domingo, 26 de outubro de 2008

Boaventura Santos - Ciência e cidadania: um desafio para a educação

Salto Para o Futuro
Boaventura Santos

Formação: Sociólogo. É professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal). Seu pensamento tem contribuído para que possamos refletir sobre o papel da ciência e do cientista em relação à sociedade.

Obras: Um Discurso sobre as Ciências. 7ª ed, Porto: Afrontamento: 1995; Introdução a Uma Ciência Pós- Moderna. 3ª ed., Porto: Afrontamento 1993.

A sociedade tem que melhorar muito em termos de se tornar uma sociedade mais inclusiva, uma sociedade que discrimine menos, uma sociedade mais justa, mais solidária, e é exatamente ao serviço dessas tarefas que eu ponho o cientista. O cientista é, acima de tudo, alguém que contribui para a cidadania ativa e crítica, que vai levar a cabo a transformação social nesse sentido. O cientista não é um demiurgo, o cientista não é um herói, o cientista é um cidadão em que nós confiamos particularmente, pela natureza confiável do conhecimento que transporta.


Salto – Qual é o papel do cientista na sociedade moderna?

Boaventura – Bem, fundamentalmente para, responder a essa questão, eu tenho que saber que sociedade contemporânea a gente quer ter hoje e quer ter amanhã. Portanto, qual é o papel que o cientista e a ciência podem ter naqueles objetivos que nós almejamos para nossa sociedade. Eu por mim, penso que a sociedade tem que melhorar muito em termos de se tornar uma sociedade mais inclusiva, uma sociedade que discrimine menos, uma sociedade mais justa, mais solidária, e é exatamente a serviço dessas tarefas, que eu ponho o cientista. O cientista é, acima de tudo, alguém que contribui para a cidadania ativa e crítica, que vai levar a cabo a transformação social nesse sentido. O cientista não é um demiurgo, o cientista não é um herói, o cientista é um cidadão em que nós confiamos particularmente, pela natureza confiável do conhecimento que transporta. E no momento em que ele trai essa confiança, isso é, obviamente, muito mau (ou muito negativo) para a ciência, e para o papel que ela desenvolve na nossa sociedade. Portanto, o papel dela (da ciência) é exatamente esse, contribuir para as tarefas de transformação progressista da sociedade.

Salto: Em sua opinião, quando a formação do cientista deve começar?
Boaventura – Nós vivemos hoje com a idéia de que caminhamos para a sociedade do conhecimento. Essa idéia é uma idéia que ainda hoje divide muito o Norte e o Sul. Porque eu não vejo sociedades do conhecimento no Sul, vejo-as no Norte. Penso, no entanto, que é uma aspiração de todo mundo, que efetivamente o conhecimento passe a ser mais constitutivo da sociedade. Se ele passa a ser mais constitutivo da sociedade, a sociedade tem que ser mais constitutiva da ciência. Ou seja, a superação entre a ciência e a sociedade vai, de alguma maneira, diminuir, se nós quisermos fazer uma sociedade do conhecimento. E se é assim, é evidente que a ciência, ao ser constitutiva, ela tem que ser uma parte da nossa sociabilidade, desde muito cedo. Não é apenas nas escolas e no ensino formal. É também em casa, é na família, é na rua, é nos bairros, que ela tem que ter lugar. E são os cidadãos, é uma forma daquilo que nós chamamos, hoje, aprendizagem ao longo da vida. São os cidadãos hoje que exigem, cada vez mais, a participação da ciência, na resolução dos seus problemas. Não daqueles problemas que dão muitos lucros às multinacionais como, por exemplo, os de biotecnologia, mas aqueles problemas que podem resolver questões muito concretas do nosso cotidiano, que têm a ver com a nossa alimentação, que têm a ver com doenças que, ainda hoje, matam tanta gente no mundo, como a malária. Que têm a ver com o HIV, SIDA, ou AIDS, como vocês dizem no Brasil, tudo isto, penso eu, é que é a inserção, é para todas estas tarefas que nós temos que realizar.

Salto – Como é que a escola pode colaborar, ou ter um papel importante, na formação de uma postura investigativa do aluno?

Boaventura – A escola tem um papel absolutamente fundamental. A questão é que dêem condições para fazer. Nós sabemos que, em muitos países, o ensino da ciência é um ensino teórico, porque não existe nem tecnologia, nem laboratórios, nem instrumentos que possam ajudar à formação, digamos concreta, prática, experimental, do pensamento científico. Penso, aliás, que temos uma concessão nas escolas, por vezes redutora, do que é que pode ser um instrumento científico. Pode ser uma bola, pode ser um simples cronômetro, pode ser uma vara – com ela podemos definir, por exemplo, a quantidade de água num rio – e isso pode ser uma forma de reencantamento das ciências junto aos estudantes, levando para as crianças não aquelas experiências que dão sempre certo, em que o professor nunca arrisca nada. Nós precisamos é que os nossos professores, enquanto professores de ciência, se disponham a assumir riscos. “Vamos fazer uma experiência, provavelmente fora da escola. Vamos analisar isso: vai dar certo ou não vai dar certo?” Porque é assim que sucede na ciência. Normalmente nós representamos coisas que têm um sucesso garantido. E criamos aquela idéia no estudante de que a ciência é um milagre, que está muito longe deles. Ora bem, não é um prodígio, é algo que eles têm que fazer, com todas as dificuldades que os cientistas também têm.

Salto – Qual é a importância de Paulo Freire para a educação?

Boaventura – Bom, Paulo Freire continua a ser, hoje, uma referência mundial, na revolução que ele fez na pedagogia. E infelizmente, no Brasil, criou-se toda uma tecnologia nas ciências, nas faculdades de educação, que pôs de parte todo o trabalho do Paulo Freire. É um trabalho hoje, muito pouco conhecido das novas gerações de educadores no Brasil, isso é lamentável. E por vezes usam essa idéia de que Paulo Freire era bom para as questões dos analfabetos, para trabalhar com camponeses, mas não para a sociedade tecnológica que o Brasil é hoje é. Primeiro: há muito camponês ainda, no Brasil, há muita gente analfabeta, há muita gente pobre, exatamente aqueles para quem ele mostrou toda solidariedade. Há muita discriminação racial no Brasil, e Paulo Freire teve uma tecnologia que ajudava, exatamente, a trazer todas essas populações a um acesso à escolaridade. E é isso que eu lamento, que esta pedagogia não seja tão conhecida hoje no Brasil, e o meu apelo aos professores é que leiam Paulo Freire, e vejam a maravilha desse homem, que já há alguns anos teve uma visão do futuro que eu considero quase profética, em relação às nossas necessidades.

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