terça-feira, 21 de outubro de 2008

François Chesnais

Novo capitalismo intensifica velhas formas de exploração
02/Nov/97
GLOBALIZAÇÃO


O economista francês François Chesnais, um dos principais teóricos da gênese e dos efeitos da globalização, é também um de seus maiores críticos. A convite da Folha, Chesnais respondeu algumas das questões que permitem compreender como funciona a globalização e suas consequências.
1. O QUE DISTINGUE A GLOBALIZAÇÃO DAS FASES ANTERIORES DO CAPITALISMO, COMO O IMPERIALISMO DO SÉCULO 19?
A mundialização (1) é bem mais que uma fase suplementar do processo de internacionalização do capital industrial, desencadeada há mais de um século. Estamos diante de um novo modo de funcionamento sistêmico do capitalismo mundial ou, em outros termos, de uma nova modalidade de regime de acumulação. Por trás do termo vago de "mundialização" encontra-se um novo regime de acumulação, ao qual dou o nome de "regime mundializado sob égide financeira". Os traços característicos deste regime podem ser definidos por contraste com o modelo de acumulação "fordista", que prevaleceu durante os "30 anos gloriosos" (do final dos anos 40 ao fim dos anos 70), e com o modelo imperialista "clássico" que dominou até a crise de 1929.
O fordismo caracterizava-se pelas taxas de investimento suficientemente elevadas, capazes de manter empregada toda a mão-de-obra disponível ("assegurar o pleno emprego"), com ocasionais recursos até mesmo à imigração. Uma vez que se tratava de um regime de acumulação essencialmente voltado para a extensão da produção de valor e de mais-valia, e logo de riqueza (ao passo que o regime atual preocupa-se antes com a apropriação de riqueza e privilegia as atividades especulativas baseadas em posições nos mercados imobiliário, financeiro e de transações comerciais), ele foi capaz de tolerar, ao menos nos países capitalistas centrais, a partilha parcial dos ganhos de produtividade com as camadas assalariadas, bem como de suportar as despesas referentes ao Estado de bem-estar social, o "Welfare State".
Nesses países, o regime fordista permitiu durante 30 anos uma elevação geral do nível de vida das grandes massas. À diferença ainda do regime de acumulação atual, o regime fordista tendia à inclusão e não à exclusão, do mesmo modo que, no plano internacional, tendia à integração e não à marginalização. Mesmo fora de seu âmbito geográfico original, os grandes grupos industriais dos países centrais acomodaram-se à implementação de políticas de substituição de importações, e assim geraram novas capacidades produtivas, por mais que tenham igualmente contribuído para a perpetuação da dependência tecnológica. Expandiram a massa de assalariados industriais e toleraram sem grandes dificuldades o "desenvolvimentismo" do tipo brasileiro.
Dois fatores principais estiveram na origem da crise do regime fordista, ambos ligados ao sucesso da acumulação e às contradições resultantes. O primeiro foi a reaparição, em 1974-75, da primeira crise "clássica" de superprodução e de superacumulação depois da Segunda Guerra Mundial. O segundo foi a reconstituição das bases econômicas e sociais de um capital financeiro poderoso, a quem pareceu mais e mais intolerável a força dos trabalhadores assalariados e de seus sindicatos, o nível de gastos com o "Welfare State" e a taxação sobre o capital e as altas rendas pessoais. Em 1979-80, a "revolução conservadora" levou ao poder os representantes políticos desse capital financeiro redivivo. A partir das políticas de liberalização e desregulamentação levadas a cabo pelos países do G7, pelo Gatt e pelo FMI, com o estímulo de Reagan, de Thatcher e do monetarismo triunfante, consolida-se o atual regime de acumulação.
2. QUE PAPEL DESEMPENHA O CAPITAL FINANCEIRO NESSE PROCESSO?O regime de acumulação mundializado sob égide financeira vive, muito mais do que em 1914 ou 1929, à sombra de um capital financeiro altamente concentrado. A mundialização financeira tornou a ser ao menos tão importante quanto a mundialização do capital produtivo. As carteiras de investimento são novamente tão ou mais importantes que o investimento direto. Nisso, o regime atual está mais próximo do imperialismo clássico. É claro que, em comparação com o começo do século, sua configuração modificou-se sob vários aspectos, mas alguns dos aspectos "novos" vão no sentido de um aprofundamento de traços "clássicos". As diferenças dizem respeito ao papel mais importante ora desempenhado pelos investimentos diretos no exterior e pelas operações dos grupos industriais transnacionais na organização dos fluxos comerciais; novo também é o grau crescente de interpenetração de capitais de origens nacionais diversas nos países centrais. Mas há semelhanças notáveis, que respondem pela reconstituição dos fluxos de rendas financeiras internacionais, que transitam por intermédio dos mercados financeiros ditos "emergentes".
Neste novo regime, o capital financeiro cuja eutanásia era esperada por J. M. Keynes, reconstituiu-se em escala gigantesca. Ao lado das figuras tradicionais da oligarquia financeira, houve ainda a formação dos fundos de pensão e dos fundos de aplicação ("mutual funds") contemporâneos. Mas essa institucionalização e "democratização" do capital financeiro em nada altera suas características econômicas básicas. Trata-se de um capital financeiro "puro", que conserva a forma do "capital-moeda" (Marx) e que manifesta forte "preferência pela liquidez" (Keynes). Ele se dedica à valorização financeira pura do capital por meio da administração de carteiras de ativos financeiros (sobretudo de letras dos Tesouros nacionais e de ações). Este capital vive de retiradas sobre a riqueza criada na produção, transferidas por meio de circuitos que podem ser diretos (dividendos sobre o lucro de empresas) ou indiretos (juros de obrigações públicas e empréstimos aos Estados, que por sua vez representam retiradas sobre a renda primária circulando no sistema de impostos).
Graças a essas retiradas, as relações de força entre o capital industrial e o capital financeiro "puro" modificaram-se claramente, com vantagem para o segundo. Essas relações são muito mais desiguais do que em 1914 ou 1929. Estamos portanto diante de um retorno ao imperialismo clássico, bem como de um reforço de seus traços fundamentais. O capital financeiro "puro" sempre teve fortes traços parasitários, e hoje também são muitas as suas ligações com o narco-capital e outras fontes "ilícitas".
3. QUAIS OS EFEITOS POSITIVOS DA GLOBALIZAÇÃO?
As transformações do regime de acumulação não têm nada de irreal. O discurso sobre a "mundialização dos benefícios" é a cobertura ideológica que busca mascarar os fundamentos do regime de acumulação financeiro-rentista, bem como seu pobre desempenho em termos de desenvolvimento, revelado pelo último relatório do Unctad. Não há muito como negar o fato de que o novo regime de acumulação permite ao capital explorar a fundo e para seu exclusivo benefício as vantagens da liberalização. Nós não estamos diante de uma miragem.
Os observadores sérios têm notado que a economia mundial voltou às taxas médias de crescimento semelhantes às dos tempos do imperialismo "clássico", antes do interregno dos "30 anos gloriosos". Por trás deste crescimento fraco encontra-se uma queda regular das taxas de investimentos, com muitos anos de investimentos nulos ou negativos. Isto é perfeitamente coerente com uma configuração do capital na qual há supremacia da fração que se valoriza por via financeira e com uma situação em que o capital financeiro se beneficia de transferências de enormes massas de riqueza. Essa baixa dos investimentos corresponde a dois grandes processos: a adaptação da oferta a uma demanda efetiva que sofreu um enfraquecimento contínuo de dois de seus componentes -o consumo dos assalariados e as despesas públicas- e dominação de estratégias empresariais em que as reestruturações (o "re-engineering") prevalece sobre a criação de novas capacidades.
Num quadro de tensões comerciais crescentes entre as principais potências industriais, o capital tomado como um todo simplesmente administrou a situação por meio da concentração e de um novo impulso monopolista. As vagas sucessivas de fusões-aquisições serviram para adiar as consequências da superprodução transferindo para os grupos industriais mais fortes as parcelas de mercado dos grupos adquiridos, os quais são logo absorvidos e rapidamente reestruturados com reduções importantes de efetivos nos países de implantação das filiais. Os processos de fusão-aquisição revelam estratégias voltadas, não para a criação de novas capacidades produtivas, mas para sua reestruturação e, mais frequentemente ainda, para sua contração em termos de emprego. Este processo tem reduzido em níveis constantes o número total de grupos industriais em escala mundial, instituindo o oligopólio mundial como forma predominante de estrutura de oferta.
A administração da superprodução crônica latente por meio da concentração industrial doméstica e transnacional não poderá prosseguir infinitamente. As estratégias de concorrência oligopolística são de natureza a agravar a situação de capacidade ociosa. É o caso da indústria automobilística, por exemplo, onde a rivalidade oligopolística recentemente tomou a forma de decisões de investimento maciço, para os quais não existirá mercado correspondente tão logo as novas capacidades produtivas entrem em operação.
4. QUAIS SÃO OS LIMITES DA GLOBALIZAÇÃO?
A modalidade atual de "desenvolvimento", compreendido como extensão e transplante do nível de industrialização e do nível de vida dos países avançados não representa mais uma perspectiva viável para o conjunto dos países e continentes do mundo. Por um lado, já não é desejado por aqueles que outrora foram seus agentes externos (os grandes grupos industriais); por outro, conhecemos seus limites ecológicos incontornáveis, uma vez que os países avançados não querem renunciar a seus privilégios.
5. QUAIS OS RISCOS DE OS ESTADOS PERDEREM AUTONOMIA E SE TORNAREM APENAS CUMPRIDORES DAS DECISÕES DE ÓRGÃOS COMO A OMC (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO)?
Não há quase nada a se esperar das organizações internacionais, e menos ainda da Organização Mundial do Comércio. Nas fases finais da Rodada Uruguai, os EUA e os lobbies industriais dos quais os norte-americanos são porta-vozes fizeram triunfar uma "agenda além das fronteiras". Sem que os Parlamentos e, em certos casos, sem que os próprios governos tivessem consciência no momento da assinatura e ratificação do Tratado de Marrakech, teve lugar um crucial abandono de soberania dos países em favor da OMC e, por extensão, aos interesses capitalistas mais poderosos.
Com efeito, qualquer exportador pode agora questionar supostos "entraves à liberdade de comércio", isto é, medidas tomadas pelos Estados no campo da saúde, do controle de qualidade de alimentos, da preservação ambiental etc. Para tanto, basta entrar com um recurso diante do novo órgão de regulamentação, cujos "juízes" são árbitros comerciais privados adeptos da noção de que a "liberdade de comércio" deve prevalecer sobre qualquer outro princípio, e cujas decisões finais não podem ser desobedecidas senão com o aval unânime de todos os países membros!
O objetivo do Acordo Multilateral sobre o Investimento, em fase de elaboração, é o de estender os mesmos princípios ao investimento estrangeiro, garantidos pelo mesmo sistema de regulamentação, o que acabaria por tornar caducas todas as disposições jurídicas e mesmo constitucionais de controle do investimento, assim como toda e qualquer medida de política industrial voltada seja lá de que maneira para o estímulo à indústria nacional. Os grandes grupos industriais querem total liberdade de ação, sem qualquer entrave. Se o Acordo Multilateral vier à luz, a abdicação de soberania em favor dos grandes interesses capitalistas serão quase totais. Em nome da panacéia do mercado, dar-se-á um golpe de Estado legal e em escala mundial, para maior benefício dos mais ricos e poderosos.
6. QUEM GANHA E QUEM PERDE COM A GLOBALIZAÇÃO?Como disse Robert Reich (ex-secretário do Trabalho do governo Clinton) em seu livro de 1991, a mundialização é uma modalidade de funcionamento do capitalismo na qual "os ricos ficam mais ricos e os pobres ficam mais pobres". Mecanismos de integração seletiva triam aqueles países mais atrativos do ponto de vista da valorização do capital e aqueles que não o são. Mas os países não são entidades homogêneas. Todos eles estão divididos em classes sociais de interesses econômicos diferentes e com frequência antagônicos. Reich identificou bem quais categorias profissionais e quais camadas sociais saem perdendo ou ganhando no país que domina o movimento de mundialização financeira. As instituições criadas após a crise de 1929 e a Segunda Guerra Mundial haviam estabelecido limites ao poder do capital, e assim representavam um ponto de apoio para os assalariados diante de seus empregadores. A liberalização trazida pela "revolução conservadora" conseguiu enfraquecer fortemente essas instituições, quando não as destruiu.
Nos países em que a grande propriedade agrária, ao lado de relações de trabalho típicas das formas de exploração pré-industriais, não foi erradicada e, pelo contrário, deu origem a oligarquias agro-financeiras consolidadas em torno a sistemas bancário-usurários fortemente hipertrofiados, o "espírito empreendedor" teve as maiores dificuldades em se difundir. O Estado "desenvolvimentista" foi uma tentativa de suprir essa ausência e estimular a formação de uma classe capitalista moderna. No quadro de uma mundialização na qual a liberalização permite que os grandes grupos industriais estrangeiros competitivos produzam e vendam sem entraves, na qual as inversões financeiras têm rendimento superior aos investimentos produtivos, o reflexo patrimonial triunfa outra vez. A desnacionalização da indústria (ou a desindustrialização pura e simples) encontra apologistas nos mais altos escalões do Estado. A uma dominação cujos elos estavam nas academias militares estrangeiras sucede um regime mais "civilizado", de integração subordinada ao regime mundial. Suas engrenagens são as grandes universidades, os bancos estrangeiros e os grandes organismos econômicos e financeiros mundiais em Washington ou Genebra. Uma página da história social das nações foi virada.
* Nota: os franceses utilizam o termo "mundialização" em referência ao processo de globalização. Foi mantida, na tradução, essa particularidade.
Tradução de Samuel Titan Jr.
Folha de São Paulo

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