quarta-feira, 22 de outubro de 2008

A guerreira do clima

Entrevista: Connie Hedegaard
A difícil missão da ministra dinamarquesa é obter o consenso internacional em torno de um acordo para conter o aquecimento global.

A dinamarquesa Connie Hedegaard, de 48 anos, tem dois filhos e 1 712 amigos listados em sua página no site de relacionamento Facebook. Ministra de Clima e Energia de seu país, ela precisa fazer amigos e influenciar o máximo possível de pessoas para levar adiante uma missão delicada e exaustiva: a de convencer governos de todos os continentes, ricos e pobres, a chegar a um compromisso para conter o aquecimento global. A ministra prepara o terreno para a Conferência sobre Mudança Climática das Nações Unidas, que será realizada na capital dinamarquesa em dezembro do próximo ano. Essa é a data-limite para a assinatura de um tratado para substituir o Protocolo de Kioto, que estipulou metas de redução dos gases do efeito estufa até 2012. Em visita ao Brasil, onde se encontrou com representantes do governo e visitou uma usina de etanol, Hedegaard concedeu a seguinte entrevista a VEJA.

O mais conhecido dos céticos, o dinamarquês Bjorn Lomborg, considera exagerada a preocupação com o aquecimento global. Qual a posição do governo da Dinamarca? Lomborg tem o direito de pensar o que quiser. Note que ele próprio admite que está ocorrendo uma mudança climática, mas diz que deveríamos esperar uns cinqüenta anos para começar a lidar com esse fenômeno. A posição da Dinamarca é outra. Confiamos nas estimativas do Painel Intergovernamental para Mudança Climática (IPCC), da ONU, segundo as quais em 2050 já será tarde demais para fazer qualquer coisa. Temos de agir agora. Se não o fizermos, o aquecimento global vai se acelerar de tal maneira que se tornará muito caro revertê-lo. Caso isso ocorra, a humanidade não será capaz de manter o padrão de vida atual. Precisamos tomar uma atitude com urgência.

Qual é o principal indício do aquecimento global? Em 2004, quando fui nomeada ministra do Meio Ambiente, recebi a informação de que em trinta anos o derretimento do gelo do Ártico iria permitir a navegação entre o Mar do Norte e o Oceano Pacífico. Decorreram apenas quatro anos e, no último mês, a passagem já ficou livre do gelo. Ou seja, a abertura do caminho ocorreu muito antes do previsto. Esse é um claro exemplo de que agir agora faz muita diferença. Os países desenvolvidos precisam fazer o maior esforço para reduzir as emissões dos gases causadores do aquecimento global. Mas as grandes economias emergentes, como a China, a Índia e o Brasil, também têm de contribuir.

A senhora assumiu no ano passado o Ministério de Clima e Energia. Qual a missão dessa pasta? Vamos sediar em Copenhague, em dezembro de 2009, a Conferência sobre Mudança Climática das Nações Unidas. No encontro de Bali, na Indonésia, no ano passado, ficou decidido que será preciso chegar a um acordo na conferência de Copenhague sobre o que virá depois do Protocolo de Kioto. Há muito que fazer para que Copenhague tenha sucesso. Uma das funções do novo ministério é conduzir uma espécie de diplomacia climática. Venho gastando uma quantidade considerável de tempo em viagens ao redor do mundo tentando juntar peças do quebra-cabeça necessário para que se chegue a um grande acordo global no próximo ano. Eu não poderia ser apenas ministra de Clima sem ser responsável também pela eficiência energética do meu país. Clima e energia são hoje temas correlacionados.


Do que depende o sucesso do encontro em Copenhague? Depois do fracasso das negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC), o maior desafio das relações multilaterais passou a ser a concretização de um acordo para combater o aquecimento global. Dois fatores são essenciais para isso. Primeiro, os Estados Unidos precisam aumentar seu envolvimento nessa causa. Creio que isso dependerá do que vai acontecer nas eleições presidenciais americanas. Segundo, como a recessão internacional vai influir no assunto. Nesse quesito, há dois caminhos possíveis. Os países podem decidir que não é o momento certo de se comprometer com metas rigorosas e custosas de redução da poluição. Ou podem fazer o raciocínio oposto: o preço do petróleo está alto, e a solução é tornar-se mais eficiente e independente do ponto de vista energético. O Protocolo de Kioto fracassou? Criticar hoje o que foi feito anos atrás por outros governos seria muito fácil. Naquele momento foi o melhor acordo possível. Claro que, já em 1997, todos sabiam da deficiência decorrente do fato de os Estados Unidos não terem assinado o acordo. Desde então, as emissões da União Européia começaram a cair, enquanto a poluição americana continua subindo. Isso é uma prova de que algo funcionou no Protocolo de Kioto.


O que a senhora diz para convencer os políticos americanos a aderir aos esforços contra as mudanças climáticas? Estive, em um dos comitês do Senado americano, frente a frente com alguns dos políticos mais contrários à luta contra o aquecimento global. Eu disse a eles que, sendo uma política conservadora, sei que sempre podemos contar com os Estados Unidos quando o mundo se defronta com um grande problema. Foi assim nas duas guerras mundiais, na Guerra Fria e na luta contra o terrorismo. Mas isso não ocorreu nos últimos oito anos quando o assunto foi mudança climática. Para o bem dos interesses dos Estados Unidos, agora é o momento de o país se engajar nessa agenda. É essencial que a nova geração de europeus, latino-americanos e asiáticos veja os Estados Unidos abraçando uma das maiores causas deste início de século.
Barack Obama e John McCain demonstram maior preocupação ambiental em relação ao atual presidente americano, George W. Bush. Com qual dos dois será mais fácil negociar? Acredito que haverá avanços com qualquer um dos dois, apesar de eles quase não falarem em mudança climática. Tanto Obama quanto McCain colocam, em seus discursos, maior foco na independência energética. Nós devemos trabalhar em cima disso. Se eles se engajarem em um acordo internacional para a redução das emissões, pouco importa se o que os levou a isso foi a preocupação econômica ou a ambiental. Dois anos atrás, McCain esteve comigo na Groenlândia e tive a oportunidade de discutir com ele o tema da mudança climática. Sei que McCain tem grande interesse pessoal pelo assunto. Eu tenho falado também com os assessores de Obama. Não há dúvida de que, não importa quem venha a ser o novo presidente dos Estados Unidos, ele fará algo com repercussões positivas sobre o aquecimento global.


A senhora é a favor de recompensar países como o Brasil ou a Indonésia pela redução do desmatamento? Esse é um ponto crucial. Se eu sou um fazendeiro brasileiro e tenho uma propriedade na Amazônia, posso ganhar dinheiro plantando soja, mas não lucro nada mantendo as árvores de pé. Preciso de um incentivo para fazer isso. Da mesma forma, devemos criar, por meio de negociações internacionais, mecanismos de compensação aos países que conseguirem proteger a floresta. O substituto do Protocolo de Kioto deve conter algo assim para atrair a adesão do Brasil, da Rússia, da Malásia e da Indonésia.


O combate ao aquecimento global pode atrapalhar o desenvolvimento dos países pobres? Quando falamos em reduzir o desmatamento e em outras medidas de combate ao aquecimento global, não queremos de forma alguma prejudicar o direito ao crescimento econômico dos países emergentes. Para sustentarmos um bom padrão de vida para a população mundial de 9 bilhões de pessoas, como está previsto para 2050, teremos de ser mais eficientes no uso dos recursos naturais e investir em fontes renováveis de energia. Quinhentos milhões de pessoas vivem sem luz elétrica na Índia. Claro que não podemos pedir ao governo indiano que seu país pare de crescer economicamente. Precisamos descobrir uma maneira de tornar esse crescimento sustentado, com um impacto menor sobre o ambiente.

Que papel o etanol de cana-de-açúcar pode ter na redução de emissões de poluentes no mundo? Ao tornar os biocombustíveis sustentáveis, o Brasil contribuiu com uma tecnologia que pode ajudar bastante na redução da poluição. As emissões brasileiras, no entanto, continuam subindo. Se o crescimento do número de carros rodando nas estradas e ruas brasileiras supera os benefícios do combustível limpo, significa que o país ainda tem alguns desafios a resolver. O etanol é bom, mas é preciso fazer mais e investir em outras fontes de energia. Na Dinamarca, temos um potencial eólico muito bem aproveitado, mas também temos de fazer mais em termos de eficiência energética.

O lobby contra o aumento da adição de etanol à gasolina é bastante influente na União Européia. Será em vão o esforço da diplomacia brasileira para transformar o álcool combustível em uma commodity internacional? Não. A meta da União Européia é que 10% da frota use fontes renováveis de combustível já em 2020. Isso pode ser atingido com etanol, com eletricidade ou com novas tecnologias. Nós queremos que todo o setor de transportes reduza suas emissões. A discussão relacionando a alta no preço dos alimentos com a produção de biocombustível serviu para esclarecer o assunto. Alguns biocombustíveis são sustentáveis, outros não. Os critérios que vamos estabelecer na União Européia não serão em prejuízo do etanol brasileiro, porque este será capaz de atender às exigências. Coisa diferente ocorre na Europa, onde há quem queira fazer etanol de vinho. Gasta-se sete vezes mais combustível fóssil para transformar vinho em etanol, e isso, obviamente, é uma loucura inadmissível. A eficiência do produto, as conseqüências para a natureza, para a água, tudo isso tem de ser estudado. Na Dinamarca, estamos investindo em biocombustíveis de segunda geração. Uma de nossas empresas desenvolveu uma enzima capaz de transformar lixo em biocombustível, uma área em que podemos estabelecer cooperação com o Brasil.


Qual o segredo para a auto-suficiência energética da Dinamarca? Nos anos 70, sofremos muito com as crises do petróleo. O uso de automóveis chegou a ser proibido nos domingos. Nos últimos trinta anos, investimos muito em nossas próprias fontes de energia, muitas delas renováveis. Hoje somos 100% independentes em energia. Em Copenhague, todo o lixo doméstico é incinerado e transformado em aquecimento central para 70 000 residências. O vento responde por 28% de nossa eletricidade. Nossa tecnologia no setor eólico evoluiu tanto que hoje um terço das turbinas de vento do mundo é produzido na Dinamarca. Com tudo isso, nossa economia cresceu bastante, a ponto de termos o pleno emprego no país, mas o consumo de energia permaneceu estável.


Especula-se que o derretimento da capa de gelo que cobre a Groenlândia pode levar a ilha a se tornar independente da Dinamarca. Isso é possível? Essa é uma grande pergunta. A posição oficial da Dinamarca é que a Groenlândia pode ter tanta soberania quanto quiser. O Reino da Dinamarca fará o que for melhor para a ilha. Há, de fato, a possibilidade de encontrar minérios no solo da Groenlândia, conforme o gelo for derretendo. Quanto mais a temperatura do globo aumenta, maior a chance de que se chegue a esses recursos, hoje escondidos sob o gelo. Devido ao derretimento da cobertura gelada, já se consegue até plantar batata na parte sul da Groenlândia. Mas seria preciso plantar muita batata lá para compensar as inundações e a destruição do sustento de milhões de pessoas na Ásia causadas pelo derretimento do gelo. Também na Groenlândia há muita gente preocupada com a velocidade das mudanças climáticas, que estão prejudicando a indústria pesqueira local. Tudo é bastante imprevisível.
http://veja.abril.com.br/081008/entrevista.shtml

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