Alain Touraine
Entrevista realizada na íntegra no programa Roda Viva da TV CULTURA em 22/4/2002
Sociólogo fala das ambiguidades do mundo contemporâneo, onde bilhões de pessoas consomem os mesmos produtos, mas não aprendem a conviver com as diferenças.
Mônica Teixeira: Boa Noite! Ele é mundialmente conhecido por suas análises da sociedade contemporânea e pela visão crítica sobre a modernidade. Questionou o liberalismo e diz que o crescimento depende cada vez mais de fatores sociais como: educação, organização do Estado e distribuição de renda. O Roda Viva entrevista esta noite o sociólogo francês Alain Touraine, um dos pensadores mais influentes da atualidade.[Comentarista]: Professor de história, sociólogo, doutor em letras, Alain Touraine presidiu a Sociedade Francesa de Sociologia nos anos 1960 e foi vice-presidente da Associação Internacional de Sociologia de 1974 a 1978. Doutor honoris causa por universidades de vários países, ele tem levado ao mundo suas idéias de uma nova sociologia, de um novo relacionamento entre nações e pessoas. Nessa viagem a São Paulo, falou da participação dos países emergentes na globalização. Foi uma aula magna, no auditório da TV Cultura, no Teatro Franco Zampari em São Paulo, que marcou a abertura da temporada dos grandes Cursos Cultura de 2002. Em seus livros um tema sempre presente: igualdade e diversidade, uma nova condição de existência, onde cada pessoa é ao mesmo tempo diferente e igual a todas as outras. Pergunta se poderemos viver juntos, uma vez que já vivemos juntos num mundo onde bilhões de pessoas vêem os mesmos programas de televisão, bebem as mesmas bebidas e, para se comunicar de um país ao outro, usam também a mesma língua. Mas trata-se de um mundo cheio de diferenças e que não nos ajuda a compreender nem a conviver com o que é diferente. Crítico do mundo moderno, Alain Touraine lembra que, durante muito tempo, o Ocidente acreditou que a modernidade era o triunfo da razão. Hoje, porém, fica difícil chamar de moderno um mundo que não reconhece as pessoas, sua individualidade e seu acesso ao universal. A saída, na visão de Alain Touraine, seria conceder a cada pessoa o direito de combinar sua identidade cultural e sua participação no universo técnico, o que nos permitiria viver juntos, iguais e diferentes.
Mônica Teixeira: Para entrevistar o sociólogo Alain Touraine, nós convidamos o filósofo José Arthur Giannotti, professor emérito e titular do Departamento de Filosofia da USP, coordenador da área de filosofia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap); o jornalista Luís Nassif, colunista do jornal Folha de S. Paulo; a jornalista Helena Celestino, que trabalhou como correspondente em Paris e agora é a editora-executiva do jornal O Globo no Rio de Janeiro; o sociólogo e cientista político Marco Aurélio Garcia, secretário municipal de Cultura de São Paulo; o jornalista Vicente Adorno, editor internacional do Jornal da Cultura, da TV Cultura de São Paulo; a cientista social Madalena Pedroso Aulicino, da Universidade Anhembi-Morumbi; o jornalista Carlos Haag, editor do Caderno de Cultura do jornal Valor [Econômico]. O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e também para Brasília. E eu queria começar com a seguinte questão: o senhor tem dito que é preciso restabelecer o primado da política e eu li, em uma entrevista que você deu ano passado, uma observação a respeito do desinteresse das pessoas pela política, observação sua na entrevista, quando o senhor diz que, possivelmente, na Holanda, houve um determinado momento em que mais pessoas votaram para a eliminação de uma moradora da casa do Big Brother [ou grande irmão, programa de reality show, baseado no livro de George Orwell, 1984, no qual a sociedade é vigiada por meio de "teletelas"] do que nas eleições que haviam transcorrido no país. Eu gostaria de perguntar ao senhor o seguinte: por que a política, frente a essa espécie de banalização da vida cotidiana, perdeu espaço? O que aconteceu? O sucesso desses programas nos diz o que sobre o mundo de hoje?
Alain Touraine: É difícil responder a essa pergunta de uma maneira banal... Pode-se respondê-la de forma banal, o que muita gente faz, o que muita gente fez nos anos 1990. Eu não vejo diferença entre a direita e a esquerda. É o pensamento único como se dizia. É a dominação da economia mundial. Há algo de verdadeiro nisso, mas é muito vago e geral. Acredito que o que vivemos... Precisarei de umas quatro ou cinco frases. O que vivemos é algo muito mais geral e profundo. O que vivemos é o desaparecimento de todas as categorias sociais, políticas, de todas as linguagens, de todos os discursos, de todas as instruções que nos serviam para dar formas a nossa esperança. Somos pessoas profundamente dessocializadas. Até eu já fiz, talvez paradoxalmente, o elogio da dessocialização. Mas sei muito bem que o preço é extremamente alto. Neste momento, diria que não é por causa dos partidos políticos, diria que nos tornamos quase tão indiferentes às lutas políticas como éramos às lutas entre os deuses orientais no início do cristianismo – [Deusa] Mitra e outros deuses e isso não nos interessava, era um mundo estranho. A questão é saber o que substitui tudo isso. Há pessoas que dizem que hoje só existe um critério: o prazer, a utilidade, os interesses. Somos pessoas laicizadas, secularizadas, que não se interessam por mais nada, além do interesse [curiosidade]; nos transformamos, por assim dizer, em ingleses do século XVIII. Mas não acredito absolutamente nisso. O que me interessava é ver os valores políticos substituídos por outros. Vocês se lembram de uma frase célebre de um velho amigo, Jean-François Lyottard [(1924-1998) filósofo. Um dos fundadores do pensamento pós-moderno. Autor de A condição pós-moderna (1979), entre outros]: o tempo das grandes narrativas terminou, ou seja, o tempo do liberalismo, do capitalismo, do socialismo, do comunismo, das filosofias da história terminou. E eu disse a ele "você tem razão, mas o tempo das grandes narrativas pessoais está começando". E hoje em dia entramos em um mundo no qual somos mais sensíveis, em termos aparentemente privados, para ver as coisas como a maioria das pessoas vê. A partir dos anos de 1960, a vida pública foi invadida pela vida privada, ou seja, o parlamento francês, salvo para concordar com as condições de Bruxelas, só fala de contracepção, aborto, adoção, minorias étnicas, enfim, um monte de problemas [privados]. Há mudanças, exatamente como em 1848, quando a economia invadiu a política, hoje a cultura invade a política. O que eu digo não é uma resposta, mas uma nova formulação da sua pergunta. É preciso dizer que há algo essencial: a política tornou-se um nível intermediário e nem um pouco indiferente, mas não é aí que se situa o Big Brother, não é bem por aí.
Luís Nassif: Queria fazer uma pergunta para o professor sobre a relação entre intelectuais e sociedade de massa no quadro atual. A sociedade de massa, a mídia é muito influenciada por slogans e pela simplificação de pensamentos. Aqui no Brasil nós tivemos casos de correntes de intelectuais que tiveram espaço na mídia em cima de simplificação de slogan. E essa simplificação exige que você tenha o "bem" ou "mal" bem definidos. Se o mundo muda, o intelectual fica preso ao slogan que o consagrou e aí nós temos um problema que eu queria saber como se resolve. O intelectual independente e sofisticado não tem espaço na mídia, não tem espaço nos grupos acadêmicos e a mídia acaba ficando... o país [fica] à mercê desse jogo em que correntes de pensamento se estratificam, são substituídas por outras correntes de pensamento. Quer dizer, há espaço para um pensamento independente e sofisticado dentro dessa mistura de grupos acadêmicos e pensamento imediatista da mídia?
Alain Touraine: Sim, sem dúvida, 10 vezes sim. Primeiramente, a cultura de massa. Isso me interessou muito. Eu assisti ao primeiro programa sobre isso que houve na França, que tinha um outro nome. Eu o vi e nunca mais verei outro: um já foi suficiente para o resto da vida. O que aprendi, que não havia aprendido nos trabalhos de sociologia, é que a televisão e os meios de comunicação de massa não têm interesse em oferecer uma cultura difícil ou fácil, mas sim de criar produtos definidos unicamente. São clericais: produzem pessoas definidas pela igreja, personagens... E tudo isso me parece fascinante. Os personagens que têm sucesso na TV são os personagens criados pela televisão. Em geral, são jovens totalmente desprovidos de interesse, que não têm nenhuma característica, que não falam sobre coisa nenhuma e que estão lá. Não faço isso como uma crítica, é outra coisa, e nada há de intelectual nisso. Em segundo lugar, penso que foi feita uma identificação, talvez um pouco parecida, entre professor e o intelectual, porque estamos em um mundo no qual existem... no Brasil não sei quantos, mas na França 50.000 professores universitários e 2 milhões e meio de estudantes. Assim, o mundo dos professores, o mundo da universidade é um mundo que tem com a intelectualidade, mais ou menos, a mesma relação que os médicos atuais têm com a biologia, ou seja, pode haver competição, mas eles são fortes. Por outro lado, creio que, se você tivesse querido dizer isso, teria toda a razão; usando uma expressão antiga, constituiu-se uma intelligentzia. Vou dar um exemplo porque, por acaso, participo de três ou quatro grupos como esse. Tive discussões, reflexões mais interessantes com biólogos, físicos, matemáticos. Em nossas reuniões de ciências sociais, cheias de prêmios Nobel, não de economia, de biologia ou de ciências humanas, reconstituiu-se um meio no qual existem as ciências naturais, que estavam realmente separadas, mas no qual há, sobretudo, a internacionalização. Você encontra ainda dois ou três velhos intelectuais franceses, para os quais as fronteiras da França são as fronteiras do espírito, ou dois ou três ingleses na mesma situação. Mas, veja você – e, espero eu –, estamos igualmente interessados. Eu sou muito firme nessa questão. Há 15 países no mundo onde se pode ter os mesmos debates intelectuais. Assim: internacionalização, interdisciplinarização, eu diria também, que é uma coisa muito nova. Os intelectuais sentem responsabilidade morais, não políticas, se é preciso nacionalizar, ninguém liga. Mas, desse ponto de vista, voltamos à definição de ciências humanas, que me convém perfeitamente, que é o conhecimento do "bem" e do "mal". E, hoje em dia, não se pode afirmar que um intelectual é um intelectual se ele não tiver um senso agudo do bem e do mal, como o tinham outrora os historiadores ou os filósofos. Assim, penso que se constitui em um dos meios intelectuais que não são profissionais, que não são mantidos pelo mundo universitário. A parte dos professores universitários é evidentemente importante, pois são pagos para isso. Mas há uma reabertura. Vocês poderão facilmente me dar exemplos brasileiros. Posso dar um exemplo francês. Por acaso, há um ano e meio fui convidado por um professor local para fazer uma conferência em Quimper, uma cidadezinha sem universidade no Oeste da França. E não aconteceu só comigo: quinze dias depois, lá estava Edgar Morin [(1921) sociólogo e filósofo francês. Autor de O método, Introdução ao pensamento complexo, Ciência com consciência, entre outros. Entrevistado pelo Roda Viva em 18/12/2000] e, um mês depois, Jean Daniel [jornalista], diretor do Nouvel Observateur. E, nessa cidade sem universidade, nós três conseguimos reunir 1.000 pessoas. A demanda intelectual, a demanda de idéias é enorme e eu diria que a situação não pode ser confundida com a de 10 ou 15 anos atrás, quando não havia demanda intelectual. Havia a liquidação das velhas ideologias e os jovens se preocupavam em encontrar um emprego. Hoje em dia, nós temos uma geração que poderia ser chamada de filosófica. São pessoas que questionam e, para os educadores, é certamente uma das melhores gerações que encontramos nos últimos 40 anos.
José Arthur Giannotti: Eu gostaria de colocar pelo menos duas questões a respeito do que você disse, mas, antes, eu não poderia deixar de lembrar os espectadores de que Touraine é uma figura, sobretudo, paulista e que esse abrasileiramento dele é fundamental, porque todos nós o fizemos... fizemos esse movimento. E eu quero lembrar que você é nosso colega desde os anos 1960 e que, se não me engano, já que você falou em Sartre [(1905-1980) filósofo francês conhecido por ter formulado o existencialismo], você participou da ida do nosso grupo até à Araraquara para assistir à conferência do Sartre, não é verdade? Numa perua, saímos todos, numa perua dirigida pelo Octavio Ianni [(1926-2004) sociólogo que foi um dos fundadores do Cebrap. Escreveu, entre outros, Escravidão e racismo (1978) A ditadura do grande capital (1981) Revolução e cultura (1983)]
Alain Touraine: Nós sabemos por que o Sartre foi para Araraquara.
José Arthur Giannotti: Sabemos... Mas eu não vou dizer... [risos] Foi uma viagem de 6 horas e você estava lá e quando o Sartre nos viu disse: "O que vocês estão fazendo aqui? Não sei por que eu vim para cá, se todo mundo que está me ouvindo aqui podia ter me ouvido em São Paulo." Isso para dar o grau de intimidade que Touraine tem com o Brasil e assim por diante... Mas vamos às questões. Você falou em dessocialização, mas eu pergunto se não há um contraponto nesse processo, que seria uma espécie de socialização da diferença e dos conflitos. Se ao mesmo tempo, nós entramos, nós mergulhamos no tempo da narração pessoal, os conflitos, tais como eles estão tramando na via contemporânea, são extremamente gerais. Essa relação entre Norte e Sul, cada vez mais do Sul se afastando e se “estrepando”, vamos dizer, claramente. A relação de centro e periferia é uma relação cada vez mais marcada. Se, de um lado, nós temos, de fato, essa desintegração pessoal, nós temos uma espécie de construção de um Leviatã, que vai nos consumindo e, cada vez mais, aí sim, dessocializando, de tal forma que nós não temos mais a possibilidade de falar de uma narração pessoal, mas da nossa miséria. E quando você diz que todos os intelectuais - é a segunda pergunta - falam que têm um agudo senso do bem e do mal. Eu responderia: será que não é o caso também de fazer uma genealogia da moral e dizer que, hoje, o mal e o bem se transformaram em instrumentos de dominação?
Alain Touraine: Deixemos de lado as lembranças de juventude. Mas é verdade que me sinto francês, chileno e paulista... E um pouco polonês por definição pessoal. Bom, não concordo exatamente com essas observações. O que ocorre neste momento com o problema da mundialização e da globalização? Sobre isso, devemos ser bem claros e não cometer contra-sensos. Primeiramente, há fenômenos de internacionalização da vida econômica, que podem ser discutidos. Mas, de modo geral, posso dizer que são positivos... a internacionalização. Mas, quando se fala de globalização, vende-se uma mercadoria completamente diferente. Vende-se uma ideologia que consiste em dizer: a economia está no nível mundial, os Estados em nível local, ou seja, a economia é mais racional, porque está em cima e, retirados todos os sistemas de controle e de regulação, precisamos do que, a partir do século XIV, sempre foi chamado de capitalismo. O que nos leva a dizer que neste momento, vivemos exatamente o que se viveu entre 1890 e 1910. Naquela época, não se falava de globalização, falava-se de imperialismo, é exatamente a mesma coisa, um capital financeiro no nível internacional. Temos aí essa dessocialização: todos os intermediários sociais desaparecem. Temos, de fato, uma ausência de política, uma lógica impessoal que não é a lógica da racionalidade instrumental, que é vontade de fazer triunfar – e isso não é neutro–... de fazer triunfar um capitalismo tão livre, tão louco quanto possível, ignorando-se todo o resto. Concluindo, de forma prática, para ser claro: atacar a internacionalização é enganar-se. Atacar a destruição da democracia em toda parte, é isso. O verdadeiro problema é que se deve restabelecer, como se fez no século XIX, os controles. Vou citar um autor, porque ele é um autor um pouco extremista, esquerdista, perigoso etc, o diretor-geral do FMI [risos], os que redigiram o documento chamado de Consenso de Washington disseram-lhe que é preciso abrir as portas e janelas. Durante um congresso do qual participaram economistas, vários prêmios Nobel, havia um pequeno sociólogo em um canto. E este senhor disse: "os dois grandes fatores do desenvolvimento econômico são, em primeiro lugar, o fortalecimento do Estado nacional e, em segundo, a defesa da cultura nacional e regional". E as pessoas na sala diziam: "Não, o senhor exagera. Todos bem sabem, desde os estudantes do primeiro ano, que o grande fator para o crescimento é a educação". E quem melhor resumiu isso foi um homem muito inteligente, prêmio Nobel não sei de que ano, que elaborou essa fórmula absolutamente correta: quanto mais uma economia for avançada, complexa, maior será o papel, o lugar dos fatores não-econômicos no crescimento econômico. Se tivermos uma economia primitiva, com um monte de trabalhadores e um monte de dinheiro, você pode juntar um com o outro. Hoje, como vocês sabem muito bem, o resultado de uma economia são os efeitos da educação, a escolha das elites, a compreensão das pessoas. E acrescento, porque os sociólogos adoram e eles não se interessam tanto pelo crescimento. Eles dizem que o problema não é esse. O problema é limitar as catástrofes. É a tese, lançada há vinte anos por Ulrich Beck [sociólogo, autor do livro Sociedade do risco e de Liberdade ou capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms, sobre as decisões tiradas no Consenso de Washington. Para Beck, o processo de desenvolvimento científico e industrial é indissociável da produção de incertezas e riscos], um alemão. O problema é: será que no século XXI vamos quebrar a cara por causa do problema nuclear, da demografia, das guerras civis, da poluição? A economia, nesse contexto, torna-se até relativamente menor. Ainda agora falávamos de poluição e todas essas histórias. Acredito que vivemos agora um período que começou com a queda do Muro [de Berlim] e espero que termine com a queda das torres [do World Trade Center]. Isso bem representa toda uma década de loucura durante a qual, imaginem, por exemplo, que vocês tivessem o seguinte pensamento: "Se eu abrir as portas e as janelas de meu apartamento, teria com folga, dentro de minha geladeira, o que dar de comer a meus filhos. Mas as geladeiras não se enchem sozinhas, porque as portas e janelas foram abertas". O interessante é que, quando refletimos sobre a maneira de reconstruir, como fizeram os ingleses, os alemães no fim do século XIX, trata-se de definir novas fórmulas de intervenção que nós bem conhecemos: o estado de bem-estar social, a escola pública, o imposto progressivo sobre a renda, mas isso não funciona sozinho. Durante séculos os sociólogos descobriram que o estado de bem-estar social, em particular, a escola pública e gratuita aumenta as desigualdades em lugar de diminuí-las. A escola paga aumenta ainda mais, indiscutivelmente. Assim, hoje em dia, estamos diante da seguinte questão: os sistemas de controle político explodiram? Se não quisermos esse capitalismo louco, pois sabemos que ele produz cada dia mais desigualdades, mais exclusões, mais riscos de crises regionais, que podem ser cada vez mais perigosas, a pergunta que faço a vocês, como faço a mim, que é a que fazem os intelectuais, os jornalistas, qualquer que seja a profissão é: quais são as novas formas de regulação que devemos empregar, não para atrapalhar a economia e atrasá-la, mas que corresponda a uma nova democracia?Mônica Teixeira: Professor Touraine o senhor falava que a grande pergunta é: quais são os mecanismos de controle que se possam exercer sobre o capitalismo – esse capitalismo apresentado como louco e etc – e que estabeleçam uma nova democracia... que possam levar a uma nova democracia. Eu queria, então, que o senhor dissesse o que o senhor acha?
Alain Touraine: Vou responder de um modo breve, um pouco didático. Há 200 anos, nós – os holandeses, os britânicos, os franceses e os americanos – lutamos pela obtenção dos direitos cívicos e há 100 anos lutamos, quase os mesmos e mais alguns, pelos direitos sociais, principalmente no trabalho, mas não unicamente. Hoje em dia, lutamos no mundo inteiro para obter, além dos direitos civis e sociais, os direitos culturais. O grande desafio é – não passeamos num mundo irreal –, primeiramente: toda reforma, toda intervenção do Estado deve se traduzir pela diminuição ou pelo menos pelo não-aumento da desigualdade social. Devemos ficar obcecados pelo tema da desigualdade. Uma reforma que não diminui a desigualdade não nos interessa. E sabemos que as reformas, em geral, são feitas para defender um setor da classe média, e não o povo. Em segundo lugar, você falou de diversidade. Bem, é o âmago das coisas, mas não se trata de direito à diversidade, do direito à diferença, pois o direito à diferença leva à guerra civil, à segregação. Não. O que se deve defender para todo mundo é o direito de combinar, cada um a sua maneira, a participação num mundo internacionalizado e, ao mesmo tempo, os elementos culturais herdados, criados, transformados. Devemos reconhecer que todos respondam à mesma questão: como combinar, digamos, a generalidade da economia internacional com as singularidades das respostas culturais e o direito, não o direito de ser diferente, mas o direito de ser, ao mesmo tempo, iguais e diferentes. E, desde esse momento, mais ou menos desde esse momento, isso me levou a uma conclusão prática, que significa que o problema – eu digo "o" problema, porque todos os outros são decorrentes dele – é : não vou dizer as relações entre homem e a mulher, mas sim a afirmação das mulheres como atores sociais. É um problema que deve comandar tudo nos próximos 50 anos. Eu diria que... se houver um teste: diga-me qual o lugar das mulheres numa sociedade, que você já me terá dado a estrutura. Estou falando pois estou voltando do Irã, vocês compreendem porque sou sensível a esse teste. O caso do Irã é muito interessante, porque as mulheres vestem o chador [túnica de tecido preto], mas o chador é como uma cortina de teatro, elas participam de todos os empregos, têm um nível de educação superior ao dos homens e conseguem se virar. A partir dos anos 1960, no plano político, tudo ocorre no terreno do direito cultural, o que não é contraditório com o que dizíamos há pouco, ou seja, contra o capitalismo louco dos últimos 10 anos, primeiro, é preciso querer reconstituir o sistema de controle, mas esse sistema só será criado quando ele aparecer a serviço dos novos direitos culturais. E quando, como é o caso, nesse momento, houve, eu diria, na América Latina, por exemplo, esse problema cultural, que sempre me interessou e interessa ainda: o zapatismo. Falei em diferentes lugares com [o comandante] Marcos. É o fracasso disso. Atualmente, esses direitos culturais – é um tema magnífico –, os direitos dos índios da metade superior do continente, no Chile... Não se fala mais de tudo isso. E as pessoas falam de voto a favor de Fox [presidente do México entre 2000 e 2004 pelo Partido de Ação Nacional. Até então, desde 1920, o Partido Revolucionário Institucional dirigiu o país] ou a favor do PAN [Partido Ação Nacional], que é contra Fox, que é, no entanto, seu candidato... Eu compreendo que as pessoas pouco ligam para isso. É preciso compreender que estamos em uma transição. Entre 1860 e 1880, na Inglaterra, na França também, mas na Inglaterra foi mais importante... essa transição diz respeito à questão social. Houve o problema dos sindicatos e, nesse intervalo, houve escândalos, não se sabia o que queriam dizer os nomes dos partidos políticos. Nesse momento, saímos da época dos problemas da sociologia do trabalho, que é muito importante, e entramos nos lugares de sensibilidade extrema em todos dos direitos culturais. Tomemos como exemplo os debates, sobretudo, nos Estados unidos sobre as minorias – termo que recuso completamente. Mas o tema das "minorias"... Vocês viram a satisfação que tivemos. Embora ainda não regulamentado, mas consideravelmente facilitado, ao ver o reconhecimento dos homossexuais e, inversamente, não fizemos nenhum progresso sobre o problema considerável dos deficientes, por exemplo. Nos Estados Unidos mais que na Europa. É preciso que se reconstrua a partir desse vazio, que ocorra a dessocialização, a hiperculturalização.
Helena Celestino: Continuando nessa linha, professor, agora, em Porto Alegre, no Fórum Social [Mundial], encontravam-se 70.000 pessoas representando as mais diversas minorias e interesses. Mas ao senhor parece que, nesse momento da era Bush [presidente do Estados Unidos entre 2001-2009. Foi no seu governo que começou uma campanha de guerra contra o terror (ou contra os terroristas) invadindo países como o Iraque e outros], esses movimentos sociais vão ter força para destronar a ditadura do mercado ou para se fazer ouvir no mundo dominado pela economia, pela lógica da economia?
Alain Touraine: Se a senhora estivesse totalmente certa, até que seria bom. Acho que está sendo otimista demais. O movimento lançado há alguns anos tem uma qualidade fundamental: ele retoma a palavra. Ele diz que não há a lei do mercado, isso não existe. E os economistas não dizem absolutamente coisas assim. Trata-se de invenções políticas de baixo nível. Retomamos a palavra - esse é o ato democrático por excelência. Vamos discuti-lo, podemos utilizá-lo de uma forma ou de outra. A partir disso, uma observação secundária: existem, apesar de tudo, grupos em demasia que defendem os interesses locais. Em Seattle, são os sindicatos automobilísticos americanos contra o acordo com o México [refere-se ao Free Trade Agreement (Nafta), que autoriza a venda de carros produzidos pelas indústrias montadoras no México, que vendem seus carros mais baratos que os produzidos no Estados Unidos]. Escuta-se um certo número de pessoas que defende as barreiras alfandegárias da agricultura européia ou da agricultura norte-americana. Há, mesmo assim, elementos que acho negativos, de luta contra a internacionalização e a favor dos interesses locais. Mas, sobretudo, o verdadeiro problema: essas palavras de repúdio, de protesto, chegam ou não a carregar um conteúdo social? Existe um conteúdo de contestação. Mas há um conteúdo social? Por acaso passei uma noite na qual isso foi realmente discutido. Foi na Cidade do México, depois da entrada dos zapatistas. As pessoas do mundo diplomático, que organizaram isso, pediram ao [comandante] Marcos que fosse a Porto Alegre. Ele respondeu: "Eu não quero me tornar um ícone da contestação. Eu quero organizar os índios da América do Sul". Para ele, prioridade para o social. Em outros lugares, nem sempre há prioridade para o social. As coisas são importantes e elas se tornarão muito importantes, daí seus conteúdos sociais serem fortalecidos. Há uma tendência ao fortalecimento, mas que é ainda muito fraca. Um exemplo muito interessante é o [da reunião do G8] de Gênova. Vocês conhecem a brutalidade que ocorreu lá. Vocês também sabem que as pessoas que se manifestaram em Gênova eram essencialmente católicas. Os grupos católicos organizados, com um tema de solidarismo cristão bastante moderado, mas muito interessante e poderoso. Lá vocês tinham, de uma maneira que eu cito... Não foi exatamente o meu gênero... Lá, vocês tinham sensibilidade à comunidade local, comunidade no sentido encontrado entre os alemães, os vínculos sociais que são desfeitos pelo mercado, quando esse se aplica a tudo. Há demandas bastante sensíveis, mas elas não estão ainda transformadas em contestação. Você entende? Mas, como não havia nada, eu poderia dizer que está 100% bom, para depois diminuir para 70, 80%. Mas, normalmente, o preenchimento social deverá ser feito.
Vicente Adorno: O senhor insiste há bastante tempo nessa questão da desigualdade. E, até em outubro de 1997, o senhor deu uma definição que eu acho bastante interessante: "É preciso dar prioridade aos que não têm emprego, aos que não têm dinheiro, a todos os rejeitados". E até agora eu não acredito que se tenha feito muita coisa nesse sentido, apesar de movimentos como esse de Porto Alegre. E também na Europa já se tentou fazer alguma coisa em torno disso, com a redução da jornada de trabalho, que o senhor também defendeu. O que o senhor diria: há algum resultado positivo nesse sentido? A redução da jornada de trabalho, por exemplo, é um bom remédio para acabar com a desigualdade?
Alain Touraine: Se quiser uma resposta do tipo sim ou não, eu direi não. Direi não, porque é um exemplo perfeito de categorias que não estão tão mal e às quais se oferecem vantagens adicionais. E é engraçado, pois as categorias que se queixam são as categorias do Estado, das empresas do Estado, do setor público. Isso se aplica a um alto número de funcionários. Pedem-lhes que trabalhem 35 horas, o que apesar de tudo é muito em relação ao que eles fazem, na realidade, acaba sendo muito [risos] Mas, afora isso, volto a minha definição, se você não tiver em vista e como prioridade absoluta a redução da desigualdade, como disse há pouco, essas palavras tornaram-se insuficientes: afiliações, exclusão. Acho que todos nós subestimamos hoje a parte imensa da vida na Terra que está fora das normas do controle social: a pobreza, a exclusão, a miséria, mas também a droga, o contrabando, as despesas militares. Não sei dizer exatamente, porque é difícil avaliar com precisão, mas a economia criminosa é mais de 20% da economia mundial. Alguns dizem 30, 40%. Uma vez tive aborrecimentos com um país latino-americano, porque eu estava no Brasil às 2 horas da manhã, chovia e pediram minha opinião, não sobre o Brasil, mas sobre um outro país, claramente menos importante. Eu estava irritado, cansado, molhado e respondi: "Esse país não existe" [risos]. Na manhã seguinte estava nas manchetes. Para minha sorte, participei de uma reunião na qual estava Filipe González [(1942) presidente da Espanha entre 1982 e 1995. Também foi secretário geral do Partido Socialista Operário Espanhol], que havia dito, nesse mesmo dia na Espanha: "Isso não existe". Se isso pode agradá-los, digo que a França não existe, ou seja, hoje, quais são as decisões que a Espanha toma? Não falo dos países a que me referia, que são muito menos importantes... Somos pessoas que vivem num mundo infinitamente mais decomposto que podemos imaginar. Não apenas no que eu chamo socialmente de pobreza, mas economicamente e em todos os níveis. Estamos num mundo, com o perdão da palavra, profundamente podre e as pessoas que falam, entre as quais nós, são pessoas críticas, mas interiormente 40% podem trabalhar, comer, comunicar-se etc. Sob esse ponto de vista, gosto do tom dramático das pessoas de Porto Alegre, ou seja, estamos em um mundo em extrema decomposição. Por muito tempo, me recusei a falar da insegurança, etc, agora estou muito mais sensível a tudo isso, tudo em baixa... A mesma coisa sobre o ensino. O que ensinam às moças e rapazes de 19, 20 anos? Não resisto ao prazer de citar uma frase que me impressionou enormemente. Perguntaram aos jovens do Norte da França, franceses, argelinos, não importa, quais eram as categorias que eles mais detestavam: em primeiro lugar, sem discussão, a polícia. Compreensível. Segundo lugar: os educadores e os assistentes sociais [risos]. Disseram-lhes: "Mas como? Eles querem o seu bem!". Resposta: "Eles não querem o nosso bem, de jeito nenhum! Eles nos fazem cair numa armadilha quando dizem que devemos nos integrar numa sociedade que está desintegrada." São essas as palavras. Genial! Em outras palavras, se quisermos ser razoáveis, a partir de uma certa idade, devemos ministrar aos jovens cursos sobre a fabricação e o transporte da droga, o uso de armas de fogo. Faremos isso? Não, não faremos isso. É um assunto que me apaixona. Todas essas histórias de integração deveriam escutar a juventude... Nada disso tem sentido, pois eles vão ser desempregados, nem todos, mas estarão em zonas de decomposição, de insegurança, em zonas de grande arcaísmo, em particular, da forma mais arcaica de dominação do homem sobre a mulher, da violência sexual. Em resumo, a natureza do chefe. Bem, eu creio que nós temos uma necessidade absoluta de nos comprometermos. Não quero me meter em coisas que não me dizem respeito, mas esses dias refleti, também, como todo mundo, sobre os problemas desse país. Posso citar outros, como, por exemplo, o México. Ao contrário da maior parte dos latino-americanos e de uma parte dos brasileiros, penso que a reforma da política, a intervenção da política é muito importante e eu diria, objetivamente, que, em comparação com outro países, há um certo progresso nesse sentido. Mas tudo isso não tem efeito nenhum sobre a decomposição social e cultural. Acho que intervir contra a desigualdade na América Latina, como em outros países, está além do campo de um político. Quero dizer que não será um político, seja ele quem for, que fará diminuir a desigualdade. Não abandonei os meus antigos amores, acho que somente os movimentos sociais poderão fazê-lo. Isso não significa a violência, quer dizer, é preciso que as forças mais representativas se levantem. Defendo a dissociação, não a oposição... a dissociação. Se preferirem, a complementaridade de uma ação propriamente política, indispensável, mas também da ação de uma outra natureza, mais profunda. Foi por isso que me entusiasmei com Marcos e seus amigos, achando que Fox teve uma reação positiva. Eles ficaram muito contentes com o fim do regime de partido único no México. Mas o Parlamento mexicano acabou com tudo, acabou com Fox e não houve de fato um movimento indígena. Pode ser que não desta vez, mas é assim. Digo isso para os brasileiros e para vários países, inclusive para os europeus, e não o digo de modo populista, que é uma tradição latino-americana. Digo que hoje devemos reconhecer que há grandes reformas políticas que devem ser feitas, que há intervenções que são fundamentais, concebíveis de uma maneira ou de outra, mas, hoje em dia, há essa espécie de pano de fundo de um mundo que está desaparecendo, de um mundo selvagem. Trata-se de recriar uma certa civilização nesse mundo.
Marco Aurélio Garcia: Alain! Justamente eu queria tratar essa questão ligada à coisa que o senhor disse antes. O senhor nos falou que há 200 anos, mais ou menos, nós tivemos direitos políticos. Há 100 anos nós tivemos direitos sociais. Imagino que seja, de um lado, a Revolução Francesa e, de outro lado, o nascimento da socialdemocracia. E o que hoje está na ordem do dia são os direitos culturais. Esse é um paradigma, digamos, europeu, que eu acho um bom paradigma. No entanto, o senhor é um grande conhecedor da América Latina e sabe que o grande problema que nós enfrentamos aqui é justamente uma temporalidade diferente na articulação desses direitos. Resumindo, nós temos que enfrentar tarefas do século XVIII, XIX, XX e XXI. E isso exige, evidentemente, não uma sucessão de enfrentamentos, mas uma articulação desses movimentos num só. Nós não temos direitos políticos plenamente constituídos, pelo menos no caso brasileiro e eu acho que em muitos países da América Latina, seja do ponto de vista das grandes reformas políticas institucionais, seja da conquista da cidadania de um ideal republicano que a França, bem ou mal, tem hoje. Há, inclusive, uma direita republicana na França. Aqui no Brasil, do centro para direita e talvez até um pedaço da esquerda, não são ainda republicanos. Segundo: nós também não temos direitos sociais constituídos plenamente. E o senhor chamou a atenção para a questão fundamental que são os problemas da desigualdade e da exclusão que aqui se colocam de forma brutal. E os temas culturais, que eu acho que são um pouco herança de 1968. Aliás, o Toni Negri [filósofo político marxista, entrevistado pelo Roda Viva em 16/12/2003] em uma entrevista recente mencionava isso. Ele acha que o que estamos assistindo hoje, de uma certa forma, é um efeito prolongado de um movimento nascido no momento de 1968. Aliás, um tema que lhe é muito caro também. Agora, a esses três tipos de direitos eu acrescentaria um quarto, que pode parecer um pouco incômodo e obsoleto, mas que na história política e social da França... teve uma importância muito grande na Europa, de uma maneira geral, que são os direitos nacionais. Porque eu acho que eles estão muito ligados ao problema dos direitos culturais, entre outras coisas. A França, hoje em dia, tem defendido a noção de exceção cultural para a França, para a Europa, que é, de certa forma, um pouco, o reconhecimento da necessidade de preservação de certos direitos culturais e nacionais. Quer dizer, como nós enfrentamos esse tema, essa complementaridade, essa desarticulação de movimentos em uma região complexa como é a nossa?
Alain Touraine: Primeira observação que não se faz com muita freqüência: nos últimos 50 anos, os direitos sociais que foram adquiridos, aqui ou acolá, recuaram maciçamente. É um dos aspectos mais importantes da segunda metade do século XX. Mesmo nos países como a Grã-Bretanha, que é um pouco pátria dos direitos sociais, houve um recuo considerável. Em segundo lugar, posso resumir o que você disse da seguinte maneira: chega um momento – na França foi em 1848– em que você só pode defender os direitos civis introduzindo os direitos sociais. E você só pode defender os direitos sociais introduzindo os direitos culturais. A América Latina, de modo geral, tinha uma visão bastante francesa da cidadania, mais do que a americana ou inglesa e houve, então, um atraso nos países de pensamento latino, relativo ao reconhecimento dos problemas culturais da diversidade etc. A resposta que quero dar é uma resposta bastante precisa: a prioridade que se deve conferir aos direitos culturais não é da ordem da objetividade, pois seria mais importante defender os índios, homossexuais etc. É que a capacidade de criar os atores sociais, o que para os sociólogos é o problema central... Para eles o problema central não é se há problemas para serem resolvidos, mas se há atores para resolvê-los. Hoje, onde o movimento operário tem a capacidade de criar atores? Em parte nenhuma! Praticamente em parte nenhuma! Ou desaparecem ou fracassam. Vimos nos anos 1960 e vemos ainda: apenas os atores que se definiram em termos culturais têm uma capacidade de ação. Isso é verdade, principalmente no que se chama de minoria. Digo isso um pouco brutalmente, pois eu não o justifiquei realmente. Mas enquanto não se reconhecer que os atores sociais principais são, nos próximos 100, 200 anos, as mulheres, isso pode parecer quase uma brincadeira. Enquanto não se passar conscientemente de uma cultura de homens para uma cultura de mulheres, de uma cultura de – uso a expressão célebre de Lévy-Strauss [(1908) antropólogo belga, considerado o fundador da antropologia estruturalista, em meados da década de 1950, e um dos grandes intelectuais do século XX. Dentre outras idéias, defendeu que o tabu do incesto representaria, para os seres humanos, a fronteira que separa natureza e cultura. Escreveu, entre outros, Antropologia estrutural, Tristes trópicos e O cru e o cozido]–... da máquina a vapor, é preciso esticar a diferença dos potenciais para uma cultura feminina, para uma cultura da reconstrução do que foi separado. Gosto de utilizar a fórmula de Marcel Mauss [(1872-1950) sociólogo e antropólogo, era sobrinho de um dos fundadores da sociologia, Emile Durkheim. Apesar de não ter realizado trabalho de campo, conseguiu chamar a atenção de acadêmicos franceses para a etnologia e procurou mostrar a relação entre a antropologia e a psicologia] de recomposição do mundo. O grande desafio que temos diante de nós, no nível individual, no nível coletivo, talvez mais para nós do que para vocês, é o dever de sair do que se chamou de modelo europeu, que tirava sua força da polarização cultural, e não cair dessa polarização em um mundo de absurdo, caótico, no qual ninguém é capaz de fazer mais nada. A força que deverá substituir essa força de ruptura, a luta de classes, a luta das nações, das colônias é hoje a força de fazer esse agrupamento dos elementos que foram separados. Parece-me que vivemos numa espécie de obsessão do todo desaparecido. Eu diria que os latinos são bastante sensíveis ao modelo europeu e, justamente por isso, são muito sensíveis ao desaparecimento das tensões, quer dizer, das polarizações. E vocês, em geral, tentam aproximar um pouco aquilo que estava em oposição.
Mônica Teixeira: Professor o senhor disse que a questão do combate à desigualdade deve ser um pólo de orientação, deve ter uma centralidade, vamos dizer, na ação política. Eu gostaria de saber: o senhor, conhecendo o panorama brasileiro e, certamente, acompanhando o fato de que a gente vai ter eleições presidenciais muito importantes neste ano, quem o senhor diria que é o candidato mais habilitado para realizar essa tarefa que o senhor acha que é a tarefa importante. É difícil, né, professor?
Alain Touraine: Não, não é absolutamente difícil , mas não estou muito certo de ter o direito de entrar nisso. Escutei o seu comentário e vou lhe dar minha opinião. Vou me aventurar e responder-lhes. Eu disse, há pouco, não sei se você prestou atenção, mas já respondi a sua pergunta. Disse que há uma separação, que creio ser hoje profunda, entre o problema do possível e o do político. Certos países, não a maioria dos países latino-americanos, fracassaram completamente. O México não conseguiu ainda e, apesar de tudo, o Brasil fez importantes progressos. Não se pode ignorar esses progressos importantes. A luta contra a desigualdade, a pobreza é outra coisa, vai bem além. É a razão pela qual a figura mais importante da política brasileira é, evidentemente, Lula [PT]. Mas quem vai ser eleito presidente será, evidentemente, [José] Serra [PSDB] [risos]. Quero dizer com isso que é preciso dissociar essas duas funções, talvez pelo fato de eu ser europeu e nós estarmos habituados a dissociar o governo. Mas eu acredito, sempre defendi a idéia de que se deve dar prioridade ao político para, em seguida, atacar o verdadeiro problema central, que é o problema da desigualdade social. Não creio que vocês possam prescindir desse duplo poder. Eles não precisam ser opostos, mas não devem ser confundidos. Qualquer um que tenha como objetivo maior a luta contra a desigualdade não pode gerir a difícil reconstrução de um sistema político que é tirado do mundo internacional, do mundo continental. Inversamente, não é uma fórmula política que pode fazer avançar consideravelmente. Diria até, mas não me entendam mal, que não há transformação de um tal grau de desigualdade sem uma certa dose de – chamemos isto pelo seu verdadeiro nome –... de violência, ou seja, de ultrapassagem do quadro institucional, mas sem exagero. É isso que deve ser negociado. O que estou dizendo pode parecer completamente fora da realidade e o é, numa certa medida, mas é porque não é a realidade cotidiana. No meu entender, para o próximo período, vocês não têm de escolher entre Lula e sua herança e Fernando Henrique [presidente do Brasil entre 1994-2002 pelo Partido Social Democrata do Brasil (PSDB)] e sua herança: desejo que tenham os dois.
Carlos Haag: Sobre a questão passada, falando sobre o poder de reação dos países da América Latina ao capital estrangeiro, o senhor disse que é perigoso e falso crer na impotência política. Eu queria que o senhor avaliasse um pouco, qual foi, nesse contexto, a postura do Fernando Henrique em relação a essa reação, a essa entrada do capital estrangeiro. E também, retomando, agora, a pergunta da Mônica, mais constrangimento para o senhor falar sobre o Brasil. Qual é o pior e o melhor quadro, dentre dos candidatos que se apresentam para a associação, para justamente ter um poder de reação maior a esse capital estrangeiro?
Alain Touraine: Não posso dizer que me dou o direito de uma competência absoluta, mas diria
que, mesmo que isso soe estranho, como vocês sabem, o Brasil, como a França, não é uma sociedade, é um Estado. E esse Estado fabricou uma sociedade, com todas as vantagem e desvantagens, as lutas entre o Estado e a religião, o anticlericalismo, os problemas do poder local e do poder central. Se admitirmos que se criou um monstro, desorganizado e desorganizador, chamado globalização, eu diria que o fortalecimento de um sistema político, de uma autonomia e de uma capacidade de criação é algo inteiramente positivo, é algo indispensável, bem como tudo que vem por trás. O que mais me impressionou, os detalhes – embora não sejam detalhes – nesse país, foi isso. Durante um certo período eu cuidei dos exilados na Europa, da Argentina, do Chile e do Brasil. Quando essas pessoas puderam retornar aos seus países, o que fizeram os brasileiros? Voltaram todos. O que fizeram os argentinos? Nenhum voltou. O que fizeram os chilenos? Um terço voltou. Dito de uma outra forma, vocês têm o sentimento do nacional. Dizem que, como sociólogo, eu não gosto da categoria nacional, mas no fundo eu gosto muito dela. Eu desejo que nesse mundo globalizado haja o máximo de organização possível, para dar a vocês a capacidade de serem os atores da sua história e isso é a escola, o governo e todas essas coisas que vão fazê-lo. A única coisa que eu digo – e tenho debatido continuamente esse assunto com meu amigo [Jürgen] Habermas [filósofo e sociólogo alemão considerado o principal herdeiro das discussões da Escola de Frankfurt e um dos mais influentes pensadores do pós-guerra. Escreveu, entre outros: Teoria da ação comunicativa, Mudança estrutural da esfera pública e O futuro da natureza humana, entre outros]... Por motivos que todos compreendem e respeitam, Habermas e todos de sua geração detestam o Estado alemão. Não querem nem ouvir falar disso e a gente os compreende. Eles esperam um Estado europeu, europäische Heimat – ele emprega a expressão europeu, ou seja, verdadeiramente uma sociedade –, mas eu não acredito nisso. Acho que a Europa já é um Estado, vai ser ainda mais, mas é a nação que desaparecerá para se tornar uma sociedade relativamente autogerida. Falo do Estado, mas assistimos à ascensão das regiões, das cidades na Europa. Desejo muito ter a nacionalidade européia e a cidadania francesa. Em geral, as pessoas dizem o contrário. Prefiro dizer, sociologicamente, as coisas assim. Para vocês é diferente. Esse é um assunto, no entanto, que tomou uma dimensão... A América Latina, cá entre nós, não existe. O que há, claro, é a América do Sul. Agora, vocês lançam expressões insultantes contra uma parte do continente. Vocês reúnem os presidentes da América do Sul, expressão que nunca ultrapassou o âmbito da aula de geografia. Vocês tentaram fazer um Mercosul e sabem que dentro de dois ou três anos serão incorporados ao bloco da América do Norte.
Marco Aurélio Garcia: De jeito nenhum.
Alain Touraine: Espere. O seu presidente, tendo renunciado um pouco às suas últimas esperanças em Québec, sugeriu aos europeus a criação de um eixo horizontal completado por um eixo vertical. Eu acredito nessa idéia, mesmo que a idéia de um mundo latino pareça um pouco tola, mas eu penso assim: os espanhóis perderam muito dinheiro na Argentina e querem sossego. Os franceses, como sempre, responderam: "Precisamos cuidar primeiro dos nossos camponeses, pagamos a eles apenas 70%, deixem-nos pagar 90% e então veremos o que se pode fazer". Não creio que qualquer parte do mundo possa prescindir dessa dissociação entre os grandes blocos estatais, para-estatais como a Europa Ocidental, neste momento, como outras partes do mundo, o mundo islâmico etc. No seu caso, creio que um dos níveis será, forçosamente, o Brasil, devido a seu tamanho e a sua especificidade, e que, por outro lado, vocês serão incorporados aos grandes blocos, digamos, multicontinentais. Creio que assistimos à separação entre os Estados e as nações: os Estados tornaram-se Superestados e as nações tornaram-se sociedades cada vez mais capazes de se gerir em todos nos níveis. O que eu digo já é bem visível na Europa, com exceção da Espanha, que é outro caso. Isso será cada vez mais verdadeiro no Brasil. E não quero ser exagerado, mas tenho convicção profunda de que grande parte da América Latina já está debaixo d'água e que seria um pouco artificial perguntar o que vai se fazer com esse ou aquele país, visto que esses países, como eu já disse com grande pertinência, não existem.
Madalena Pedroso Aulicino: Voltando à questão da escola, o senhor comentou, no seu livro, inclusive, que ela deve deixar de cumprir uma função só de recrutamento e ajudar o jovem a elaborar projetos que associem formação profissional com escolhas culturais. Ao mesmo tempo, o senhor comentou hoje que o professor é uma figura detestada pelos jovens. Eu sou educadora e acho que eu sinto isso bem na pele também. Então, eu pergunto: como deve ser a escola? Como deveria ser a escola para fugir desse papel de só formar bons cidadãos e bons trabalhadores? Como a gente dá o start nisso dentro de uma escola? E uma outra pergunta, não paralela, mas... a questão da democracia, que o senhor comenta. Nesse mesmo livro em que o senhor comentou igualdade e diversidade, o senhor fala sobre democracia revolucionária, democracia liberal e a democracia social e cultural. Sem a gente adjetivar o termo democracia, o que é democracia para o senhor? Aqui no mesmo livro o senhor comenta: é o conjunto das condições institucionais que favorecem a recomposição da experiência humana. Que condições institucionais seriam essas? Os partidos, os políticos... Eu gostaria de que o senhor falasse um pouquinho disso também.
Alain Touraine: Gostei de a senhora ter abordado esse assunto, pois compartilho do seu interesse, em parte pelas mesmas razões. Primeiramente, vou dar duas respostas bem precisas às perguntas que me fez. A incapacidade, o fracasso da escola vem evidentemente do fato de que, à medida que a escola se generaliza e que as dificuldades de encontrar emprego e de ascensão se acentuam, vemos em todos os países um peso cada vez maior das expectativas familiares, das expectativas do meio social. Se meu tio é advogado ou médico, eu sei o que isso quer dizer, isto é, estudar. O tio ou meu pai não fala francês, está desempregado. A primeira coisa é que se trata de um tema fascinante: é preciso individualizar. Citou um exemplo impressionante, no que se chama de primeiro ciclo do segundo grau, que é a parte mais difícil, os professores reuniram-se por meio dos sindicatos, não é algo marginal. Na França, temos um sistema de escola abrangente, pois todos vão ao primeiro ciclo do segundo grau. Primeiro separados, depois tornam a se separar nos últimos anos. E esses professores disseram: "esse sistema de ensino único é deplorável, tem uma enormidade de efeitos negativos. É preciso, a todo custo, mantê-lo". Nada mau, hein? Porque, sem isso, volta-se à escola de classe. Qual é resposta? A resposta é que é preciso individualizar. Em muitos países, coisas consideráveis estão sendo feitas. Na França, temos a mesma tradição que aqui, na minha opinião. Os professores não deveriam saber dos alunos, eles deveriam conservar certa distância, para não serem manipulados socialmente. Hoje em dia, os jovens professores não são mais assim e criaram-se, por outro lado, sistemas muito interessantes de apoio escolar em outro países. Essa é a minha resposta: na escola é preciso considerar o aluno dentro da sua realidade social e cultural. É um assunto fascinante para os sociólogos. Vou dar um exemplo, que foi bem estudado na Itália. Sou professor e vejo chegar um grupo de alunos albaneses. O que faço com eles? Se lhes digo: "é preciso salvaguardar o albanês", eu os condeno. Eles não encontrarão lugar na sociedade italiana, onde se fala italiano. Se lhes disser: "sejam italianos", como os outros, eu corto suas raízes. Não tem solução, ou seja, há apenas a solução dinâmica, tentando-se combinar as duas coisas. Indo além dessa observação, vou fazer uma proposta que é um pouco excessiva, mas que está, para mim, na base das coisas. Eu dizia, há pouco, que não se deve ter como objetivo a participação, a integração etc. O que se deve ter é a intenção de reforçar o núcleo de personalidade, que faz com que você se torne ou não um ator [social]. Dou-lhes dois exemplos, cada um em uma frase. O mais interessante é o de uma ótima tese, feita por uma alemã, no sistema sanduíche, ou seja, uma universidade alemã e nós. Falava-se dos turcos na Alemanha e dos turcos e dos argelinos na França. A questão era a seguinte: será que uma fé, uma prática ativa do Islã é um obstáculo? Resposta indiscutível: aqueles que têm uma prática ativa do Islã conseguem uma melhor integração. Como vimos, outrora, nos campos de concentração, as pessoas que eram comunistas, cristãos etc resistiram mais, porque havia um núcleo da personalidade.
Mônica Teixeira: Doutor Touraine, eu queria só avisá-lo de que nós temos cerca de cinco ou 6 minutos de programa. Então, o senhor tem uma resposta ainda para dar, mas eu ainda preciso fazer mais uma pergunta...
Alain Touraine: Tudo bem. Eu vou usar esse tempo, na minha opinião, é mais que suficiente. O que é a democracia? A democracia, como o nome indica, é o sistema que parte das demandas sociais de base. Mais uma vez é preciso dizer que ela [a democracia] as [demandas] deve formular, fazê-las passar pelos sistemas institucionais, levá-las a ser transformadas em modos de contestação, acrescentando, à inglesa ou à holandesa, com a condição de que sejam impostos limites ao poder do Estado. Hoje em dia, o principal obstáculo à democracia é que as demandas de base não são formuladas, salvo muito vagamente. Hoje em dia é necessário o desejo de recriar a democracia de baixo para cima, o que é normal. E nesse contexto é preciso crer... O que quero dizer é que só há democracia se você fabricar pessoas capazes de agir de maneira responsável e em função de objetivos que não são os da sociedade e sim os de sua própria criatividade, de sua própria capacidade de agir como responsáveis pela resistência e pela existência do sistema.
Mônica Teixeira: Doutor Touraine, o senhor acha que isso que o senhor acabou de dizer a respeito da democracia se aplica à África? Em uma de suas entrevistas que eu li, o senhor em um certo momento diz: "a América Latina é um continente invisível". Bom, para nós, que moramos aqui, não é tão invisível. Mas a África me parece, assim, um continente invisível. Tudo isso que nós estamos falando aqui, pode ser aplicado à África?
Alain Touraine: Claro que sim. Não é uma raça diferente das outras. A dificuldade principal não é a democracia. É que as nações, em um grande número de casos, não existem, sejam os Congos ou outros países e, veja bem, o Estado nacional, seja Nigéria, seja Biafra. Você pode imaginar ainda blocos subnacionais ou regionais e você pode imaginar o que já está acontecendo, uma capacidade de ação autônoma, porque o que se chama de África era essencialmente o campo de jogo das antigas potências coloniais. Nesse campo, por definição, não havia democracia.Luís Nassif: Querendo explorar um pouco o que o senhor colocou sobre o bem e o mal, o papel do intelectual quando a gente pega o todo e a parte. Quer dizer, o fim, a redução dos direitos trabalhistas é o mal em si, mas, se um país como o Brasil não flexibiliza os direitos trabalhistas, perde empresas e depois perde empregos. Então, esse conflito temporal entre primeira decisão, quer dizer, o julgamento do fato individual e as suas conseqüências... Eu queria que o senhor analisasse o governo Fernando Henrique Cardoso. Foi feito um conjunto de acordos políticos com velhos coronéis, que tiraram algumas reformas. Os defensores olham as reformas e acham que houve avanço. Os críticos dizem que se perpetuou o coronelato [coronelismo]. Essa questão, entre o início do processo e o fim do processo, sendo que a política é a arte do possível, em geral. No início do processo, você tem uma condenação muito veemente de alguns métodos que são utilizados, mas que se permite atingir resultados mais adiante. Como o senhor analisa o governo Fernando Henrique Cardoso dentro dessa visão pragmática dele?
Mônica Teixeira: Três minutos, Doutor Touraine...
Alain Touraine: É demais. É normal, vocês têm um governo que é o primeiro após o retorno à democratização. É normal que vocês tenham essa confusão entre objetivos sociais e objetivos propriamente políticos. A característica do governo do presidente, que logo cessará suas atividades, é que ele não seguiu uma via contrária à que ele tinha anunciado há 25 anos, mas ele foi obrigado e teve inteligência de dar prioridade ao tratamento dos problemas propriamente políticos. Não é absolutamente elogiável. Você pode chamar de traição. Isso depende do seu ponto de vista. Mas, na realidade, não vejo nenhum inconveniente no fato de lamentar a ausência de grandes projetos, que, aliás, nunca estiveram presentes, em países como o Brasil, na vida política. Constato que 10, 15 anos após esse grande período de saída da ditadura, a maior parte dos países está moribundo ou morto. Eu diria que, dentro de limites, há uma certa construção de um espaço e de decisões políticas. Diria que foi e, talvez não seja um elogio o que eu digo, é realmente um período de transição e que... creio hoje ser possível. Mas eu acho que o Brasil pode realizar as coisas. Veja, alguém que comeu um alimento não muito vigoroso pode fazer coisas. Alguém que está morto, mesmo que você lhe sirva o melhor alimento, não poderá fazer muita coisa. Eu diria que, neste continente e neste mundo, nos quais a metade dos atores está morta, o Brasil me parece ser um país bem vivo.
Mônica Teixeira: Doutor Touraine, cabe-me, tradicionalmente, a última pergunta e eu, ouvindo o senhor e sabendo que nasceu em 1925, queria fazer a seguinte pergunta: eu tenho um amigo parasitologista, o professor Luís Hildebrando Pereira da Silva, que diz que uma das razões que ele tem para viver – e ele é um pouquinho mais novo que o senhor – é a vontade de ver o que é que vai dar, que é que vai acontecer no mundo, qual vai ser o desenrolar da história. Eu queria saber do senhor: olhando sua vida, qual é a questão que esteve sempre presente ao longo da sua existência e a respeito da qual o senhor gostaria de saber, afinal, o que vai dar?
Alain Touraine: De uma certa maneira, sempre foi a mesma questão que me acompanhou, mas o fato mais visível é que vivi com o pensamento da sociedade industrial e, depois, de outra sociedade. Assim, para mim, o problema foi a descoberta progressiva do que chamo de atores sociais e, agora, vou muito mais além, com a teoria de sujeito não-social, mas que comanda a sociedade. Foi nesses termos que pensei. Veja, considerando, se não minha idade, mas ao menos minha geração, eu sou uma pessoa que lembrará do seu século, em que alguns indivíduos sozinhos se levantaram, disseram não, foram fuzilados, desapareceram. Eu me lembro que num país do continente, o Chile, nas profundezas dos subúrbios encontrei – eu, que sou completamente laico –, padres e freiras, sobretudo padres, no meu caso, que não se questionavam se eram cristãos ou socialistas, que – perdoem-me a expressão idiota – cumpriam seu dever. Eu diria que, após 50 anos de trabalho, o que é mais importante para mim é aquilo que com freqüência se chama de defender a dignidade dos seres humanos, algo que não é social. Chamem isso de direitos dos homens, direitos humanos ou como quiserem. Creio, maciçamente, que não é mais a cidadania que nos interessa, seja qual for sua importância, mas reconhecer os limites do poder e que há alguma coisa acima. A questão que sempre me entusiasmou é: para que uma sociedade seja livre é preciso que ela aceite se basear sobre alguma coisa que não é uma força religiosa, comunitária, que é ainda mais que elas, é uma instância de apelo. Nisso vou me definir mais como um liberal, no sentido de que Deus poderá ser uma instância de apelo e com freqüência o foi, o direito a uma instância de apelo. Eu diria também que, hoje em dia, a sexualidade tem uma poderosa capacidade de apelo para a sociedade. Se você respeitar... Se você chegar a ter uma vida feita de respeito à dignidade do outro, de preocupação com a sua própria sexualidade e de luta contra todos os poderes que impõem bases não-sociais absolutas – racistas, etilistas, ideológicas –, seria muito bom. É o gênero de ser humano que eu gostaria de rever com prazer, na próxima vez .
Roda viva
http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/264/entrevistados/alain_touraine_2002.htm
terça-feira, 21 de outubro de 2008
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário