domingo, 26 de outubro de 2008

Bruna Franchetto - A escola como um espaço para o fortalecimento das línguas indígenas: um desafio

Salto Para o Futuro
Bruna Franchetto


Formação: Docente do 3º grau indígena da Unemat, na área de Arte e Literatura, especificamente na área de línguas. Professora de Lingüística, tanto para Língua Portuguesa como também, sobretudo, e essencialmente, para o estudo das línguas indígenas.

A educação escolar tem destruído as línguas indígenas. Tem sido um fator fundamental de aniquilamento das línguas indígenas. Desde a época em que os portugueses chegaram no Brasil. A tentativa que se acaba fazendo é que a escola não seja mais instrumento de destruição das línguas indígenas, nem das culturas desses povos.

Salto – Qual é o sentido da escola para os povos indígenas?

Bruna Franchetto – Bom, o sentido da escola para os povos indígenas, hoje: temos que contextualizar o momento em que estamos falando. Porque 50 anos atrás, quer dizer, três séculos atrás, a escola tinha um sentido bastante diferente do que há 100 anos, ou há 50 anos, ou há 20, 10, ou 5 e hoje. Quer dizer, essa representação da escola, por parte dos povos indígenas, é uma representação histórica, é um produto de uma história, então ela muda, com o passar do tempo. Muda acompanhando a história e as mudanças ao longo da história dos próprios povos indígenas. E muda também de povo para povo. Muda de etnia para etnia. Não muda de sociedade para sociedade, de situação para situação. É possível dizer, de uma maneira geral, o que a escola representa para os povos indígenas, mas com isso corremos o risco de sermos muito gerais demais, e muito genéricos, e dizer pouco ou nada a respeito. O que deveríamos, na verdade, conhecer é o que para cada povo, para cada sociedade indígena, a escola representa. Descobriremos, dessa maneira, que há variadas e diversas representações sobre a escola indígena. Mas se nós quisermos ficar numa consideração geral, genérica, a escola significa o ingresso na sociedade envolvente, na sociedade dominante, na sociedade dos não-indígenas, ou dos brancos, como quisermos chamá-la. O ingresso para a aquisição de conhecimentos, para a aquisição de instrumentos de análise deste outro mundo, do mundo que está ao redor aí fora das aldeias, das áreas indígenas. Ou às vezes, até dentro das aldeias, dentro das áreas indígenas. E que é um mundo que precisa ser decifrado, para poder ser apropriado, para podermos responder a ele de uma maneira adequada. Quando eu digo adequada, significa a partir de uma relação menos assimétrica, menos hierarquizada, menos subordinada e superordenada, ou de superior e inferior, numa relação possivelmente mais equilibrada, mais igualitária. Para os povos indígenas, hoje, a escola é vista como um espaço e um tempo para adquirir conhecimentos necessários sobre o mundo dos brancos, e instrumentos necessários para com ele lidar.

Salto – Por que a escola indígena deve ou precisa ser bilíngüe?

Bruna Franchetto – A escola indígena deveria ser, e em muitas situações já é, em muitas outras não é ainda, o lugar onde a alfabetização seja feita na língua materna, e a língua materna é indígena. Essa alfabetização deve ser feita na língua indígena, e não alfabetizar crianças que não falam o português em português, isso é uma aberração. Numa sociedade em que a escola está inserida, em que língua dominante, a língua da socialização primária é a língua indígena, é essencial que essa língua seja a língua usada no processo de ensino-aprendizagem na escola.

Quando a gente fala de bilíngüe, é porque a escola também é o lugar onde vai ter que ser aprendida a Língua Portuguesa. Na maior parte dos casos, essa língua é uma segunda língua, não é a primeira língua. A escola, mais cedo ou mais tarde, vai ter que introduzir o Português, além da língua indígena. Mas, de uma maneira equilibrada. E jamais fazendo com que o Português assuma o lugar da língua indígena. A língua indígena não é a ponte transitória para passar da alfabetização para o Português. O ideal é manter a língua materna e a Língua Portuguesa, em pé de igualdade, ao longo de todo o processo de educação escolar. Esse é o desafio. É um desafio porque raramente isso acontece, assim como deveria acontecer.

E quando a gente fala bilíngüe, também não estamos muito corretos, na medida em que há situações em que a escola deveria ser trilíngüe, quadrilingüe, porque há situações em que, numa mesma aldeia, numa mesma área indígena, tem várias línguas nativas, faladas, não apenas uma. Então, a questão não é Língua Indígena e Português, mas às vezes Línguas Indígenas – olha o plural – e Português. Mas é fundamental. A educação escolar tem destruído as línguas indígenas. Tem sido um fator fundamental de aniquilamento das línguas indígenas. Desde a época em que os portugueses chegaram no Brasil. A tentativa que se acaba fazendo é que a escola não seja mais instrumento de destruição das línguas indígenas, nem das culturas desses povos.

Salto – Na perspectiva de uma educadora que trabalha com terceiro grau também, como formar professores índios para escolas indígenas?

Bruna Franchetto – Não há receitas. E não há fórmulas mágicas prontas. Estamos no Brasil assistindo a várias e diversificadas experimentações. Eu acho é que nós temos que continuar experimentando possibilidades e alternativas. Não há uma receita única. Não há uma verdadeira e adequada maneira de formar professores indígenas. Mas, se quisermos assim, rapidamente, dar uma pincelada do que deveria ser a formação de um professor: Bom, essa é muito mais sofisticada e complexa do que a formação de professores que não são indígenas. Demanda muito mais de nós, formadores de professores indígenas, nós, professores de professores, nós temos que ter uma competência muito maior do que quando trabalhamos como professores de terceiro grau não-indígena. Eu acho que os professores indígenas devem ser adequadamente formados, nas áreas normais dos cursos de magistério, e no caso do terceiro grau, nas disciplinas que os cursos de magistério e de terceiro grau, no geral, oferecem para índios e não-índios. Não pode ser uma formação inferior, pior, qualitativamente inferior. No mínimo, tem que ser da mesma qualidade do que aquela que os não-índios recebem e, além disso, eles têm que ter o espaço e o tempo para o estudo, a pesquisa e a conscientização das línguas, de suas maneiras de ser, de seus conhecimentos variados em várias áreas. Essa formação deve permitir que esses conhecimentos, digamos autóctones, alternativos, possam se articular de uma maneira criativa aos conhecimentos escolares gerais. Não há fórmulas para isso. Nós temos que continuamente estar experimentando maneiras de fazer isso, e nunca cair na armadilha de achar que encontramos a solução.

Salto – E uma última pergunta, sobre currículo escolar. Você que trabalha com a área de lingüística, com a área de línguas de um modo geral, que idéia de currículo escolar você sugeriria para que uma escola de uma determinada etnia implemente? Que currículo escolar deve ser esse, visto que se trata de uma escola indígena?

Bruna Franchetto – Para minha área especificamente? Bom, eu posso falar com relação à questão lingüística, à questão da política lingüística, porque a escola indígena é um elemento fundamental para a formação de uma política lingüística, do próprio Estado. No nível do Estado, no nível regional, eu acho que os currículos têm que incluir o estudo científico das línguas, todas – português, inglês, espanhol, xavante, kayapó, machineri, todas as línguas. Elas têm que ser abordadas no ponto de vista científico. Eu sou uma partidária da Lingüística como disciplina, da Lingüística mesmo, stricto sensu, como disciplina na formação dos professores, e no terceiro grau indígena. Assim como no terceiro grau em geral. Nós não temos isso na graduação das nossas Universidades, das nossas grandes universidades... Temos Lingüística, mas ainda muito pouco, muito pobre, muito pouco desenvolvida. Nós temos mais na pós-graduação. Então, o que eu vejo com relação aos meus alunos, aqui do terceiro grau, é que no momento em que eles começam realmente a ter instrumentos de conhecimento, de análise das suas próprias línguas, há um salto qualitativo, em termos de conscientização, do valor, da beleza, da riqueza dessas línguas, e isso tem efeitos de grande alcance, e políticos.

(Entrevista concedida em 14 julho de 2004.)

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