Os livros têm a ver com a condição humana
MOACYR SCLIAR
Moacyr Scliar / Foto: Francesco Barale
Moacyr Scliar, natural de Porto Alegre, divide sua vida profissional entre a medicina e a literatura. Como médico, é especialista em saúde pública e doutor em ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública. Foi professor visitante na Brown University e na University of Texas-Austin, nos Estados Unidos.
Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), é autor de 80 obras de vários gêneros, entre romances e livros de contos, ensaios, crônicas e ficção infanto-juvenil, com edições em pelo menos 20 países.
É colunista dos jornais "Zero Hora", de Porto Alegre, "Folha de S. Paulo" e "Correio Braziliense". Recebeu vários prêmios, entre os quais o Prêmio José Lins do Rego, da ABL, o da Academia Mineira de Letras, o Prêmio Jabuti, o Prêmio Casa de las Américas, o Prêmio Guimarães Rosa e o Prêmio Mário Quintana.
Esta palestra de Moacyr Scliar foi proferida no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio, Sesc e Senac de São Paulo, no dia 18 de junho de 2009.
Em 1993, o chefe do Departamento de Estudos Literários da Brown University, uma pessoa que já conhecia, me convidou por telefone a dar um curso de seis meses sobre literatura para os alunos da universidade. Fiquei um tanto intimidado e lhe disse que era escritor, não professor de literatura, e não me sentia em condições de dar esse curso para estudantes de letras. Ele: "Mas quem falou em estudantes de letras? São alunos de medicina". Mais: disse que o curso não seria o único e haveria outras pessoas lecionando para a mesma área. Quando cheguei lá, descobri que a área se chamava humanidades médicas e envolvia várias disciplinas, como história da medicina, antropologia, ética, comunicação, e que minha disciplina seria literatura e medicina.
Foi uma experiência extremamente interessante e comecei a me dar conta de que não se tratava, vamos dizer, de uma diversão intelectual. Os americanos são extremamente pragmáticos e aquilo tinha uma razão muito objetiva. Era a crise na medicina americana. Ela vive várias crises e atualmente estão tendo uma discussão ampla sobre a reformulação do sistema de assistência médica. É a medicina mais cara do mundo, é claro que também extremamente eficiente, mas deixa a desejar sob muitos aspectos. Um deles é que cerca de 40 milhões de americanos não têm nenhuma cobertura assistencial, porque lá isso depende em grande parte de seguros de assistência médica.
Justamente quando cheguei lá, o presidente Bill Clinton ia tomar posse e uma das coisas que propunha fazer era reformular a assistência médica do país. A pessoa encarregada disso era Hillary Clinton e o local onde anunciou os planos foi a Brown University. Esta foi escolhida porque vários dos assessores de Hillary eram dessa universidade, mas as medidas anunciadas nunca saíram do papel. Era um plano extremamente ambicioso, porém muito complicado e por isso não decolou. O problema administrativo continuou, mas havia um outro, e este os levou a mudar o currículo médico. Era a questão do mau relacionamento entre médicos e pacientes nos Estados Unidos. O número de ações movidas contra médicos estava aumentando exponencialmente e continua em crescimento, obrigando os profissionais a fazer seguro.
Entre as várias pessoas que conheci lá havia um médico que foi obrigado a fechar seu consultório, porque não tinha como pagar o seguro contra processos. Simplesmente encerrou a prática privada e foi trabalhar como empregado numa policlínica, pois a empresa pagava seu seguro. A situação era muito preocupante e uma das coisas que eles identificaram como causa disso foi que, em função do desenvolvimento tecnológico da medicina, a relação médico-paciente havia mudado, e não para melhor. O que acontecia era uma consulta muito sumária, em que o médico perguntava algumas coisas e solicitava uma bateria de exames, seguidos de uma série de procedimentos. Os pacientes se sentiam mal atendidos com isso. E quando entravam na Justiça, na verdade não estavam se queixando de erros médicos, mas de um problema psicológico.
A discussão dessa realidade fez com que chegassem à conclusão de que deveriam mudar a formação profissional, o ensino. Introduziram então esse conceito de humanidades médicas. Devo dizer que até hoje isso continua sendo uma tentativa, mas não ocorreu a eles outra coisa. Em alguns casos, o fundamento é evidente quando falam em comunicação. É óbvio, porque há médicos que não sabem falar com o paciente.
Quando comecei a trabalhar em saúde pública, meu primeiro consultório foi num posto de saúde nas vizinhanças de Porto Alegre. Eu conversava com as pessoas e explicava certas coisas, por exemplo, como tratar uma diarreia infantil. Nunca tinha me ocorrido indagar se elas compreendiam o que eu estava dizendo, mas um dia perguntei a uma mulher: "A senhora entendeu o que tem de fazer com sua filha?" Ela disse: "Entendi". Retruquei: "Então me diga com suas palavras o que a senhora entendeu". Ela começou a chorar, porque na verdade não tinha entendido nada, mas sentia vergonha de dizer. A gente se dá conta dessas coisas dolorosamente, ao longo de muitos anos.
Esse problema já tinha sido identificado numa conferência que ficou famosa, proferida em 1959 pelo físico e escritor Charles Percy Snow. Era uma aula inaugural e se tornou conhecida como "As Duas Culturas". Ficou tão famosa que foi transformada em livro que circula por aí, as edições em inglês são incontáveis. Este ano faz exatamente 50 anos que a palestra foi proferida e continua na ordem do dia. Percy Snow levanta o conceito das duas culturas, que a rigor não é totalmente novo, sabemos disso, e que ele resume neste trecho: "Intelectuais e literatos de um lado, cientistas de outro. Entre os dois lados, um abismo de mútua incompreensão e às vezes até de hostilidade. Cada lado tem uma imagem distorcida do outro. Os não cientistas tendem a pensar nos cientistas como arrogantes, otimistas ingênuos, ignorantes da condição humana. Os cientistas acham que escritores e intelectuais não têm nenhuma visão do futuro, que não estão preocupados com os seres humanos e que restringem arte e pensamento apenas a um momento existencial". Ele realmente descreveu, de forma bem sintética, esse abismo, essa diferença entre duas maneiras de sentir, que acabei experimentando na própria carne, por assim dizer.
Fonte de informação
Sou escritor, escrevo desde criança, nem podia ser outra coisa porque, menino do bairro do Bonfim em Porto Alegre, sou filho de um pai imigrante que era um grande contador de histórias. Era desses narradores que conseguem fascinar as pessoas contando histórias de imigrantes, de como era a Rússia quando vivia lá, como foi a viagem, a descoberta do Rio Grande do Sul, para onde veio para um projeto de colonização agrícola. E de uma mãe também imigrante, extremamente dedicada e culta, ao contrário de meu pai, que não cursou colégio. Ela era professora, adorava literatura e deu para o filho o nome de um personagem de José de Alencar. A crença que tinham no livro era uma coisa comovente. O livro não era só uma fonte de informação ou uma maneira de conhecer literatura. Era a porta de entrada para um mundo melhor, porque éramos pobres. Meu pai era marceneiro, minha mãe ganhava pouco como professora, e o que queria dizer com cada livro que ela me dava (e me deu muitos) era: "Nossa vida é precária, mas a tua vai ser muito melhor, se entrares no mundo da cultura, da informação".
Então muito cedo eu escrevia minhas historinhas e muito cedo pensava em medicina. Tornei-me escritor porque gostava de escrever e me tornei médico (isso concluí depois de pensar muitos anos) porque tinha medo de doença. Não medo de ficar doente, não sou hipocondríaco, mas quando meus pais ficavam doentes eu entrava em pânico. O temor de que alguma coisa acontecesse com eles era de tal ordem que eu tinha uma curiosidade anormal em relação à doença. Perto de casa havia um hospital famoso, o Pronto-Socorro de Porto Alegre, e eu ficava espiando os médicos pela porta. Fiz medicina, trabalhei um tempo como clínico e depois fui para a saúde pública, em grande parte motivado pelos impulsos de minha geração, que queria mudar o país e o mundo. Não conseguimos, evidentemente, mas saúde pública, para quem fazia medicina, era uma forma de chegar a isso. A ideia era levar os benefícios da medicina ao povo brasileiro.
O problema da comunicação em saúde deriva em primeiro lugar da incompreensão por parte do médico em relação às palavras utilizadas pelo paciente para expressar a dor, o sofrimento, o significado que a doença tem para ele. Não se envolver parece ser uma palavra de ordem, primeiro para não perturbar o raciocínio. A ideia é esta: o médico tem de ser uma pessoa isenta, não pode estar emocionalmente comprometido para não perturbar a capacidade de julgamento. Não pode, por exemplo, atender um parente, mas isso significa um distanciamento às vezes excessivo. Existe um trabalho que mostra que 50% dos pacientes que consultam um clínico geral nos Estados Unidos descrevem uma série de sintomas que o médico simplesmente ignora. Isso acontece porque seu raciocínio está dirigido para a elaboração do diagnóstico e ele automaticamente vai descartando o que considera colateral na narrativa do paciente. O paciente se dá conta de que o médico não presta atenção no que ele diz ou que não o ouve. Às vezes ele não presta atenção porque está anotando ou verificando a tela do computador em vez de olhar para o paciente.
Os psicanalistas descobriram isso muito cedo, não os de divã, mas os que fazem psicoterapia, e aprenderam que é preciso ficar olhando para o paciente enquanto este fala. Por outro lado, os médicos também têm dificuldade de se comunicar com o paciente. Quando o futuro médico entra na faculdade de medicina, troca sua linguagem e começa a falar "mediquês". É um processo absolutamente imperceptível. Esquece o vocabulário "vulgar" e passa a usar palavras técnicas. De repente está dizendo ao paciente: "O senhor tem uma flebite". Será que ele sabe o que é flebite? Hoje em dia as pessoas de classe média estão bem mais informadas, graças à internet, mas os mais pobres continuam sem esse conhecimento.
Existe uma dificuldade para o paciente aderir ao tratamento. Quais são as soluções para isso? Uma delas é abordar o paciente e não a doença como centro de estudos. Eu ainda era estudante de medicina e meus professores diziam: "Não existem doenças, existem doentes". Por outro lado, há a questão da empatia, participar das emoções do paciente. Não se trata de se deixar contaminar pela sua emoção, mas de entendê-la e analisá-la de forma serena e tranquila.
Formação continuada
Um segundo item, que tem a ver com o convite da Brown, é a nova abordagem da educação do profissional de saúde, não só do médico. Inclui a formação continuada, com essas pessoas analisando constantemente seu próprio desempenho, conhecendo suas falhas, erros e as atitudes que podem melhorar. Em terceiro lugar, o exercício humanista da profissão. Para isso é necessário ter informação e conhecimento, altruísmo e solidariedade, profundo respeito pelas pessoas e capacidade de comunicação interpessoal. O objetivo é ver a pessoa como um todo. Em inglês há dois termos para doença, um é disease, que é a doença propriamente dita, e outro é illness, que é a condição de estar doente, é como a pessoa se sente, como vive sua doença. A tuberculose, por exemplo, é uma doença (disease), de uma pessoa infectada por um bacilo. Illness é como essa pessoa vive sua tuberculose. Essa diferença é muito importante. Um grande médico americano do século 19 dizia: mais importante do que aquilo que o médico faz é o que o paciente pensa que o médico faz, ou seja, como o paciente vê a ação do médico. Pode ser um argumento subjetivo, aparentemente pouco científico, mas é o que acaba regendo a relação médico-paciente que pretendemos humanizar.
A questão literatura e medicina vem ao encontro de outra conjuntura que faz parte de nossa cultura, que é a maneira como encaramos a literatura. Acaba de sair um livro do filósofo búlgaro Tzvetan Todorov, atualmente residente em Paris, que discorre sobre a crise nessa área. O que está acontecendo com o ensino da literatura é um pouco o que acontece com a medicina. A literatura hoje em dia nas escolas e nas universidades é uma disciplina curricular, cai em vestibular. Em Porto Alegre, agora menos, porque o tempo passou, mas quando meus amigos tinham filhos vestibulandos era certo que na véspera do exame um deles me telefonava: "Tio, amanhã tu vai cair no vestibular. Tio, me resume aí a tua vida e a tua obra. Caso tu caia no vestibular, eu preciso saber alguma coisa sobre ti". É o que vai acontecer no juízo final, vamos ser interpelados a resumir a vida e a obra ligeirinho, porque a fila é grande. Então a literatura se transformou numa coisa classificatória, é preciso saber se o autor é de tal ou qual escola, seu estilo, como se desconstrói, como se estrutura etc. Pergunta-se sobre obras literárias como se pergunta quais são os afluentes do Amazonas, a pessoa tem de memorizar. Mas que utilidade tem saber quais são os afluentes do Amazonas se ela não vai para o Amazonas? Se for, ela estuda isso. Mas a literatura ficou assim mesmo, uma coisa objetiva, seca. Os alunos estudam através de resumos, os trabalhos que eles têm de fazer já estão prontos na internet, é só buscar.
O exemplo de Tolstói
Então há uma crise dentro da literatura. Temos de um lado a crise de desumanização da medicina, de outro lado a crise da literatura e de repente estou lá na universidade Brown tentando, junto com um grupo de alunos, superar essas duas crises. Fazer com que eles se deem conta de que a relação médico-paciente é entre seres humanos e conseguir isso através de obras literárias. Dá para fazer, porque existem obras literárias que são absolutamente decisivas não só na compreensão da existência humana como também na compreensão da relação médico-paciente.
Vou dar um exemplo, que considero definitivo. É uma novela de Liev Tolstói, chamada A Morte de Ivan Ilitch. É um texto muito curto, o que é muito bom, livro não precisa ser longo. Foi escrito por um homem conhecido como humanista, uma pessoa voltada para a condição humana. É considerada por muitos críticos como a melhor novela já escrita. Quando a lemos, percebemos que, se não é a melhor, é forte candidata a ser a melhor, se é que existe tal classificação. A Morte de Ivan Ilitch fala de um homem que vai morrer, o que já sabemos pelo título. Quem é ele? É um advogado conhecido, extremamente arrogante e cônscio de sua importância, um profissional que brilha nos tribunais. Um dia fica doente. Tolstói não diagnostica a doença e isso não tem importância, mas é certo que vai matá-lo. À medida que se vai lendo, percebemos muitas coisas que são importantes para a compreensão do fenômeno da doença e da condição humana. Primeiro, a reação do próprio Ivan Ilitch é curiosa. Ele, como acontece com as pessoas que ficam gravemente doentes, precisa encontrar uma causa, um bode expiatório, algo em que possa botar a culpa de seu mal. E a culpa é que ele bateu em uma mesa com o abdômen, e a partir daí começou a ter problemas e desenvolveu uma doença.
Quem é médico sabe que frequentemente as pessoas atribuem seus males a algo que aos olhos do profissional é absurdo, mas faz sentido dentro da conjuntura emocional delas. Lembro-me de que um dos primeiros pacientes que atendi, ainda como estudante de medicina em Porto Alegre, era um homem com insuficiência cardíaca, completamente inchado, que me repetia constantemente: "Doutor, eu estava bem, mas um dia fui comer um ovo duro e fiquei assim". Ele odiava esse ovo duro. Esse ovo duro para ele não era um ovo, era outra coisa, outra história que eu, por ingenuidade, não perguntei, mas devia ter perguntado. Eu teria descoberto que comer esse ovo duro para ele talvez tenha sido uma transgressão, uma coisa que ele vacilou em fazer, que não devia fazer. Fez e o resultado foi esse castigo, a insuficiência cardíaca brutal. Mas eu já estava pensando como médico, acreditando que isso era bobagem, uma besteira, não tinha nada a ver. E não tinha mesmo, objetivamente não faria muita diferença para ele como cardíaco, mas muita diferença para ele como pessoa. Só que eu via nele um cardíaco, não uma pessoa.
Depois Ivan Ilitch começa a consultar médicos e aí vem o drama, pois os médicos não dão a mínima para ele. Não querem nem que fale e de repente ele se sente como um réu no tribunal, aquelas pessoas não são médicos, são juízes, não estão dando um diagnóstico, mas um veredicto. Um dos médicos diz a ele: "Não precisa falar, vou dizer o que você tem". A desgraça continua porque a família também não entende, e ele não recebe o apoio que esperava. No fim, a única pessoa que o ajuda é um empregado, um camponês russo ignorante, mas que tem uma qualidade absolutamente fundamental, a compaixão. Tem pena do patrão, ajuda-o e faz o papel do médico.
Condição humana
Ler uma novela dessas é absolutamente importante, e eu arriscaria dizer que o estudante de medicina aprende tanto num texto desses, quando o discute convenientemente, quanto nos manuais técnicos que consulta. Há mais exemplos. Para ficar em escritores brasileiros, meu conterrâneo Érico Veríssimo tem um livro chamado Olhai os Lírios do Campo. Não é de suas obras-primas, mas é um livro muito sensível, porque o autor tinha uma vocação médica mal contida. Trabalhou muito tempo em farmácia e conhecia doentes. Médicos aparecem constantemente em sua obra. Tenda dos Milagres, de Jorge Amado, é uma obra na qual se discute a arrogância médica, que não era infrequente na Bahia no começo do século 20, como não era em outros lugares. A Montanha Mágica, de Thomas Mann, tem aquele diálogo famoso, um médico que conversa com seus pacientes no sanatório de tuberculose. Lá pelas tantas ele diz: "A doença é o resultado de uma paixão que não se concretizou. A doença é a paixão transformada". Isso não é verdade no caso da tuberculose, que é uma doença microbiana, ainda que os fatores psicológicos possam ter importância, mas explica muitas coisas. Realmente tudo aquilo que numa época se chamou de medicina psicossomática resulta das paixões transformadas em doença.
Isso mostra como numa área que é hoje muito tecnológica, a medicina, pode-se superar o abismo entre as duas culturas, unindo-as. Não duvido que isso possa ser feito em todas as áreas. Estamos no momento discutindo o papel que a literatura vai ter nas escolas e é muito importante que pais e educadores se deem conta de que o livro medeia uma relação humana. Quem recomenda um livro, quem lê para uma criança, quem discute um livro com uma criança está fazendo, ao fim e ao cabo, uma verdadeira psicoterapia. Literatura é mais do que o estilo, é mais do que a escola literária, é mais do que a denúncia. A grande literatura tem a ver com a condição humana e nesse sentido ela tem um papel cada vez maior no mundo.
Debate
SAMUEL PFROMM NETTO – Ainda há pouco o jornal "O Estado de S. Paulo" publicou um artigo instigante, e ao mesmo tempo desalentador, a respeito da edição de livros de ficção de autores brasileiros. Nessa crítica falou-se da proliferação de traduções de best-sellers, a maioria de língua inglesa, boa parte dos quais de valor literário reduzido ou absolutamente nulo. A esse quadro acrescento a ausência em nossas livrarias dos livros dos mais notáveis escritores patrícios do passado. É inútil buscar, por exemplo, a não ser nos sebos, as obras extraordinárias de José Américo, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Dalcídio Jurandir, Valdomiro Silveira ou Érico Veríssimo, para citar apenas meia dúzia das muitas dezenas de notáveis escritores do passado. A exceção corre por conta deste ou daquele autor exigido nos vestibulares como leitura obrigatória. Isso contrasta vivamente com o que se observa em outros países, particularmente no que respeita a Europa, Estados Unidos, Canadá e Japão. A esse processo de desnacionalização da literatura entre nós acrescento o desaparecimento dos autores portugueses, que num passado não muito distante nos ajudavam a falar, a escrever e a pensar em nosso idioma comum. Estaríamos perante uma hecatombe literária no Brasil?
MOACYR SCLIAR – Não estamos diante de uma hecatombe, acho que não. Realmente é uma situação que pode não ser justificável, mas é explicável. Em primeiro lugar, a questão dos best-sellers. Vivemos num mundo globalizado, lemos o que todo o mundo lê, assim como vemos os filmes que todos veem e ouvimos as notícias que todos ouvem. Não temos, por exemplo, como escapar da indústria cinematográfica americana, primeiro porque é extremamente eficiente, sabe produzir e distribuir filmes interessantes, sabe apelar. Dizem que O Código Da Vinci é um filme horrível, mas todos vão ver, não há como não ver. Todo mundo fala de Harry Potter, e me surpreende que os jovens leiam livros de 600 páginas. Isso de um lado. De outro, temos a questão dos clássicos. Vou dar uma de menino travesso. Com o centenário de Euclides da Cunha, em agosto de 2009, todos falam de Os Sertões. Reli esse livro há dias e me chamou a atenção a última frase, que diz mais ou menos o seguinte: "Não existe nenhum Maudsley que nos explique, enfim, os conflitos brasileiros". Não sei se alguém sabe quem foi Maudsley. Eu teria obrigação de saber, porque ele era médico, um psiquiatra inglês extremamente popular na época de Euclides da Cunha. Henry Maudsley usava a psiquiatria para entender os problemas da cultura. Mas isso no século 19. Hoje em dia ninguém mais sabe quem é ele, é preciso entrar na internet para descobrir. O resultado é que terminamos de ler Os Sertões nos deparando com uma frase que não entendemos. Imaginem a sensação do leitor quando o livro que está lendo termina com uma frase incompreensível, que às vezes ele nem sabe como pesquisar. Isso sem falar do livro, que é importantíssimo, transcendental, mas ilegível. As novas gerações não conseguem ler Os Sertões porque aquele vocabulário e aquela forma de redigir não são os que elas usam.
No colégio que frequentei em Porto Alegre, tínhamos um bom professor de literatura, mas havia outros muito ruins que insistiam nos clássicos. Só que éramos obrigados a ler os clássicos portugueses, porque caíam no exame, e além disso havia um castigo nesse colégio, em que os alunos travessos, caso deste que vos fala, tinham de ficar depois da aula e copiar 20 estrofes de Os Lusíadas. Copiei tantas vezes Os Lusíadas que duvido que algum de vocês conheça a obra melhor do que eu, pelo menos as 20 primeiras estrofes. Mais tarde descobri que Jorge Amado também copiou Os Lusíadas como castigo, era uma praga no Brasil transformar em castigo uma obra literária fundamental da cultura lusófona.
ZEVI GHIVELDER – Mas gerou grandes escritores.
MOACYR SCLIAR – Isso não gerou um escritor, gerou um grande revoltado. Estamos diante de uma situação que tem de ser enfrentada, mas com habilidade. A palavra-chave para apresentar a literatura, tanto na relação entre pais e filhos como entre professores e alunos, é interação. Aquilo não pode ser apresentado como uma coisa sagrada, intocável, venerável. Eles têm de mexer naquilo, têm de pegar um Dom Casmurro e fazer uma adaptação para o teatro, fazer a versão deles dessa obra, mexer no texto, familiarizar-se, entender quem foi Machado de Assis, não como escritor venerável, mas como um mulatinho do Rio de Janeiro, uma pessoa doente, epilética, gaga, que conseguiu dar a volta por cima e terminou morto não numa sarjeta, mas como o maior escritor brasileiro. Essas coisas são importantes. Não dá para enfiar goela abaixo, as pessoas têm de ser convidadas a entrar na literatura, seduzidas, e isso não se faz, infelizmente, com os clássicos. Há exceções, é claro; Machado de Assis é um escritor que se lê perfeitamente hoje, mas José de Alencar já é um problema.
Não estamos aqui para discutir o ensino de literatura, mas isso é sintoma de uma realidade brasileira, da cisão que existe entre a cultura erudita e a ralé que não consegue chegar aos livros. Como membro da Academia Brasileira de Letras, quero dizer que é uma instituição que tem de mudar, tem de deixar de ser o que é. Nós, os acadêmicos, temos de fazer um esforço para acabar com o elitismo que transforma os membros da academia em imortais, diferentes do comum dos homens.
PFROMM NETTO – Lembro que, embora suas observações sejam judiciosas, há um fato que não é controverso. Os ingleses continuam lendo Shakespeare e Thomas Hardy, os franceses Balzac e Flaubert. Há novas edições de Flaubert, lindas, em todas as livrarias da França. Os alemães leem Goethe, os italianos Dante. E nosso companheiro Ernani Donato vai lançar, felizmente, a reedição de sua primorosa tradução de A Divina Comédia.
MOACYR SCLIAR – Faço uma pergunta a Samuel: que autor os franceses leem mais, Balzac ou Paulo Coelho?
PFROMM NETTO – A questão não é o que leem mais, mas o que há nas livrarias.
MOACYR SCLIAR – E o que tem mais nas livrarias?
PFROMM NETTO – Paulo Coelho está nas livrarias, mas Flaubert também está e as pessoas compram.
MOACYR SCLIAR – Aqui também temos Machado de Assis. Paulo Coelho é uma pessoa com quem me dou muito bem, acho que desempenha uma função importante, que é a de introduzir as pessoas na literatura. Ele faz isso muito melhor quando é traduzido, por razões óbvias. Agora, condenar Paulo Coelho não adianta. Em cada palestra que faço, seja em colégio ou universidade, esse tema vem à baila; sempre alguém pergunta por que Paulo Coelho está na Academia e invariavelmente aparece um rapaz que diz: "Olha aqui, eu só leio Paulo Coelho. E daí, vai encarar?"
JOSUÉ MUSSALÉM – Qual é o papel do livro nesta época de internet? Acredito que a obra impressa ainda é muito importante. Editoras europeias, como a Bertrand, de Lisboa, a Casa del Libro, de Madri, e a Gallimard, de Paris, que inclusive reeditou Gilberto Freyre, estão crescendo. No Brasil temos a Siciliano, que agora pertence à Saraiva, e a Livraria Cultura, com áreas de expansão na venda de livros. É interessante também notar que há tipos de lojas com livrarias dentro delas. Como vê o futuro do livro?
MOACYR SCLIAR – Nós provavelmente somos gente do livro, sem ele não podemos passar, é uma coisa que faz parte de nosso modo de vida. Érico Veríssimo tem uma historinha sobre pessoas que não podem passar sem livro. É do sujeito que mais entendia de vinho no mundo, sabia tudo. Um dia lhe perguntaram qual era seu vinho preferido e ele respondeu: "Eu não bebo". Foi uma surpresa, como isso era possível? Perguntaram-lhe então de onde tinha tirado aquele conhecimento enciclopédico. Ele disse: "Durante a ditadura, fiquei preso e a maior tortura era não ter nada para ler. O carcereiro ficou com pena de mim e me deu um livro, um manual de vinhos, que li e reli tantas vezes que acabei memorizando-o de cabo a rabo". Sentimos uma necessidade física do livro, precisamos dele, mas temos de aceitar que isso não é mais uma regra geral. A tela veio para ficar. É uma surpresa, porque alguns anos atrás se dizia que a tela derrotaria o livro, mas falávamos daquela do televisor, com imagens. Agora temos uma tela com texto, é diferente. Isso é um espaço literário.
PFROMM NETTO – Já existe Shakespeare em livro eletrônico.
MOACYR SCLIAR – Sim. E a Amazon Books acaba de lançar um sistema pelo qual baixamos livros via internet. A obra é lançada e pode ser baixada instantaneamente. Frequentemente me pedem que resenhe livros, e o pessoal do jornal ou da revista me manda o texto por e-mail, para ganhar tempo. Tenho de ler o livro na tela, é um suplício. Entre outras coisas, por que não se pode anotar nada. Como fazer para sublinhar uma frase, para escrever na margem? E, além disso, é um exercício cansativo. E não dá para levar para o banheiro. Mas temos de admitir que o computador e a internet vão se transformar num espaço literário, o blog está aí para ficar e alguns tipos de livros já eram, como as enciclopédias. Tenho uma em casa que não uso mais, queria doá-la para algum colégio, telefonei para uns 20, ninguém queria, nem para vender como papel usado. Estamos então diante de um fato novo e será um erro muito grande dizer que o jovem não quer mais saber de livro, só de internet e computador. Isso só vai acentuar esse abismo intergeracional.
MOACYR VAZ GUIMARÃES – Queria dizer apenas que o jovem não lê, tem outras atrações, inclusive navegar pela internet, e não estamos fazendo nada para que volte a ler. Hoje não há leitura na faixa de estudantes do ensino médio e mesmo no superior, a não ser algo muito restrito, especializado. Lembro-me de um verso que é uma proclamação admirável, pela síntese e profundidade, do poeta que dizia: "Oh! Bendito o que semeia livros... livros a mancheia... e manda o povo pensar! O livro caindo n’alma é germe – que faz a palma. É chuva – que faz o mar".
MOACYR SCLIAR – Esse verso todos conhecemos, aprendemos no colégio. Mas quero dizer uma coisa. A ideia de que os jovens não leem pode ser equivocada. Dou um exemplo: tenho um filho, que agora é um homem, que não lia, para desgosto de seu pai. Não lia mesmo, inclusive os trabalhos de colégio eu tinha de fazer junto com ele e às vezes para ele, não me envergonho de confessar. Como eu queria que ele lesse, dediquei a ele um dos livros que escrevi. Quando a obra chegou da editora, eu lhe disse: "Olha, este livro está dedicado para ti, queria que pelo menos este você lesse". Ele olhou aquele objeto ameaçador e disse: "Tu não podia me resumir isso aí?" Pois esse menino que não lia se tornou um leitor adulto voraz. É fotógrafo e é capaz de ler um livro de mil páginas sobre fotografia ou a biografia de um grande fotógrafo. Ele lê o que lhe interessa. O pai dele não interessava para ele, nem com o nome dele na dedicatória do livro, e eu tinha de aceitar esse fato.
MARISA AMATO – Realmente a literatura é um elo em muitas situações, não só na medicina. Hoje a distância está ficando muito grande entre as pessoas e consigo mesmas. Quando se fala em abismo entre médico e paciente, com certeza a literatura pode oferecer uma grande contribuição, porque é uma maneira de dar mais cultura aos profissionais, mas existem outros aspectos. A superespecialização é um deles, que aumenta a distância entre médico e paciente. Mais: graças à internet, o paciente procura o médico já com um diagnóstico pronto. É um conhecimento absolutamente superficial e às vezes com informações erradas, porque a internet tem de tudo, coisas muito boas e também muito lixo. Um doente com dor nas costas, o que faz? Marca consulta com um especialista, onde acha que deve ir. Precisamos de médicos generalistas, com uma cultura diversificada, que os pacientes tenham como responsáveis pelo tratamento e que se encarreguem de encaminhá-los para os especialistas.
Nos Estados Unidos, os pacientes se queixam porque às vezes não conseguem falar com o médico, mas com uma enorme equipe multiprofissional, encarregada de dar todas as informações. Estamos vivendo isso aqui da mesma maneira. Se o médico está atendendo um paciente não se justifica que este fale com a psicóloga, a nutricionista, o fisioterapeuta a respeito de seu problema. O acesso ao médico deveria ser fundamental.
ISAAC JARDANOVSKI – Os pacientes chegam ao consultório já com diagnóstico pronto graças à internet, mas não é só isso, muitos já vêm com a solicitação de exames. Precisam do médico apenas para coonestar os pedidos no seguro-saúde.
MOACYR SCLIAR – Algumas coisas que estão acontecendo são irreversíveis. A especialização é inevitável. Com o conhecimento vastíssimo que hoje caracteriza a medicina, não há como uma pessoa saber tudo. Então os especialistas são inevitáveis. E a questão da assistência primária, o general practitioner dos americanos, também é importante. Mas nada impede que um especialista, que sabe tudo sobre determinada área, se interesse pela pessoa como pessoa. Entende de diabetes? Tudo bem. Mas entenda de pessoas também. Uma coisa não contraria a outra. É que existe também um componente de preguiça, comodismo: peço exames e prescrevo a receita. Outra pessoa que fale com o paciente.
MARISA AMATO – Mas há estudantes que durante a graduação já não se interessam por algumas matérias porque vão fazer determinada especialidade. É o absurdo do absurdo, mas é verdade.
MOACYR SCLIAR – A conclusão a que chegamos é esta: se há um lugar onde se pode transformar isso é no ensino. A Brown estava inteiramente certa ao pretender mudar o currículo médico para pelo menos tentar alargar o horizonte das pessoas.
ZEVI GHIVELDER – Pergunto se é possível fazer boa literatura sobre temas exclusivamente médicos. Isso porque o autor britânico Oliver Sacks, que escreve exclusivamente sobre temas médicos, é admirável. Há um indiano também, cujo nome esqueci, que usa esses temas, mas escreve um monte de bobagens.
MOACYR SCLIAR – Oliver Sacks faz ensaio, não ficção. Ele é neurologista, e sua área abre essa possibilidade, porque acontecem coisas surpreendentes com as pessoas, como a história do homem que confundiu sua mulher com um chapéu e queria colocá-la na cabeça, uma situação incomum. E ele não descreve isso para dizer que é uma coisa engraçada, mas como uma forma de pensar a condição humana. A doença revela certos aspectos curiosos de nossa personalidade, por isso ele é muito bom. O indiano a quem você se refere chama-se Deepak Chopra e escreve livros de autoajuda.
ZEVI – Insuportável.
MOACYR SCLIAR – Aí depende. Se o autor escreve uma obra de autoajuda realmente útil para as pessoas, dá conselhos, tudo bem. Se faz isso pensando no mercado, então é negócio, é diferente. A verdade é esta: temos muitos médicos escrevendo para o público em geral que estão fazendo algo excelente. Hoje informação médica é uma área de especialização, há gente que se dedica só a isso e faz um trabalho muito bom. Temos também autores que fazem ficção sobre a medicina, e muitos médicos que foram escritores. O exemplo mais fantástico é o de Anton Tchekhov, que era médico, escritor e doente, tuberculoso. Tinha, então, uma tríplice vivência da enfermidade.
IZABEL ALEXANDRE – Quero lembrar um médico também, meio esquecido, que é um dos melhores escritores de língua portuguesa, Lobo Antunes. Ele é psiquiatra, faz ficção e seus temas não são as doenças propriamente ditas. Como psiquiatra ele sabe construir muito bem os personagens e coloca um país inteiro no divã. Em O Esplendor de Portugal, por exemplo, analisa o colonialismo, a relação de Portugal com a Europa e com o Atlântico, tudo isso sem falar propriamente em doença, mas com um pano de fundo que é seu conhecimento de psiquiatria.
NEY FIGUEIREDO – Falou-se do aspecto negativo da internet, quero falar do positivo. Estamos vivendo uma revolução de tal ordem na informação que hoje é impossível, em minha área, por exemplo, saber tudo o que está acontecendo. Na medicina ocorre uma coisa interessante: todo dia há uma novidade, como sobre o ovo, que tinha colesterol e que não tem mais, o ômega 3, que era bom e não é mais. Houve um caso em minha família, com minha irmã de 80 anos, que teve um problema de saúde e estava sendo tratada como se tivesse sofrido um AVC [acidente vascular cerebral]. Meu filho, que mora na China, preocupado com a tia, me perguntou quais eram os sintomas e de lá, na internet, descobriu qual era a doença dela. Os sintomas eram muito parecidos com os de um AVC. Levei a informação ao médico, que pesquisou e tudo foi resolvido, ela ficou boa. Nesse momento a internet foi fundamental. E pessoas com uma boa bagagem intelectual conseguem deixar o médico numa saia justa. O senhor acha que isso tem procedência?
MOACYR SCLIAR – Penso que certamente o conhecimento médico já não é mais privilégio de quem faz medicina. É uma coisa curiosa, mas temos de aceitar que a medicina como profissão institucionalizada e codificada é algo recente na história da humanidade. Isso é do fim da Idade Média. Antes médico era alguém que se dizia médico. Não há uma fronteira nítida entre o conhecimento médico e o geral. No último "British Medical Journal", uma revista inglesa muito prestigiosa, há uma carta com uma história contada por um endoscopista de um cliente que lhe disse: "Olha, doutor, sou encanador e estou acostumado com isso que o senhor faz. Vou lhe dar um conselho: se o senhor rodar o tubo, ele vai penetrar melhor".
LUIZ GORNSTEIN – Gostaria de ouvir seu comentário, como escritor, sobre a reforma ortográfica.
MOACYR SCLIAR – Não sou filólogo. O acordo corresponde a uma necessidade real de unificar a grafia portuguesa. O espanhol escrito na Espanha, na Venezuela, em Cuba é o mesmo. O francês do Canadá e da França é o mesmo. O inglês é mais ou menos o mesmo na Inglaterra e nos Estados Unidos. Mas sabemos que o português de Portugal é completamente diferente do nosso. Lembro-me de que ao publicar meu primeiro livro em Portugal, o editor me disse: "Vamos publicar em brasileiro mesmo, para não dar muito trabalho". Não traduziram. Então esse acordo tem seus méritos, porque elimina algumas coisas, inclusive o trema, o que vai facilitar bastante. Na verdade, o português tem acentos demais, a começar pela crase. Ferreira Gullar sempre escreve na "Folha de S. Paulo" sobre isso. Ele diz: a crase não foi feita para humilhar ninguém. Ele está enganado, a crase foi feita exatamente para humilhar os que não sabem usá-la. Andando pelas estradas brasileiras vemos coisas assim: "Caxias do Sul à tantos quilômetros". Sempre tem crase, porque quem fez a tabuleta, na dúvida, concluiu que é melhor assim, porque gente fina usa crase. Realmente, temos uma grafia terrível, que não resulta de um acaso, mas exatamente disso de separar as pessoas que dominam a grafia daquelas que não a dominam e de mostrar quem é quem. Então esse mérito o acordo tem. Mas está sendo muito criticado, atacado e realmente não sei qual é a procedência dessas críticas.
EDUARDO SILVA – Há 25 anos, meu pai tinha uma doença grave e, nas consultas, grande parte do diálogo com o médico era sobre livros. Eram conversas prolongadas e ele sempre voltava melhor da consulta. Se eu tivesse percebido isso antes, teria levado outras pessoas para falar sobre literatura com ele, pois isso se revelou um remédio.
CECÍLIA PRADA – Em primeiro lugar, uma coisa que impressiona é que o jovem – e o adulto – de hoje não lê. Esse não ler tem duas conotações. Uma é simplesmente não pegar um livro para ler. A outra é que ele não sabe ler, mas não sabe mesmo. É um analfabeto que conhece apenas as letras do alfabeto. Se você der um texto para uma pessoa qualquer dessa jovem geração, ela não vai ler; ela não sabe para que existe aquela vírgula, para que o ponto. Isso é grave e estamos nos tornando um povo analfabeto. Então não concordo com dizer que eles não leem e temos de nos adaptar a eles. Ao contrário, temos de salvar o que ainda há a ser salvo, despertar a consciência do que estão perdendo, em primeiro lugar como habilitação para qualquer carreira. Quem não tem formação terá mais dificuldade em qualquer profissão. A segunda coisa é a situação do escritor. A preocupação da maioria dos escritores jovens é aprender a escrever para ganhar dinheiro. Ou então fazer o roteiro de uma novela da Globo, que é a ambição máxima. Eles não têm a noção de que sua missão deveria basear-se em algo que está faltando, a introspecção.
JÚLIO ABRAMCZYK – No mundo da medicina, chegamos a um diagnóstico através dos sintomas. Você falou em crise da literatura, crise da medicina, temos crise no Senado, crise no atendimento médico nos Estados Unidos e aqui, também, a crise das greves no atendimento médico etc. Pergunto-lhe: o que essas crises têm em comum? A que diagnóstico podemos chegar?
MOACYR SCLIAR – Crise indica basicamente um processo de transformação. Vou usar uma frase de Gramsci: é quando o velho ainda não morreu e o novo ainda não nasceu. Não há dúvida de que as transformações rápidas da medicina entraram em choque com as formas de assistência médica tradicionais e daí resulta toda essa confusão, esse mal-estar na cultura médica, para usar uma frase de Freud. Isso é inevitável. Mas não há nenhuma razão para ser catastrofista. Escrevo para o jornal "Zero Hora" e toda semana tenho de discutir com o pessoal, porque o que mais adoram é dizer que estamos à beira do abismo em termos de saúde. Não estamos. A expectativa de vida não para de crescer, a mortalidade infantil continua diminuindo, doenças foram erradicadas. Basta lembrar a varíola, uma doença que conseguimos erradicar. A situação está melhorando.
JÚLIO – Havia um problema com a varíola. O pessoal, quando entrava no estado de São Paulo, pagava o equivalente a R$ 20 para não ser vacinado.
MOACYR SCLIAR – Bem, essas coisas aconteciam. Conheci um secretário de Saúde que guardava atestados de vacinação preenchidos e os dava aos amigos, para que não passassem pelo incômodo de se vacinar. Era um secretário de Saúde. Tirando essas exceções, a verdade é que a população se vacinou contra a varíola. E o SUS [Sistema Único de Saúde] melhorou. Pessoas de classe média adoram falar mal do SUS. Quem trabalhou no SUS sabe que pode haver problemas com o sistema, mas sem ele seria uma catástrofe, as pessoas morreriam na rua.
ADIB JATENE – O escritor é um especialista em gente, por isso consegue escrever e ser apreciado pelas pessoas. O médico em primeiro lugar tem de ser um especialista em gente, isso é coisa fundamental, porque todo doente, independentemente de seu nível cultural e de sua situação econômica, diante da doença se transforma num ser frágil, aflito, angustiado, com medo. E o oposto do medo não é a coragem, é a fé. Ele precisa acreditar, então tem de encontrar um profissional que acredite que está interessado nele e não em sua doença. Acontece que com o desenvolvimento científico e tecnológico o mundo mudou, o que tem valor são as coisas que as pessoas têm, não são as pessoas. O carro, a casa, o patrimônio, a posição social, isso é o que a sociedade valoriza. Por isso é que a pessoa deixou de ter importância e o médico foi contaminado, porque virou técnico, está mais interessado na doença do que no doente, sendo que a definição de médico é o indivíduo que está interessado no doente e não na doença. Esse enfoque que você colocou, da humanização, é absolutamente fundamental e é aí que literatura e medicina se encontram.
MOACYR SCLIAR – Melhor que isso só mesmo ganhar o Prêmio Nobel. Muito obrigado, professor Jatene.
Revista Problemas Brasileiros
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