quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Eduardo Galeano - De pernas para o ar



No seu livro De pernas para o ar você dedica um capítulo inteiro aos meios de comunicação de massas. Queria ouvir a sua avaliação dos meios de comunicação de massas dentro do sistema de poder vigente e como contribuem para transmitir essa cultura de impotência.

Sim, transmitindo uma cultura da impotência que tem numa das suas bases essa cultura de perpetuação, essa ideia de que você tem direito a existir enquanto você aceite que a sua existência será uma obediência. Se você pretende existir com um projecto, a situação fica mais difícil. Os meios de comunicação ao serviço dessa visão conformista da história, do mundo, da vida, estão agora mais concentrados do que nunca. Os espaços da imprensa independente, da expressão independente, têm­‑se reduzido muito. Com uma excepção, que eu acho muito importante, que é a internet. A internet realmente abriu espaços de enorme difusão a vozes que agora encontram possibilidades de difusão incríveis. E isso é uma boa notícia que a realidade deu contra todos os prognósticos, pois a internet nasceu como uma operação militar do Pentágono para planificar as suas operações. Ou seja, foi uma coisa nascida da morte, do extermínio do outro, pois a guerra é isso. E depois tornou­‑se num espaço que contém um pouco de tudo, que não é uma coisa só, mas que inclui muitas expressões, da afirmação da boa energia da vida, da energia multiplicadora do melhor da vida, a liberdade, a vontade de justiça.

Você acabou de falar da internet, inicialmente usada pelo Pentágono e depois subvertida. Recentemente em Paris as periferias levantaram­‑se e usaram a gasolina para acender os coquetéis molotov, ou seja, usando o mesmo combustível do sistema. Queria saber se você acredita que o sistema tem esse carácter autofágico e se isso poderia ser mais explorado.

Não sei. Acho que as contradições do sistema capitalista são reais e não produto de uma mente assim doente, febril, de algum terrorista conspirador, inimigo da humanidade. Essas contradições têm como consequência uma marginalização social crescente. E essa marginalização vai continuar a produzir acontecimentos, que às vezes são controláveis, outras nem tanto, e que podem gerar alternativa. Vamos ver o que acontece, pois ninguém sabe. Esses movimentos, como esses do banlieu, de Paris, que segundo um amigo meu, não sei se é verdade, ban vem de banir, que significa castigar, proibir, expulsar, jogar fora. E lieu significa lugar. Lugar de expulsão, lugar de castigo. A ideia é muito interessante, porque é exactamente isso que está a acontecer. Mas por enquanto são explosões de puro desespero e não têm nenhuma perspectiva de futuro. Tanto é de desespero que muitos dos carros queimados são carros dos próprios queimadores. São filhos queimando o carro do pai que é um operário pobre, que conseguiu comprar um carro pobre, que está a ser queimado pelos seus. É uma agressão contra um sistema segregacionista, humilhante, mas também tem muito de algo auto­‑destrutivo, suicida, como acontece nos movimentos que são de puro desespero. A esperança que a gente tem é que isso possa, depois, desembocar em outras coisas, como muitas vezes acontece na América Latina, que começa com uma raiva que explode cegamente e depois encontra caminhos para se converter em algo bastante melhor. Quer dizer, abrindo perspectivas. Se não fica só como uma testemunha de que essa é uma situação insuportável e que até agora o sistema vinha dissimulando a insuportabilidade da situação. E essa reacção tão expressiva, tão curiosa, foi uma reacção contra o desprezo quotidiano, multiplicada hoje porque as pessoas que têm alguma coisa a ver com o mundo árabe são os novos demónios, terroristas. E o mundo do bem necessita ter demónios para se justificar. Esse mundo gasta hoje 2 mil e 300 milhões de dólares por dia com a guerra! 2,3 mil milhões de dólares por dia na fabricação da morte, na indústria da morte! É até difícil imaginar como é possível. Bom, para que isso seja possível, que é um escândalo, você precisa ter demónios, é a luta contra o mal. Enquanto isso você tem tanta criancinha morrendo de fome, morrendo de doenças curáveis. É um escândalo! Esse mundo é escandalosamente injusto! Mas aí você precisa de demónios.

Por exemplo?

Hugo Chávez é um demónio. Porquê? Porque alfabetizou 2 milhões de venezuelanos, que não sabiam ler e escrever, mas vivem num país que tem a riqueza natural mais importante do mundo que é o petróleo. Eu morei nesse país alguns anos e conheci muito bem o que era. Chamam de “A Venezuela saudita” por causa do petróleo. Tinham 2 milhões de crianças que não podiam ir às escolas porque não tinham documentos. Aí chega um governo, esse governo diabólico, demoníaco, que faz coisas elementares, como dizer “As crianças devem ser aceites nas escolas com ou sem documentos”. Aí cai o mundo: isso é a prova de que Chávez é um malvado­‑malvadíssimo. Já que tem essa riqueza, e graças à guerra do Iraque o petróleo tem cotações muito altas, ele quer aproveitar isso com fins solidários. Ele quer ajudar os outros países sul-americanos, principalmente Cuba. Cuba manda médicos, ele paga com petróleo. Mas esses médicos também foram outra fonte de escândalos. Estão a dizer que os médicos venezuelanos estavam furiosos pela presença desses intrusos trabalhando nesses bairros pobres. Na época em que eu morava lá como correspondente da Prensa Latina, nunca vi um médico. Agora sim há médicos. A presença dos médicos cubanos é outra evidência de que Chávez está na Terra de visita, porque ele pertence ao inferno. Então, quando se lê as notícias, há que traduzir tudo. A demonização tem essa origem, para justificar a diabólica máquina da morte.

Como está a questão da água no mundo?

No dia em que a Frente Ampla ganhou as eleições no Uruguai, final de Outubro de 2004, foi realizado o Plebiscito das Águas. Foi o primeiro e último na história universal. Primeira e única vez – não foi contagioso, infelizmente – que o povo foi consultado para ver o que fazer com a água, pois agora temos que recuperar aquela concepção islâmica de que a água é sagrada. Todo mundo fala, e é verdade, que a água será o petróleo de amanhã. Então, os países que têm água são obrigados a defender a água que têm e também a democratizá­‑la no uso que se faz dela. Então fez­‑se esse plebiscito para saber se a água seria um direito de todos ou se seria um privilégio de empresas privadas. Cerca de 65% votaram pela água como propriedade pública, colectiva. O Uruguai foi o único país que fez um plebiscito. E a Bolívia havia conseguido o milagre da desprivatização da água, com uma série de insurreições colectivas. Lá a privatização chegou a níveis surrealistas. Não se pode acreditar. Em Cochabamba havia sido privatizada a chuva. As águas da chuva não podiam ser armazenadas. Os camponeses não podiam recolher as águas da chuva sem pagar às empresas concessionárias. É a empresa preferida de Bush no Iraque, que depois foi recompensada no Iraque, como é o nome mesmo?

Bechtel.

Bechtel. E depois, em La Paz, houve um processo parecido: a empresa Suez-Lyonnaise, que é francesa, não conseguia explicar porque é que a parte mais alta da cidade, que é a parte mais pobre, tinha que pagar a maior factura, que era cinco ou seis vezes maior do que quando a água era nacional. Subitamente o preço da água disparou e chamaram os especialistas franceses juntamente com o governo boliviano para estudar o assunto, para saber qual a explicação para este fenómeno sobrenatural: o pessoal não pagava. Resposta francesa: “os bolivianos não têm hábitos de higiene”. Logo os franceses que descobriram o duche há quinze minutos. Não se pode acreditar nisso seriamente. Aí o Uruguai deu uma resposta diferente, tentamos dar. Recolher assinaturas da população para chamar o plebiscito e a opção pela noção pública da água triunfou. Mas não houve a menor repercussão mundial. Você fez uma pergunta ligada à mídia, eu queria falar disso, depois esqueci. É um caso típico, pois é uma questão fundamental, que acontece num país que não é fundamental, que é um país marginal, pequeno, de quem ninguém fala jamais, não tem a menor repercussão, não existe. Eu fui lewinkisado. Tomava o pequeno­­‑almoço com Monica Lewinsky, almoçava com Monica Lewinsky, jantava com Monica Lewinsky. Aquela linguista da Casa Branca virou a estrela da mídia mundial. E o Plebiscito da Água, que é uma coisa fundamental na vida de todo o mundo, ninguém sabe que isso aconteceu. Isso é um bom retrato da mídia. Não houve nenhuma possibilidade de contágio porque não houve nenhuma repercussão. Não se trata de alguma mente malvada que escolhe o que vai divulgar, mas o facto é que a informação privilegiada é a que vem dos países dominantes, e as que dizem respeito aos países dominantes também. E o que acontece nas áreas marginais, no Uruguai por exemplo, é que não existem, somos invisíveis.

Recentemente a Assembleia Geral da ONU votou contra o embargo económico a Cuba, mas o embargo continua.

Sim, porque a Assembleia Geral faz recomendações, não tem sentido prático. São apenas soluções simbólicas, porque não são resoluções, são recomendações ao poder exercido por um grupinho de países, que são, como se dizia antes, o grande escândalo do mundo. Agora as Nações Unidas estão a abençoar a guerra do Iraque, pois estão a promover os processos eleitorais, e a nova Constituição, sob o patrocínio das Nações Unidas, quando todo o mundo sabe que um país ocupado por potências estrangeiras não pode ter eleições livres. Para mim está claríssimo que o mundo hoje não é democrático, está a ser dirigido por alguns organismos internacionais e são estes que decidem. Há um supergoverno que governa os governos. Por exemplo: o Banco Mundial decidiu que em 16 países a água deve ser propriedade privada de empresas. Esses 16 países foram obrigados a aceitar a privatização da água. O FMI decide o ritmo das chuvas, a intensidade do amor dos amantes. Quantos países dirigem o FMI? Cinco, e dentro destes, sobretudo um. O Banco Mundial é mais democrático: são oito países. Por isso o nome “Mundial”. Quem decide as coisas dentro das Nações Unidas? Na Assembleia Geral estão todos, mas estes só formulam recomendações, quem toma decisões é o Conselho de Segurança onde cinco países têm direito a veto. Esses cinco países que prezam pela paz no mundo são os cinco principais produtores de armas. Ou seja: os que lucram com a tragédia humana são os anjos guardiões da paz mundial. Enquanto o mundo não for capaz de mudar essa estrutura de poder não será democrático. E tampouco haverá paz, pois se as guerras necessitam de armas, as armas também necessitam de guerras.
28 de dezembro de 2005 - Portugal
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* Eduardo Galeano é jornalista e escritor uruguaio, autor de As veias abertas da América Latina, entre outros.
http://www.infoalternativa.org/cultura/cultura011.htm

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