domingo, 26 de outubro de 2008

Joel Rufino - Alfabetização: memórias de um escritor leitor

Salto Para o Futuro
Joel Rufino dos Santos


Formação: Escritor, historiador e pesquisador das raízes históricas brasileiras. Professor da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Seus livros voltados para o público infanto-juvenil trazem as histórias, os contos e as lendas do nosso folclore e da tradição africana.

Obra: De sua extensa obra literária destacam-se os livros: Quando cheguei, tive uma surpresa: cartas para Nelson (Rio de Janeiro, Ed. Rocco); A botija de ouro (São Paulo, Ed. Ática).

As crianças que são deixadas no analfabetismo, na falta de livro, falta de educação formal, essas crianças não estão excluídas da sociedade. Elas estão excluídas da escola. Mas elas estão incluídas, por exemplo, pela linguagem televisiva. E embora isso não seja uma conspiração, não seja um maquiavelismo, o fato é que a televisão comercial, a televisão de massa no Brasil, se beneficia do analfabetismo, da baixa escolaridade das crianças. Então você vê: a escola deixa de fora, mas a televisão põe para dentro. É nesse sentido que é perigoso falar em exclusão. As crianças não estão excluídas; só que elas estão incluídas de uma maneira que nós, do nosso ponto de vista de educadores, achamos ruim. Mas elas estão incluídas.

Salto – Joel, do que você se lembra, de quando você aprendeu a ler e a escrever?

Joel Rufino – Bom, como foi para todo o mundo, foi uma experiência forte. Não saber ler e, de repente, estar lendo. Eu aprendi a ler de três maneiras: havia a Igreja Evangélica Batista, minha família era Batista, eu aprendi na escola dominical, e aí, interessante, uma missionária norte-americana me ajudou a me alfabetizar. Embora ela soubesse pouco Português, e eu não soubesse nada de Inglês, foi interessante o esforço que ela fez, e também o encanto que ela me despertava, por tudo isso. Na escola, na escola primaria, obviamente; e em casa, com a minha irmã, minha mãe, enfim, foram três maneiras principais de alfabetização.

Salto – E na escola, que memórias você tem da sua professora? Como era a relação dela com os alunos? De que maneira ela ensinava a ler e a escrever? Você tem lembrança da professora e da forma como ela trabalhava?

Joel Rufino – Tenho. Eu tenho lembrança de algumas professoras. Com tanto tempo passado, é difícil precisar essa lembrança. Pode ser que eu seja injusto com alguma delas. Mas havia uma atriz de rádio-novela, chamada Selma, que tinha uma pequena escolinha em casa. Eu acho, na minha memória, foi ela quem deu o passo decisivo para mim. Já nem me lembro o sobrenome dela. Você vê como a memória acaba sendo injusta também. Selma era o seu primeiro nome. E havia também a Dona Edith, na escola em que minha mãe me matriculou. Eram professoras, típicas de subúrbio. O fato interessante é isso. Eram professoras de subúrbio, muito dedicadas, e que tinham um certo status na vizinhança por conta disso, de serem professoras alfabetizadoras, nem sempre regulares, quer dizer, nem sempre funcionárias públicas, ou contratadas de escolas, mas que na sua própria casa recebiam a criançada da vizinhança para esse exercício de ensinar a ler.

Salto – Então, você quando chegou à escola oficial, você já sabia ler e escrever?

Joel Rufino – Quando eu cheguei à escola – deve ter sido com os meus 7 anos – eu já sabia ler. Mas escrever, obviamente escrevia muito mal. Aprendi a ler, como acho que acontece com todo mundo, antes de aprender a escrever.

Salto – E na sua casa? Havia o hábito de se contar histórias?

Joel Rufino – É, eu estou convencido de que se aprende a ler antes de se aprender a ler. É essa curiosidade pelo mundo, para ler o mundo que se põe na criança. A gente primeiro aprende a ler o mundo, depois a ler o livro. Então, essa vontade de ler o mundo me foi incutida em casa, pela minha avó, basicamente; também aí tenho medo de ser injusto, mas, claro, minha mãe e minha irmã desempenharam o papel também, mas minha avó, basicamente, que era minha grande admiração, pela memória impressionante que ela tinha, de histórias populares, histórias que a gente chama de folclóricas, histórias de Lampião, e assim por diante. E na igreja. Na igreja também foi importante. Aquele ambiente de escola dominical, de contar para as crianças histórias da Bíblia, fazer as crianças representarem personagens da Bíblia, mesmo antes de elas saberem ler perfeitamente, isso tudo me leva à conclusão que eu tirei no começo: você aprende a ler antes de aprender a ler.

Salto – Que críticas se pode fazer, a partir da nossa multiplicidade cultural, dos nossos métodos de alfabetização?

Joel Rufino – Eu acho que, começando a pensar desde o princípio, que o melhor método de alfabetizar é pegar na mão da criança... Sentar a criança no colo, e pegar na mão para ela ir escrevendo junto. É o contato pessoal, é o carinho físico, o melhor método para alfabetizar qualquer criança. A atenção que se dá a ela, o estímulo que se põe na criança para ela ler o mundo, antes de ler o livro, acho que esse é o melhor método. É um método, digamos, sensual. Não no sentido erótico. Sensual no sentido de que depende dos sentidos. Muito bem, as culturas sensualistas ficaram de fora na nossa pedagogia. Eu acho que aí é que está o X do problema. As culturas negras, as culturas ditas indígenas, as culturas caboclas, sertanejas, elas são sensualistas, essencialmente. E os nossos métodos de alfabetização, tradicionais, da escola pública, do ensino público, não incorporaram essa experiência de sensualidade dessas culturas. Portanto, isso deve ter sido, ninguém pode ter certeza, uma dificuldade, um obstáculo à alfabetização melhor das nossas crianças em geral. Não se pode ter certeza disso, porque, enfim (...). Mas, de qualquer jeito, esses métodos pedagógicos que aí estão desconhecem as culturas sensualistas, que compõem o universo brasileiro. E isso deve ter redundado em algum prejuízo, em algum atraso.

Salto – A seu ver, quais são os entraves na história da alfabetização, no Brasil?

Joel Rufino – Bom, eu acho que o que tem dificultado a alfabetização no Brasil é uma razão econômico-social. É o fato de que grandes parcelas da população estão excluídas da escola. Negros, brancos, mestiços, enfim, estando excluídos, a alfabetização vai se ressentir. Agora, em segundo lugar, se pode pensar naquilo que falávamos antes: que a não incorporação à pedagogia brasileira geral, dos elementos principais dos contextos culturais que temos, resultou em algum prejuízo. Então, se poderia dizer que, em segundo lugar, as crianças negras têm dificuldades de alfabetização, de aprendizado na escola, porque nada que é do seu mundo foi incorporado pela escola. Da mesma forma se poderia repetir o raciocínio para a população indígena, para as crianças indígenas.

Salto – Nesse contexto, como você pensa a relação entre exclusão e alfabetização?

Joel Rufino – A idéia de exclusão é uma idéia perigosa. É uma faca de dois gumes. Ao mesmo tempo em que serve para denunciar a exploração social, a pobreza etc. ela dá a impressão de que há excluídos na sociedade. Essa idéia é falsa. Não há excluídos. Por exemplo: as crianças que são deixadas no analfabetismo, na falta de livro, falta de educação formal, essas crianças não estão excluídas da sociedade. Elas estão excluídas da escola. Mas elas estão incluídas, por exemplo, pela linguagem televisiva. E embora isso não seja uma conspiração, não seja um maquiavelismo, o fato é que a televisão comercial, a televisão de massa no Brasil, se beneficia do analfabetismo, da baixa escolaridade das crianças. Então você vê: a escola deixa de fora, mas a televisão põe para dentro. É nesse sentido que é perigoso falar em exclusão. As crianças não estão excluídas; só que elas estão incluídas de uma maneira que nós, do nosso ponto de vista de educadores, achamos ruim. Mas elas estão incluídas. A criança que passa a manhã inteira vendo esses programas dessas animadoras, enfim, vendo esses desenhos importados, enlatados, elas estão incluídas. É assim que o sistema capitalista inclui todo o mundo.

Já foi tempo em que o sistema capitalista necessitava alfabetizar todas as crianças. Dar leitura para todas as crianças. Esse tempo já passou, a história se desenvolveu, mudou, avançou, o sistema capitalista passou a um outro estágio. Nesse outro estágio, simplesmente, ela não precisa de criança na escola. Se precisasse, ela punha a criança na escola.

Sumariamente, o sistema capitalista se desenvolve por estágios. O estágio atual pode ser chamado de vídeo-capitalismo. É um nome que se usa bastante entre os especialistas. Querendo designar que onde os capitalistas hoje lucram, predominantemente, é no espetáculo. É quando as coisas, as pessoas, os objetos, os fatos, se espetacularizam, viram espetáculo. Muito bem, isso foi um golpe muito forte na cultura letrada – no livro, na leitura, na alfabetização, obviamente – hoje, por exemplo, a alfabetização parece ser pior do que antes. De qualidade pior, a quantidade de alfabetização hoje é maior. Mas a qualidade hoje é muito duvidosa. As pessoas geralmente aprendem a ler para desprezarem a leitura. Para melhor desprezarem a leitura. Pois bem, se pode dizer que antes da sociedade do espetáculo, vamos dizer, no período que vai até, mais ou menos, 1930, 60 anos atrás, o sistema necessitava de incorporar os trabalhadores, através das letras, através da cultura universal: saber ler, escrever e contar. Para você ser incorporado, e para os capitalistas terem empregados, mão-de-obra à sua disposição, era preciso que o sujeito, pelo menos, aprendesse a ler, escrever e contar. Mas hoje, quem diria que é preciso saber ler, escrever e contar, para ser incorporado? Para ser incorporado nas faixas altas dos empregos, da mão-de-obra, sim. Mas a maior parte das pessoas não precisa saber ler, escrever e contar para ser incorporado. Ou é incorporada como mão-de-obra completamente desqualificada, ou é incorporada como desempregada (...). O desemprego é uma forma de incorporação. As pessoas que nunca vão conseguir emprego estão incorporadas ao sistema dessa maneira, como desempregadas. Os meninos, por exemplo, que traficam, que vendem maconha, cocaína, etc. para os traficantes, estão incorporados também. Estão incorporados como vendedores de cocaína e de maconha. E precisa saber ler e escrever para isso? De forma nenhuma. Não é preciso, não há necessidade de ler, escrever e contar. É nesse sentido que a alfabetização recebeu um golpe muito forte. A cultura letrada, para generalizar, não fala apenas da alfabetização, a cultura letrada, de que o Ocidente tanto se orgulhou, nós tanto nos orgulhamos durante toda a nossa vida, recebeu um golpe, talvez fatal. Ninguém precisa mais saber ler, escrever e contar para se incorporar nesse estágio do sistema capitalista. Basta você ser capaz de oferecer algum espetáculo. Porque é aí que o sistema mais ganha. O espetáculo do corpo, por exemplo. Você transforma seu corpo num espetáculo. Você transforma sua sexualidade num espetáculo. Você transforma a sua cultura, o seu grau de informação, ou a sua burrice, em espetáculo. Bom, a televisão está cheia de espetáculo da burrice. Então, o espetáculo é que interessa.

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