é correto, e chegou Medvedev e também fez coisas nesse gênero, por exemplo, prolongou o prazo presidencial. Eu o critico e inclusive escrevi um artigo na "Rossiiskaya Gazeta". Sem criar um sistema eleitoral efetivo e representativo que funcione e um sistema democrático não conseguiremos fazer que a Rússia avance com êxito. Qualquer avanço exige participação da população, e isso é a democracia, a população deve saber, participar e ter direito a decidir. Gostei do que aconteceu no Japão; a população observou, observou e afinal o partido no governo foi derrotado, mas lá o sistema democrático permite isso. Em troca, aqui, o atual sistema eleitoral não o permite. Esse é o tema que é preciso resolver antes de novas eleições, mas eles tentam diminuí-las; primeiro introduziram a ratificação e depois a nomeação dos governadores [em vez da eleição popular], liquidaram também os distritos majoritários e então os cidadãos não podem realizar seus direitos constitucionais. E as eleições em Moscou, como foram organizadas? Vetaram candidatos para não incomodar Iuri Lujkov.
El País: O senhor acredita que há uma ordem nos meios de comunicação oficiais para criticar ou silenciar a "perestroika"?
Gorbachev: Os historiadores escrevem o que os dirigentes desejam. Por enquanto as coisas são assim. Podem escrever sobre a época de Brejnev, de Andropov, que governou apenas alguns dias, mas a "perestroika" não existe nos manuais de história. Isso é feito conscientemente. Lembremos a campanha eleitoral na época da "perestroika", em 1989. Todo o país participou. Não houve qualquer falsificação, nem ordens por parte do governo. E para cada cadeira concorriam até dezenas de candidatos. E agora? Você vê os partidos que existem... Mas abrimos caminho, porque a campanha contra o álcool, o momento mais maldito da política de Gorbachev, agora é dada como exemplo e dizem que salvou muita gente de morrer vitimada pelo álcool.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
DER SPIEGEL
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