domingo, 26 de outubro de 2008

Joel Birman - O impacto da TV na subjetividade

Salto para o Futuro
Joel Birman

Formação:Mestre em Filosofia pela PUC/RJ e doutor em Filosofia pela USP. Realizou seu pós-doutorado na Université Paris VII.

Obra:
- Psicanálise, ciência e cultura. Jorge Zahar, 1994.
- Freud e a filosofia. Jorge Zahar, 2003.

A televisão tanto pode agregar, como pode desagregar, ela pode agregar (...) existe um fenômeno muito comum, vamos falar aqui do Brasil (...) do Brasil das classes médias ricas, que é muito comum a gente entrar numa casa e observar. Tem uma televisão na sala, e cada membro da família tem sua televisão privada. Esse tipo de relação com a televisão certamente funciona como um desagregador da família, cada um tem o seu universo de solidão, onde cada um fica entretido no seu mundo, seja um jogo de futebol, seja um programa mais picante, seja um reality show, onde as pessoas não conversam e onde a televisão é uma maneira de fomentar isso que eu estava chamando de cultura da captura da imagem. Agora, se você tem uma televisão na casa, a televisão pode funcionar como elemento agregador.

Salto - QUAL É O IMPACTO DA PROGRAMAÇÃO DA TELEVISÃO NA SUBJETIVIDADE DAS PESSOAS?
Sem dúvida que a televisão tem um impacto na subjetividade das pessoas, até mesmo porque a televisão brasileira, no caso, ela é sobretudo uma TV de entretenimento. Quer dizer, é muito menos importante a dimensão jornalística da televisão e a dimensão de debates críticos na televisão do que a dimensão propriamente de entretenimento.

A televisão realiza o que a gente chama hoje de uma sociedade fundada na imagem e não a dimensão de um discurso fundado no conhecimento. Me parece que essa dimensão imagística da televisão, essa dimensão da imagem, ela forma um tipo de subjetividade diferente de uma subjetividade anterior, que era formada, sobretudo, a partir da discursividade. Eu acho que essa localização do impacto da TV na subjetividade, ela teria que ser pensada diante de um contexto mais amplo, que é a produção de uma sociedade, de uma cultura centrada na imagem, em que a imagem tem um poder de captura, diferentemente de um discurso falado ou escrito. Quer dizer, uma cultura centrada na escrita é muito mais crítica do que uma cultura centrada na imagem, em que qualquer um de nós é capturado pela imagem, exatamente porque a imagem é polivalente, ela pode dizer muitas coisas ao mesmo tempo. Nós temos, diante da imagem, um menor desenvolvimento da nossa capacidade crítica. Então, eu acho que essas discussões atuais em torno da relação de subjetividade e televisão passam todas por essa relação com a cultura da imagem e a consideração da imagem como sendo algo da ordem da captura.

Salto - EXISTE ALGUMA POSSIBILIDADE DE O ESPECTADOR FICAR ATENTO PARA TOMAR CUIDADO PARA QUE ESSA CAPTURA NÃO SEJA TÃO DESTINADA À SUBJETIVIDADE E POSSA AGUÇAR A ANÁLISE CRÍTICA DO QUE ESTÁ SENDO VISTO NA TELEVISÃO?

É claro que a televisão faz dispor para as pessoas uma série de universos aos quais ela não teria acesso, digamos assim. Eu vejo isso sobretudo em alguns programas jornalísticos ensaísticos, que dão acesso a um caudal em informações, digamos assim, em que a dimensão crítica pode estar disponível para o espectador. Agora em programas em que a dimensão discursiva é menos presente, proporcionalmente falando, a dimensão de captura se torna mais violenta, mais intensa, mas evidentemente que tanto numa situação como em outra, na dimensão discursiva ou na dimensão do programa de entretenimento, a subjetividade vai estar implicada de uma forma ou de outra.

Por outro lado, a gente pode esquecer que é muito mais simples, do ponto de vista da exigência do espectador, assistir à televisão, por exemplo, do que ler um livro. O livro exige uma espécie de energia mental, uma espécie de esforço que o leitor faz, que é muito menos exigido de um espectador de televisão, que pode ficar numa atitude mais passiva, saboreando as imagens que são ofertadas para ele. Então, o livro dá mais trabalho para o leitor do que a televisão, certamente.

Salto - BANALIZAÇÕES DA VIOLÊNCIA E A DA PRÓPRIA SEXUALIDADE ATRAVÉS DOS PROGRAMAS DE TV INFLUENCIAM O COMPORTAMENTO DA POPULAÇÃO?

Eu acho que a gente não pode diabolizar a televisão. Eu acho que seria uma coisa primária diabolizarmos a televisão, quando a gente vê meninos americanos que matam colegas na escola, e que eles aprenderam isso, supostamente, vendo programas violentos de televisão. Me parece que a relação entre televisão e comportamento, no caso os comportamentos violentos ou de forte apelo sexual, ela não pode ser vista de uma maneira mecânica. Até mesmo porque a gente não pode entender o comportamento, por exemplo, de jovens americanos que matam os colegas na escola apenas pela influência da televisão. Há toda uma tradição americana de faroeste e de uma sociedade em que a autorização de portar armas está presente, inclusive os pais têm armas em casa. Então, eu tenho que entender que aquilo que aparece na televisão é uma espécie de microcosmos da sociedade. Eu não posso simplesmente diabolizar a televisão como responsável por aquilo, quando ela faz parte de uma engrenagem que eu diria muito mais vasta e muito mais ampla. Considerando isso, é evidente que, ao assistir filmes com alto grau de exibição de cenas perversas, sexualmente falando, ou em que predomine a violência, a criança ou adolescente têm acesso a mundos, a personagens, a contextos... Evidentemente que a televisão pode provocar uma dimensão do que, em psicanálise, nós chamamos de identificação com os personagens que são apresentados, sobretudo nos filmes, menos do que nos programas jornalísticos onde aparecem as cenas de violência, como as que acontecem, por exemplo, hoje no Rio. Mas na dimensão da ficção, dos filmes de entretenimento, essa dimensão da identificação de quem assiste, ou seja, na relação do espectador com o filme, essa identificação pode acontecer com a criança, com os adolescentes e com os adultos, de uma certa maneira.

Então, essa dimensão da identificação, ela pode ter um efeito sobre o comportamento não de maneira imediata, mas de uma maneira mediata, mas isso sem considerar essa relação, de uma maneira mecânica, que me parece uma forma simplista... Essas novas formas de programas que se apresentam hoje, do ponto de vista da cena subjetiva, me parecem muito mais preocupantes, por exemplo: esses programas tipo reality show, esses eu acho que têm um impacto sobre a subjetividade muito mais intenso e muito mais violento, porque você está vendo na televisão personagens que são do seu cotidiano, você pode localizar alguém que pode ser parecido com seu pai, com seu irmão, com seu vizinho, com seu tio, pessoas que fazem parte de seu mundo. Nesses programas se alimenta uma espécie de ética rivalitária, competitiva, em função de um prêmio. No caso aí da TV Globo, dimensões muito perversas da rivalidade, da competição humana são alimentadas e são valorizadas, pelo fato de que são mostradas meia hora, vinte minutos, todos os dias na televisão. Isso eu acho que tem um efeito muito mais nefasto, muito mais violento sobre os espectadores, até mesmo porque aí há a abolição dessa fronteira entre o privado e o público, entre a intimidade e mesmo a privacidade, o privado começa a se apagar.

Salto – COMO ESSA QUESTÃO DO QUE É PÚBLICO E PRIVADO ESTÁ PRESENTE NA VIDA DAS PESSOAS?

Eu acho que o efeito da televisão, na vida dos artistas – as revistas tipo Caras são um exemplo paradigmático disso – estimulam a curiosidade sobre a vida dos artistas, entram na cena imaginária da subjetividade das pessoas. Não podemos perder de vista que nós vivemos numa cultura performática, aquilo que se denomina filosófica e sociologicamente como sociedade do espetáculo. Uma sociedade do espetáculo, onde eu sou aquilo que eu mostro ser (...), o que de verdade eu sou não importa, o que importa é o que eu aparento ser numa cena, sempre numa cena, onde você tem a disseminação disso, através de uma imagem, seja jornalística, televisiva ou cinematográfica, etc. E o artista, no caso, ele é o paradigma do sujeito performaticamente bem sucedido. Então, essa espécie de voyeurismo a respeito do artista, o artista que faz sucesso, de como é a vida dele, como são os hábitos dele, como são as escolhas, qual é a comida que ele come, quais são as mulheres ou os homens que escolhe, é uma imagem de sucesso dessa performance, com a qual as pessoas, de uma maneira inconsciente, querem se identificar, como se isso fosse uma fórmula de espetáculo e de sucesso. Então os artistas são particularmente figuras paradigmáticas da nossa contemporaneidade, enquanto modelos de identificação subjetiva, que é como se eles fossem os cidadãos que tivessem dado certo, isto é, são bonitos, têm sucesso, conhecem belas mulheres ou belos homens, enriquecem, enfim, todos os signos do “self made man”– da pessoa bem-sucedida, que a cultura do espetáculo promove como sendo os heróis da nossa contemporaneidade.

Salto - QUAL A IMPORTÂNCIA DA TELEVISÃO DENTRO NO SEIO DA FAMÍLIA? ELA PODE AGREGAR OU DESAGREGAR? COMO A FAMÍLIA DEVE ATUAR CRITICAMENTE NESSE ASPECTO DA RELAÇÃO COM A PRÓPRIA TELEVISÃO?

A televisão tanto pode agregar, como pode desagregar, ela pode agregar (...) existe um fenômeno muito comum, vamos falar aqui do Brasil (...) do Brasil das classes médias ricas, que é muito comum a gente entrar numa casa e observar. Tem uma televisão na sala, e cada membro da família tem sua televisão privada. Esse tipo de relação com a televisão certamente funciona como um desagregador da família, cada um tem o seu universo de solidão, onde cada um fica entretido no seu mundo, seja um jogo de futebol, seja um programa mais picante, seja um reality show, onde as pessoas não conversam e onde a televisão é uma maneira de fomentar isso que eu estava chamando de cultura da captura da imagem. Agora, se você tem uma televisão na casa, a televisão pode funcionar como elemento agregador. Certamente a grande maioria das famílias não tem renda para poder ter vários aparelhos, e assistir à TV, hoje, pode ser visto como um substitutivo daquilo que, na minha infância, era o jantar de família. O jantar era o momento em que chegávamos da rua, uns da escola, outros do trabalho, era um momento em que a família se reunia. Há uma certa ritualidade meio sagrada nessa reunião familiar, e eu tenho a impressão de que hoje em dia nas casas que têm televisão, em que a televisão ocupa, inclusive, um lugar destacado na casa, ela esta na sala de jantar, é o momento em que a família se reúne, quando os diálogos se estabelecem entre as pessoas a partir do que elas estão vendo, seja uma notícia jornalística, seja um comentário sobre um filme. Então, nesse contexto, a televisão funciona como uma dimensão de reconstituição de uma família que socialmente está fragmentada.

Salto - QUAL É O GRAU DE IMPORTÂNCIA DA TELEVISÃO NA VIDA DA SOCIEDADE BRASILEIRA HOJE, EM RELAÇÃO A OUTRAS POSSIBILIDADES DE ENTRETENIMENTO E DE INFORMAÇÃO EXISTENTES?

É claro que a televisão ocupa um espaço muito grande hoje na vida de uma criança e de um adolescente, em relação a duas ou três décadas atrás, quando a televisão estava engatinhando no Brasil. Mas a gente pode separar isso da grande transformação que a sociedade brasileira sofreu, e que é o fato de que não só o pai, como as mães trabalham, isso tem uma transformação central na família. A mãe hoje sai para o trabalho e, anteriormente, a mãe era uma figura muito importante na criação de outros tipos de laços sociais dentro da casa. Então, na ausência da mãe, na ausência do pai, a criança vai se entreter, para não se sentir solitária, diante da televisão. Ela vai ver TV para estar com alguém. E, evidentemente, esse estar com alguém protege a criança da solidão e de um certo sentimento de desamparo. E, ao mesmo tempo, a televisão pode levar a criança para universos às vezes não muito desejáveis, mas me parece que a televisão ocupa um lugar que, anteriormente, era centrado na figura materna. Eu acho que a grande transformação produzida na família com autonomização da mulher, com os direitos da mulher, é que isso transformou também a estrutura da família. O que eu quero dizer com isso é o seguinte: não é que as mulheres têm que voltar a estar em casa, largar as suas obrigações para cuidar dos seus filhos, para os filhos não serem desviados pelo vilão da televisão, absolutamente, o que eu quero dizer com isso é seguinte: os pais, tanto os pais como as mães, vão ter que ter um trabalho de entretenimento, de ligação, de educação dos filhos, e isso é uma tarefa dos dois, para dar à televisão o tamanho que ela possa ter na vida das crianças e fazer outras ofertas de entretenimento às crianças... Mas, certamente, a partir do movimento feminista, isso é uma tarefa a ser igualmente distribuída entre o pai e a mãe, não é necessariamente, segundo o modelo tradicional, uma obrigação feminina. Eu acho que isso não pode se pensado fora da grande transformação familiar que criou um outro lugar social e político para a mulher.

Salto - O OLHAR SE EDUCA?

O olhar seduz e o olhar também educa. É preciso saber que tipo de imagem você está oferecendo. Em toda a idade clássica nós fomos educados pela pintura. A pintura é uma educação pelo olhar, em que nós temos um tipo de gosto, um tipo de acesso ao mundo que a palavra escrita não nos oferece. Então, tem uma dimensão que as artes plásticas, as artes visuais oferecem, que é fundamental, e onde a dimensão da sedução é fundamental. Nós não temos que diabolizar a sedução. A sedução é ótima, agora é preciso saber que imagens a gente oferece nessa espécie de educação sentimental do olhar.

Salto - O SENHOR ASSISTE TV?

Eu assisto TV. Devo assistir TV um pouco menos que a média da sociedade brasileira. Eu freqüentemente assisto aos telejornais, isso completa a leitura que eu faço dos jornais pela manhã. Eu assisto futebol na televisão, que eu adoro. Eu assisto filmes na televisão e assisto programas de debate. Outros tipos de programas, tipo novela de televisão, eu não gosto muito. Reality show eu assisto como um antropólogo interessado em saber: o que é isso? Mas fundamentalmente é cinema, futebol, telejornais, programas de discussão de todas as ordens que me interessam.

Salto - É PRECISO INTERFERIR NO QUE A CRIANÇA VÊ NA TELEVISÃO OU A PRÓPRIA CRIANÇA, COM SUA ORGANIZAÇÃO MENTAL, VAI SE ORGANIZANDO DIANTE DO QUE VÊ?

Tudo que a criança vê vai ter um poder impactante sobre ela. Eu acho que a criança não pode ser deixada por conta dela própria, no sentido de que é preciso saber o que programa oferece ou não oferece, isso que inicialmente eu chamei aqui de uma dimensão crítica da imagem, os pais têm que observar isso. Às vezes a criança vai perguntar, a respeito do que ela viu: o que que é isso? Como é que é aquilo? Ela vai fazer perguntas, que faz parte da própria constituição psíquica da criança a questão do “por quê”? Por que isso? Por que aquilo? E os pais, independente dos porquês das crianças, eu acho que os pais e professores devem ficar preocupados, no sentido de trazerem de volta a dimensão crítica, que freqüentemente os programas de entretenimento não trazem. Os pais têm que fazer o papel de uma consciência crítica, aproveitando aquilo para transmitir certas regras de moralidade, regras éticas, digamos assim, de desenvolvimento do pensamento. E, nesse sentido, eu acho que as experiências das crianças podem ser muito enriquecidas com esse tipo de colaboração fundamental das figuras parentais e dos professores.


21 de maio de 2003

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